quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

TODA LEITURA VALE PELA DESCOBERTA

É possível escrever sobre pulhas e nobres, sobre nações e indivíduos. É possível sondar a alma e também expor as mazelas da vida cometidas por homens contra homens.

E é possível de igual modo divagar sem nada dizer, e ainda assim comover os outros, extrair lágrimas de quem já chora tanto – vítimas da mesquinhez nossa de cada dia –, gozo dos que já gozam, prazer dos que comprazem, compreensão dos que sabem compreender.

É possível escrever sem enxergar, dizer sem falar, retratar sem máquina fotográfica, sem pincel, mas com palavras, escarafunchando oceanos e desertos, as profundezas do ser e os pântanos que entrelaçam imaginação e realidade.

Nessas aventuras, no entanto, só entram alguns tipos de caracteres imaginativos. Alguns gênios e outros geniosos. Mas cada um a seu modo destrinchando o fio da linguagem a tal ponto que chega a tocar o leitor.

E aí entra um novo mundo. Se é possível escrever tantos universos paralelos, também é possível ler e imaginar, recriando espaços e perfazendo caminhos nunca dantes imaginados, até mesmo por quem supunha ter encontrado o trilho da felicidade na leitura.

O leitor também tem sua vez. É possível ler o mundo como quem lê um livro. E o contrário pode acontecer de igual feita: é possível ler um livro como quem observa a realidade ao seu redor.

Não diria assim o explorado atento, ao ler Vidas Secas? Não diria assim o sertanejo, ao ler Grande Sertão: Veredas?; e, ao ler, também não teria algo para dizer o humanista ao conhecer o mesmo Sertão de Rosa?

O fagulho depende do leitor para espalhar o fogo. Quem escreve acende o fósforo, mas quem lê oferece oxigênio ao vento que carrega a faísca, oferece mais, oferece material de combustão, oferece mais, oferece a eterna hospedagem.

Não seria por isso que o leitor atento, ao ler Dostoiévski, vê na frase “todo homem necessita de um lugar para voltar” uma remissão ígnea ao velho Homero, que fez de sua obra um entendimento dessa premissa? Ilíada não fora escrito na juventude do poeta? Odisseia não fora na sua velhice? Uma era a marcha do heroi à guerra. A outra, a volta para casa, depois de fatigadas lutas. “Todo homem necessita de um lugar para voltar”. Sábias palavras.

A literatura é como uma volta para casa, porque o leitor pode revolver o espírito e apontar para lugares e caminhos que nenhum outro tipo de escrita é capaz de fazê-lo, e depois retomar a cotidianidade.

A literatura é ao mesmo tempo Ilíada e Odisseia. É possível escrever sobre tudo. Mas como se faz, como se faz? Nem todos conseguem, como não consegue ultrapassar a superfície das letras este que escreve agora.

É possível ler rumo a diferentes paragens. Mas nem todos são capazes de compreender os mistérios e os fascínios da literatura a ponto de mergulhar nesse pântano de encontros. Mais vale a descoberta. E nisso, a literatura não tem igual.

Publicado originalmente no Overmundo, em 8 de março de 2007.

DEU NA FOLHA DE S. PAULO: Flip anuncia a vinda de António Lobo Antunes

A última vez que o escritor português António Lobo Antunes veio ao Brasil foi em 1983. Agora está acertado sua volta ao país para a participação na coqueluche literária, a Flip: Festa (não sei por quê, mas, em minha cabeça vem sempre Feira) Literária Internacional de Paraty, em que terá mesa exclusiva para uma participação em forma de entrevista.

Lobo Antunes e José Saramago não se simpatizam muito. Segundo Eduardo Simões, da Folha de S. Paulo, quando o autor de Os cus de Judas fala da razão de não ter vindo ao Brasil há tanto tempo, embora seja neto de brasileiro, ele alfineta seu desafeto.

“Sou um homem generoso. Resolvi deixar o Brasil para Saramago, coitado, e ficar com o resto do mundo. Mas acho que vou começar a querer o Brasil para mim”, é o que diz Lobo Antunes, um dos maiores escritores vivos da língua portuguesa.

A sétima edição da Flip será realizada de 1º a 5 de julho deste ano e vai homenagear o poeta pernambucano Manuel Bandeira (1886-1968).

Sobre Lobo Antunes neste blog, leia também:

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

DOIS HOMENS NEGROS: semelhanças, distinções

Cruz e Sousa: O racismo e a intolerância para com os gênios negros mudaram pouco

João da Cruz e Sousa. Brasileiro de Florianópolis, Santa Catarina. Filho de escravos forros, foi educado por uma senhora branca de boas intenções e cheia de amor. Lia em alemão, francês, inglês, espanhol e latim.

Poeta simbolista, autor de versos tumultuados de revoltas, nasceu em 1861. Morreu, pobre, doente e ignorado, em Minas Gerais, em 1897, tendo seu corpo transportado para o Rio de Janeiro num vagão de trem de cargas, entre bostas e mijos de animais.

Se tivesse vivido nos dias de hoje, pobre como era, com o temperamento que tinha, seu destino não teria sido muito diferente. O racismo e a intolerância para com os gênios negros continuam o mesmo. O cinismo eterno desses preconceitos infinitos me apavora.

Livros encontrados na Livraria Cultura:

Broqueis e Farois (DCL, 2006)
Antologia poética (Ática, 2006)



Obama, em foto de Martin Schoeller: se fosse negro nos EUA do século XIX,
provavelmente, nem teria entrado para a história

Barack Hussein Obama II. Norte-americano, nascido em Honolulu, Havaí, em 1961 (cem anos depois de Cruz e Sousa). Filho de mãe branca e pai negro, de origem queniana. Quando criança viveu na Indonésia, até voltar para o Havaí e ficar com os avós. Estudou Ciências Políticas em Nova York e Direito em Havard.

Na Columbia University, em Nova York, quis praticar esportes para namorar as mulheres. Mas logo descobriu que as que lhe interessavam preferiam os poetas. Mudou de postura e virou intelectual. É contemporâneo. É presidente dos Estados Unidos. Empossa hoje, 20 de Janeiro de 2009.

Se fosse brasileiro, seria, no máximo, ministro da cultura (em função de um governo recém-aceito). Há dez anos, nem isso. Se fosse norte-americano no século XIX, provavelmente, nem teria entrado para a história.

Livros encontrados na Livraria Cultura:

A origem dos meus sonhos (Gente, 2008)
A audácia da esperança (Larousse do Brasil, 2007)

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

ESCRITORES INDIANOS PUBLICADOS NO BRASIL

A população indiana é incrivelmente numerosa, passando de um bilhão de pessoas, e só perde para a China, onde já são quase 1,5 bilhão de chineses. Com essa estatística, fica claro que o número de escritores da Índia também é colossal. Mas no Brasil, a tradução desses autores ainda é pequena.

Para se ter uma idéia do déficit, leia as reportagens do Le Monde Diplomatique Brasil, A descoberta das literaturas indianas e Dos Vedas ao Kama Sutra, publicadas em março de 2007. Veja quantos indianos não são publicados aqui, aproveitando para entender melhor o que é a literatura daquele país.

Esse déficit, porém, não significa que a literatura indiana seja ruim. É que nós leitores brasileiros ainda não a descobrimos por completo. Mas está mudando. Os autores novos traduzidos no Brasil já formam uma lista considerável, que dá uma boa introdução.

Segundo Arthur Nestrovski, num ótimo artigo na Folha de S. Paulo de 2001, intitulado Uma experiência às avessas, mais da metade dos novos escritores indianos não mora na Índia, e escreve em outras línguas, principalmente em inglês.

“As questões de identidade, que já seriam previsíveis no contexto da cultura pós-colonial, só se acentuam para quem está dentro e fora da Índia ao mesmo tempo. Isso, aliás, é um dos fatores que torna a literatura indiana tão instigante para o leitor brasileiro”, argumenta Nestrovski.

Muitos desses autores são requisitados como sendo de outros países também, principalmente dos Estados Unidos, uma vez que têm dupla cidadania. Mas sua literatura é sem dúvida indiana, pelo caráter interno de sua construção, pela linguagem e pela temática.

No Brasil, os mais conhecidos ainda são os anglófonos Salman Rushdie e V.S. Naipaul, além da escritura sagrada do Mahabharata, especialmente a Sublime Canção (Bhagavad Gita), e alguma auto-ajuda, cuja leitura não é demérito. Cada um mete na alma o que deseja.

O que se sabe, ou imagina-se, é que, com o advento da novela da Globo, Caminho das Índias, de Glória Perez (que estreia hoje), muita gente quererá saber mais sobre o país de Mahatma Ghandi. A literatura, neste caso, é uma forma de apresentação.

