segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Demjanjuk: este nome te lembra alguma coisa?

Demjanjuk: operador da câmara de gás, ajudou a matar 27,9 mil judeus

Um nome ligado ao Nazismo voltou à tona esta semana. É o de John Ivan Demjanjuk, ex-guarda de um campo de extermínio nazista que só agora, aos 89 anos, está sendo julgado pelo crime de “colaborar na morte de 27.900 judeus que foram enviados à câmara de gás durante a Segunda Guerra Mundial”, podendo pegar até 15 anos de cadeia se for condenado.

A notícia completa está no portal UOL (leia aqui). Ao ler o nome eu me lembrei de quem se tratava, não porque sou versado na história da Segunda Guerra, mas porque Demjanjuk é citado no livro de Philip Roth, Operação Shylock (leia aqui).

A literatura me fez conhecer um caso real, que se tornaria parte da ficção, cuja história se desdobraria até agora, num desfecho demorado. A existência e a história são mesmo duas coisas sem o menor critério.

terça-feira, 24 de novembro de 2009

Paul Auster na New Yorker

The New Yorker

Roger Phaedo não conversou com ninguém durante dez anos. Ele ficou confinado em seu apartamento no Brooklyn, traduzindo e retraduzindo obsessivamente a mesma passagem das ‘Confissões’ de Rousseau. Uma década antes, um gângster chamado Charlie Dark havia atacado Phaedo e a esposa. Phaedo apanhou tanto que sua vida ficou por um fio. Mary foi queimada, e só conseguiu sobreviver depois de passar cinco dias na UTI.

Durante o dia, Phaedo traduzia. À noite, ele trabalhava num romance sobre Charlie Dark, que nunca foi preso. Phaedo passou a beber incondicionalmente o seu uísque. Ele bebia para afogar as mágoas, para adormecer as lembranças, para esquecer de si mesmo. O telefone tocava, mas ele nunca atendia.

Às vezes, a vizinha Holly Steiner, uma mulher atraente, silenciosamente entrava no quarto dele e habilmente o tirava daquele estupor. Outras vezes, ele usava os serviços de uma prostituta local chamada Aleesha.

Os olhos de Aleesha eram duros demais, cínicos demais, e traziam o olhar de alguém que já tinha visto muita coisa na vida. Apesar disso, Aleesha tinha uma estranha semelhança com Holly, como se fosse um duplo de Holly. E foi justamente Aleesha que trouxe Phaedo de volta à escuridão.

Uma tarde, andando nua pelo apartamento de Phaedo, ela se deparou com dois grandes manuscritos, um em cima do outro. Um deles era a tradução de Rousseau, todas as páginas traziam as mesmas palavras. O outro era o romance sobre Charlie Dark. Ela começou a folhear o romance. ‘Charlie Dark!’, exclamou.

‘Conheci Charlie Dark! Ele era osso duro de roer. Aquele filho da mãe fazia parte da gangue de Paul Auster. Adoraria ler este livro, meu querido, mas sempre tenho preguiça de ler livros grossos. Por que você não lê pra mim?’

Foi assim que os dez anos de silêncio foram quebrados. Phaedo decidiu agradar Aleesha. Ele se sentou e começou a ler o parágrafo deste romance, o romance que você acabou de ler.

É com esse trecho, parodiando a ficção de Paul Auster, que o escritor James Wood abre a longa crítica, na revista The New Yorker, sobre o autor de Homem no escuro.

Tive o trabalho de fazer a parca tradução só para mostrar o quanto é agradável ler os textos da revista novaiorquina. Wood faz uma leitura exemplar da literatura de Auster, analisando ponto por ponto o estilo, as fontes e a metacrítica dos romances dele.

A ironia, a influência ao mesmo tempo de Cervantes e Borges, que por sua vez também admirava o espanhol, tendo inclusive escrito o conto Pierre Menard, o autor de Dom Quixote. É claro que no centro da intenção de Wood está o lançamento do mais recente romance de Auster, Invisible. Para quem gosta desse autor cheio de angústia e de repetições milimetricamente pensadas, eis uma expectativa. Logo, logo chegará ao Brasil, sem dúvida.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Pelo prisma da adaptação


O cinema, arte de narrar por meio da imagem, tem uma dívida impagável com a escrita. Raros são os filmes que não nascem de um roteiro prévio, escrito, que coloca os atores no universo do que será filmado, que os prepara para as contracenas, um roteiro que vai mudando ao longo das filmagens, é verdade, mas que é também a linha mestra do diretor. Além disso, o cinema tem uma dívida com a própria literatura, e ao mesmo tempo um conflito permanente com ela.

Para mostrar como o universo literário foi usado pelo cinema e de que forma ainda hoje contribui para o enriquecimento da linguagem cinematográfica, o professor de literatura comparada da Universidade de Nova York, Robert Stam, publicou um livro interessante, intitulado A literatura através do cinema: realismo, magia e a arte da adaptação (UFMG, 2008, 512 páginas).


São sete capítulos em que o autor mergulha, com sinceridade e conhecimento, no mundo das adaptações literárias para o cinema e as recriações de textos (hibridismo, intertextualidade), indo desde Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, até Macunaíma, de Mário de Andrade, livro este que, sem pestanejar, Stam afirma ser a “mãe ignorada de todos os romances do realismo mágico”, embora, por isso mesmo, quem fique com os louros da influência seja a obra do colombiano Gabriel García Márquez.


E o autor não fala isso gratuitamente. Ele faz questão de dizer que lê em português, que conhece bem nossa literatura, além de ter o Brasil como uma “segunda pátria”. Ou seja, é uma espécie de brasilianista dos estudos literários. “O Brasil sempre esteve presente em minha trajetória intelectual nesses últimos trinta e cinco anos. A tal ponto que tenho sempre em mente meus interlocutores brasileiros mesmo quando escrevo em inglês”, afirma o autor, no prefácio direcionado a seu público tupiniquim.


Cruzando estilos


O grande valor de leitura deste livro é a maneira como Stam vê a história do romance e a influência do gênero tanto em novas criações literárias quanto nas produções fílmicas. No escopo de sua argumentação, o autor aponta duas principais tradições de romances que chegam aos dias de hoje como as linhas básicas dessas releituras e adaptações: Dom Quixote e Robinson Crusoé.


Para ele, o livro de Cervantes é o modelo da paródia, da intertextualidade e até do realismo mágico, cujos artifícios e técnicas criativas são encontrados dentro da própria linguagem, influenciando outros clássicos como Tristram Shandy, de Laurence Sterne, e Tom Jones, de Henry Fielding. Neste caso, não sobra mais nada de original para a literatura seguinte, tanto é que o próprio Stam chega a dizer que “toda a história da literatura moderna pode ser vista como uma nota de rodapé de Dom Quixote.”


Mas, em último caso, havendo outra vertente, Robinson Crusoé, do inglês Daniel Defoe, é o texto-fonte das criações miméticas, aquelas que querem “gerar uma forte impressão da realidade factual”, ou seja, os romances realistas, conceito que não se refere apenas à escola do Realismo Naturalismo.


Para não terminar a discussão e mostrar as filigranas da criação textual, entre esses dois gigantes, outros clássicos germinam novas tendências literárias que também deram ao cinema uma força de expressão muito em voga até hoje, renovando-se em releituras, muitas delas buscando um sentido inverso, uma espécie de contra-leitura.


