segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Os loucos parecem eternos


O eterno sob outra perspectiva. Ou o tempo em sua inteireza, absoluto, derramado sobre todas as coisas vivas e mortas, sem o tique-taque do relógio ou as convenções. O tempo atravessando os corpos e transformando-os, e dentro dele, rodopiando em sua esfera diáfana, a loucura. Os loucos parecem eternos, disse-me uma vez uma mulher que já morreu, mas que deixou seu recado mui substancialmente em um livro chamado Hospício é Deus. Disse-me por meio da leitura.

Maura Lopes Cançado (1929-1993), uma louca de juízo, foi uma escritora mineira, que escreveu seu primeiro livro em forma de diário, de apontamentos nas noites mal dormidas durante os longos dias em que ficou internada em um hospital psiquiátrico no Rio de Janeiro.

Inteligente e escandalosamente bonita, em suas próprias palavras (“sou a mais bela invenção que conheço”), ela trabalhou no Jornal do Brasil nos áureos anos 60 e conheceu todas as grandes almas daquela época, como Ferreira Gullar, Amílcar de Castro, Carlos Heitor Cony e Reynaldo Jardim, autor do prefácio do livro de Maura, que depois escreveria só mais um livro de contos, O sofredor do ver.

A loucura de Maura passa ao largo diante de sua maneira arrebatadora de ver o mundo. Sua loucura, como a de todos os loucos, sem levar em conta aqui a patologia que enrosca no ser do louco e não quer jamais sair dele, engrandece sua pessoa, ilumina-a e nos ofusca. É claro que se trata da loucura genial, mas no fundo todos os loucos são geniais. De alguma forma, todos os loucos ultrapassam a linha imaginária das convenções e se libertam das amarras da linguagem, explodindo-a, das amarras do sujeito, subvertendo-o.

A loucura é uma sondagem grandiosa do sujeito para consigo mesmo, é uma abstração, é como Deus. Não por acaso, os loucos não têm modéstia. Quer dizer, até que têm. Um louco que diz que é Napoleão é um louco modesto. Quando ele diz que é Deus, aí, sim, está se abrindo na plenitude de sua loucura: “Existo desmesuradamente, como janela aberta para o sol”, diz Maura. “Que emoções escandalosas tenho dentro de mim”, confessa. Segundo ela, Hospício é Deus não é um diário íntimo. “Seria verdadeiramente escandaloso meu diário íntimo.”

Escrevo este texto lembrando de Maura Lopes Cançado e pensando em Antonin Artaud, em Bispo do Rosário, mas também nos loucos anônimos que estiveram recolhidos em manicômios, maltratados pela sanidade, pelo sistema ordenador do mundo, pelo poder, pela família, pelos transeuntes.

Não quero falar aqui da patologia (não saberia), nem do sofrimento de familiares que por ventura passam noites sem dormir por causa de uma vida sob sua responsabilidade tomada pelo infortúnio dos transtornos psíquicos. Quero registrar apenas essa imensidão temporal que nos espreita de alguma forma, que nunca entendemos. A eternidade assediando a vida, sem intermediário.

(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente em O Popular, 27/09/2013)

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