Em função disso, este blogueiro desajustado e amante da TV, oferece uma pequena lista aos pingados navegantes interessados.

A literatura indiana publicada no Brasil

Akhil Sharma (1971 - ): Um pai obediente (Globo, 2001).

Amitav Ghosh ( - 1956): O palácio de espelho (Alfaguara, 2006); O Cromossomo Calcutá (Ática, 1998 - esgotado); Maré voraz (Alfaguara Brasil, 2008).

Anita Desai (1937 - ): Sob custódia (Rocco, 1988 – esgotado).

Anita Nair (1966 - ): Cabine para mulheres (Nova Fronteira, 2003)

Aravind Adiga (1974 - ): O tigre Branco (romance de estreia de Adiga, Nova Fronteira, 2008).

Arundhati Roy (1961 - ): O Deus das pequenas coisas (Companhia das Letras, 1998).

Jhumpa Lahiri (1967 - ): Intérprete de males (Companhia das Letras, 2001); O xará (Companhia das Letras, 2004).

Kiran Desai (1971 - ): O legado da perda (Alfaguara Brasil, 2007); Rebuliço no pomar de goiabeiras (Record, 2000).

Mahatma Gandhi (1869 – 1948): Minha vida e minhas experiências com a verdade [Autobiografia] (Palas Athena, 1999 - esgotado); Roca e o calmo pensar (Palas Athena - esgotado); Gandhi e o Cristianismo (Paulus); Somos todos irmãos (Paulus, 1999); Princípios de vida (Nova Era, 2007); Bhagavad-Gita segundo Gandhi (Ícone, 2008).

Manil Suri (1959 - ): A morte de Vishnu (Companhia das Letras, 2001).

Pankaj Mishra (1969 - ): Tentações do Ocidente: a modernidade na Índia, no Paquistão e mais além (Globo, 2007).

Rabindranath Tagore [Prêmio Nobel de Literatura de 1913] (1861 - 1941): Uma canção para meu filho (Vergara & Riba, 2004 – Auto-ajuda); Gitanjali (Paulus, 1991 [esgotado], e Martin Claret, 2007 – poesia religiosa); Meditações (Idéias & Letras, 2007 – religião); Poesia mística (Paulus, 2003 – religião); A colheita (Paulus, 1991 – religião - esgotado); O coração de Deus (Ediouro, 2004 – religião – esgotado); A fugitiva (Paulus, 1991 – filosofia – esgotado); O jardineiro (Paulus, 1991 – religião – esgotado); A lua crescente (Paulus, 1991 – religião – esgotado); Noibeddo (Paulinas, 1998 – religião – esgotado); Pássaros perdidos (Paulus, 1991 – religião – esgotado); Presente de amante e Travessia (Paulus, 1991 – filosofia – esgotado); Sadhana (Paulus, 1994 – religião – esgotado).

Rohinton Mistry (1952 - ): Assuntos de família (Objetiva, 2003); Um delicado equilíbrio (Objetiva, 1997).

Salman Rushdie (1947 - ): A feiticeira de Florença (Companhia das Letras, 2008); Cruze esta linha – ensaios e artigos [1992-2002] (Companhia das Letras, 2007); Os filhos da meia-noite (Companhia das Letras, 2006) Fúria (Companhia das Letras, 2003); Haroun e o mar de histórias (Paulicéia, 1991, e Companhia das Letras, 1998); Shalimar, o equilibrista (Companhia das Letras, 2005); O último suspiro do mouro (Companhia das Letras, 1996); Oriente, Ocidente (Companhia das Letras, 1995); Versos satânicos (Companhia das Letras, 1998); O chão que ela pisa (Companhia das Letras, 1999).

Sudhir Kakar (1938 - ): O asceta do desejo (Companhia das Letras, 2000); A louca e o santo [com Catherine Clement] (Relume-Dumará, 1997); Mira e o Mahatma (Relume-Dumará, 2005). OBS: Esse autor foi uma ótima dica do internauta Frederico Escocard. Segundo ele, trata-se de um psicanalista indiano, cujo livro O asceta do desejo “conta a história de um discípulo de Vatsyayana – o autor do Kamasutra – e sua descoberta da sexualidade.”

V. S. Naipaul [Prêmio Nobel de Literatura de 2001] (1932 - ): Entre os fiéis (Companhia das Letras, 1999 – história); Sementes mágicas (Companhia das Letras, 2007); Além da fé (Companhia das Letras, 1999 – viagens); O enigma da chegada (Companhia das Letras, 2001); Índia (Companhia das Letras, 1997); O massagista místico (Companhia das Letras, 2003); Meia vida (Companhia das Letras, 2002); Uma casa para o senhor Biswas (Companhia das Letras, 2001); Uma curva no rio (Companhia das Letras, 2004); Os mímicos (Companhia das Letras, 2001); Um caminho no mundo (Companhia das Letras, 1994) [esgotado]; Guerrilheiros (Companhia das Letras, 2001).

Vikas Swarup (1963 - ): Sua resposta vale um bilhão (Companhia das Letras, 2009 e 2006).

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

LITERATURA INDIANA: o perfil de Rabindranath Tagore

Tagore: um dos indianos mais publicados no Brasil

A Índia tem dois Prêmios Nobel de Literatura. Um está vivo e não vive na Índia, sequer nasceu lá, V.S. Naipaul, Nobel de 2001. O outro, o primeiro deles, foi Rabindranath Tagore, laureado em 1913, e é sem dúvida um indiano mais autêntico do que Naipaul, sem desmerecimento para nenhum dos dois.

Tagore não escrevia em inglês, mas em sua língua natal, o bengali. Mesmo assim, ele também fazia uma ponte entre os dois mundos, oriental e ocidental. Nasceu em 1861 e morreu em 1941. Era membro de uma família rica e tradicional, cujo pai era um líder religioso Brâmane Samai.

Foi educado em casa, com tutores altamente conceituados. Aos 17 anos, foi estudar na Inglaterra, mas não concluiu os estudos e voltou para administrar os negócios da família. Nessa época, entrou em contato com as questões terrenas da humanidade, os problemas do homem comum, que na Índia significa miséria, miséria, miséria, principalmente num tempo que nem Gandhi havia surgido.

Aliás, foi justamente nesse período de amadurecimento de Tagore que Gandhi apareceu no cenário político-religioso da Índia. Contemporâneos, os dois homens se assemelhavam nas ideias nacionalistas e de resistência, logo se tornando grandes amigos. Foi Tagore, inclusive, quem batizou Gandhi com o prenome de Mahatma (que quer dizer ‘grande alma’).

Em 1915, Tagore foi ordenado Cavaleiro (Knight), se tornando Sir Rabindranath Tagore, pelo governo britânico, mas em poucos anos recusou a honraria, em protesto às ações políticas do Império Britânico na Índia.

Na página do Prêmio Nobel, dedicada a Tagore, a apresentação da Academia Sueca de Letras diz o seguinte:

“Tagore teve sucesso imediato escrevendo em sua língua nativa. Com as traduções de alguns de seus poemas, ele, rapidamente, se tornou conhecido no Ocidente.

De fato, sua fama atingiu uma alta luminosidade, levando-o para todos os continentes, onde fazia conferências e conquistava amizades. Para o mundo ocidental, ele se tornou a voz da herança espiritual indiana; e para a Índia, especialmente para os bengaleses, passou a ser uma grande instituição viva.”


Seu livro mais famoso é Gitanjali, com o qual ganhou o Nobel de Literatura, mas, segundo o crítico britânico Martin Seymour-Smith (1928 – 1998), não é o livro mais bem acabado de Tagore.

“O romance Gora [sem tradução no Brasil] é sua melhor realização literária, em que ele consegue resolver sutil e dinamicamente o conflito, que existe em todo indiano nobre e bem educado, entre a ocidentalização e os valores indianos”, diz Seymour-Smith, em seu livro The new guide to the modern world literature.

Tagore era acima de tudo poeta, mas escreveu em todos os gêneros literários. No Brasil, sua obra está ligada ao sentido religioso, muito embora, alguns dos livros denominados de religião, no fundo, são de caráter poético, são poesias, cujos volumes passam de 50. É um dos indianos mais publicados no Brasil, junto com Salman Rushdie e V.S. Naipaul.

Serviço

Alguns livros de Tagore podem ser comprados na Livraria Cultura, clique no título.