Esses outros cinco estilos fundamentais são a própria narrativa de Fielding, a perspectiva de Gustav Flaubert criada em Madame Bovary, a polifonia de Dostoievski, em Notas do subterrâneo (que recentemente teve uma edição em português com o título de Memórias do Subsolo), o experimentalismo da nouvelle vague francesa – que parte do processo inverso, criando uma estética cinematográfica que influencia a literatura – e o realismo mágico de Márquez.


Notas do subterrâneo é um romance dialógico, polifônico (dotado da capacidade de auto-articulação e de cruzamento de vozes na consciência do personagem, segundo o teórico do formalismo russo Mikhail Bakhtin) que apresenta um narrador atormentado, neurótico, mas confessional, engraçado, autoconsciente.


Para se ter uma ideia de como esses fios de linguagem se entrelaçam na tese de Stam, Notas teria sido a influência direta de livros como A náusea, de Sartre, Lolita, de Nabokov, e até A hora da estrela, de Clarice Lispector, além de filmes de Woody Allen e mesmo as esquetes dos comediantes atuais da stand-up comedy.


O autor cita uma lista das várias adaptações de Crusoé para o cinema, começando com filmes de 1916, como o Robinson Crusoé americano, passando por produções francesas e holandesas, a versão de Luís Buñuel, de 1954, o brasileiro As aventuras de Robinson Crusoé, com Costinha e Grande Otelo, de 1978, até chegar a Lagoa Azul, de 1980, e O náufrago, com Tom Hanks, de 2000. A disseminação dos exemplares do romance de Defoe pelo mundo todo, diz Stam, citando um estudioso do autor inglês, foi como “sementes espalhadas pelo vento, gerando novas obras onde quer que caíssem.”


Nesse sentido, continua ele, filmes como Máquina mortífera, MIB – homens de preto, Grand Canyon – ansiedade de uma geração, Jerry Mcguire – a grande virada, todos eles se basearam na amizade birracial, presente em Crusoé (na relação deste com o negro Sexta-Feira) para criarem seus personagens.


Capacidade de leitura


No seio das argumentações de Stam, ao abordar o problema da adaptação, está a vontade de pôr a baixo a velha ideia de que o cinema presta um desserviço à literatura. Ele avança nessa discussão ao mostrar o quanto as técnicas de narração do cinema têm das técnicas literárias, mas que isso não quer dizer, de forma alguma, que a arte cinematográfica precise ser fiel.


O que diferencia uma arte da outra é justamente a linguagem, e eis aqui mais um avanço nessa discussão, porque refuta a ideia de que o livro é sempre melhor que o filme, só porque é a matriz, quando na verdade são dois produtos diferentes. Stam encaixa aqui a tese de Bakhtin, segundo a qual toda expressão artística é uma construção híbrida, “que mistura a palavra de uma pessoa com a de outra”, principalmente quando se trata de cinema, que envolve uma série de colaborações.


A capacidade de leitura do roteirista é o grande diferencial, neste caso. Segundo Stam, embora a mediocridade exista na passagem de uma linguagem para a outra, endossar a fidelidade como um princípio metodológico só mataria o valor da expressão artística. No caso das adaptações de romances brasileiros, ele explica metodicamente como Memórias póstumas de Brás Cubas, de André Klotzel, é um filme muito bom, que conseguiu captar as veias reflexivas do livro-fonte, sem deixar de ser cinema, sem ser ‘traição’, ‘profanação’, ‘deformação’, palavras que a crítica gosta de usar ao falar de adaptações ou releituras.


“Klotzel vê o romance por aquilo que ele é – um artefato linguístico/estilístico autoconsciente.” É por isso que não importa a fidelidade e, desse modo, mesmo Memórias póstumas sendo um romance fin de siécle, publicado em 1881, Klotzel acerta ao usar comerciais de TV para anunciar a invenção de Brás, o cataplasma. Por causa de procedimentos assim, que recaem sobre a reflexividade da técnica machadiana, a adaptação foi considerada “bastante inteligente e cuidadosamente reflexiva de um clássico brilhante.”


A ousadia de Klotzel seria vista mais tarde na adaptação de outro romance de Machado de Assis, Dom Casmurro, feita pelo diretor Luiz Fernando Carvalho, a ótima minissérie Capitu (TV Globo). Aqui também há trechos de filmes e imagens do Rio de Janeiro produzidos ao longo do século XX e um jogo de espelhos em que o velho Dom se vê ainda jovem às voltas de uma Capitu estonteantemente bela e cheia de vida.


Nas pegadas da leitura de Stam sobre a literatura brasileira e suas apropriações fílmicas, há muito o que aproveitar. O livro foi escrito para os leitores norte-americanos, mas, mesmo assim, traz um ponto de vista extremamente interessante para quem estuda literatura no Brasil, para quem gosta de cinema e quer até mesmo investir na arte da adaptação.


No contrapé da adaptação de Klotzel, há a de Suzana Amaral em cima do romance de Clarice Lispector, A hora da estrela. Neste caso, a cineasta conscientemente muda o foco da narrativa de Clarice, que é introspectiva, que “funciona através do desdobramento da vida interior”, com um narrador sarcástico e burguês, para o realismo e a exterioridade. Segundo Stam, Amaral queria justamente tirar o reflexo do universo burguês, ou a crítica dele, para mostrar apenas o drama da mulher trabalhadora de classe inferior.


Estéticas


O livro de Stam tem uma abordagem ampla, cercando-se de um vasto acervo teórico, cujo cerne são o dialogismo de Bakhtin e o hibridismo de Julia Kristeva. Embora faça uma revisão dos questionamentos políticos e sociais na produção artística, sua preocupação maior neste livro é com a abordagem estética.


Em função dessas considerações, outro texto fundamental dentro do livro, que aborda a literatura e o cinema brasileiros, é aquele sobre Macunaíma. Stam faz uma análise detalhada do romance e do filme. Um banquete para os leitores. Sobre o filme, de Joaquim Pedro de Andrade, diz que é “um exercício absolutamente genial de atualização política e estética de uma fonte romanesca.”,


Sobre o romance, dá uma dica valiosa de como os novatos podem ler e buscar a compreensão desse texto fundador de nosso modernismo. “Macunaíma apresenta quase todos os temas e recursos bakhtinianos – inversões carnavalescas, discurso paródico de dupla voz, heterologia social e artística, polifonia cultural e textual – a ponto de o romance parecer ter sido escrito expressamente para trazer à luz uma exegese bakhtiniana.” É só ler. (Texto publicado originalmente no jornal Tribuna do Planalto).

Serviço

Este livro pode ser comprado no site da Livraria Cultura.

Título: A literatura através do cinema: realismo, magia e a arte da adaptação
Autor: Robert Stam
Editora: UFMG, 2008, 512 páginas
Gênero: Literatura e Cinema/Interpretação
Preço: R$ 79,00

terça-feira, 17 de novembro de 2009

ENCONTROS E DES-ENCONTROS: a dignidade da literatura



Há alguns dias recebi o livro Encontros e des-encontros (Ateliê Editorial, 2005, 112 páginas), de Maria Teresa Hellmeister Fornaciari. Embora o título esteja no esteio comum, representa bem aquilo que a autora quer dizer nos textos. Gostei do que li, principalmente pela preocupação com a linguagem, que no fim das contas é o que dá o efeito estético em qualquer literatura.

