sábado, 13 de julho de 2013

Da gramática para a poesia



A essência da poesia de Paulo Leminski é o desvio, desvio de tudo, da rima, do caminho, da vida. O leitor que entende isso tem metade do que precisa para apreciar Toda Poesia (Companhia das Letras, 2013, 422 páginas), publicação que reúne num só volume os magros mas voltaicos livros de poemas desse curitibano que morreu de cirrose hepática aos 44 anos, em 1989.

O volume chega em tempo de arrebatar uma nova geração de leitores, trazendo de volta às livrarias muitos títulos da bibliografia de Leminski esgotados há tempos, como Quarenta clicks em Curitiba (1976) e o póstumo Winterverno (2001). A essência de sua obra poética também está aqui: Caprichos & Relaxos (1983), Distraídos venceremos (1987), La vie en close e O ex-estranho, estes dois últimos também publicados postumamente (1991 e 1996).

O legal da poesia de Leminski é a espontaneidade dos versos, uma criatividade imensamente lúdica, que nos arrasta sem pretensão para novos significados das palavras e do mundo. Uma vez ele disse que “os verdadeiros poetas são uma espécie de erro na programação genética”. E é com essa lógica dando pirueta que ele nos ajuda a encontrar o rumo, como no velho ditado “Deus escreve certo por linhas tortas”.

De caso sentido, desalinhando o verbo para plainar a verve, Leminski nos leva além, põe-nos à frente, ao nos fazer mudar de rota. E faz isso de várias formas, valendo-se de poemas curtos à moda dos haicais ou esticando um pouco mais as possibilidades dos versos e das rimas.

No caso das rimas, formado numa escola plural que privilegia a forma, manipulando-a em diversos níveis, produzindo sentido em cada metro, cada pé, Leminski cria coisas incríveis, como neste trecho: “um passarinho/ volta pra árvore/ que não mais existe// meu pensamento voa até você/ só pra ficar triste.”

As principais rimas, a rigor, são “existe” e “triste”, alinhando uma leveza de pássaro a uma existência melancólica pela impossibilidade da volta. O passarinho não pode mais voltar para a árvore, e o pensamento não alcança mais a existência de alguém que se foi, que morreu ou se separou do sujeito poético.

Mas a grande rima escondida, e Leminksi certamente tinha essa intenção, é a de “árvore” com “triste”, porque árvore em inglês é tree, e essa afirmação se confirma porque é a árvore que não existe, rimando, portanto, com a palavra que indica o estado de espírito de alguém pela falta de outrem, “triste”. As barreiras línguísticas são sempre quebradas na poesia leminskiana.

Metalinguagem

Para acentuar seu modo semiótico de fazer poesia, Leminski nos brinda com um poema metalinguístico que a um só tempo explica a si mesmo e nos encanta: “isso sim me assombra e deslumbra/ como é que o som penetra na sombra/ e a pena sai da penumbra?”. Não só som rima com sombra como está embutido na segunda palavra, da mesma forma que pena em penumbra, mas indo além, porque “umbra” é sombra em latim.

Esta é a poesia de Leminski. O jogo de rimas, de construção e desvelamento da palavra, das possibilidades das coisas, faz parte de seu projeto poético. Tudo isso quase sempre evocando os desvios, as rotas refeitas, as novas explosões de sentido. “um poema/ que não se entende/ é digno de nota// a dignidade suprema/ de um navio/ perdendo a rota.”

E ele pode ser mais explícito, a começar pelo título: erra uma vez. “nunca cometo o mesmo erro/ duas vezes/ já cometo duas três/ quatro cinco seis/ até esse erro aprender/ que só o erro tem vez.”

O desvio de rota, o erro – não no sentido pejorativo segundo o qual quem erra se ferra – é no sentido de que quem erra pode se encontrar depois. É mais a consciência de que estamos todos sujeitos ao erro, é a clareza de que ver o mundo pelos olhos das certezas e das convicções é terrível e pouco poético. Neste sentido, Leminski era anticlássico, era pós-moderno, era pura liquidez, e ao mesmo tempo sabia como funcionavam as ideias clássicas, tanto as que deram certo quanto as que se equivocaram.

Estética do desencontro

Para falar do amor e da vida, ele escreveu, com espanto de adolescente, como são o amor e a vida em descobertas e erros:


Amor, então,
também, acaba?
Não, que eu saiba.
O que eu sei
é que se transforma
numa matéria-prima
que a vida se encarrega
de transformar em raiva.
Ou em rima.

Por essas e por outras, muitas mais, Paulo Leminski vale ser lido. Ele não está no Olimpo como Drummond e Murilo Mendes, mas é uma ponte incomum entre os grandes poetas e os deuses. Se o leitor se perguntar: enquanto o mundo lá fora está se acabando, por que abrir um livro de poemas? A resposta pode ser esta: porque a poesia é capaz de quebrar os átomos da indiferença dentro de nós, da tranquilidade mesquinha, da pobreza de espírito. Leminski consegue fazer isso. Não é pouca coisa.

Além disso, Toda Poesia nos dá como brinde os poemas esparsos e uma mini fortuna crítica, com textos de José Miguel Wisnik, Haroldo de Campos, Caetano Veloso, Leyla Perrone-Moisés, Wilson Bueno e Alice Ruiz, poeta e companheira de Leminski até a morte dele.

Leminski foi o bandido que sabia latim, o ateu que escreveu uma biografia de Jesus Cristo, o poeta branco apaixonado por Cruz e Sousa, o erudito de chinelo, o provinciano mais universal de que se tem notícia em terras brasílis, o criador da estética do desencontro. É deus e diabo.

Morreu cedo por encher a lata demais, todos os dias, sem feriado, entre uísque e os cálidos goles de cachaça nos bares pouco invisíveis de Curitiba, que existem até hoje, até hoje sobrevivendo à sombra do poeta, que escreveu: “madrugada bar aberto/ deve haver algum engano/ por perto.” Leminski saiu da gramática para entrar para a poesia.

(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente em O Popular, 25/06/13)

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