quarta-feira, 25 de agosto de 2010

A epopeia dos desgraçados: leitura mínima de A minha alma é irmã de Deus

Cena do curta-metragem baseado em A minha alma, dirigido por Luci Alcântara

Certa vez perguntaram a Raimundo Carrero por que seus personagens eram tão sombrios. “Porque minha alma é sombria”, foi a resposta. E é verdade. O escritor pernambucano tem veia autoral peculiar, com a qual constrói uma beleza diferente na literatura brasileira.

Sua prosa, de caráter melancólico (mas não monótono), é música de solidão e tristeza, que procura arrastar para o espaço da página a decadência humana, o universo da loucura e dos vícios. A marca de abandono existe até mesmo quando há multidão. Ainda que os personagens sejam plurais e compartilhem o mesmo palco, o que se destaca é a dança, é o som, o eco da solidão irrevogável.

E não é exagero. Para conferir, o leitor pode começar pelo romance A minha alma é irmã de Deus (Record, 2009), que fecha a tetralogia Quarteto Áspero, junto com Maçã agreste, Somos pedras que se consomem e O amor não tem bons sentimentos.

Em A minha alma, desfila o mundo de infortúnios, da infância à velhice, de uma mulher chamada Camila. Ela é a figura central do elenco de pobres coitados que ocupam as ruas do Recife. Camila saiu de casa aos 12 anos após ser abusada sexualmente pelo pai e pelo irmão e ser seduzida por um explorador de almas e de corpos, Leonardo.

Em sua trajetória de menina solta, criança inserida no universo adulto e alienada de seus direitos, Camila cria subterfúgios para sobreviver. Inventa personagens, faz-se passar por Raquel, Mariana, Ísis, Paloma. Ora é a religiosa que espera estar ao lado de Deus, ora é a fotógrafa ninfomaníaca ou a prostituta mais filantrópica do mundo, que oferece seu corpo a mendigos e falidos de toda ordem, considerando a si mesma apenas um corpo social.

Essa multidão em uma só pessoa é a metáfora arrasadora que Carrero criou para desenhar a situação de um número bem grande de párias que existem (principalmente de mulheres esquecidas), não só no Recife, mas em todas as metrópoles.

Camila é um monte de mulheres, mas não é ninguém. Isso equivale a dizer que muitas mulheres são como Camila, sofrem abusos e vivem como fantasmas. Ao mesmo tempo, Camila é um disparate, um delírio só, delirante, lírica, sonhadora. Inventa que foi sequestrada e que a família vai resgatá-la, faz de conta que é nobre, que é santa, intocável, enquanto segue pelas ruas da capital pernambucana oferecendo seu corpo social.

Ela vive assim, à margem, até morrer. Ela é a nota mais tocante na criação jazzística que é a escrita de Carrero nesse livro. Nesse sentido, a violência, o amor, o sexo, a loucura, a morte, todos os elementos de composição do romance são orquestrados com notas verbais, arquitetados com engenhosidade.

Na toada do jazz

O romance trata da marginalidade e da vida que pulsa nesse universo. Mas não o faz de forma leviana, nem linear. A construção do texto tem uma melodia impressa, resultado de um trabalho intenso de tensão e ritmo. Carrero é amante da música. Sua prosa valoriza sempre a entonação melódica. Seus personagens são desenhados pelo ritmo. Cada personagem tem o seu. “Cada emoção tem um pulso”. O de Camila é o jazz, a improvisação.

É ela quem narra sua história. Ou melhor, é ela quem monta suas lembranças de modo a se tornar um corpo vivo de histórias e situações, criando a atmosfera da realidade que viveu. Mas cada cena, cada capítulo tem um ponto de vista que pode ser de Camila ou de um terceiro, ou até mesmo dela se fazendo passar por outro que fala dela, como num concerto em que um instrumento repete a frase musical que o outro deu. Jam Session.

“O problema é que só vai se lembrando da história à maneira que conta. Ela não sabe a próxima palavra, a próxima frase, não sabe a segunda oração, não sabe o terceiro parágrafo”, diz em certo trecho. Eis o jazz, o improviso da cena, a vida tal como acontece com os miseráveis.

Tudo é improviso, na tentativa de sobreviver ao caos e à violência, como quando, logo em seguida, é relatada a coação que Camila sofreu por um de seus parceiros, Miguel.