Toda vez que vamos ler o livro de um autor desconhecido para nós, do qual nunca ouvimos falar, de quem nenhum crítico que conhecemos escreveu ou, se escreveu, não lemos, procuramos as falhas, em vez da delícia dos acertos. Se vamos ler Ian Mcewan, por exemplo, já queremos ver aquilo que se falou dele, a profunda reflexão das ideias, a grande capacidade de concisão etc.

Mas sobre um autor que não faz parte do ciclo da crítica, é preciso esforço para compreender se há algo de valor ou não em seu texto. E aí, fica mais fácil apontarmos os defeitos, porque, geralmente, são os mesmos que teríamos se fôssemos escrever.

Encontros e des-encontros tem defeitos, mas quero falar aqui do que tem de bom. Trata da casualidade da vida, girando em torno de expectativas, desilusões e momentos de êxito, sob o reflexo específico de um comportamento urbano, com algumas lembranças do mundo rural.

É como se a autora revisitasse sua história, a memória de sua família, e ao mesmo tempo fizesse um retrato da cidade de São Paulo, onde nasceu. É como se houvesse ali uma busca de identidade, um exercício de autoconhecimento.

Nesse sentido, desenha bem o sentimento de quem mora nas metrópoles brasileiras, especialmente a capital paulista. Todo mundo é meio perdido ali, e os encontros (poucos) e desencontros (tantos) abarrotam a vida dos paulistanos (nascidos ou vindos).

Há inclusive um texto intitulado “Identidade”, que diz: “O tempo passa deixando rastros e marcas.” Nesse trecho o leitor sente o peso das palavras e o quanto o próprio tempo pesa sobre a vida.

Mais adiante, uma narradora se coloca como alguém que estranha a chegada da maturidade, que procura no espelho a juventude e não encontra, e começa a puxar a memória para se redescobrir: “Procurei sempre ser tão carinhosa, gostei tanto de que minha dedicação proporcionasse momentos felizes, fiz tantas comidas que deram água na boca e ainda sei tantos poemas de cor ...”

Uma das definições da crônica diz que ela é a mais literária das linguagens jornalísticas e a mais jornalística das linguagens literárias. Os textos de Maria Teresa estão entre o conto e a crônica. Embora catalogados como crônicas, não têm a marca da publicação em jornal, mesmo retratando o cotidiano, e assim criam uma atmosfera de narrativa interessante. É um livro que alcança a dignidade do literário.

Os primeiros textos se assemelham a aquarelas, pinturas configurando o cenário do dia a dia, fixo. Como se o leitor estivesse de frente a uma tela, lendo a narração da imagem pintada. Aliás, em matéria de pintura, a autora conhece bem, porque também é pintora e poeta, o que pode até reivindicar, num nível mais modesto, é claro, o velho mote de Horácio ut pictura poesis (poesia é como pintura). No caso dela, a literatura inteira é como pintura, talvez impressionista.

Pincelando o drama

Depois das aquarelas, a autora escolhe narradores diversos que também pintam histórias do cotidiano, porém, mais dramáticas. Tristes, às vezes. Em tom confessional, outras tantas. E aí, entre encontros e desencontros, os textos vão tecendo o caráter literário do livro. Nenhum deles nomeia os personagens. Ficam sem nomes como num quadro, sendo descritos pelo que sentem, veem, vivem, enfim.

Dois textos trazem uma carga de emoção bem acentuada: “Tempo de Quaresma” e “Tentação”. No primeiro, um casal experimenta a passagem do tempo e o efeito que isso causa no relacionamento amoroso. Já não havia mais diálogo, mais sexo, mais afabilidades, embora houvesse a intenção, o afeto escondido na espessa camada do tempo.

Pelo silêncio dos dois na sala, numa Quarta-Feira de Cinzas, o leitor acompanha os pensamentos de ambos. Mas na mesa, “o que se ouvia, naquele fim de quarta-feira, era apenas o barulho de duas pessoas mastigando, sentadas frente a frente, além do latido do cachorrinho.”

Em “Tentação”, uma menina de nove anos vive a solidão da escolha que fez pelo mundo das palavras. O pequeno drama poético se passa numa feira de livros. A garota se afasta do grupo e se perde no rumor das letras até se achar na palavra ‘quimera’.

Esse conto, esse pequeno memorial, recria uma atmosfera bem na linha de Clarice Lispector, a claricinha ainda menina no Recife, que ficou dias namorando o livro da amiga até consegui-lo emprestado e não devolver mais. Há inclusive uma epígrafe com texto de Lispector.

Trilha sonora particular

A nota dos textos é triste, quase sempre. O timbre é do violino, que substituiu o tambor dos verdes anos. Esta é a impressão maior do ritmo. Ao longo do livro há sempre uma nota musical, uma citação que inclui a história num ambiente de música. Uma trilha sonora bem particular, que está no íntimo de cada personagem.

Dessa leitura, muitas frases cintilam na malha textual de Maria Teresa, apontando sua capacidade de ler o cotidiano, como ao dizer: “Por que as pessoas teimavam em reivindicar a mesma violência e o mesmo tédio de suas rotinas em seus momentos de lazer?”.

Mas há também frases que demonstram o rigor do trato com a linguagem e o talento da autora. Frases de efeito: “Tão racional e habilidoso, sabia subtrair-se com esmero quando se tratava de não se fazer compreendido.” Perspicácia e sensibilidade: “Como somos incapazes de ver o avesso das coisas.”

Tino poético: “Neste momento de tantas perdas, tenho medo de que também o amor escape feito lágrima.” Bem antes, em outro texto, já havia escrito: “Duas lágrimas emergiram e suicidaram-se”. Machadiana: “A vida pareceu-me abrir parênteses, sem ao menos preocupar-se com alguma explicação.”

Maria Teresa Hellmeister Fornaciari é professora de literatura, graduada em Letras, com mestrado em Língua Portuguesa pela PUC de São Paulo. É editora do blog Ouvindo Meus Botões e autora também do livro de poesia Tambores e Violinos.
Serviço

Este livro pode ser comprado no site da Livraria Cultura.

Título: Encontros e des-encontros
Autora: Maria Teresa Hellmeister Fornaciari
Editora: Ateliê Editorial, 2005, 112 páginas
Gênero: Crônicas/Contos
Preço: R$ 23,00

Clarice Lispector em The New York Times

Na segunda-feira passada (16/11), o Portal UOL traduziu um texto muito bom de Tomás Eloy Martinez, publicado em The New York Times, falando da descoberta de Clarice Lispector pelo primeiro mundo. É um texto entusiasmado, segundo o qual a nova onda de Lispector nos Estados Unidos é tão frenética quanto aquela que se fez em torno do chileno Roberto Bolaño.

Mas antes de falar de Clarice, Martinez tece os elogios de praxe ao Olimpo de nossa literatura.