Título: Uma canção para meu filho
Autor: Rabindranath Tagore
Editora: Vergara & Riba, 2004
Gênero: Auto-ajuda
Preço: R$ 14,90

Título: Gitanjali
Autor: Rabindranath Tagore
Editora: Martin Claret, 2007, 124 páginas
Gênero: Poesia religiosa
Preço: R$ 10,50

Título: Meditações
Autor: Rabindranath Tagore
Editora: Ideias & Letras, 2007, 158 páginas
Gênero: Religião
Preço: R$ 21,00

Título: Poesia mística
Autor: Rabindranath Tagore
Editora: Paulus, 2003, 480 páginas
Gênero: Religião
Preço: R$ 26,00

GIORDANO BRUNO ERA UM MÁRTIR, MAS, DO QUÊ?

Giordano Bruno em ilustração da Universidade de Yale, EUA


A nova biografia de Giordano Bruno, escrita por Ingrid Rowland (leia mais aqui), está dando o que falar, tentando trazer de volta a discussão sobre um sujeito admirável, herético até a medula, gênio e insubordinado, corajoso e doidivanas, inconsequente, mal criado, e, por causa disso, queimado na Fogueira Santa.

Recentemente, o jornalista do New York Times, Anthony Gottlieb, escreveu um texto intitulado O homem partícula, sobre Bruno, falando de sua existência enigmática e da insuficiência das informações sobre seu julgamento, abordando alguns elementos trazidos à tona por Ingrid, cujo livro ainda não foi traduzido para o português.

Leia um trecho:

“Já está se tornando uma palavra gasta, mas Giordano Bruno pode ser descrito simplesmente como um dissidente. Queimado na fogueira em Roma numa Quarta-Feira de Cinzas, em 1600, ele parece ter sido uma mistura inclassificável de saltimbanco boca-suja napolitano, poeta tagarela, reformador religioso, filósofo escolástico e um tipo ligeiramente estranho de astrônomo.

Sua versão do Cristianismo é impossível de se rotular. Educado pelos dominicanos – guardiões da ortodoxia católica daqueles tempos –, reverenciou certas escrituras e os textos de Santo Agostinho, sempre duvidou da divindade de Cristo e flertou com as perigosas novas ideias do Protestantismo, e ainda pediu que o próprio Papa o livrasse da acusação de heresia.

Bruno foi mártir de alguma coisa, mas, quatro séculos depois de sua imolação, ainda não há clareza sobre o quê. O fato de todo os arquivos de suas 16 interrogações terem se perdido ou sido destruídos não ajuda em nada. O enigma de Bruno é mais profundo do que tudo isso, conforme Ingrid Rowland, pesquisadora da Renascença, que leciona em Roma, deixa claro em sua rica biografia recém-publicada, Giordano Bruno.

Era ele uma espécie de explorador científico, para ser comparado com Galileo, cujo suave encontro com a Inquisição Romana – de fato, com o mesmo inquisidor, Cardinal Bellarmine – não durou muito?

Como Galileo, Bruno rejeitou a cosmologia geocêntrica e a física aristotélica, que era endossada pela Igreja. No século XIX, historiadores da ciência viam-no como um precursor da teoria atômica e do universo infinito.

Ou era Bruno um sonhador ocultista, mais mágico do que matemático, conforme o renomado historiador Frances Yates, convincentemente, argumentou nos anos 1960? Em uma coisa ou outra, Bruno sofreu as conseqüências de falar o que pensava, embora, também tenha tido um bocado de azar nessa história, muitas vezes sendo o próprio responsável pelos seus revezes.”

OBS: Para saber mais sobre Giordano Bruno, uma boa dica é o livro de Frances Yates, citado no texto por Gottlieb, Giordano Bruno e a tradição hermética (Cultrix, 2ª ed., 1995, 505 páginas), que pode ser comprado na Livraria Cultura.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

LITERATURA INDIANA: o perfil de Pankaj Mishra

Mishra: literatura é plural

Talvez a principal diferença dos escritores indianos, em relação a outros grupos, esteja em sua formação plural. São poucos os que estudaram literatura ou humanidades desde o começo. Pankaj Mishra, por exemplo, graduou-se em Comércio Exterior e só depois migrou para as letras, fazendo mestrado em Literatura Inglesa. Mesmo assim, é mais autodidata do que qualquer outra coisa, segundo ele mesmo.

Nascido em 1969, na pequena cidade de Jhansi, norte da Índia, Mishra mora atualmente em Londres, mas já viveu nas montanhas do Himalaia também, onde permaneceu por cinco anos, de 1992 a 1997, quando lia em média um livro por dia. “Aprendi a ler um livro de 350 páginas num espaço de cinco a seis horas”, diz em uma entrevista. Nessa época começou a escrever para várias revistas e jornais da Índia e da Europa.

No Brasil só tem um livro publicado, Tentações do Ocidente: a modernidade na Índia, no Paquistão e mais além (2007), que pode ser um bom começo para quem quer entender o modo asiático de vida nos tempos de hoje, em meio a tradições e renovação cultural. Seus ensaios publicados em The New York Review of Books, The Guardian, entre outros veículos, são mais conhecidos.

Entre os livros de Mishra, há o romance The Romantics (2000, traduzido em Portugal como Os românticos) e os ensaios An End to Suffering: The Buddha in the World (2004) e Butter Chicken in Ludhiana (1995). Este último fala sobre as cidades pequenas da Índia. Um dos temas mais abordados por ele são a globalização e os efeitos dos costumes dos grandes centros nas pequenas localidades. Isso porque ele entende muito bem o que é ser provinciano e o que é ser cosmopolita.

Em seus ensaios políticos e literários, Mishra também discorre sobre o choque de civilizações, em que defende a pluralidade, combatendo qualquer maniqueísmo. Em entrevista à revista Believer, por exemplo, Mishra critica duramente um artigo do escritor britânico, muito conhecido no Brasil, Martin Amis, sobre o Islamismo.

Leia um trecho:

“Martin Amis escreveu um artigo de 12 mil palavras no Observer para dizer basicamente – estou parafraseando – que Londres é uma sociedade multicultural, na qual o Islamismo é a única coisa que não se encaixa.

Sua maior experiência com o Islamismo nesse artigo é Christopher Hitchens comprando uma camiseta do Osama [Bin laden] em Peshawar [cidade paquistanesa] e ele e sua mulher sendo impedido de entrar numa mesquita, em Jerusalém, após o horário de funcionamento.

No artigo, Amis mantém toda uma fantasia paranóica sobre o homem na mesquita em Jerusalém e como o tal homem poderia ter matado a ele e sua mulher. Achei realmente perturbador de ver um romancista escrevendo essa diatribe sobre o Islã e os extremistas islâmicos, manchando a diferença que há entre e uma coisa e outra.”


Para ver a entrevista no original e completa, clique aqui.

Serviço

O livro de Mishra pode ser comprado na Livraria Cultura, clique no título.

Título: Tentações do Ocidente: a modernidade na Índia, no Paquistão e mais além
Autor: Pankaj Mishra
Editora: Globo, 2007, 438 páginas
Gênero: História Geral
Preço: R$ 39,00

PORTUGAL TELECOM 2009 ABRE INSCRIÇÕES

De acordo com o jornal Folha de S. Paulo, o Prêmio Portugal Telecom de Literatura abriu as inscrições para o concurso de 2009, que vão de hoje (15/01) até o dia 28 de fevereiro. Quem quiser participar, deve enviar quatro cópias do livro inscrito para o seguinte endereço:

Avenida Brigadeiro Faria Lima, 2.277, 15º andar. CEP: 01452-000, São Paulo – SP.

O histórico e o valor

O Prêmio foi criado em 2003 para incentivar a produção literária brasileira, seja romance, conto, poesia, crônica, dramaturgia, biografia ou autobiografia. Em 2007, passou a contemplar todas as literaturas dos países de língua portuguesa, desde que fossem também publicadas no Brasil. Nesse mesmo ano, o ganhador foi o português Gonçalves M. Tavares.

O concurso é referente a um livro, e não à obra inteira, e se estende a três colocações. O primeiro colocado ganha R$ 100 mil, o segundo, R$ 35 mil, e o terceiro, R$ 15 mil. Em língua portuguesa, é uma das maiores premiações dedicadas a um único livro.

Das regras

De acordo com as regras do Prêmio, para concorrer, os livros têm de ser:

1. escritos originalmente em língua portuguesa;

2. em primeira edição no Brasil no período compreendido entre 1º de janeiro e 31 de dezembro do ano anterior ao do prêmio. No caso de livros originalmente editados em outros Países, para concorrer em 2009, a primeira edição no outro País deverá ter ocorrido entre 1º de janeiro de 2005 e 31 de dezembro de 2008. Nos dois casos, para primeira edição deverá ser observada a data impressa no colofão do livro;

3. em modelo impresso.