“Nada sabe. Nem mesmo se lembra do dia em que teve de desfilar com uma vela acesa na sala escura, só para agradar o amado. Não foi na mão, foi, Camila? Não foi com a mão que você carregou a vela? Não, não foi, ela responde, mas por isso mesmo não quero me lembrar de Miguel. Foi na parte dolorosa do corpo. Não digo, não digo. Feito um animal. Quadrúpede. Assim? Assim. Você carregou a vela assim? E doendo, doendo muito.”

Com Deus no título, o autor já demonstra a intenção de criar uma atmosfera sagrada, mas só para fazer sobressair o profano. Leonardo, o pastor, é um saxofonista, que comanda a seita Os soldados da pátria por Cristo. Há aqui uma fina sugestão de que o mundo foi criado por Deus num improviso sem igual.

Carrero tem uma orquestra na alma. Seu romance, escrito caprichosamente para simular essa improvisação, é cenário realista que cria um ambiente de delírio e de sonho. Em outros livros, ele também imprime certas tonalidades, como a sinfonia de Somos pedras que se consomem e mais uma vez o jazz de Ao redor do escorpião ... uma tarântula? – orquestração para dançar e ouvir.

Bela e estranha

Em A minha alma é irmã de Deus, o autor que nasceu em Salgueiro, sertão pernambucano, faz uma evocação ao Recife, onde mora. É que no fim da vida, Camila percorre a cidade puxando uma carrocinha, repuxando a memória para não se esquecer de si mesma, já que é esquecida por todos, pois não é mais o corpo social, não é mais plural.

Em sua agonia e delírio, está sozinha, nas ruas do Recife, em lugares como a avenida Guararapes, com “grandes e imponentes pilares dos prédios (...), sujos de cartazes e grafites, (...) tão cheia de bancas de revistas, sebos nas calçadas e mendigos loucos.” Mais adiante, um espanto, talvez da própria Camila, talvez do próprio Carrero: “Bela, estranha e espantosa cidade do Recife – habitada por banqueiros e pedintes, bêbados e loucos, homens de pastas nas mãos, meninos e meninas prostituídas.”

A literatura de Carrero não é de significado fácil. Mas é muito mais difícil entender como um escritor premiado como ele, publicado por uma das maiores editoras do país, pode ser tão desconhecido, enquanto autores notoriamente menores aparecem mais.

A pergunta é de retórica. Afinal, isso não importa nem para ele mesmo, que certa vez disse: “o importante na minha carreira é construir uma obra.” Sua produção recria uma espécie de epopeia dos desgraçados. Sua literatura é o reflexo de uma alma criativa e sombria, transtornada de beleza e espanto.

(Texto publicado originalmente na Tribuna do Planalto, em 31 de outubro de 2009)

OBS: A minha alma é irmã de Deus foi adaptada para o cinema, num curta-metragem homônimo, dirigido por Luci Alcântara, que pode ser visto no site do próprio Raimundo Carrero.

Leia também neste blog:

Raimundo Carrero vence Prêmio São Paulo de Literatura

A MINHA ALMA É IRMÃ DE DEUS: o jazz da dor e a evocação do Recife

Serviço:

Título: A minha alma é irmã de Deus
Autor: Raimundo Carrero
Editora: Record, 2009, 176 páginas
Gênero: Romance
Preço: R$ 34,90

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

A contribuição valiosa de Brandão



Ainda hoje as pessoas se interessam pelas histórias da mitologia grega, mesmo numa época em que as máquinas de alta tecnologia estão no centro da dinâmica social e da comunicação. A prova disso é o relançamento de uma das melhores obras em língua portuguesa sobre o assunto, Mitologia Grega, volumes 1, 2 e 3 (Editora Vozes, 2009), de Junito de Souza Brandão (1926 - 1995), cujo primeiro volume chega à sua 21ª edição.

Aliada à análise com base na teoria junguiana, segundo a qual os mitos são arquétipos que formam e realimentam os símbolos que estruturam a Consciência, a obra de Brandão é uma grande contribuição aos estudos de psicologia, filosofia, história e artes em geral.

Sua leitura é uma viagem fantástica ao rico imaginário grego, que fez da cultura helênica um dos pilares centrais da civilização ocidental. As aventuras dos deuses e suas lutas pelo poder, os encantos das ninfas, como Eco que se apaixona por Narciso, e de heróis como Herácles (Hércules) e os 12 trabalhos, são aliados a diversos outros mitos e mitemas, todos analisados e comentados pelo autor, numa impressionante e gratificante erudição.

