Lobo Antunes: "Considerava-me imortal; soube, com horrível violência, que o não era"
Seu olhar de clemência nos tira a impressão que dá o sobrenome, Lobo Antunes, e nos aproxima da pessoa, fazendo-nos crer na humanidade que transborda em seus livros. Há também poesia em cada linha, tamanha é a força das palavras impressas ali.
Há poesia em cada frase, não só porque as palavras são belas, mas pela alta voltagem do verbo, a condensação pensada de cada vocábulo que eleva o significado da ação, do pensamento refletido, da cena descrita, da paisagem da alma configurada. É uma literatura que, chorando e sorrindo, olha para o leitor e pede sua cumplicidade.
Autor de prestígio, Lobo Antunes escreve periodicamente para a revista Visão, uma espécie de Veja de Portugal. Em Crónica ao espelho, texto de 20 de novembro de 2008, ele diz: “As pessoas que me lêem comovem-me: fiz um livro diferente para cada uma delas, com palavras diferentes, do mesmo jeito que um alfaiate trabalha por medida, porque a vida de cada um é única.”
Aí está a cumplicidade. A comoção é mútua, e a razão é a mesma. Lobo Antunes é único. Sua emoção, sua arte e sua percepção de mundo são forjadas, na literatura, numa técnica particular, que se imitada deixa transparecer uma falsidade que não existe no original.
Quando a gente não tem condições, por que os livros são caros, nem tempo, porque a vida corre depressa demais, de ler toda sua obra, é preciso escolher alguns romances e imaginar o que se passa por entre as capas dos demais.
Pelos títulos já vemos o vigor e a ternura do olhar do escritor: Eu hei-de amar uma pedra; Boa tarde às coisas aqui em baixo; Conhecimento do inferno; Ontem não te vi em Babilônia; Não entres tão depressa nessa noite escura.
Ao todo, Lobo Antunes já publicou mais de 30 livros. Muitos de seus leitores e críticos acham que ele deveria ter ganhado o Nobel de Literatura no lugar de José Saramago, ou pelo menos que merecia o prêmio mais do que o autor de O evangelho segundo Jesus Cristo.
Ironicamente, desafetos confessos, Lobo Antunes e Saramago vieram de famílias humildes, sem tradição nenhuma no mundo das letras. Os dois venceram pela absoluta força da inteligência, aliada ao lampejo de gênios que traziam consigo. (OBS: Há uma correção aqui, Lobo Antunes não veio de família humilde, conforme diz a leitora Custódia Romão. Leia).
Recentemente, em 2006, Lobo Antunes descobriu que tinha câncer. Sua luta, até se ver livre do mal, foi constante, acompanhada pelos leitores da revista Visão. As crônicas que escreveu nessa ocasião mostraram a angústia do homem e a habilidade do escritor. Transformou muita coisa em literatura, para o deleite e a apreensão dos leitores.
Em uma delas, Morto cobrido de amor, de 7 de julho de 2008, ele escreve:
“Considerava-me imortal; soube, com horrível violência, que o não era. Ter passado o que passei alterou-me por completo a existência e suponho que modificou também o que produzo. Os médicos não tratam: tornam a dar-nos a eternidade sob a forma de um infinito futuro, isto é uma porção limitada de dias que apesar de tudo acreditamos, contra a evidência, não terminar nunca.”
Nascido em 1942, em Lisboa, António Lobo Antunes é médico psiquiatra, profissão que exerceu por muito tempo. Só em 1985 deixou de lado a medicina e passou a se dedicar exclusivamente à literatura. Nessa época já era autor de grandes livros, como Memória de elefante, seu primeiro romance, de 1979 (que faz 30 anos agora), Os cus de Judas e A explicação dos pássaros.
Por ocasião da repressão de Portugal contra os movimentos de libertação de Angola, como médico, foi convocado para servir na guerra. Depois que voltou, em 1973, carregando um grande impacto na alma, sentiu necessidade de escrever. Quase todos os seus livros abordam a temática da guerra, ou tangenciam os fatos dessa época.
Hoje, inegavelmente um dos maiores escritores em língua portuguesa, Lobo Antunes colhe os louros, tanto em prêmios (ganhou o Camões, em 2007, e Prémio Clube Literário do Porto, em 2008, entre tantos outros), quanto em prestígio junto aos leitores. Sua tomada de consciência de que não é imortal vale para vida, mas não serve para a arte. Sua obra permanecerá.