Os ganhadores

Veja a lista de todos os vencedores do Prêmio Portugal Telecom de Literatura:

2003: Bernardo Carvalho (Nove noites) e Dalton Trevisan (Pico na veia)

2004: Paulo Henriques Britto (Macau)

2005: Amílcar Bettega Barbosa (Os lados do círculo)

2006: Milton Hatoum (Cinzas do Norte)

2007: Gonçalo M. Tavares (Jerusalém)

2008: Cristóvão Tezza (O filho eterno)

Mais informações no site do Prêmio

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

CINCO LIVROS LIDOS EM 2008

A sugestão foi do Blog do Jefferson (LIBRU LUMEN). Acatei. Deixei o texto nas mensagens do blog de lá, e agora faço um post aqui, com pequenos acréscimos.

Li tanto em 2008 que já nem sei se posso dizer o que me marcou mais. É verdade que há sempre dois ou três que dilaceram nossa intenção e se fincam em nossa alma, como estaca no coração de vampiro, nos tirando a sensação de eternos. São esses que valem a pena, e são tão poucos.

Nessa busca, vivo um luta feroz para não me atrasar na procura de novos bons autores, ao mesmo tempo que ainda quero, necessito, descobrir os encobertos pelo tempo, ou me aproximar daqueles que nunca saem de cena. Guimarães Rosa e Proust, por exemplo, estão sempre acordados para mim.

Gostaria de me aprofundar e falar mais de literatura, principalmente desses cérebros mais calibrados que o meu. Por enquanto nado em águas mais rasas, e talvez um dia saberia lidar com o mar aberto e as profundezas.

Cinco livros que mais me marcaram, quer pela beleza, pela intensidade do verbo, quer pela novidade, são:


Os cus de Judas, de António Lobo Antunes


Esse livro foi publicado em 1979, em Portugal, mas eu mesmo só fui descobri-lo no ano passado, depois de ler, em 2004, A Ordem natural das coisas, do mesmo autor. É dilacerante. Um homem sai de Angola, depois de servir na guerra como médico, e volta a Portugal para se reencontrar com sua amada. É um monólogo labiríntico, carregado de lirismo, incertezas e dor existencial (leia mais sobre Lobo Antunes aqui).



O teatro de Sabbath, de Philip Roth


Passei um tempão procurando nos sebos até encontrá-lo. A busca não foi em vão. Publicado originalmente em 1995, é um dos melhores romances de Philip Roth, junto com Pastoral americana e O animal agonizante. O teatro de Sabbath conta a história de Mickey Sabbath e sua absoluta recusa em viver dentro dos padrões morais convencionais.

Ele quer transgredir, quer viver sempre no limite do escândalo, explorando os desejos secretos dos outros, das mulheres, mais especificamente. É classificado como um romance pornográfico, mas duvido que o próprio Roth o classifique assim. É um romance e ponto (leia mai aqui).


Meu tio Roseno, a cavalo, de Wilson Bueno


Essa novela de Wilson Bueno foi, sem dúvida, o livro que mais me emocionou em 2008. Também não é do ano passado, foi publicada em 2000. Uma cigana conta a Roseno que Doroí, a mulher dele, estava grávida, daria à luz uma menina, a quem a cigana logo deu o nome de Andradazil.

Roseno estava longe de casa e tinha de chegar a tempo de assistir ao nascimento da menina. Ele cavalga sete dias de viagem, de Guairá a Ribeirão do Pinhal, no Paraná, 50 léguas e meia, para ver sua filha nascer.

É nesse ínterim que existe a história, um espaço entre a esperança e a vida, em que o narrador, sobrinho de Roseno, inscreve uma geografia poética, à medida que o cavalo avança. Livro para ser lido com sotaque gaúcho, à la Simões Lopes Neto, à la Mário Arregui.



Mãos de cavalo, de Daniel Galera

Publicado em 2006, Mãos de cavalo é o primeiro romance de Daniel Galera, jovem escritor de 30 anos, cuja técnica demonstra o potencial para estar entre os grandes daqui a uns dez anos.

O livro é narrado em primeira pessoa e conta como um rapaz de seus vinte e poucos anos está fazendo para forjar sua identidade sem o sentimento de culpa que o atormenta, por não ter ajudado um amigo na adolescência. Repassa a geração dos anos 1990.

Daniel Galera é autor também de Até o dia em que o cão morreu, que deu origem ao filme de Beto Brant, Cão sem dono, Cordilheira e Dentes guardados, livro de contos, que foi seu primeiro e que está disponível na internet (acesse aqui).


Órfãos do Eldorado, de Milton Hatoum

Hatoum já é grande. Órfãos do Eldorado confirma a capacidade que ele tem de construir um tecido de amor em meio ao sentimento de morte e destruição, crise de família, visão apocalíptica do mundo. O otimista acha que ele constrói a luz. O pessimista está certo de que ele cria a escuridão, com pequenos pontos luminosos em meio à falência total. O amor já não constrói mais nada. O amor é que dá a esperança. Eis o contraste.

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

LITERATURA INDIANA: o perfil de Kiran Desai

Kiran: Booker Prize de 2006

Sua mãe, Anita Desai, é pouco traduzida no Brasil, cujo único livro publicado aqui está com edição esgotada. Mas ela, Kiran Desai, nascida em Chandigarh, em 1971, ganhadora do Booker Prize de 2006, parece que veio para marcar, dentro das possibilidades da literatura, o mercado editorial brasileiro.

Em termos de migração, sua trajetória é muito semelhante a de muitos outros indianos, inclusive outros escritores, como Jhumpa Lahiri e Akhil Sharma. Aos 11 anos de idade, Kiran foi para a Inglaterra com a família, e um ano depois se mudou para os Estados Unidos.

Em 1998, publicou seu primeiro livro, Rebuliço no pomar de goiabeiras, traduzido no Brasil em 2000. Foi a chave de entrada para o sucesso de crítica e o maior incentivo para escrever seu segundo livro, O legado da perda.

Serviço

Os livros de Kiran podem ser comprados na Livraria Cultura, clique no título.

Título: O legado da perda
Autor: Kiran Desai
Editora: Alfaguara Brasil, 2007, 416 páginas
Gênero: Romance
Preço: R$ 48,90

Título: Rebuliço no pomar de goiabeiras
Autor: Kiran Desai
Editora: Record, 2000, 224 páginas
Gênero: Romance
Preço: R$ 39,00

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

COMPLETANDO O RACIOCÍNIO DE FERREIRA GULLAR

Gullar: "poesia é verdade"

Numa entrevista ao programa Espaço Aberto, da Globo News, no dia 9 de janeiro, o poeta, ensaísta, pintor, articulista, dramaturgo, crítico de arte e escritor de literatura infanto-juvenil Ferreira Gullar disse que a poesia tem o valor e a função de causar perplexidade, e que as pessoas, em pleno século XXI, ainda têm perplexidade, ainda não são máquinas. Essa é a razão por que ainda há poesia, razão pela qual a literatura ainda existe.

No final, o autor de uma das mais belas criações da literatura brasileira, Poema sujo, compara o principal consumo de massa, como elemento de fruição, as telenovelas, com a poesia. Segundo ele, as telenovelas falam muito mais da falsificação dos sentimentos, enquanto a poesia fala dos sentimentos verdadeiros.

E conclui: “Não é todo mundo que gosta de poesia, não é todo mundo que precisa de poesia, mas não é todo mundo que vê futebol também. É verdade que mais gente vê futebol do que lê poesia, mais gente vê novela das oito do que lê poesia, mas há quem leia poesia e não veja novela das oito.”

Gullar só esqueceu de dizer que há quem veja novela das oito e leia poesia. E neste caso, incluir-se-ia aqui um número maior de quem aprecia poesia. Por que não?

LITERATURA INDIANA: o perfil de Anita Nair

Anita: livros traduzidos em mais de 20 línguas

O refinamento do texto da indiana Anita Nair deu a ela um grande reconhecimento internacional, se não de público, ao menos de mercado editorial. Seus livros já foram traduzidos para mais de 20 línguas, entre elas o português, no qual pode ser lido Cabine para mulheres.

Anita Nair é autora de prosa e poesia. Ela nasceu em Kerala, em 1966, e, atualmente, mora com a família em Bangalore.

Serviço

O livro de Anita pode ser comprado na Livraria Cultura, clique no título.

Título: Cabine para mulheres
Autor: Anita Nair
Editora: Nova Fronteira, 2003, 368 páginas
Gênero: Contos
Preço: R$ 38,00

UM POUCO DA LITERATURA DE ROBERTO BOLAÑO



O chileno Roberto Bolaño, morto precocemente aos 50 anos, em 2003, vem tendo uma grande visibilidade nos Estados Unidos. Considerado uma das principais influências da nova geração de escritores latinos, Bolaño tem alguns livros publicados no Brasil, como Noturno no Chile, A pista de gelo, Amuleto e Putas assassinas. Os dois últimos foram lançados em 2008, sendo Amuleto uma compilação de Detetives Selvagens.