(Texto publicado originalmente no jornal Tribuna do Planalto, in: Gregas raízes: a mitologia na contemporaneidade)

Os propagadores dos mitos


Na Grécia antiga, antes do registro escrito, o dinamismo das narrativas permitia a recriação constante de cada mito. Mais tarde, por meio da escrita, poetas e dramaturgos ajudaram os mitos a se perpetuarem até os dias de hoje, fixando algumas versões.

Entre as principais obras antigas que trabalharam em cima da mitologia grega estão Ilíada e Odisseia (Homero), Os trabalhos e os dias e Teogonia (Hesíodo), Édipo-Rei, Antígona e Édipo em Colono (Sófocles), Medeia, As bacantes e As troianas (Eurípedes), Oréstia, Prometeu acorrentado e Os sete contra Tebas (Ésquilo), Metamorfoses (Ovídio, poeta latino) e O asno de ouro, do argelino Lúcio de Apuleio, que conta uma das mais completas versões do mito de Eros e Psiqué.

Píndaro é um dos poetas gregos mais citados nos livros de Junito de Souza Brandão (Mitologia Grega, volumes I, II e III), mas sua obra, com destaque para Píticas e Olímpicas, não se encontra traduzida para o português.

(Gilberto G. Pereira. Texto publicado originalmente no jornal Tribuna do Planalto, in: Gregas raízes: a mitologia na contemporaneidade)

Nomes de deuses gregos e a equivalência em latim

Afrodite, Eros e Pan: boa representação dos mitos gregos

Quando a Grécia foi dominada pelo Império Romano, no ano de 272 a.C., muitos elementos de sua cultura foram apropriados pelos latinos, entre os quais os nomes dos deuses. Segue abaixo a lista dos principais deuses em grego e o equivalente em latim.

Afrodite – deusa do amor e da beleza – Vênus
Apolo (Hélio) – deus-Sol – Apolo
Ares – deus da guerra – Marte
Ártemis – deusa da caça, protetora da natureza – Diana
Atená (Palas) – deusa da justiça e da sabedoria – Minerva (Palas)
Crono – deus do tempo – Saturno
Deméter – deusa da agricultura – Ceres
Eros – deus do amor – Cupido
GeiaTerra
Hades – deus da riqueza, deus dos mortos – Plutão
Hebe – deusa da juventude – Juventas (Hebe)
Hefesto – deus do fogo – Vulcano
Hera – deusa protetora das esposas, mulher de Zeus – Juno
Hermes – deus do vento, da comunicação – Mercúrio
Perséfone (Core) – mulher de Hades, a deusa da juventude eterna – Prosérpina (Perséfone)
Posídon – deus dos mares – Netuno
Reia – mulher de Crono – Cibele (Reia)
TânatosMorte
UranoCéu
Zeus – deus dos deuses – Júpiter
(Gilberto G. Pereira. Texto publicado originalmente no jornal Tribuna do Planalto, in: Gregas raízes: a mitologia na contemporaneidade)

Dioniso e a consciência negra

                                                                                                                                   Pintura de Exekias, numa taça grega (circa 540 a.C.)
Dioniso numa nau: "Semelhança ímpar com a condição do negro expatriado"

O sol da Grécia antiga ainda ilumina nossas cabeças? A pergunta em tom de retórica serve para exemplificar a influência dos mitos nas artes até hoje. Segundo Junito de Souza Brandão, a mitologia não versa pela lógica, mas pelo saber intuitivo, aquele mais ligado à linguagem artística.

É neste sentido que o mito de Dioniso, o deus do vinho e do êxtase, influenciou o poeta e crítico literário, membro da Academia Brasileira de Letras, Domício Proença Filho, ao escrever Dionísio Esfacelado, que conta a saga do negro vindo da África para ser escravo no Brasil.

Segundo Proença Filho, a leitura dos mitos gregos o ajudou a buscar a medida trágica dos poemas de seu livro, porque encontrou em Dioniso (grafia utilizada por Brandão) uma semelhança ímpar com a condição do negro expatriado.

“Dioniso nasceu duas vezes. Filho de Zeus com Sêmele, foi perseguido por Hera. Além de ser um deus sofrido, era estrangeiro na Hélade e só foi para o Olimpo muito mais tarde”, diz o poeta.

