O
eterno sob outra perspectiva. Ou o tempo em sua inteireza, absoluto, derramado
sobre todas as coisas vivas e mortas, sem o tique-taque do relógio ou as
convenções. O tempo atravessando os corpos e transformando-os, e dentro dele,
rodopiando em sua esfera diáfana, a loucura. Os loucos parecem eternos,
disse-me uma vez uma mulher que já morreu, mas que deixou seu recado mui
substancialmente em um livro chamado Hospício é Deus. Disse-me por meio da leitura.
Maura
Lopes Cançado (1929-1993), uma louca de juízo, foi uma escritora mineira, que
escreveu seu primeiro livro em forma de diário, de apontamentos nas noites mal
dormidas durante os longos dias em que ficou internada em um hospital
psiquiátrico no Rio de Janeiro.
Inteligente
e escandalosamente bonita, em suas próprias palavras (“sou a mais bela invenção
que conheço”), ela trabalhou no Jornal do Brasil nos áureos anos 60 e conheceu
todas as grandes almas daquela época, como Ferreira Gullar, Amílcar de Castro,
Carlos Heitor Cony e Reynaldo Jardim, autor do prefácio do livro de Maura, que
depois escreveria só mais um livro de contos, O sofredor do ver.
A
loucura de Maura passa ao largo diante de sua maneira arrebatadora de ver o
mundo. Sua loucura, como a de todos os loucos, sem levar em conta aqui a patologia
que enrosca no ser do louco e não quer jamais sair dele, engrandece sua pessoa,
ilumina-a e nos ofusca. É claro que se trata da loucura genial, mas no fundo
todos os loucos são geniais. De alguma forma, todos os loucos ultrapassam a
linha imaginária das convenções e se libertam das amarras da linguagem,
explodindo-a, das amarras do sujeito, subvertendo-o.
A
loucura é uma sondagem grandiosa do sujeito para consigo mesmo, é uma
abstração, é como Deus. Não por acaso, os loucos não têm modéstia. Quer dizer,
até que têm. Um louco que diz que é Napoleão é um louco modesto. Quando ele diz
que é Deus, aí, sim, está se abrindo na plenitude de sua loucura: “Existo
desmesuradamente, como janela aberta para o sol”, diz Maura. “Que emoções
escandalosas tenho dentro de mim”, confessa. Segundo ela, Hospício é Deus não é um diário íntimo. “Seria verdadeiramente
escandaloso meu diário íntimo.”
Escrevo
este texto lembrando de Maura Lopes Cançado e pensando em Antonin Artaud, em
Bispo do Rosário, mas também nos loucos anônimos que estiveram recolhidos em
manicômios, maltratados pela sanidade, pelo sistema ordenador do mundo, pelo
poder, pela família, pelos transeuntes.
Não
quero falar aqui da patologia (não saberia), nem do sofrimento de familiares
que por ventura passam noites sem dormir por causa de uma vida sob sua
responsabilidade tomada pelo infortúnio dos transtornos psíquicos. Quero
registrar apenas essa imensidão temporal que nos espreita de alguma forma, que
nunca entendemos. A eternidade assediando a vida, sem intermediário.
(Gilberto
G. Pereira. Publicado originalmente em O Popular, 27/09/2013)
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