Já nos Estados Unidos, recentemente foi lançado mais um livro de Bolaño, 2666. A jornalista da revista The New Yorker, Ligaya Mishan, escreveu uns textos elogiosos sobre o livro, disponíveis no blog que ela edita The book Bench, numa espécie de conferência nacional sobre o livro, em que os leitores opinam.

No primeiro texto, que segue abaixo, Ligaya começa fazendo ressalvas sobre Detetives Selvagens, que acaba sendo uma ressalva a Bolaño, na visão feminina (ou feminista) dela, para depois entrar no mérito de 2666. O blog já acumula três textos sobre o autor, mas aqui segue apenas o primeiro (para ler os outros, em inglês, clique aqui).

Leia:

“Sou uma felizarda por trabalhar numa função que me permite ganhar muitos livros. Quando realmente compro um, é um acontecimento. Foi o que houve em março de 2007, depois de eu ler o ensaio de Daniel Zalewski sobre Roberto Bolaño.

Fui correndo à livraria comprar avidamente Os detetives selvagens. Primeiro folheei com furor as páginas todas, daquele jeito alucinatório quando descobrimos uma novidade. Que voz sensacional! Foi como quando li Faulkner ou Rushdie pela primeira vez.

Mas então – e sei que vai parecer um sacrilégio aos fãs de Bolaño – perdi o entusiasmo. Era ‘macho’ demais para mim, essa obsessão pelo sexo e a aparente onipresença de ninfetas artificialmente espertas nas artes corporais, cinicamente mal intencionadas em seus carinhos. (É uma implicância que tenho contra romances de escritores homens). Talvez tenha sido o livro certo na hora errada. Estou louca para me arriscar de novo.

O que gostei em Detetives selvagens, pelo menos até aquele ponto, e o que adoro nos contos de Bolaño, é sua empatia extraordinária, sua disposição para desnudar – caso não seja algo sentimental demais para dizer – os contornos da alma.

O que li até agora de 2666 me parece distanciado, menos íntimo, quase clínico, por todo o calor e toda a violência presentes ali e os rompantes de poesia em queda-livre.

Não significa um livro sem paixão. De fato, apesar do que escrevi acima, concordo com um de nossos leitores, Wendy Breuer, que chamou o livro de ‘cri de coeur’ [grito do coração] – parece possuído por uma fúria gelada, que levou outro leitor, Mauro Javier Cardenas, a chamar a literatura de Bolaño de ‘fúria no destino dos infelizes’. A angústia é palpável. Mas simplesmente não me parece algo íntimo e pessoal.

Isso é pura observação e não uma crítica. (Controle a massa enfurecida!) Afinal, dificilmente descreveríamos ‘Moby-Dick’ como íntimo também. Em 2666, depois de 400 páginas, ainda estou encantada e subjugada pela medida de ambição de Bolaño, por seu destemor.

Apenas me pergunto por quais de seus personagens tenho compaixão, se por qualquer um. Podem me chamar de retrógrada, mas quero torcer e chorar pelos personagens, apostar no destino deles. Talvez quando alcançar a parte V, tudo vai se esclarecer e eu cairei de joelhos pedindo perdão.”

Leia também:

domingo, 11 de janeiro de 2009

A BIBLIOTECA PARTICULAR DE HITLER

Hitler, aos 36 anos, ao lado de parte de sua biblioteca, no apartamento de Munique

Todo livro tem seu apelo. Uns têm apelo estético. É o caso da chamada alta literatura ou de qualquer outro gênero artístico. Outros há cujo apelo se encontra na carência ou no desespero do leitor, ou na informação técnica, filosófica, científica, religiosa etc.

Mas há também uma categoria de livros que seria absolutamente dispensável não fosse nossa curiosidade por coisas excêntricas, ou por assuntos exóticos (embora haja sempre a ressalva segundo a qual o que é passa-tempo para uns é ocupação oficial para outros).

Nessa última categoria se encaixa o livro Hitler’s Private Library (A biblioteca particular de Hitler), de Timothy W. Ryback, lançado em 2008 nos Estados Unidos.

Provavelmente sairá no Brasil agora em 2009. Para quem não quer gastar 87 reais na compra de um exemplar em inglês, na Livraria Cultura (provavelmente a tradução custará isso também), o jornalista Jacob Heilbrunn nos dá uma resenha interessante (leia o texto completo aqui, em inglês).

Segundo ele, ao aprofundar nas marcações de leitura e anotações de Hitler, Ryback procura reconstruir os passos pelos quais o líder nazista criou seu mapa mental do mundo. “O resultado é um livro memoravelmente instigante, se não completamente persuasivo”, diz.

A biblioteca de Adolf Hitler (1889 – 1945) tinha 16 mil volumes, que foram parar, em sua maioria, na Biblioteca do Congresso norte-americano. É muito livro para quem era considerado um homem sem qualidades. Muito livro, no entanto, nunca foi sinônimo de alma elevada, de civilidade, de compreensão da diversidade. No caso de Hitler, sequer tinha a capacidade intelectual para idéias originais. É o que procura demonstrar o livro de Ryback.

Esse é o pé da contradição. Há quem diga que sua idéia original foi a de querer acabar com os judeus. Mas havia antes dele, desde muito antes, tantos livros antissemitas que nem dá para considerar muito isso.

Tanto é que Ryback chega à conclusão contrária. As considerações de Hitler sobre os textos que lia demonstram que seu ódio virulento foi muito mais confirmado ali do que criado propriamente. E ódio, convenhamos, não é fruto de idéias originais, mas é, sem dúvida, a matéria-prima dos gênios do crime.

Que considerações Hitler anotava, só a leitura do livro dirá. No mais, três ou quatro títulos da biblioteca do líder nazista são indicados nesta resenha, como uma cópia dos escritos do general prussiano Carl von Clausewitz, autor do nunca esquecido Da guerra.

Outros livros são Racial Typology of the German People (Tipologia racial do povo germânico), de Hans F. K. Günthe, que não tem tradução em português, os vários volumes de International Jew, de Henry Ford, e Zionism as an Enemy of the State (O Sionismo com inimigo do Estado), de Alfred Rosenberg, membro do staff de propaganda do partido e editor do famoso jornal nazista Voelkischer Beobachter.

São poucas citações de títulos para uma biblioteca de 16 mil volumes. Quem quiser saber mais, terá de ler o livro de Ryback. Não tem jeito.

Trecho da resenha

"Hitler pode nunca ter completado uma educação formal, mas os livros ‘eram o seu mundo’, como relembrou o amigo dele dos primeiros dias em Viana, August Kubizek.

No começo dos anos 1920, conforme demonstra Ryback, Hitler não só conseguiu progredir na leitura de centenas de livros históricos e racistas para embasar sua sincera intenção ideológica, como líder do incipiente Partido Nazista, mas também se preparou muito bem para construir um cânone para sua ideologia.

Ele criou uma lista de leituras obrigatórias, estampada nos cartões dos membros do partido, com a seguinte frase em negrito: ‘Livros que todo Nacional Socialista tem de ler’ (pobremente traduzido por Ryback como ‘deveria ler’). Nessa lista incluía pérolas como International Jew, de Henry Ford, e Zionism as an Enemy of the State, de Alfred Rosenberg.”

sábado, 10 de janeiro de 2009

LITERATURA INDIANA: o perfil de Amitav Ghosh

Ghosh: bom trânsito entre Ocidente e Oriente

O antropólogo e romancista Amitav Ghosh mora em Nova York, onde é professor de literatura comparada da New York University. Nascido em Calcutá, Índia, em 1956, Ghosh transita bem entre Ocidente e Oriente. Autor premiado, seu romance épico O palácio de espelho, publicado originalmente em 2000, é um grande sucesso entre os indianos, talvez por resgatar o processo histórico pelo qual passou a Índia antes de se ver livre do último de seus algozes, a Inglaterra, que, curiosamente, eles não veem bem desta maneira.

Além de romances, Ghosh também já publicou livros de análise sóciopolítica, como Countdown, que trata da política nuclear da Índia, e escreve sobre fundamentalismo, cultura, história da literatura e biografias, como a da poetisa Laura Riding, In Extremis: The Life of Laura Riding.

Serviço

Os livros de Ghosh podem ser comprados na Livraria Cultura, clique no título.