Em meados do século 20, o grande nome da literatura brasileira continuava sendo o de Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908), que escreveu uma sucessão de obras mestras mediante o simples recurso de observar atentamente a paisagem interior dos pensamentos e dos sentimentos para contá-los de uma maneira incomum, inesperada. Um de seus maiores herdeiros é João Guimarães Rosa, que impressiona mais do que tudo por seu virtuosismo verbal e pelo ouvido finíssimo com que capta a música das vozes do sertão, no nordeste profundo de seu gigantesco país.

Entretanto, a única filha direta e legítima de Machado de Assis é Clarice Lispector, cuja obra misteriosa começa a difundir-se nos Estados Unidos com tanto ímpeto quanto a de Roberto Bolaño. O chileno foi consagrado pela revista The New Yorker, e o influente The New York Review of Books rendeu tributo a Lispector com um ensaio extenso de Lorrie Moore, a jovem deusa do minimalismo.

(...)

Depois faz o perfil imaginativo de Clarice:

Dar uma ideia de sua imaginação só é possível através de algumas citações. O começo do romance ‘Uma Aprendizagem...’ (1969) é uma frase que vem do nada. A porta de entrada desse livro é uma vírgula: ‘, estando tão ocupada, viera das compras de casa que a empregada fizera às pressas porque cada vez mais matava o serviço, embora só viesse para deixar almoço e jantar prontos...’.

Antes desse comentário doméstico e trivial, Lispector surpreendeu o leitor com uma advertência que é também uma afirmação de seu ser:

‘Este livro se pediu uma liberdade maior que tive medo de dar. Ele está muito acima de mim. Humildemente tentei escrevê-lo. Eu sou mais forte que eu. C.L.’

E no final de ‘Água Viva’, ergue a voz: ‘Não vou morrer, ouviu, Deus? Não tenho coragem, ouviu? Não me mate, ouviu? Porque é uma infâmia nascer para morrer não se sabe quando nem onde. Vou ficar muito alegre, ouviu? Como resposta, como insulto’.

Seu desmedido desafio à morte impregna muitas das crônicas reunidas em ‘Revelación del Mundo’, que incluem todas as que escreveu para o Jornal do Brasil entre 1967 e 1973. Outras, inéditas, serão publicadas no ano que vem em espanhol sob o título de ‘Descubrimientos’.

Lispector continua sendo um enigma velado que assombra em cada frase, em cada desvio da vida. Morreu aos 57 anos de um câncer nos ovários, depois de ter passado os últimos anos fechada na solidão de sua casa do Leme, perto das areias de Copacabana.

Seu autorretrato cabe em uma frase: ‘Olhar-se ao espelho e dizer-se deslumbrada: Como sou misteriosa’.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

A escritura do mestre

“Quem for fazer o ‘exercício’ de olhar o livro de Tanussi, acaba dando com isto e, se não tiver preguiça, acaba lendo; e, se ler, acaba divergindo; se divergir, tanto melhor, algumas coisas ficarão mais claras.” ‘Isto’, a que o texto se refere, é o prefácio do livro de poemas do carioca Tanussi Cardoso, Exercício do olhar, de 2006. O autor do prefácio é o goiano Gilberto Mendonça Teles, também poeta, crítico, ensaísta e professor de literatura.

A observação acaba expondo todo o espírito do seu próprio livro, Contramargem II: Estudos de Literatura (UGC/Kelps, 2009, 532 páginas), em que Teles reúne – junto ao texto citado – uma série de resenhas, prefácios discursos, homenagens, artigos e ensaios sobre tempos e autores distintos, como Camões, Cervantes, Eça de Queirós, Mário Quintana, Machado de Assis, Alberto da Costa e Silva, Lêdo Ivo, entre outros.

O melhor de Contramargem é justamente esse cruzamento de textos que apontam perspectivas e fomentam o debate em torno do cânone, da teoria literária e da produção atual. Sobre Álvares de Azevedo, por exemplo, Teles quer acreditar que o poeta romântico tinha uma alegria definidora de sua poesia, ou seja, que o pessimismo, a tristeza e a falta de esperança são elementos presentes, mas que não configuram sua obra. Esta característica negativista, portanto, ficaria à margem daquilo que de fato é a poesia de Azevedo.

Vale lembrar que Antônio Cândido, em A formação da literatura brasileira, de 1957, embora ponha na conta do autor de Lira dos 20 anos toda a pulsão de morte e pessimismo, também chama a atenção para o lado contente de Azevedo. Segundo Cândido, os poemas da série “Spleen e Charutos” dão esse tom, de “alegria saudável, graciosa, a dosagem exata do humor.” Mas em seguida argumenta que nada é mais forte que o poeta “entregue a si mesmo”, em cujos versos se encontram a melancolia e o desencanto.

O fato é que na obra de Azevedo a tônica dominante pouca importa. O equilíbrio se faz pela essência da poesia dele. Neste caso, em seus melhores poemas, junto com a prosa de Noites na Taverna, reúnem as duas características. É só conferir. Ao fazê-lo, o leitor estará realizando a intenção de Contramargem, que é ler, divergir e se esclarecer.

Contramargem II é quase a reedição do livro publicado em 2002, com o acréscimo de 15 textos escritos a partir de 2003, além de uma entrevista. Fica, portanto, entre um segundo volume e uma segunda edição encorpada. Aos 77 anos, Gilberto Mendonça Teles já conquistou seus méritos no Brasil e no exterior, de modo que não precisa comprovar, nem provar, nada a mais ninguém. Nesse sentido, Contramargem é um deleite, ao mesmo tempo em que é oferecido ao público como diálogo, espaço de debate e aula prazerosa.

No campo do verso, vemos uma definição do poético que pode ser levada para as leituras seguintes, dando-nos uma chave para a sondagem da própria poesia de Teles e de outros: “O poema provém de um ritmo que passa pelo mais íntimo do poeta, repercute no cosmo cultural e toca, em última instância, no Logos do Criador (Deus e Homem).”

Em outra passagem, o autor lembra que os jovens poetas de hoje parecem ter perdido essa capacidade de criar o ritmo poético sem perder de vista as iluminações da linguagem, dentro das quais está o “segredo retórico do poema”, e não na obscuridade das palavras.

Sobre autobiografias, gênero que voltou a ser objeto de interesse literário do público mais amplo, Teles dá outra aula: “A narrativa autobiográfica sofre os efeitos da pátina do tempo, e o que se conta como realidade recebe a sua dose de ficção, de maneira que a realidade empírica, ao se submeter à escrita, se transforma em realidade histórica e, noutra direção, se metamorfoseia na realidade literária.” (Leia o texto completo na Tribuna do Planalto)

O que é consciência negra?

“Um negro orgulhoso de sua identidade étnica é para eles uma afronta intolerável, e o negro desejar resgatar sua história e seus valores culturais, é puro racismo às avessas.” Desde que Abdias Nascimento, combatendo a falácia racista brasileira, fez esta observação, em 1982, na segunda edição de seu livro O negro revoltado, muitas palavras voaram no horizonte do debate racial.

A população negra hoje está mais consciente de sua força e de seu valor, mas o racismo, cínico e quase sempre silencioso, ainda corrói as relações interraciais no Brasil, como uma espécie de inimigo invisível, porque não é institucionalizado, como foi na África do Sul, nem declarado como nos Estados Unidos.