Segundo ele, a vinda dos africanos para o Brasil e sua readaptação aqui equivale a um segundo nascimento. “E a identificação com a trajetória trágica e de afirmação de Dioniso ajuda a refazer essa consciência negra”, pondera.

(Texto publicado no jornal Tribuna do Planalto, in: Gregas raízes: a mitologia na contemporaneidade)

terça-feira, 17 de agosto de 2010

O mito do amor

Eros e Psique, o amor encontra sua alma

Das gerações gregas que acreditavam em seus mitos até as atuais, muito areia desceu na ampulheta da história. Mas o cerne da importância interpretativa da mitologia continua acendendo as mentes mais despertas. O mito de Eros e Psiqué, por exemplo, ainda hoje é uma grande aula sobre o relacionamento amoroso. O deus do amor se apaixona pela princesa Psiqué (alma, em grego) ao se ferir com a própria flecha que usava para deixar as pessoas enamoradas.

Mas a única forma de ele unir-se a ela, era escondendo sua identidade divina. Levou-a para um palácio e a cercou de todas as regalias, com uma multidão de vozes atendendo até mesmo os desejos não formulados da jovem princesa. Até que um dia, as irmãs de Psiqué, por inveja, a convenceram de que ele era um monstro e por isso não se mostrava. Ela, ingênua, caiu no golpe.

Convencida de que seu marido era uma serpente terrível, o esperou dormir para matá-lo. Mas seu plano deu errado. Ao iluminar o rosto de Eros, Psiqué deparou-se com a delicada e bela face de um deus. Era tarde. O castigo contra ela seria a ausência de seu amado, e começava então “o itinerário doloroso de Psiqué”, imposto por Afrodite, a deusa da beleza e do amor, mãe de Eros.

De acordo com o professor Marcus Reis, filósofo estudioso da cultura grega, este mito sugere que há algo de velado no amor que deve ser respeitado. “Quando Psiqué cede e procura ver o rosto de seu amor, ela o perde. Talvez o mito possa nos indicar algo da necessidade de saber não só preservar, mas de ter a consciência de que nunca poderemos saber tudo, nem da outra pessoa, nem de nós mesmos”, pondera Reis.

(Gilberto G. Pereira. Texto publicado originalmente no jornal Tribuna do Planalto, in: Gregas raízes - a mitologia na contemporaneidade)

Gregas raízes: a mitologia na contemporaneidade

Prometeu acorrentado por Zeus, com a águia a arrancar-lhe o fígado


Muita gente já ouviu a seguinte charada: “Qual o ser que anda de manhã com quatro patas, ao meio-dia com duas e, à tarde, com três e que, contrariamente à lei geral, é mais fraco quando tem o maior número de membros?” A resposta também é sabida de todos: o homem.

O que poucos sabem é que esta espécie de ‘o que é o que é?’ vem de uma das mais famosas histórias da Grécia Antiga, o mito de Édipo. O enigma fora proposto pela Esfinge, monstro dotado de asas, com rosto e seios de mulher, patas e caldas de leão, que havia se plantado próximo à cidade de Tebas, matando aqueles que não conseguiam decifrar sua intrigante questão.

O único a responder corretamente a pergunta é Édipo, natural da cidade, mas que havia sido levado de lá ainda bebê. Na viagem de regresso à terra natal, Édipo encontra-se com Laio, o rei de Tebas, se desentende com ele e o mata, sem saber que este era seu pai.

Em seguida, decifra o enigma, sagra-se herói tebano e se casa com a própria mãe, a rainha Jocasta, num enredo que inspirou Sigmund Freud a criar o principal símbolo da psicanálise, o complexo de Édipo.

Esses dois exemplos mostram como a mitologia grega continua incrustada no imaginário humano, atravessando séculos até chegar à sociedade ocidental contemporânea, pelo viés popular e pela veia erudita. Longe de se comparar à Esfinge, a pergunta que se faz agora é: qual é a importância da mitologia grega, no princípio do século XXI?

De acordo com o professor de filosofia da Universidade Federal Fluminense, Marcus Reis, a importância dos mitos gregos na contemporaneidade se dá pela capacidade que eles têm de oferecer elementos simbólicos. “É uma diversidade riquíssima em histórias que ilustram o comportamento humano, social e individualmente, e sua relação com a natureza”, diz.