Título: O palácio de espelho
Autor: Amitav Ghosh
Editora: Alfaguara, 2006, 576 páginas
Gênero: Romance
Preço: R$ 69,90

Título: Maré voraz
Autor: Amitav Ghosh
Editora: Alfaguara Brasil, 2008, 432 páginas
Gênero: RomancePreço: R$ 49,90

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

HANNAH MONTANA FICA PARA TRÁS: Miles Cyrus lança autobiografia, aos 16 anos

Miles na capa de seu livro, com um sorriso de transição

Por alguma razão que desconheço, dos dez internautas que acessam este pequeno blog, pelo menos três têm idade mínima. Talvez por serem eles os donos do mundo virtual. O fato é que há sempre gente acessando o post sobre a adolescente Miles Cyrus (Hannah Montana), Billy Ray, seu pai, e Chitãozinho e Xororó, ex-parceiros do pai no mercado latino, que publiquei aqui um tempo atrás.

Tudo a ver. Quando Miles nasceu, há 16 anos, seu pai estava numa turnê pelo Brasil, segundo ela mesma diz, numa dessas entrevistas em inglês. O que Billy fazia aqui? Divulgava o CD Achy Breaky Heart, que também é título da música gravada por Chitãozinho e Xororó numa versão chamada Pura emoção, depois do megassucesso Ela não vai mais chorar (She’s not crying anymore), do mesmo CD.

Éh! A vida não é só Nietzsche. Aliás, é muito pouco de Nietzsche. Será? Foi Nietzsche quem disse, pela primeira vez, “o que não me mata, me fortalece”, ou seja, ‘o que não mata engorda’. Sabia? Pouco importa.

Pois bem. Agora, Miles Cyrus resolveu lançar sua autobiografia, numa versão pimpolha, claro. O título brinca um pouco com seu nome, sua idade e as experiências que ainda virão: Miles to go, algo do tipo Milhas a percorrer, previsto para sair em março, nas livrarias norte-americanas.

O que me dói, ou me alivia?, é saber que , aos 33 anos, não tenho nada para dizer, nada que mereça uma autobiografia. Mas ela, Miles, tem, e muito. Afinal, é filha de um astro que arrebatou multidões na década de 90. Foi estrela de um seriado teen que lhe rendeu milhões de fãs no mundo inteiro, e ainda rende. Não chega a ser uma Hilary Duff ou uma Lindsay Lohan, mas é bonita e vive entre mega-estrelas.

Tem muito o que dizer, sim, para seus tumultuados fãs, da mesma idade, que vivem eternos conflitos com os pais. Em outra entrevista, ou seria a mesma?, ela diz: “Estou muito feliz em poder dizer para meus fãs o quanto o relacionamento familiar é importante para mim. Espero motivar mães e filhas a construir eternas boas lembranças juntas, e inspirar meninos e meninas pelo mundo afora a viver seus sonhos.”

Basicamente será isso que o leitor verá na primeira autobiografia de Miles Cyrus. A maneira como ela vai contar, entrecortada pelas sensações de estar nos holofotes, certamente fará a diferença.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

MAIS VINICIUS DE MORAES: entre o prazer e o desamparo

Ninguém ainda abordou a poesia de Vinicius de Moraes com o olhar que ela merece. Mas, justiça seja feita, o poeta Eucanaã Ferraz é quem mais dá atenção a ela, com a vantagem de ser contemporâneo nosso e mais distanciado do ‘poeta da paixão’, conforme denominou José Castello.

Aliás, José Castello, jornalista e escritor, romancista e biógrafo de Vinicius de Moraes, acaba de escrever mais um texto sobre o poeta das Cinco elegias, na revista Bravo! deste mês. Castello é outro que conhece bem Vinicius. Em sua biografia O poeta da paixão, ele fala sobre Soneto de Fidelidade, cujos três últimos versos

“Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.”


“descrevem, com precisão espantosa, a essência da visão que o poeta terá do amor ao longo de toda a vida: uma experiência avassaladora, superior, que traz a sensação de eternidade mas que necessariamente – como tudo o que é sentido pelo homem – acaba.”

Acho que há muito mais nesse soneto-chave de Vinicius. Infelizmente, para levantar todo seu significado, desconfio, seria necessário perfazer de novo e com outro recorte todo o caminho de estudos e influências do poeta, de quando ele virava noites lendo Pascal, Nietzsche e Kierkegaard com Octavio de Faria, Mário Vieira de Mello, entre outros colegas do fervor religioso do começo, até chegar às paixões avassaladoras.

Veja que irônico, mas nem tanto, Nietzsche, niilista, e Kierkegaard, existencialista cristão, que era lido pelo autor de Assim falou Zaratustra, juntos na alma de Vinicius!

Como já disse em outro post, Vinicius de Moraes está voltando (leia aqui). Exemplo disso são os lançamentos de novos livros, como Poemas esparsos (leia aqui) e o relançamento dos primeiros livros do poeta, como O caminho para a distância, além de Folha explica Vinicius de Moraes, de Eucanaã Ferraz, que é quem está por trás dos outros títulos também.

Mais um exemplo são as constantes reportagens e artigos sobre o poeta, como a que saiu na revista Língua Portuguesa, também de Eucanaã Ferraz, com Vinicius na capa (número 26, 2007, leia aqui), e o recente texto de Castello, na Bravo!, de janeiro agora.

Veja um trecho:

"Uma Alma Duplicada

Oscilando entre o prazer e o desamparo, Vinicius viveu os seus nove casamentos como um 'escravo da paixão', para quem o amor, mais que alegria, era fardo

Por José Castello

Vinicius de Moraes, o poeta da paixão, foi também o poeta do desespero. Sob a máscara do artista feliz, em eterno galanteio com a vida, escondeu-se, durante 67 anos, um homem atormentado, para quem o amor foi não só alegria, mas fardo, e a vida, uma sucessão de decepções.

Comecei a trabalhar em minha biografia de Vinicius de Moraes no início dos anos 90, uma década depois da morte do poeta. A única vez em que o vi, em fins dos anos 70, contudo, me bastou para perceber, não sem dificuldades, pequenos sinais desse Vinicius desconhecido. Eu era repórter de Veja e o poeta estreava um show no Rio. A entrevista foi agendada para a hora do almoço. Habituado a trocar a noite pelo dia, Vinicius me fez esperar por quase duas horas. Quando enfim apareceu, os olhos ainda esbugalhados pela noite, a voz lenta e rouca, custei a reconhecê-lo. Era difícil aceitar que aquele homem que me tratava com impaciência e desatenção fosse, de fato, Vinicius de Moraes. Mas era.

A entrevista foi um desastre. Sim, consegui meia dúzia de informações, e algumas declarações banais, que me renderam um texto discreto para a revista. Levei de volta comigo, porém, a imagem de um homem em contínuo desalinho com o mundo. Mais de uma década depois, foi dela que parti para escrever minha biografia. Ainda hoje, 16 anos depois de publicá-la, a figura desse Vinicius atormentado e em descompasso com o mundo me incomoda. Aos admiradores de canções suaves como Garota de Ipanema e Minha Namorada, ela parece não só falsa, mas absurda. Aos leitores que se habituaram à leveza de poemas como A Balada das Meninas de Bicicleta ou a Feijoada à Minha Moda, causa estranheza, ou mesmo repulsa.

Custo a admitir, mas a vida de Vinicius de Moraes foi uma linha irregular em que os grandes momentos de prazer e euforia se revezaram com descidas íngremes rumo à tristeza e ao desamparo. Os médicos de hoje, provavelmente, o rotulariam de "bipolar". Para além de qualquer diagnóstico, Vinicius foi, sim, um homem de alma duplicada. A paixão pela vida tinha, como avesso, íngremes descidas ao inferno. Quando rapaz, Vinicius desejou ser um poeta do talhe do francês Arthur Rimbaud. Foi um leitor apaixonado de Uma Estação no Inferno e, enquanto escrevia os primeiros poemas, olhava-se no espelho e via Rimbaud. Os versos torturados de seu primeiro livro, O Caminho para a Distância, escrito aos 19 anos, confirmam essa semelhança."

Para ler o texto completo, acesse aqui. Vale, principalmente, para quem não leu O poeta da paixão (Companhia das Letras) ou Vinicius de Moraes (Relume-Dumará).

LITERATURA INDIANA: o perfil de Akhil Sharma

Sharma: o sorriso mostra que é banqueiro e romancista de sucesso

Como a maioria dos escritores indianos da nova geração, Akhil Sharma mora há mais tempo no exterior do que viveu em seu país natal. Ele nasceu em Délhi, em 1971 e aos oito anos foi com a família para Nova Jersey, Estados Unidos, onde cresceu.

Estudou direito em Havard e fez mestrado em políticas públicas na Universidade de Princeton. Paralelo a isso teve aulas de literatura e criação literária com escritores renomados dos Estados Unidos, como Russell Banks, Toni Morrison, Joyce Carol Oates, Paul Auster, John McPhee e Tony Kushner.