Se por um lado não aparece o conflito direto, que causaria maiores danos à sociedade de modo geral, por outro, a reparação de mais de 300 anos de exploração sobre o corpo, a alma, a força de trabalho e o destino do negro (escravidão) é mais lenta. E os danos que existem em função desse racismo que perdura há cinco séculos só recaem, todos, na conta do negro.

Para combater as injustiças e desigualdades raciais foi necessário criar o que se chama de consciência negra, fazendo surgir movimentos que demonstravam a importância da luta ideológica, da construção de heróis negros e instituição de datas comemorativas. Foi a partir daí que se criou no Brasil o Dia Nacional da Consciência Negra, celebrada em 20 de novembro, dia da morte do mais representativo herói negro brasileiro, Zumbi dos Palmares, morto em 1695, após anos de resistência contra a escravidão.

Mas o que de fato caracteriza a consciência negra? Que elementos devem perpassar a consciência individual e a coletiva que confirmam essa nova postura? De acordo com o antropólogo e ativista negro, Alex Ratts, professor do Instituto de Estudos Sócio-Ambientais da Universidade Federal de Goiás, a consciência negra é o despertar do negro no reconhecimento de sua identidade étnica, sua origem e seus valores que o faz se autoafirmar positivamente e reagir contra manifestações racistas.

Segundo Ratts, a ideia de consciência negra, como os movimentos contemporâneos definem, nasceu nos anos de 1970, tanto na África do sul quanto no Brasil e nos Estados Unidos. O termo foi criado por Steve Biko, pensador sul-africano que foi assassinado pela polícia política do Apartheid, em 1977, por enfrentar o regime racista e mostrar o exato valor da origem e da cultura do povo nativo.

É claro que esta consciência sempre existiu em muitos líderes negros, brasileiros e norte-americanos, bem antes da entrada de Biko no cenário da luta contra o racismo. No Brasil, Abdias Nascimento vinha travando esse combate desde os anos de 1940, quando criou o Teatro Experimental do Negro (TEN), atitude que ele mesmo chamava de consciência antirracista.

Nos Estados Unidos, antes de dois baluartes da luta contra o racismo, Martin Luther King e Malcolm X, havia nomes como o de Marcus Garvey, precursor dos movimentos negros que modificaram as relações raciais naquele país.

Mas foi Biko o responsável pela tomada de consciência de milhares de pessoas que se tornariam os líderes dos movimentos negros a partir daquela década. Muitos de seus escritos podem ser encontrados no livro Escrevo o que eu quero, publicado no Brasil em 1990, mas que atualmente está com edição esgotada.

De acordo com Ratts, sob influência das ideias de Biko, autores brasileiros como Hamilton Cardoso, Neusa Santos Souza e Beatriz Nascimento começaram a falar em consciência negra. A partir daí, grupos inteiros foram formados com essa expressão. “Eu, por exemplo, fiz parte do grupo União e Consciência Negra, fundado em 1982 em torno da ideia segundo a qual a negritude não é dada, é uma consciência que precisa ser construída”, diz.

No bojo dessa diretriz clara de que a consciência negra precisava ser formada, toda uma literatura passou a ser lida em português e inglês, colocando a ideia de que ser negro não era só se identificar com a cor de sua pele. Segundo Ratts, isso era fundamental, sem dúvida. “A cor da pele estava presente como identidade também. Mas não era suficiente.”

A construção dessa consciência, individual e coletivamente, onde a população negra estivesse, fosse na África ou na diáspora africana (Brasil, Estados Unidos, Jamaica), tinha de passar pelo reconhecimento de outros elementos. Entre eles o político e o histórico, duas características fundamentais na resistência contra o racismo. “Saber como o poder, na esfera das instituições políticas e econômicas, sempre influenciou a situação do negro é uma questão que está no centro dessa consciência”, diz Ratts.

Muitas pessoas argumentam que o racismo não existe no Brasil citando justamente as conquistas que os negros tiveram só depois de sua organização em torno de movimentos que reivindicam mais atenção do Estado. Entre essas conquistas está a criação da Fundação Palmares, instituída em 1989, ano em que também foi sancionada a Lei Nº 7.716, a Lei Caó, que tipificou o racismo como crime inafiançável, sendo modificada pela Lei Nº 9.459, de 1997.

Em 2003, foi criada a Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), dentro da qual outras ações foram realizadas, como o apoio aos movimentos quilombolas no país todo e a criação da Lei Nº 10.639/2003, que institui a obrigatoriedade do ensino de história da África e da população negra brasileira nas escolas de Ensino Fundamental, Médio e Superior.

Segundo Ratts, embora haja dificuldades na aplicação desta lei, ela obriga a ter uma visão refeita sobre a África e sobre o negro no Brasil. Em todo caso, não deixa de ser uma conquista que está diretamente ligada a essa tomada de consciência negra. Uma das primeiras características dessa nova postura foi notada ainda na década de 1970, quando vários negros começaram a buscar nas universidades um meio de combater as desigualdades raciais e a difundir os elementos da consciência negra.

A entrada do negro nas instituições de ensino superior, a partir dessa época, foi uma ação consciente e fundamental para a constituição de grupos e núcleos de estudos afrobrasileiros. O trabalho acadêmico de Ratts é justamente sobre a trajetória dos intelectuais negros brasileiros, tendo inclusive publicado um livro, Eu sou Atlântica, sobre Beatriz Nascimento, sergipana que morou no Rio de Janeiro, de onde desenvolveu diversos estudos acerca dos problemas raciais no Brasil.

De acordo com Ratts, vários nomes despontaram nessa época, no Rio de Janeiro, São Paulo, Maranhão, Bahia, Rio Grande do Sul, todos utilizando o espaço acadêmico como espaço de ativismo para recolocar a questão do racismo e da categoria raça. “Esses intelectuais produziram estudos muito importantes, que depois dessa fase ficaram meio esquecidos. Mas agora estão sendo reabilitados”, diz.

O grande diferencial desse grupo, no que diz respeito aos movimentos de consciência negra no Brasil, é que eles souberam construir um espaço privilegiado dentro das universidades. Até eles chegarem, a presença do negro nas instituições de ensino superior era de forma muito isolada, com pessoas que não se interessavam em lutar pelas causas do negro ou não sabiam como fazer.

“Quem conseguia entrar para a universidade, cursava direito, medicina ou engenharia e depois ia cuidar de sua vida. Eventualmente alguém escolhia a área de humanidades, alguns artistas surgiam, mas não era nada de envolvimento coletivo, ninguém mergulhava nas ciências sociais, antropologia, ciência política, pensando no combate à desigualdade racial, sistematicamente”, avalia Ratts.

Atualmente, quase todas as universidades federais e estaduais, e algumas privadas, possuem núcleos de estudos afrobrasileiros. Para se ter uma ideia de como isso avançou no país nos últimos anos, em 2004 havia 15 núcleos no Brasil. Hoje são 70 núcleos, de acordo com a contagem de Ratts, que coordena o Núcleo de Estudos Africanos e Afro-Descendentes (NEAAD/UFG). “Mesmo assim, depois de todas as conquistas, o número de alunos e professores negros nas universidade brasileiras ainda é irrisório” diz.