Um exemplo alegórico é o mito de Prometeu, imortal que gostava de viver na terra e que roubou a centelha do fogo celeste para reanimar os mortais, dando-lhes a inteligência divina. Os humanos gostaram, mas Zeus, o deus dos deuses, não achou graça na atitude de seu primo e voltou-se contra ele e a humanidade.

A primeira atitude foi acorrentar Prometeu a uma rocha, aonde todas as tardes uma águia vinha comer-lhe o fígado. Segundo a medicina, este é o único órgão humano que se regenera. Os gregos já sabiam disso. Todas as manhãs, o fígado de Prometeu estava regenerado, e a águia voltava à tarde para devorá-lo novamente.

Depois de devolver a humanidade à ignorância eterna, Zeus foi pedir a Hefesto, o deus do fogo e das forjas, o gênio do Olimpo, para criar uma bela mulher e enviá-la à Terra. Hefesto forjou Pandora, uma linda figura feminina, de corpo escultural, e mandou para os mortais junto com uma caixa misteriosa que não podia ser aberta.

Mas Epimeteu, o irmão de Prometeu, se apaixonou por Pandora e pediu a ela que abrisse a caixa, de onde todos os males foram libertos, doenças, desgraças, pragas e dores. Zeus, no entanto, mandou fechá-la a tempo de deixar dentro a esperança, o último refúgio dos homens.

A lição deste mito vai além da mera especulação moral sobre a desobediência e alcança o valor do senso de observação. Segundo a etimologia, Prometeu significa ‘aquele que pensa antes’, daí vêm palavras como ‘prudente’ e ‘previdente’. Já Epimeteu significa ‘aquele que pensa depois’. Ou seja, antes de agir, é preciso ter em mente a noção exata do que será feito para não chorar as mágoas tardiamente, como o fez Epimeteu junto com toda a humanidade.

A função do mito

Nos últimos dois séculos, as mentes mais brilhantes da história do pensamento ocidental, de uma forma ou de outra, se ocuparam da mitologia grega para pensar a sociedade e a cultura. Além de Freud, estudiosos como Friedrich Nietzsche, Roland Barthes, Joseph Campbell, Carl Gustav Jung, entre outros, usaram os mitos como ferramenta.

No universo das artes, as narrativas gregas também aparecem com grande destaque, tanto no teatro como no cinema, na literatura, na pintura e até na música. Duas canções de Chico Buarque são exemplos dessa fonte de saber, Mulheres de Atenas e A gota d’água. Esta última fez parte da trilha sonora de uma versão de Medeia, mito que deu origem à peça homônima de Eurípedes.

Segundo o professor de Língua e Literatura Grega na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Trajano Vieira, a mitologia grega é uma espécie de lençol freático do saber, que continua a irrigar os pensamentos mais férteis da civilização ocidental. “Há uma tensão na estrutura do panteão olímpico que se assemelha de algum modo a experiências políticas e afetivas pelas quais passamos ao longo da vida”, diz.
Neste sentido, os mitos servem para traduzir os traumas da existência. É um saber rico em modelos de representação, de fenômenos psicológicos que podem acontecer em indivíduos ou no próprio corpo social, com a vantagem de não ser institucionalizado como verdade religiosa.

De acordo com Junito de Souza Brandão (1926 – 1995), na obra mais elementar sobre o assunto em língua portuguesa, Mitologia Grega, reeditada pela Editora Vozes em 2009, o mito é a narrativa de uma criação, e sua função é expressar o mundo e a realidade humana. “Isso se faz por meio de uma representação coletiva, que chegou até nós através de várias gerações.”

O psiquiatra e analista junguiano Carlos Byington, que prefacia o primeiro volume de Mitologia Grega, diz que os símbolos presentes em qualquer cultura são uma espécie de pegadas impressas ao longo de todo o caminho da humanidade. “Estes símbolos são as crenças, costumes, as leis, as obras de arte, o conhecimento científico, os esportes, as festas, tudo que forma a identidade cultural”, diz ele.

Mas esse rio de imagens míticas, de histórias registradas por poetas e dramaturgos e discutidas por filósofos e psicólogos, deságua num oceano de respostas que não cabem numa vida. Segundo Joseph Campbell em seu livro O herói de mil faces, não há um sistema definitivo de interpretação dos mitos.

