terça-feira, 10 de janeiro de 2012

À luz de Rilke



Rainer Maria Rilke é profundo, mesmo em seus fragmentos. É claro que hoje acessar o espírito do autor está mais difícil, ou talvez sempre o tenha sido. Há uma camada imensa de elogios e louvações a este grande poeta e pensador, por que não?, que nos afasta mais do que aproxima de sua essência.

Ainda que haja essa enxurrada de livros que falam dele, por meio dos quais a gente pensa que o entende (e o autor deste texto está incluído), seria preciso lê-lo um milhão de vezes para se deparar com sua luz e passear por seus campos até que nos iluminasse também.

Em A melodia das coisas (Estação Liberdade, 2011, 232 páginas, tradução de Claudia Cavalcanti, R$ 43), o leitor pode acompanhar alguns passos desse gênio da linguagem. O livro é uma compilação de escritos de Rilke, colhidos de várias publicações em alemão, entre contos, ensaios e cartas.

No ensaio que traz o título do livro, Rilke fala de relações entre pessoas e coisas, mas parece falar, sobretudo, da solidão do indivíduo. Não a solidão como patologia, mas aquela que tira a pessoa do lugar comum e a coloca em contato com o absoluto.

“Cada um de nós habita uma ilha diferente”, diz ele. É fato que todas as ilhas no conjunto dão uma ideia de continente, mas não é tão simples assim, porque “quando duas ou três pessoas se encontram, não por isso estão juntas”.

Segundo Rilke, as pessoas não se mostram abertamente. Elas existem mais pela camada de coisas que estão por traz delas. As pessoas existem para o outro pela linguagem, pelas lembranças em comum, pelo afeto, e tudo isso é construção. “Somente na hora compartilhada, na tempestade compartilhada, naquele cômodo onde se encontram, é lá que se acham.”

“Quando há um fundo por trás deles”, continua o poeta, “é só ali que começam a ter contato uns com os outros. Precisam, sim, reportar-se àquela uma pátria. Precisam, por assim dizer, mostrar um ao outro os documentos que trazem consigo e que, todos, contêm o sentido e a insígnia do mesmo soberano.”

É que para conhecer o outro, e muitas vezes a si mesmo, é preciso saber ouvir, ouvir a voz do outro e a própria voz, para saber o momento e o lugar exato de se colocar.

Contradição

Nesse ensaio, A melodia das coisas, Rilke deixa transparecer que viveu toda sua vida tentando descobrir nas pessoas o que elas eram de fato, procurando encontrar o melhor delas, e ao mesmo tempo voando de encontro à solidão. Uma contradição cabível, principalmente nos grandes espíritos.

Em outro trecho, ele diz: “Seja o canto de um candeeiro ou a voz da tempestade, seja o respirar da noite ou o gemido do mar que o rodeia – sempre desperta por trás de você uma vasta melodia, tecida por mil vozes, na qual só aqui e ali há espaço para você fazer um solo. Saber quando é a sua vez – eis o segredo da solidão.”

Rilke nasceu em Praga, em 1875, e morreu em Valmont, na Suíça, em 1926. Nesse espaço de 51 anos, viveu intensamente, morou em diversos países, fez amizade com muitas pessoas importantes como ele e amou profundamente uma mulher, Lou Andreas-Salomé (1861-1937), intelectual e libertária russa.

Eles se conheceram em 1897, e nessa época, ele se chamava René-Marie Rilke. Foi Lou que mudou o nome dele para Rainer Maria Rilke. Mas não mudou só o nome. Então com 22 anos, e ela com 36, mudou sua vida inteira. Foi um amor capaz de transformar sua alma, eternizado em uma coleção de cartas publicadas.

Numa dessas cartas, Rilke diz a Lou “És meu dia de festa. Quando te encontro em sonho, sempre tenho flores nos cabelos”. E escreveu também:


Tu eras para mim a mais maternal das mulheres,
eras um amigo como são os homens,
ao olhar, eras uma mulher
e eras no mais das vezes ainda uma criança.
Eras a coisa mais terna que encontrei,
eras a coisa mais dura com a qual lutei.
Eras o cimo que me tinha abençoado –
e te tornaste o abismo que me devorou.


Infância

Esta passagem não está em A melodia das coisas, mas há outra carta mais analítica de Rilke a Lou que fala de Rodin, seu grande mestre francês. O livro também traz algumas cartas trocadas com Franz Xaver Kappus, o jovem poeta que havia pedido orientação a Rilke e depois se surpreendeu com a boa vontade do poeta tcheco-alemão em lhe responder.