O que não é irrisória é a maneira como essa consciência se alastrou para além dos movimentos negros, alcançando a população negra de modo geral. Segundo Ratts, há pessoas que nunca passaram numa reunião de um movimento, mas que têm essa consciência. “Hoje esse discurso está em toda parte, não da mesma maneira, claro, mas é abrangente.”

Ratts diz que seu trabalho na antropologia segue a linha segundo a qual a cultura circula. Nesse sentido, diz ele, pode ser encontrada uma expressão cultural negra aqui no Brasil, no Uruguai e nos Estados Unidos (Nova Orleans), como a lembrança do Rei do Congo, por exemplo, que aqui é celebrada nas festas das congadas.

Segundo ele, tudo isso é fruto dos movimentos de consciência negra que leva em conta o sentimento da diáspora, aglutinando os valores do negro em torno de sua origem em comum. Outro exemplo citado é a cidade de Catalão, onde é forte a festa das congadas. “Lá não há um movimento negro, não há grupos políticos organizados em torno dessa questão, mas as pessoas combatem o racismo, elas têm esse discurso do movimento negro, sem ter entidades que se autointitulem como tais.”

A consciência negra, portanto, passa pela consciência do corpo, de repensar a construção da figura corporal, pela estética, o despertar do gosto pela arte que trata dos valores negros, e das consciências políticas. Os negros conscientes de sua origem repensam a escravidão, o racismo contemporâneo e sabem como reagir a isso. Reação esta que não é só individual, é também coletiva.

(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente na Tribuna do Planalto, 15/11/2009)

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Nélida Piñon em El País

A escritora Nélida Piñon esteve recentemente na Espanha onde deu uma entrevista ao El País. No site do jornal, há um pálido texto sobre autora, mas, como tudo no periódico espanhol, muito bem escrito.

Frequentemente leio em espanhol, embora não me sinta fluente na língua. De vez em quando acho-a extremamente estranha, e rio nesses momentos. Como agora.

A certa altura, o jornalista diz que a escritora, desde que se entende por gente, vibra com Kant e com a Grécia de Ésquilo, mas também com “los cogollos de ventresca, las coquinas y los callos a la madrileña.” Deus me livre!

Carta de Monteiro Lobato

... Num desfile, à tarde, pela horrível rua Marechal Floriano, da gente que volta para os subúrbios, perpassam todas as degenerescências, todas as formas e más formas humanas – todas, menos a normal. Os negros da África, caçados a tiro e trazidos à força para a escravidão, vingaram-se do português da maneira mais terrível – amulatando-o e liquefazendo-o, dando aquela coisa residual que vem dos subúrbios pela manhã e reflui para os subúrbios à tarde. (...) Como concertar [sic] essa gente? Como sermos gente no concerto dos povos? Que problemas terríveis o pobre negro da África nos criou aqui na sua inconsciente vingança!

Carta do puríssimo Monteiro Lobato, do começo de 1900. Texto publicado em A vida Literária no Brasil – 1900 (José Olympio, 1975), de Brito Broca. Trecho reproduzido no livro Abdias Nascimento: o griot e as muralhas.

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

O tateador de palavras



Em 2007, o poeta, romancista e psicanalista Wesley Peres publicou dois livros: Casa entre vértebras (Record, 224 páginas) e Palimpsestos (UFG, 120 páginas). O primeiro até que ressoou na boca de alguns críticos. Mas o segundo, raro livro de poemas que brinca com as formas, passou em branco. Injustiça comum na literatura brasileira, principalmente quando se trata de poesia.

Pela consistência dos versos e as imagens que evoca, Palimpsestos é um achado da recente produção literária em Goiás. São 50 poemas que versam sobre a inquietação do homem sobre sua própria natureza. Trata-se da crise existencial em que o sujeito poético se encontra deslocado. Temática vulgar na literatura contemporânea. Invulgar é a voz do autor.

O poeta busca o sentido das coisas pelo avesso, pela negação do significado gramatical da vida. Em determinado trecho, uma mulher que atravessa a crise do sujeito poético diz a ele: “‘O seu problema é chover ao contrário.’” A chuva, as águas, o vento são fenômenos constantes nos poemas, como ciclos. São elementos de passagem. Esse livro, como de qualquer jovem autor (Peres tem 34 anos), faz um exercício de amadurecimento, e esta é a razão da crise existencial configurada nos versos.

Seguindo as pegadas da inversão de sentido, vemos outras linhas como “o amor é navegar uma âncora.” Além de apontar a dimensão do amor (um sentimento profundo), o verso o coloca numa situação de imobilidade. A âncora é o esteio, aquilo que possibilita o lugar seguro, mas também pode ser a prisão, porque não permite o movimento. Pode ser a barreira no meio do caminho. Ao mesmo tempo que é bom, o amor é difícil de ser vivido. Navegar uma âncora não deve ser fácil.

Ao longo dos textos, muitas vezes minimalistas, outras, ampliando o corpo da prosa no traço do verso (prosema, definição dele, ou proemas, proesia, definição de outros poetas para técnicas similares), vemos surgir um espaço onírico, noturno, que sustenta todos os procedimentos de indagação poética, demonstrando uma situação de clausura do ser. Esse caráter do dentro, como se o sujeito poético estivesse emparedado, é muito visível. “Mesmo assim, há paredes/ dentro de cada palavra minha, estou só.”

A solidão do ser na jornada da vida. “Há um imenso ninguém em minha/ pessoa.” A vontade de cavar a linguagem para descobrir em seu cerne o sentido das coisas. “A palavra, por dentro, se veste de mim.” A configuração do nada na crise do ser. “A minha voz, círculo em para dentro,/ é o lugar mobiliado pelo silêncio.” Tudo isso é trabalhado nos poemas de Peres, não como negativismo total, mas como estranhamento, uma tentativa de se libertar da angústia da existência.

Talvez mais do que isso, ou além disso, o sujeito poético quer descobrir, esclarecer o que há dentro das coisas, na essência delas, onde há sempre a obscuridade, e também a ambiguidade, porque no esforço para enxergar nesse espaço de sombra, o que se vê é muito pouco do que se vive. E essa sensação de incompletude, sem dúvida, traz uma espécie de desconforto.

A sensação de clausura é exemplar neste outro verso: “Há uma travessia onde nada há.” O verbo ‘haver’ no sentido de ‘existir’ fecha a possibilidade de transcendência e da própria existência. Nada há, nada existe. Ou melhor, há, sim, o caos, “cuja chave é do lado de dentro.” Eis novamente o ser emparedado.

“Sou rumores”, diz o sujeito poético. E nesses rumores o que mais ecoa são palavras da ordem da sombra e do vazio, como a solidão, mas, ao mesmo tempo, são vocábulos que sugerem outras possibilidades, como o reflexo daquilo que se é, ou o espaço da crise e da reflexão: espelho, água, chuva, vento, árvores, noite, estrela, lua, sonho, insônia, café e silêncio.

Essas são palavras usuais no vocabulário de Palimpsestos. Imagino que um dia alguém se interessará em estudar o caráter noturno desse livro. “Coleciono conchas sempre que noite – e sempre é noite.” Não é à toa que o sujeito poético não se refere ao sol, nem à palavra ‘luz’, que aparece apenas uma vez. O sol é esclarecimento, a clareza das coisas, tudo que o sujeito poético não tem. E talvez nem queira ter, embora busque. “Meu fetiche é definir, e assim me perder.”