Campbell compara a mitologia ao deus Proteu, que “jamais revela, mesmo ao mais habilidoso formulador de perguntas, todo o conteúdo de sua sabedoria.” Certamente esta é uma das características que deixam claro por que até hoje a Grécia que vem à cabeça da maioria é aquela de 40 séculos atrás, quando os mitos corriam pelo imaginário de seus nativos como verdade absoluta.

Hoje, não importa se esses personagens existiram ou não. A força de sua verdade está no significado simbólico, na atribuição que se dá a cada elemento narrado e na relação que se faz com a conduta humana encontrada ali.

(Gilberto G. Pereira. Texto publicado originalmente no jornal Tribuna do Planalto, em 2009)
Leia também:
O mito do amor

Marcelo Coelho lança livro

O jornalista da Folha de S. Paulo, que tem certeza absoluta de que entrou no coração do povo simples para criar um personagem pseudofilosófico chamado Voltaire de Souza, ataca de prosista contemporâneo de ficção. Não li seu livro. Na verdade, quem vem ao público dizer da recente publicação é Alcino Leite Neto, na Folha de S. Paulo, claro, desta terça-feira.

Lá pelas tantas, Leite Neto finaliza sua resenha dizendo algo que não define exatamente o gênero da empreitada, que não critica, só expõe a ferida autoral:

"Obra inclassificável, entre ensaio, ficção e memória, 'Patópolis' é um arriscado experimento literário, que não respeita regras, cânones e nem mesmo o leitor, cuja seriedade é desafiada o tempo todo pelo humor delirante do autor. O livro se constrói por meio de uma espécie de escrita automática, que vai liberando um enxame de reflexões, associações de ideias e citações."

Ou seja...

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Reengravatando Vinicius

Nesta segunda-feira, sob a batuta do Ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, o governo brasileiro está homenageando o poeta e diplomata Vinicius de Moraes (1913-1980). Em vida, Vinicus, que era do segundo escalão do Itamaraty, havia sido aposentado à força ('à força' aqui é força de expressão), em 1968, pelos militares donos do poder.

A alegação era de que o poeta era poeta demais para ser diplomata, ou seja, era boêmio, não era assim como um Guimarães Rosa, que já havia morrido, inclusive, naquela época, nem um João Cabral de Melo Neto, nem dezenas de outros poetas ou intelectuais escritores como Sérgio Paulo Rouanet, João Almino, Alberto da Costa e Silva, Ribeiro Couto (que também já morreu, há muito tempo).

A homenagem pós-morte a Vinicius resgata sua condição de diplomata ativo, outorgando-lhe o cargo de Ministro de Primeira Classe, ou seja Embaixador. Tudo isso é muito bonito. Eu particularmente acho de grande dignidade por parte do governo. Onde Vinicius será embaixador a essa altura do campeonato realmente não sei.

Mas tudo isso também me lembra uma frase de Vinicius, um poeta que muito admiro e sobre o qual tantas vezes já escrevei aqui, que diz “detesto tudo que oprime o homem, inclusive a gravata”, numa entrevista a Clarice Lispector. O fato é que ele está agora, simbolicamente, sendo reengravatado.

Procurei uma foto de Vinicius de Moraes com gravata, mas não achei. Que fique registrada no Leituras do Giba também esta homenagem.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

MEDIOCRIDADE E BELEZA


O livro de Marcelo Gleiser, de onde foi retirado o trecho abaixo, não é de história da música, nem sequer um ensaio de crítica musical. Criação imperfeita (Record, 2010, leia resenha aqui) é sobre cosmologia, criação do universo, a complexa estrutura orgânica da vida, tudo explicado por meio dos emaranhados de teorias cosmológicas.

Mas é justamente isso que dá um sabor diferente na leitura do livro, porque podemos achar, entre um Big Bang e uma Supercorda, gotas de alma. Como a que se segue.

Na famosa peça teatral (e também filme) Amadeus, de Peter Schaffer, o conflito entre genialidade e mediocridade, conformismo e criatividade, atinge consequências trágicas quando o compositor Antonio Salieri, desesperado, aterroriza continuamente o doentio Mozart, levando-o finalmente à morte.

“O vaidoso Salieri, inicialmente orgulhoso de seu talento como compositor, vai gradualmente perdendo o controle ao testemunhar a beleza imortal da música de Mozart. Em uma cena devastadora, Salieri presenteia uma nova composição ao seu patrono, o arqueduque austríaco e sagrado imperador romano José II.