Essa miscelânea de formação deu a Sharma a capacidade de se tornar, ao mesmo tempo, banqueiro e escritor de ficção. Segundo os críticos, a primeira função não tira o mérito da segunda. Além do primeiro romance, Um pai obediente, já escreveu vários contos, publicados em The New Yorker, The Atlantic Monthly, The Quarterly, Fiction, entre outros veículos.

Serviço

O livro de Sharma pode ser comprado na Livraria Cultura, clique no título.

Título: Um pai obediente
Autor: Akhil Sharma
Editora: Globo, 2001, 382 páginas
Gênero: RomancePreço: R$ 46,00

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

LITERATURA INDIANA: o perfil de Manil Suri

Suri: matemático e romancista

Ele nasceu em Bombaim (Mumbai), em 1959, onde viveu até os 20 anos. Depois foi para os Estados Unidos, como estudante. Conseguiu dupla cidadania e até hoje mora lá, em Silver Spring, onde é professor de matemática aplicada, área em que é Ph.D. Os escritores indianos têm muito dessa idiossincrasia, de exercer múltiplas tarefas.

Aqui no Brasil, o máximo que vemos destoando é engenheiro fazendo literatura, e das boas, como Whisner Fraga (Coreografia dos danados e A Cidade devolvida), Alcione Araújo (Pássaros de voo curto) e Amílcar Bettega Barbosa (Os lados do círculo).

Manil Suri estreou na literatura tardiamente, aos 41 anos de idade, com o livro de contos The Seven Circles, em 2000, embora já escrevesse antes. Em 2001 publicou seu primeiro romance, A morte de Vishnu, que causou um rebuliço no mercado editorial ao redor do mundo. No mesmo ano foi traduzido para o português, pela Companhia das Letras, e em outras 21 línguas. Em 2008, publicou The age of Shiva.

Para saber mais sobre ele, acesse seu site e seu blog.

Serviço

O livro de Suri pode ser comprado na Livraria Cultura, clique no título.

Título: A morte de Vishnu
Autor: Manil Suri
Editora: Companhia das Letras, 2001, 320 páginas
Gênero: Romance
Preço: R$ 54,50

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

LITERATURA INDIANA: o perfil de Jhumpa Lahiri

A bela Jhumpa é indiana, mas nasceu em Londres

Ela ganhou o Pulitzer de Ficção, em 2000, com seu livro de estreia Intérprete de males. Foi o primeiro autor asiático a ganhar o Prêmio, criado em 1917. Jhumpa Lahiri é considerada uma escritora indiana porque seus pais são do Estado indiano de Bengala Ocidental, mas ela mesma nasceu em Londres, em 1967.

Em sua infância, houve mais uma reviravolta, e ela foi, com a família, morar nos Estados Unidos (Estado de Rhode Island), onde cresceu. Graduou-se em literatura inglesa e depois fez diversos mestrados na área, como o de inglês, escrita criativa e literatura comparada, todos na Universidade de Boston, onde também deu aulas de escrita criativa. Mais tarde, fez doutorado em estudos da Renascença. Desde sua estreia na literatura, os prêmios que ganhou são inúmeros.

Serviço

Os livros de Jhumpa podem ser comprados na Livraria Cultura, clique no título.

Título: Intérprete de males
Autor: Jhumpa Lahiri
Editora: Companhia das Letras, 2001, 224 páginas
Gênero: Contos
Preço: R$ 45,50

Título: O xará
Autor: Jhumpa Lahiri
Editora: Companhia das Letras, 2004, 336 páginas
Gênero: Romance
Preço: R$ 52,50

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

ESCREVER É TAMBÉM SE VINGAR: A favorita

Flora (Patrícia Pillar): uma vilã shakespeareana a serviço de João E. Carneiro

Uma vez o escritor Marcelino Freire disse que escreve para se vingar. Muitos outros já disseram isso, mas Freire é de quem me lembro agora. Vingar-se de quê, ou de quem, não sei. Mas acho que o mesmo pretexto serve para o autor da novela A Favorita, da Rede Globo. João Emanuel Carneiro não se cansa de cometer pequenas vinganças. Quase todas elas feitas por intermédio da vilã Flora (Patrícia Pillar).

Já xingou a classe média, já esculachou a cultura da música sertaneja, com uma dupla pra lá de suspeita, em termos de bom gosto, Faísca e Espoleta, além de insultar, com uma frequência cada vez mais assídua, os telespectadores, com a voz duvidosa das personagens Flora e Donatela, cantando ‘Beijinho doce’ e ‘Tristeza do jeca’.

Não são as músicas que desapontam. O problema é que elas, as canções, estão fora de seu habitat natural, ou seja, vozes apropriadas e arranjos dignos.

Estou quase certo de que tudo isso não passa de uma risada, às escondidas, do autor. Digo isso porque, no mais, a novela vai bem. O texto é primoroso, principalmente os solilóquios, os monólogos e os bate-bocas. A trama escorrega, mas não cai. A tensão permanece. Enfim.

ANTÓNIO LOBO ANTUNES: o escritor e o infinito futuro

Lobo Antunes: "Considerava-me imortal; soube, com horrível violência, que o não era"

Seu olhar de clemência nos tira a impressão que dá o sobrenome, Lobo Antunes, e nos aproxima da pessoa, fazendo-nos crer na humanidade que transborda em seus livros. Há também poesia em cada linha, tamanha é a força das palavras impressas ali.

Há poesia em cada frase, não só porque as palavras são belas, mas pela alta voltagem do verbo, a condensação pensada de cada vocábulo que eleva o significado da ação, do pensamento refletido, da cena descrita, da paisagem da alma configurada. É uma literatura que, chorando e sorrindo, olha para o leitor e pede sua cumplicidade.

Autor de prestígio, Lobo Antunes escreve periodicamente para a revista Visão, uma espécie de Veja de Portugal. Em Crónica ao espelho, texto de 20 de novembro de 2008, ele diz: “As pessoas que me lêem comovem-me: fiz um livro diferente para cada uma delas, com palavras diferentes, do mesmo jeito que um alfaiate trabalha por medida, porque a vida de cada um é única.”

Aí está a cumplicidade. A comoção é mútua, e a razão é a mesma. Lobo Antunes é único. Sua emoção, sua arte e sua percepção de mundo são forjadas, na literatura, numa técnica particular, que se imitada deixa transparecer uma falsidade que não existe no original.

Quando a gente não tem condições, por que os livros são caros, nem tempo, porque a vida corre depressa demais, de ler toda sua obra, é preciso escolher alguns romances e imaginar o que se passa por entre as capas dos demais.

Pelos títulos já vemos o vigor e a ternura do olhar do escritor: Eu hei-de amar uma pedra; Boa tarde às coisas aqui em baixo; Conhecimento do inferno; Ontem não te vi em Babilônia; Não entres tão depressa nessa noite escura.

Ao todo, Lobo Antunes já publicou mais de 30 livros. Muitos de seus leitores e críticos acham que ele deveria ter ganhado o Nobel de Literatura no lugar de José Saramago, ou pelo menos que merecia o prêmio mais do que o autor de O evangelho segundo Jesus Cristo.

Ironicamente, desafetos confessos, Lobo Antunes e Saramago vieram de famílias humildes, sem tradição nenhuma no mundo das letras. Os dois venceram pela absoluta força da inteligência, aliada ao lampejo de gênios que traziam consigo. (OBS: Há uma correção aqui, Lobo Antunes não veio de família humilde, conforme diz a leitora Custódia Romão. Leia).

Recentemente, em 2006, Lobo Antunes descobriu que tinha câncer. Sua luta, até se ver livre do mal, foi constante, acompanhada pelos leitores da revista Visão. As crônicas que escreveu nessa ocasião mostraram a angústia do homem e a habilidade do escritor. Transformou muita coisa em literatura, para o deleite e a apreensão dos leitores.

Em uma delas, Morto cobrido de amor, de 7 de julho de 2008, ele escreve:

“Considerava-me imortal; soube, com horrível violência, que o não era. Ter passado o que passei alterou-me por completo a existência e suponho que modificou também o que produzo. Os médicos não tratam: tornam a dar-nos a eternidade sob a forma de um infinito futuro, isto é uma porção limitada de dias que apesar de tudo acreditamos, contra a evidência, não terminar nunca.”

Nascido em 1942, em Lisboa, António Lobo Antunes é médico psiquiatra, profissão que exerceu por muito tempo. Só em 1985 deixou de lado a medicina e passou a se dedicar exclusivamente à literatura. Nessa época já era autor de grandes livros, como Memória de elefante, seu primeiro romance, de 1979 (que faz 30 anos agora), Os cus de Judas e A explicação dos pássaros.