Palimpsestos recebeu o prestígio de professores altamente capacitados na área de poesia, como James Buarque, poeta e professor do Mestrado em Teoria Literária da Universidade Federal de Goiás, que escreveu a orelha do livro e disse: “O melhor do poeta, a meu ver, é se atrever ao lugar-comum com sabor de surpresa.”

A professora Goiandira Ortiz Camargo, também da UFG, escreveu o prefácio do livro, no qual já fala em escrita peresiana. Imagino que ela tenha dito isso para prestigiar o autor, porque, na verdade, há ainda muito mais dos outros do que dele mesmo, no sentido da releitura. Afinal, o próprio título sugere essa característica, que certamente é o que há de melhor em Palimpsestos, a formidável capacidade de ler do poeta.

Palimpsestos significa “papiro ou pergaminho cujo texto primitivo foi raspado, para dar lugar a outro”, segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Tem a mesma raiz de palíndromo, que designa a palavra ou a frase que tem o mesmo significado quando lido de traz para frente. Os dois vocábulos vêm da raiz grega ‘palim’, ou seja, ‘de novo’, com repetição, em sentido inverso.

Daí o exercício de buscar o contrário das coisas, com valor de naturalidade na poesia de Peres. Mas também, eis aí a razão da raspagem do antigo para a inserção do novo olhar. Um olhar sombrio e inquieto sobre a existência, que se traduz na própria busca pela verdade do ser.

Peres é um grande leitor, e repassa aqui o sentido poético de nomes como Manoel de Barros e Guimarães Rosa, os mais visíveis nessa inscrição. O segundo, inclusive, surge na página 30, quase como uma saturação: “Nossa, o que disso escutei, haja Rosa ...” Mas há também a leitura de outros poetas, a sugestão deles marcada a ferro e fogo em muitos versos.

Nessa incursão poética, há traços de nomes como o francês Arthur Rimbaud, o austríaco Georg Trakl, o brasileiro Cruz e Sousa, e, claro, o francês Jacques Lacan, psicanalista, como o próprio Peres. Lacan foi objeto de dissertação de mestrado de Peres, na UFG, que estudou as relações icônicas da poesia de Manoel de Barros e a visão lacaniana do universo do inconsciente. Para o autor de Palimpsestos, “Lacan é bruxo porque é poeta, e os poetas sabiam do inconsciente antes mesmo de Freud.”

Num poema de título sugestivo, “Clave”, Peres lapida dois versos exemplares de como outros poetas estão presentes em sua poesia, até mesmo como o ‘outro’ em contraposição ao ‘eu’: “O corpo é um demônio que me escreve”, diz, no primeiro verso. Rimbaud, o poeta errante, também faz do corpo a inscrição de sua poesia. Como diz o professor de literatura da Universidade Federal de Minas Gerais, Maurício Salles Vasconcelos, “integrado a um ato, o corpo, em Rimbaud, mais do que um dado de ordem temática, comparece como presença e influência sobre a escrita”, em Rimbaud da América e outras iluminações (Estação Liberdade, 2000).

Logo abaixo, o poeta escreve: “Aranhas, móbiles do vazio.” Há uma beleza plástica angustiante nesse verso, que remete a Georg Trakl, mais do que a Rimbaud. Em versos intensos como “o silêncio próximo pensa no esquecido” e “Aranhas procuram meu coração”, Trakl representa bem o simbolismo relido por Peres, que discorre uma fileira de gestos reescrevendo, relendo a inquietação do sofrido poeta austríaco.

Nesse sentido, Peres escreveu linhas bem traklianas, como “Fala incendiada de lodo” e “É sem olhar a minha voz.” Eis aqui, uma vez mais, a escuridão, que tece o espaço poético de Palimpsestos. É assim que o poeta tateia palavras buscando um sentido para a existência, como nos versos “Anjos são mulheres que escolheram a noite” e “Sem lua, é outra a beleza da noite.”

Em Palimpsestos, cada ser em si é só. Soçobra nesse universo amplo de possibilidades existenciais, como no poema Monólogo Haikai, que diz apenas “Eu”. E diz muita coisa, porque a principal característica da poesia moderna é o monólogo. Quase não há mais épicos, epopeias. Tudo gira em torno de um eu inquieto e cheio de dúvidas.

Na estrutura dessa poesia minimalista japonesa, que exige três versos (de cinco, sete e cinco sílabas), há sempre que se referir, simbólica ou metaforicamente, a uma estação do ano, para expressar pensamentos ou sentimentos. Peres não fez isso. Mas, em compensação, na palavra ‘eu’ há uma tempestade inteira, porque refere-se a todo o livro, que recorre à chuva e ao vento a todo instante.

A leitura de Palimpsestos não se esgota aqui, o que demonstra sua qualidade. O autor, ainda jovem, traz para suas páginas a experiência da psicanálise, fortemente presente no livro, principalmente no que diz respeito ao trato da linguagem e na relação do eu com o outro, no jogo entre o fora e o dentro. Exemplo desse gracejo pode ser visto no haicai à brasileira, sem nos esquecer de que em japonês ‘hai’ quer dizer ‘brincadeira’ e ‘kai’, significa ‘frase’.

“Entre aves e você
rio
anoitecendo.”

Quem não sabe diferenciar a Natureza (força bruta) da natureza humana terá dificuldades para ler esse fluxo de lágrimas que nasce do verbo rir e do substantivo rio. Aliás, há um choro permanente, uma dor existencial, característica da busca da compreensão da vida, que nasce nessa crise do sujeito poético. Nada mais é que o estopim para a busca da verdade do ser.

(Publicado originalmente no jornal Tribuna do Planalto).

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

MOACYR SCLIAR VENCE PRÊMIO JABUTI

A nota é da Folha de S. Paulo desta quinta-feira.

"Moacyr Scliar foi o grande vencedor do 51º Prêmio Jabuti com 'Manual da Paixão Solitária' (Cia. das Letras), escolhido melhor livro do ano de ficção. A obra já havia ganhado na categoria romance. O Jabuti de melhor livro de não ficção ficou com 'Monteiro Lobato -Livro a Livro' (Unesp/Imprensa Oficial), org. de Marisa Lajolo e João Luís Ceccantini. A premiação ocorreu ontem."

terça-feira, 3 de novembro de 2009

DA ARTE, DA LEITURA, DA NATUREZA

“Todo leitor é alguém que deseja ser diferente”, diz Assis Brasil. Toda leitura nos faz diferentes, ainda que seja por uma palavra captada no meio de um livro de 800 páginas.

Seguindo o raciocínio, ninguém lê um livro do mesmo jeito, ainda que haja tangências importantes e necessárias de uma leitura para a outra, assim como ninguém vive a vida do outro, mesmo que tente, mesmo que seja numa representação, como no cinema ou no teatro.

Aliás, nem a própria pessoa é capaz de representar a si mesma totalmente, com toda a carga de sentimentos que tivera outrora, demonstrando as sutis linhas do rosto feitas na manifestação natural de um segredo que quis emergir, por exemplo. Jamais. Cada um de nós é uma obra de arte da Natureza.

Eis o nosso caráter de unicidade. Uma obra de arte em constante realização, até a morte, até o pó, ainda na memória do outro, até a morte do outro, o pó do outro. É essa unicidade que não nos deixa ser iguais.