“Mozart, retratado como um jovem irreverente com uma risada histérica, se oferece para tocá-la. Logo começa a improvisar em torno da melodia medíocre de Salieri, conferindo-lhe uma beleza inusitada.

“Os presentes, comovidos, trocam olhares incrédulos, enquanto Salieri, humilhado, mal pode conter sua ira. ‘Por que Deus concedeu tanto talento a um jovem idiota, enquanto eu, Seu devoto servo, que jurei minha castidade em troca de inspiração, nada mais crio do que estúpidas melodias?’

“Ciente de sua mediocridade, Salieri sabia que seu nome seria esquecido tão logo morresse, enquanto o de Mozart seria celebrado por séculos.

Literatura comparada

Gleiser arranja tempo para dar um curso de literatura comparada, ocasionalmente, em Dartmouth. Na leitura de Criação imperfeita há cintilações desse entusiasmo humanista e artístico. É claro que, por força de não ser um estudioso de teoria literária, seu julgamento é diletantista.

Seu julgamento é aquilo que Compagnon chamou de senso comum, num sentido muito positivo, porque é o quiproquó da teoria, é o demônio da teoria, o que arrebenta com sábias bases teóricas. Mas, de qualquer forma, não podemos negar a grande carga de leitura e erudição do físico ao avançar nessas questões.

Voltando a seu livro, uma das teses centrais dele é o humanocentrismo, uma nova forma de abordar o antropocentrismo, conceito criado na época do Renascimento, mas posto abaixo pela revolução científica. O que Gleiser argumenta é que o homem não sai do centro do questionamento científico. “Ainda somos especiais”, diz.

O que a ciência tem de fazer é admitir que seu corpo de saber tem limites e que ela não pode alcançar tudo, diz Gleiser. A perfeição do Universo, e muito menos a perfeição da relação da vida com a Natureza, não existe. O que existe é uma série de fatores imperfeitos, acidentais, quase improváveis. E por isso mesmo, se existimos, é porque somos especiais

É a tese de Gleiser. Ela vale à medida que queremos dialogar com o autor e com outros pensadores e pesquisadores que partilham dessa tese. Caso contrário, ela não vale nada, tanto quanto a Bíblia não vale para ateus arrogantes.

“O mistério não é que um Universo especial gerou criaturas mundanas, e sim que um Universo mundano gerou criaturas especiais”, diz Gleiser em determinada passagem. Em outra, ele argumenta: “A ciência tem que ser humanizada, relacionada com a cultura em que existe.”

É por essas e outras que lemos boas passagens individuais, como o trecho citado, que abre um dos capítulos de seu livro, comentando Mozart e Salieri para, na verdade, falar de Johannes Kepler e seu professor, Michael Maestlin, que também teve essa crise de zelo e inveja em relação ao discípulo brilhante.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Raimundo Carrero vence Prêmio São Paulo de Literatura

Raimundo Carreiro: R$ 200 mil no bolso e um grande reconhecimento

O escritor pernambucano Raimundo Carrero ganhou o Prêmio São Paulo de Literatura cujo valor são R$ 200 mil. Nada mal. Esse prêmio põe Carrero na roda visível da mídia, mais do que ele já está, que é menos do que merece, pela obra. O romance premiado é A minha alma é irmã de Deus (Record, 2009). Edney Silvestre ganhou como autor revelação com Se eu fechar os olhos agora (Record, 2009) e também levou R$ 200 mil. Ou seja, a grande vencedora, em termos de status é a editora Record.

Leia abaixo a matéria da Folha de S. Paulo desta terça-feira.

"Raimundo Carrero vence Prêmio SP de Literatura
Edney Silvestre também recebeu R$ 200 mil

MARCO ALMEIDA
DE SÃO PAULO

O escritor e jornalista pernambucano Raimundo Carrero foi o grande vencedor da segunda edição do Prêmio São Paulo de Literatura, entregue ontem no Museu da Língua Portuguesa.

Seu romance "A Minha Alma É Irmã de Deus" (ed. Record) foi eleito o melhor livro de 2009. O autor dedicou o prêmio à mulher. "Vou dizer a frase mais falada da literatura: Marilena, eu te amo".