Por ocasião da repressão de Portugal contra os movimentos de libertação de Angola, como médico, foi convocado para servir na guerra. Depois que voltou, em 1973, carregando um grande impacto na alma, sentiu necessidade de escrever. Quase todos os seus livros abordam a temática da guerra, ou tangenciam os fatos dessa época.

Hoje, inegavelmente um dos maiores escritores em língua portuguesa, Lobo Antunes colhe os louros, tanto em prêmios (ganhou o Camões, em 2007, e Prémio Clube Literário do Porto, em 2008, entre tantos outros), quanto em prestígio junto aos leitores. Sua tomada de consciência de que não é imortal vale para vida, mas não serve para a arte. Sua obra permanecerá.


Trechos de crônicas:


Assim como assim (leia o texto completo aqui)


“Tanto ruído no interior deste silêncio: são as vozes dos outros a falarem em mim, pessoas de quem gostei, pessoas que perdi, gente que tenho ainda. Não me parece que herdei muito dos meus pais, dos meus avós: algumas coisas mais ou menos superficiais mas lá no fundo nada. Princípios, claro. Regras. O resto, quase tudo, fiz sempre sozinho. E estive sozinho nos momentos mais difíceis da vida, que sofri na carne como um cão: aquilo que, destilado, aparece nos livros, que são o itinerário de uma aprendizagem e de uma dor, a certeza da vida redimir a morte, da necessidade da alegria, de uma paz intransigente conquistada a pulso. A humilde capacidade de admirar as pessoas, respeitá-las, que tanto tempo levei a conseguir. Olhar nos olhos o que um ano destes não serei. Custa-me a ideia de não escrever, um dia. Do mundo continuar sem mim. De perder corpos, calor: o que ganharei em troca? O meu pai foi-se embora há quatro anos: percebo hoje que existia entre eu e a morte, a defender-me sem saber que me defendia e que a partir de então, quando ela tocar à campaínha, é a minha vez de abrir a porta: não quero chegar à maçaneta a tropeçar, quero mostrar-lhe a casa limpa e pronta. Dizer a quem se achar ao meu lado

– Eu já venho”


O precário fio dos dias (leia o texto completo aqui)


“Estive a ler cartas que escrevi a um tio aos vinte anos e surpreende-me como não mudei. Eu ali todo, igualzinho: as mesmas interrogações, as mesmas dúvidas, o mesmo modo de olhar os outros, de me olhar. Sou isto, assim desde o início, serei certamente isto até ao fim. Quando? Que esquisito haver fim, que inconcebível morrer. Viver também, aliás, no precário fio dos dias, desequilibro-me, não me desequilibro. Onde fui arranjar uma expressão tão pretensiosa, precário fim dos dias, tão parva. Que lugar-comum sou. Olha-te sem piedade, não te comovas contigo. Não te deixes vencer. Não te desculpes. E sobretudo não faças do que julgas ser

(e talvez sejas)

uma lágrima de vela a escorregar devagarinho, rosada, quase transparente.”


Trechos de romances:

A ordem natural das coisas (1992)

“Iolanda, meu amor, domingo da minha vida, amo-te. Amo-te e julgo, tenho a pretensão de julgar, que entendo a tua impaciência, as tuas zangas repentinas, a tua alternância de inteligência e estupidez, de abandono e ímpeto, de inocência e de malícia, que entendo a tua recusa de falar, as tuas guinadas infantis, o teu nojo de mim. A minha idade e os meus bicos-de-papagaio interpõem-se entre nós como um muro que te impede que me estimes, separados por anos e anos de experiências e sustos que não partilhamos, que não poderemos partilhar. E todavia, querida, compreendo tão bem quando à tarde o teu rosto obscurece e se vela, quando te sentas à mesa para comer com maus modos o frango ou o goraz da tua tia, quando deixas o guardanapo na toalha, empurras o banco e te fechas no quarto sem explicações nem desculpas, a olhar o rio para além dos comboios, das gaivotas e das gruas nítidas, haste a haste, com a aproximação da noite.

Iolanda, amo-te. Amo-te na tua impossibilidade de comer doces que transformas numa decisão pessoal, numa deliberação altiva, amo as pupilas que começam a embaciar-se de cataratas, os rins que sofrem em silêncio, o protesto do pâncreas. Amo-te com a infinita, extasiada piedade da paixão, amo-te quando suas no teu sono, e eu bebo cada gota de ti percorrendo-te poro a poro com a avidez da língua.”


Os cus de Judas (1979)

Não chega, a manhã, não vai chegar nunca, é inútil esperar que os telhados empalideçam, uma lividez gelada aclare tremulamente os estores, pequenos cachos de criaturas transidas, brutalmente arrancadas ao útero do sono, se agrupem nas paragens do autocarro a caminho de um trabalho sem prazer: achamo-nos condenados, você e eu, a uma noite sem fim, espessa, densa, desesperante, desprovida de refúgios e saídas, um labirinto de angústia que o uísque ilumina de viés da sua claridade turva, segurando os copos vazios na mão como os peregrinos de Fátima as suas velas apagadas, sentados lado a lado no sofá, ocos de frases, de sentimentos, de vida, a sorrir um para o outro caretas de cães de faiança numa prateleira de sala, de olhos exaustos por semanas e semanas de apavoradas vigílias. Já reparou como o silêncio das quatro horas instila em nós a mesma espécie de inquietação que habita as árvores antes da vinda do vento, um frémito de folhas de cabelos, uma tremura de troncos de intestinos, a agitação de raízes dos pés que se cruzam e descruzam sem motivo?”


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domingo, 4 de janeiro de 2009

BIOGRAFIA MÍNIMA: Solano Trindade

A pequena biografia que se segue foi extraída do livro Dicionário literário afro-brasileiro, de Nei Lopes. Solano Trindade foi um dos grandes poetas negros que tivemos.

O centenário de seu nascimento foi celebrado em 2008, quando houve três lançamentos ligados à obra do poeta, Tem gente com fome (em formato infanto-juvenil), Poemas antológicos de Solano Trindade e O poeta do Povo.

O texto abaixo, só tive o trabalho de copiar, numa tentativa de difundir, ao mesmo tempo, o Dicionário literário afro-brasileiro e suas partes constitutivas, riquíssimas em referências literárias de temática negra.

Biografia mínima

“Solano Trindade nasceu no Recife, em 1908, e morreu em São Paulo (sic)*, em 1974. Foi poeta, ativista político e homem de teatro. Participou dos históricos congressos afro-brasileiros realizados em 1934 e em 1937, respectivamente, em Recife e em Salvador.

Criador da Frente Negra de Pernambuco e do Centro de Cultura Afro-Brasileira, estruturou em Pelotas, RS, um grupo de arte popular já existente, transformando-o, em 1943, no Teatro Popular Brasileiro. No Rio de Janeiro, participou da fundação do TEATRO EXPERIMENTAL DO NEGRO. Ao mesmo tempo, destacou-se como grande nome da poesia de temática e vivência negras no Brasil.

Além disso, fundou em Embu, SP, um importante centro de arte popular. Segundo Souza, 2004, sua produção, elogiada por intelectuais estabelecidos, como Otto Maria Carpeaux, Roger Bastide e Sérgio Milliet, reconfigurou a história e a memória dos afro-brasileiros.

Recuperando eventos e trajetórias que negam os estereótipos de passividade e submissão, esforçou-se em contribuir, com sua poesia, para a difusão de fatos históricos ou já esquecidos, ou mostrados através de outra perspectiva nos livros de História do Brasil.

Assim, escreveu: 'Eu canto Palmares/ sem inveja de Virgílio, de Homero/ e de Camões ...' Em 1949, teria pronunciado, na sede carioca do Instituto dos Arquitetos do Brasil, conforme anúncio no jornal Quilombo, conferência sobre poesia negra no Brasil, na qual abordaria o problema dos ‘brancos que fazem poesia negra’ e dos poetas negros não comprometidos nem identificados com esse tipo de criação poética.

Obras publicadas:

Poemas d’uma vida simples (1944)
Seis tempos de poesia (1958)
Cantares ao meu povo (1961), com 2ª edição aumentada em 1981
Além de 20 poemas in: Veredas, revista de letras da Universidade de São Paulo, nº 1, setembro de 1979.”

* Segundo o Literafro, portal de literatura afro-brasileira da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, Solano Trindade morreu "pobre e esquecido numa clínica no Rio de Janeiro, vítima de pneumonia", e não em São Paulo, como diz o texto de Nei Lopes. Zinho Trindade ("Solano Trindade faleceu no Rio de Janeiro em 19 de fevereiro de 1974") e Paula Locas já haviam alertado na seção de comentários do Leituras. Como o texto principal é do livro de Nei Lopes, não posso editá-lo, só oferecer ao leitor o devido esclarecimento.