Trechos de crônicas:
Assim como assim (leia o texto completo aqui)
“Tanto ruído no interior deste silêncio: são as vozes dos outros a falarem em mim, pessoas de quem gostei, pessoas que perdi, gente que tenho ainda. Não me parece que herdei muito dos meus pais, dos meus avós: algumas coisas mais ou menos superficiais mas lá no fundo nada. Princípios, claro. Regras. O resto, quase tudo, fiz sempre sozinho. E estive sozinho nos momentos mais difíceis da vida, que sofri na carne como um cão: aquilo que, destilado, aparece nos livros, que são o itinerário de uma aprendizagem e de uma dor, a certeza da vida redimir a morte, da necessidade da alegria, de uma paz intransigente conquistada a pulso. A humilde capacidade de admirar as pessoas, respeitá-las, que tanto tempo levei a conseguir. Olhar nos olhos o que um ano destes não serei. Custa-me a ideia de não escrever, um dia. Do mundo continuar sem mim. De perder corpos, calor: o que ganharei em troca? O meu pai foi-se embora há quatro anos: percebo hoje que existia entre eu e a morte, a defender-me sem saber que me defendia e que a partir de então, quando ela tocar à campaínha, é a minha vez de abrir a porta: não quero chegar à maçaneta a tropeçar, quero mostrar-lhe a casa limpa e pronta. Dizer a quem se achar ao meu lado
– Eu já venho”
O precário fio dos dias (leia o texto completo aqui)
“Estive a ler cartas que escrevi a um tio aos vinte anos e surpreende-me como não mudei. Eu ali todo, igualzinho: as mesmas interrogações, as mesmas dúvidas, o mesmo modo de olhar os outros, de me olhar. Sou isto, assim desde o início, serei certamente isto até ao fim. Quando? Que esquisito haver fim, que inconcebível morrer. Viver também, aliás, no precário fio dos dias, desequilibro-me, não me desequilibro. Onde fui arranjar uma expressão tão pretensiosa, precário fim dos dias, tão parva. Que lugar-comum sou. Olha-te sem piedade, não te comovas contigo. Não te deixes vencer. Não te desculpes. E sobretudo não faças do que julgas ser
(e talvez sejas)
uma lágrima de vela a escorregar devagarinho, rosada, quase transparente.”
Trechos de romances:
A ordem natural das coisas (1992)
“Iolanda, meu amor, domingo da minha vida, amo-te. Amo-te e julgo, tenho a pretensão de julgar, que entendo a tua impaciência, as tuas zangas repentinas, a tua alternância de inteligência e estupidez, de abandono e ímpeto, de inocência e de malícia, que entendo a tua recusa de falar, as tuas guinadas infantis, o teu nojo de mim. A minha idade e os meus bicos-de-papagaio interpõem-se entre nós como um muro que te impede que me estimes, separados por anos e anos de experiências e sustos que não partilhamos, que não poderemos partilhar. E todavia, querida, compreendo tão bem quando à tarde o teu rosto obscurece e se vela, quando te sentas à mesa para comer com maus modos o frango ou o goraz da tua tia, quando deixas o guardanapo na toalha, empurras o banco e te fechas no quarto sem explicações nem desculpas, a olhar o rio para além dos comboios, das gaivotas e das gruas nítidas, haste a haste, com a aproximação da noite.
Iolanda, amo-te. Amo-te na tua impossibilidade de comer doces que transformas numa decisão pessoal, numa deliberação altiva, amo as pupilas que começam a embaciar-se de cataratas, os rins que sofrem em silêncio, o protesto do pâncreas. Amo-te com a infinita, extasiada piedade da paixão, amo-te quando suas no teu sono, e eu bebo cada gota de ti percorrendo-te poro a poro com a avidez da língua.”
Os cus de Judas (1979)
Não chega, a manhã, não vai chegar nunca, é inútil esperar que os telhados empalideçam, uma lividez gelada aclare tremulamente os estores, pequenos cachos de criaturas transidas, brutalmente arrancadas ao útero do sono, se agrupem nas paragens do autocarro a caminho de um trabalho sem prazer: achamo-nos condenados, você e eu, a uma noite sem fim, espessa, densa, desesperante, desprovida de refúgios e saídas, um labirinto de angústia que o uísque ilumina de viés da sua claridade turva, segurando os copos vazios na mão como os peregrinos de Fátima as suas velas apagadas, sentados lado a lado no sofá, ocos de frases, de sentimentos, de vida, a sorrir um para o outro caretas de cães de faiança numa prateleira de sala, de olhos exaustos por semanas e semanas de apavoradas vigílias. Já reparou como o silêncio das quatro horas instila em nós a mesma espécie de inquietação que habita as árvores antes da vinda do vento, um frémito de folhas de cabelos, uma tremura de troncos de intestinos, a agitação de raízes dos pés que se cruzam e descruzam sem motivo?”
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