Memórias de uma nação

Dalia Sofer: exilada em Nova York, cidade onde chegou aos dez anos de idade, em 1982

Não dá para ler tudo nem todos. Os grandes e céleres leitores como Harold Bloom e Alberto Manguel, para citar os vivos, ou Martin Seymour-Smith, Otto Maria Carpeaux e Samuel Johnson, para não esquecer os mortos, leem ou leram o escopo da literatura universal, construindo uma sabedoria enciclopédica impressionante.

No caso dos mortais simples, feito o autor desta coluna, a leitura segue apenas o ritmo de um cavalo bom que de vez em quando ganha a corrida. Nada mais que isso. Para ler bem, e bons autores, é preciso, portanto, fazer o recorte certo, ao mesmo tempo em que não se devem fechar as portas para o novo. Vez ou outra é indispensável lançar os olhos ao longe e captar o significado da vida além de nosso umbigo intraatlântico. 

É com esses olhos que podemos ver escritores como a iraniana Dalia Sofer, que em 2007 publicou seu primeiro romance, Setembros de Shiraz (Rocco, 2008, 286 páginas). O livro retrata um problema que nós brasileiros conhecemos, seja pelo viés da história recente, seja pelo ardor da própria pele: os danos de um golpe de Estado que revira de pernas para o ar uma sociedade inteira e acabam levando alguns ao exílio. No Brasil isso foi passageiro e de baixo impacto. Já em outros lugares não se pode dizer o mesmo.

A história tem mil e um relatos sobre o assunto, mas à arte também interessa o registro da miséria e grandeza dos homens no poder e o que eles fazem quando conseguem montar o Estado Totalitário. Esta é uma das razões pelas quais os cidadãos desenraizados escrevem sobre suas experiências, e por igual motivo o leitor deve ler.

A chamada literatura de migrantes (Migrantenliteratur, em alemão) nos deu um legado enorme da experiência de expatriados, por causa de revoluções políticas, em países comunistas como China, Cuba, Rússia, Angola, Bulgária e muitos outros, ou na Alemanha nazista, na Itália fascista e nas repúblicas islâmicas, como o Irã. Em função disso, os Estados Unidos estão cheios de colônias feitas exclusivamente por expatriados, todas formadas ao longo do século XX, a era dos extremos, marcada pela diáspora nos quatro cantos do planeta.

Em Setembros de Shiraz, Dalia resgata a história do golpe de Estado iraniano que pôs no poder os mulás, ou seja, os radicais islâmicos que subjugam os atos políticos aos da lei do Corão. É a partir desse acontecimento que Setembros de Shiraz ganha forma. Em 1981, em pleno começo da guerra Irã-Iraque, que durou de 1980 a 1988, a família judia de Isaac Amin se viu encurralada pela polícia política do novo líder da nação, o aiatolá Ruhollah Khomeini, que dois anos antes derrubara o Xá Mohammad Reza Pahlevi.

Isaac, gemólogo e joalheiro bem sucedido, é preso pela Guarda Revolucionária iraniana, é torturado e vê os colegas sendo torturados também, muitos deles morrem, sob acusações de crimes inexistentes, só para justificar a transferência de poder e de riquezas. Enquanto isso, sua mulher, Farnaz, e sua filha, Shirin, têm de se virar como pode para não sucumbir diante do novo regime. Só quem está a salvo é o filho mais velho do casal, Parviz, que já se encontra em Nova York e faz o contrapé da realidade vivida pelos pais e a irmã.

O ideal desse novo governo iraniano é socialista, mas ele não se submete aos caprichos de forças como a então União Soviética. Quem passa a mandar são os líderes religiosos. “Os cartazes de cinema e anúncios de xampu foram substituídos por extensos murais clérigos. As ruas que tinham nomes de reis agora manifestam que a revolução é sua patrocinadora. E homens e mulheres um dia bem vestidos transformaram-se em sombras barbadas e véus negros”, diz um trecho.

Ao longo do romance, cuja ambientação principal é a Teerã sob permanente estado de tensão, o leitor acompanha o choque de costumes e de valores. No momento da prisão de Isaac, há um exemplo do que se tornaria comum no Irã dos aiatolás. “Há uma motocicleta preta estacionada no meio-fio, ao lado do seu Jaguar verde-esmeralda lustroso. O homenzinho faz cara de desprezo para o elegante automóvel, monta na sua moto, solta o freio e liga o motor. Isaac monta em seguida, com o segundo soldado atrás.”

Ao ser literatura de migrantes, Setembros de Shiraz resgata a questão da memória, e desse modo pode ser chamado também de romance histórico e político. A intenção da autora é mostrar a qualquer interessado o lado íntimo da expatriação. 

Ao fazer isso, ela se equilibra numa corda muito fina que separa a intenção de produzir literatura e a vontade pessoal de se vingar por meio da arte de narrar. A própria autora é uma expatriada e conta justamente a história de sua família, não necessariamente ao pé da letra, claro, já que se trata de um trabalho literário. Dalia está hoje com 37 anos e mora em Nova York, cidade onde chegou aos dez, em 1982.

O título do romance se refere aos dois setembros (de 1981 e 1982) entre os quais Isaac foi preso, torturado e extorquido. Teve de dar quase toda sua fortuna para poder ganhar a liberdade e fugir com a família para os Estados Unidos. Os setembros de Shiraz são as lembranças que recortam essa realidade bruta, as memórias da juventude do casal, quando os dois se conheceram na cidade do título, em férias de fim de verão.

Setembros de Shiraz é, portanto, um livro que usa a memória para construir o drama da vida no processo de transição de um regime para o outro, sejam as reminiscências da infância da autora, sejam os relatos dos que sofreram na pele o impacto do golpe de estado no Irã. Em seus agradecimentos, no fim do livro, Dalia diz que tem uma dívida eterna com uma amiga por “restaurar a minha fé na possibilidade da bondade.” Ou seja, a autora sentia uma espécie de rancor com seu próprio passado.

Mais adiante ela diz: “obrigado aos muitos prisioneiros políticos cujos relatos espontâneos forneceram os dolorosos detalhes da prisão e da tortura”, entre os quais está seu pai, Simon Sofer. Todas essas menções referem-se ao material de construção de sua ficcionalidade, em que há inclusive a luta eterna entre árabes e judeus. A narração supostamente distanciada, ao ser feita em terceira pessoa, faz um desenho milimétrico das emoções dos personagens judeus, das vítimas do estado totalitário. Mas o inimigo aparece apenas em vultos.

Os novos donos do Irã, na narrativa de Dalia, são como homens brutos sem o menor senso estético ou sensibilidade. Quando tomam o poder, tudo que é ocidental é retirado da vitrine social iraniana, o valor da alta cultura, a ostentação de riquezas, Mozart, Debussy, Frank Sinatra.

Nesse sentido, Setembros de Shiraz é um romance de mão única, quer dizer, retrata a realidade vivida por um grupo de pessoas a partir de um ponto de vista particular. O narrador tem um ângulo de visão muito bem delimitado, ao narrar com certo ressentimento, o que remete o leitor a uma frase muito copiada de Carlos Drummond de Andrade: “Toda história é remorso.”

...