Mais tarde, após sua morte, essas cartas a Kappus foram parar num dos livros mais conhecidos de Rilke, Cartas a um jovem poeta. Entre seus conselhos, ele dizia a Kappus ler os livros essenciais, que não eram muitos, e que a Bíblia era um deles. Dizia também que para fazer poesia era preciso voltar os olhos para o tempo de infância, pois é ali que está a fonte do saber humano.

Curiosamente, no ensaio “Sobre a arte”, em que argumenta que a arte é uma concepção de vida, cujo produto é o resultado da resistência do artista contra o tempo, ele volta a citar a infância, dizendo que a criança equipara os valores e busca a igualdade profunda das coisas, o amor profundo, a justiça profunda.

É como se dissesse que a criança ainda está no absoluto, e que o artista é uma espécie de criança. A melodia das coisas é um belo passeio pelas palavras de Rilke, autor de Os cadernos de Malte Laurids Brigge (romance) e Elegias de Duino (poesia), livros de primeira necessidade a um candidato a escritor ou poeta.

(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente na Tribuna do Planalto)

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Território vazio - uma leitura de O mestre de go



Yasunari Kawabata foi laureado com o Prêmio Nobel de 1968 por ter conseguido expressar como poucos a essência da mente japonesa. E foi o último samurai das letras, com talhe nipônico, procurando sempre impor a coisa à palavra. Neste caso, estamos falando de caracteres, de um jogo de imagens que delineiam sua narrativa.

Ao ser vertida para as línguas ocidentais, essa narrativa deve perder um pouco de sua beleza. Mas só um pouco. Quem leu A casa das belas adormecidas, ou Beleza e tristeza, sabe bem que a sutileza na construção do mundo literário não se perde. Talvez seu livro mais japonês seja O mestre de go (Estação Liberdade, 2011, 224 páginas, tradução de Meiko Shimon, R$44,60).

Nesse romance biográfico, o autor narra os últimos dias do grande mestre Shusai de go, jogo tipicamente japonês semelhante à dama e ao xadrez, com mais peças, no entanto. O narrador, jornalista contratado para cobrir o jogo que seria, e foi, a despedida de Shusai, começa descrevendo o mestre morto, para só depois entrar nas cenas da vida.

Logo após terminar a partida de go, que se deixara vencer como símbolo da transferência de seu título à casa Hon’inbo, Shusai passa mal e morre. Essa morte é o fulcro do romance, a condutora dos frames narrativos, que vão desenhando os aspectos psicológicos do indivíduo e da própria cultura japonesa e seu padrão de comportamento.

Abstração e proximidade

A maneira como a história é narrada vai retratando o estado mental do mestre, com as vicissitudes do jogo, da longa jornada, da pressão mental que o go exige e da angústia deliberada a partir daí. A abstração, no confronto com a paisagem e os acontecimentos cotidianos, é outra característica da narrativa.

Mas a morte é a grande musa desse livro. Em uma das cenas, o narrador, chamado de Uragami, descreve o mestre morto pela fotografia. Não uma foto qualquer, mas a que ele mesmo, Uragami, tirou. “Senti-me fascinado pela face morta”, diz. Esse traço representativo traz uma série de implicações estéticas à forma do romance.

É como se o narrador não pudesse encarar a morte de frente, sem um subterfúgio. E isso suscita ao menos um tipo de reflexão no leitor, o do confronto com a realidade das coisas. Quando falamos da realidade, nossa tendência é falar de coisas vivas ou concretas, e a morte, neste caso, seria a negação do real, seria o fim do real para o espírito, pelo menos, porque a morte é o máximo da abstração.

O que se vê na presença do corpo morto é a inércia, nada mais, é a ausência de movimentação, que é o índice de vida e a própria vida. Uragami tira as fotos do morto e as analisa. “As fotos devem ter retratado a realidade”, pondera ele, com seu espírito de jornalista, de homem acostumado a fazer da vida um jogo de narração, na tentativa de capturar algum mistério.

“Era curioso também que eu pudesse analisar com maior nitidez e detalhes as fotos do que o rosto real do morto”, continua o narrador em seu estado de perplexidade. A análise do morto pela fotografia, mesmo tendo a oportunidade de olhá-lo e contemplá-lo pessoalmente (para evitar aqui um trocadilho), é que cria a situação estética da narrativa, e a beleza mórbida no texto de Kawabata.