Carrero ganhou, em 2000, o Prêmio Jabuti por "As Sombrias Ruínas da Alma"; em 2008, foi finalista do Portugal Telecom, com "O Amor Não Tem Bons Sentimentos".

Edney Silvestre, apresentador do "Espaço Aberto Literatura" (Globo News), foi escolhido o melhor autor estreante por "Se Eu Fechar os Olhos Agora" (ed. Record).

Cada um dos vencedores receberá R$ 200 mil, o maior valor pago a um prêmio literário no país. Ao todo, 217 romances foram inscritos para disputar o prêmio.

Concorriam na categoria melhor livro do ano dez autores, incluindo nomes consagrados como João Ubaldo Ribeiro ("O Albatroz Azul"; ed. Nova Fronteira), Chico Buarque ("Leite Derramado") e Bernardo Carvalho ("O Filho da Mãe"), os dois últimos pela Companhia das Letras.

Entre os finalistas em romance de estreia, estavam Ivana Arruda Leite ("Hotel Novo Mundo"; Editora 34), Lívia Sganzerla Jappe ("Cisão"; ed. 7 Letras)."

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

O dia dos bárbaros - 9 de agosto de 378


No século IV, na passagem da Antiguidade para a Idade Média, o grande medo dos romanos eram os godos, nome que traduz a ascendência de diversos povos como os alemães, os húngaros, entre tantos outros. A fronteira norte do Império Romano eram os rios Reno e Danúbio, que nasce na Alemanha próximo à fronteira com a França e a Suíça, e desemboca no Mar Negro, acima da atual Turquia.

Vivendo do lado de lá do Danúbio, havia um ou dois séculos que os godos, bárbaros para os romanos, experimentavam um doloroso processo de imigração, muito pior e mais humilhante do que este que se vê (que já é o mais absurdo dos mundos) no grande Império do momento, os Estados Unidos.

Era entre os godos que os romanos recrutavam os melhores soldados. Além disso, muitos godos atravessavam o rio em busca de oportunidade, tornando-se camponeses, e havia também aqueles que travavam lutas homéricas, saqueavam, matavam aldeões do Império, roubavam e, em represália, o exército romano os dominava e fazia deles escravos.

Muitas vezes, como desculpa de possíveis ataques, os romanos também atravessavam o rio e arrebentavam com tudo do lado de lá, trazendo gente para o lado de cá como escravos e recrutas. Os ataques, de um lado e de outro, ficavam cada vez mais constantes, e este era o grande motivo do medo.

De acordo com o livro O dia dos bárbaros - 9 de agosto de 378 (Estação Liberdade, 2010, 226 páginas, tradução de Maria Cecilia Casini), do historiador italiano Alessandro Barbero, a violência era a moeda corrente na conflituosa relação entre os dois mundos.

Passado apenas um breve período de sua última derrota, eles [os godos] de novo criavam coragem, entravam em território romano, atacavam fazendas, roubavam os escravos e o botim; os imperadores então precisavam intervir, organizando expedições punitivas. Então eram os romanos que avançavam no país inimigo, queimavam aldeias, chacinavam mulheres e crianças, roubavam gado, destruíam colheitas; até que os chefes das tribos viessem, de joelhos, pedir piedade.

Os oficiais encarregados do recrutamento rondavam os acampamentos dos bárbaros derrotados e humilhados, selecionavam os jovens mais fortes, levavam-nos embora; eles então eram marcados a fogo e reeducados, eram disciplinados e se tornavam soldados romanos.

O livro de Barbero conta como essa convivência belicosa, ao longo de alguns séculos, chegou à entrada de dezenas de milhares de godos, permitida pelo imperador do Oriente da época, Valente, tendo em seguida uma espécie de estouro da boiada, que culminou na Batalha de Adrianópolis, em 9 de agosto de 378.

Nesse batalha o valente imperador morreu a ponta de espadas e flechas daqueles que eles, romanos, chamavam de bárbaros. Depois disso, apesar de várias vitórias dos soldados romanos em outros confrontos, não mais houve controle de fato, e tudo foi sendo posto por água baixo, até a derrocada completa do Império Romano do Ocidente e a total invasão bárbara.

Serviço

Título: O dia dos bárbaros - 9 de agosto de 378
Autor: Alessandro Barbero
Editora: Estação Liberdade, 2010, 226 páginas
Gênero: História
Preço: R$ 43,00