Ao fotografar o rosto falecido do mestre, Uragami, primeiro congela a imagem daquilo que, a rigor, já está congelado, e depois a descreve. Neste momento, talvez o próprio Kawabata esteja fazendo um elogio à morte e à fotografia. Deixa suspensas algumas questões, como: essa atitude é a de retratar um homem morto ou a morte? Ele retrata a realidade do morto ou a realidade da morte?

Tudo isso vem nas primeiras páginas, o que torna seu significado ainda mais forte no espírito da narrativa. O próprio Kawabata reconheceu O mestre de go como um de seus romances mais eficientes. O livro foi publicado em 1954, elaborado a partir de uma série de reportagens que ele fizera para o jornal Mainichi, quando ainda era chamado de Tokyo Nichi-Nichi.

Poética do suicídio
A literatura de modo geral, ao falar da vida, tem a morte em grande conta. E os escritores japoneses, os mais profundos, têm essa pulsão mais acentuada, costurando com frequência a ideia de beleza com a de morte. Não por acaso, o fonema ‘shi’ serve tanto para ‘morte’ como para ‘poesia’, além do já conhecido termo para o número quatro. Mas Kawabata parece ser mais incisivo nessa questão.

Seus romances rondam a ideia de morte, como a abelha ao mel. Ele mesmo, como sujeito, mais do que como escritor, alimentava secretamente, ou inconscientemente, essa pulsão. Tanto é que em seu discurso para o Prêmio Nobel, intitulado “Japão, o belo e eu”, demonstra sua obsessão pela estética e pelo suicídio, quase como um pedido de socorro.

Nesse discurso, Kawabata mescla a ideia de beleza, do próprio Japão e da morte, mais precisamente, do suicídio, de modo muito intenso. Ele cita uma série de grandes autores japoneses, poetas e prosistas, como o monge e poeta Ryokan e o contista genial Ryunosuke Akutagawa (leia sobre ele aqui).

Os dois citados, como outros também, se suicidaram. Kawabata, em seu discurso, diz categoricamente não admirar nem ter compaixão pelo suicídio. Por que disse isso a uma plateia de notáveis, de escritores, em sua maioria, e leitores atentos, em sua totalidade, se viria, ele mesmo, a se suicidar em 1972, às vésperas de completar 73 anos de idade?

Na passagem de seu texto que condena o suicídio, lembra que Ryokan tinha 73 anos ao se suicidar. E quatro anos depois de fazer essa observação, segue o mesmo caminho. No discurso, ele também cita a nota de suicídio de Akutagawa, da qual retirou o trecho “olhos em sua última extremidade” para intitular um artigo seu. Esse trecho, diz Kawabata, “finca em mim com a maior das forças”.

Por essas e por outras mais, é possível, dentro deste romance, ver o go como um jogo que avalia a vida, em que seus jogadores também podem escolher ficar cara a cara com a morte. É como lançar estratégias, montar peças que vão tomando o território do adversário. Secretamente, no caso do romance de Kawabata, talvez esse adversário fosse a própria morte. E ela o venceu. Ou melhor, ele entregou os pontos.

Trecho

Na minha reportagem, eu havia escrito que era um fio branco da sobrancelha esquerda. No entanto, nas fotos do falecido, os fios da sobrancelha direita estavam compridos. Era impossível que tivessem crescido de repente após sua morte. Teria o mestre sobrancelhas com fios tão longos? Até parecia que houvessem ficado exagerados nas fotos, mas elas devem ter retratado a realidade.

Eu não precisava ter me preocupado tanto com o resultado das fotografias. Minha câmera Contax com lente Sonner 1,5 dispensou minha técnica e cuidados; a lente trabalhou por si e alcançou o resultado de que era capaz. Para uma lente não há distinção entre o vivo, o morto, a pessoa ou o objeto. Não há sentimentalismo nem reverência. De certo, consegui os resultados satisfatórios com a Sonner 1,5 porque não errei muito no seu manuseio. Apesar de serem fotografias de um morto, denotavam riqueza e suavidade, devido, talvez, à característica da lente.

Todavia, o que sensibilizou meu coração foi um sentimento que vinha das fotografias. Talvez houvesse isso no semblante do mestre morto que estava sendo fotografado? Era verdade que havia sentimento no rosto do falecido, e, no entanto, um morto já não possui mais sentimentos.


(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente na Tribuna do Planalto)