sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

Lourival Belém Jr. disponibiliza seus filmes no YouTube

Lourival Belém Jr. é um cineasta documentarista de curta metragem daqui de Goiânia, que sempre esteve antenado com a renovação da linguagem do cinema. Geograficamente distante do main stream, ele nunca se afastou das inovações narrativas. 

Seu filme mais recente, O Turista no Espelho (2018, 26 min., colorido), é um exemplo disso. Sua obra vem sendo baixada no canal que leva seu nome no YouTube. Quem quiser apreciar, já estão lá filmes como Concerto da Cidade (Prêmio Fica 2005), Recordações de Um Presídio de Meninos (2009) e o belíssimo Quinta Essência (1982/2014), o mais poético de todos (em parceria com Ronaldo Araújo). 


Na próxima quinta-feira, 10 de dezembro, será a vez de O Turista no Espelho ser lançado no canal, filme experimental com uma onda dialógica que vai tecendo junto literatura, releitura cinematográfica, jornalismo, pajelança como protesto, turismo, discurso político, denúncia, num processo que se identifica com a estética relacional, em que ele vai juntando outras narrativas à sua própria, criando um universo crítico, novo e rico. 

 

É assim que ele dialoga com a literatura de Milton Hatoum, com o cinema de Jorge Bodanzky e Orlando Senna, Iracema – Uma Transa Amazônica, de 1975, com linguagens publicitárias que, recriadas no escopo do cinema de Belém, denunciam com sarcasmo a voracidade do consumismo e das marcas registradas.

 

Há cenas que se estendem às cidades grandes como Rio de Janeiro, Goiânia e Brasília, para mostrar o fruto da desigualdade e da expulsão das pessoas da zona rural para as periferias urbanas. E a luta. O Turista é sobretudo a revelação das lutas, de suas preparações, como instrumento de sobrevivência, mais do que de conquistas. 

Como todos os outros filmes de Belém Jr, a estética é sinônimo de interferência política, que é a alma das artes contemporâneas, sobretudo as plásticas, a fotografia e o cinema documentário, além de um certo nicho da literatura e do cinema de ficção.

Estética e política


Lourival Belém Jr., cineasta goianiense

A linguagem experimental de O Turista oferece as perspectivas documentaristas de seu tempo, e o roteiro perfaz o mergulho do cineasta e sua mulher nas ramagens da sociedade profunda da Amazônia, comos os índios, os ribeirinhos e os sem-terra (marginalizados pelo poder e pela elite econômica, mas de fato fixados no coração da floresta). 

 

Eles viajam para esses lugares com uma câmera amadora na mão e mil sentimentos na cabeça (de indignação, de admiração, de dó, de impotência, de espanto, de integração, de reconhecimento, de distanciamento). 

Como turista, o cineasta não é mais aprendiz, como o fora Mário de Andrade, que também viajou pelos Norte e Nordeste brasileiros, registrando narrativas e informações sobre o Brasil profundo. Como turista, Belém vê a si mesmo nas pessoas que ele filma, embora sinta-se separado delas pela linguagem e pelos costumes que foram sendo alijados do Brasil oficial ao longo dos séculos.


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quinta-feira, 4 de junho de 2020

Georges Bataille sobre museu

                                                                                                                                                          Foto: Gilberto G. Pereira
Três músicos, óleo sobre tela, de Pablo Picasso, (1921): acervo da Fundação Mrs. Simon Guggenheim, em exposição no Museu de Arte Moderna, NY, em 2016.

De acordo com a Grande Enciclopédia, o primeiro museu no sentido moderno da palavra (significando o primeiro acervo público) foi fundado na França pela Convenção de 27 de Julho de 1793. A origem do museu moderno está, portanto, ligada à invenção da guilhotina.

O museu é como os pulmões de uma grande cidade. Todo domingo, o público mergulha como sangue dentro do museu e emerge purificado e fresco. As pinturas não são outra coisa senão superfícies mortas. 

É dentro do público que o jogo de fluxo de luzes e radiação, tecnicamente narrado pelos críticos autorizados, é produzido. É interessante observar o fluxo de visitantes, visivelmente guiado pelo desejo, se assemelhar às visões celestiais que arrebatam aos olhos.

O museu é o espelho colossal no qual o homem, finalmente se contemplando de todos os lados e se encontrando literalmente num objeto maravilhoso, abandona a si mesmo ao êxtase expresso na imprensa literária.

Georges Bataille, “Museum,” Outubro, no. 36 (1986), p. 25; tradução para o inglês de Annette Michelson; publicado primeiramente no Documents 2, no. 5 (1930), p. 300. (Tradução para o português: GGP). 

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quarta-feira, 3 de junho de 2020

Inglês renovado: “Memórias póstumas de Brás Cubas” ganha nova tradução nos EUA




O escritor americano Dave Eggers, aquele de livros como Uma comovente obra de espantoso talento e O círculo (que virou filme com a hermiônica Emma Watson), escreveu o prefácio da nova tradução de Memórias póstumas de Brás Cubas para o inglês (“The Posthumous Memoirs of Brás Cubas”, por Flora Thomson-DeVeaux), cuja edição saiu agora em junho nos EUA, pela Penguin Classics.

O prefácio foi publicado na revista The New Yorker desta semana. Se há algo que Eggers não tem é medo de adjetivos. São muitos jogados sobre o romance do Bruxo do Cosme Velho: sagaz, um dos mais brilhantes, mais divertidos, mais vivos atemporais, cintilante, absoluto, presente glorioso, muito engraçado, inimitável, mordaz, melancólico, autodilacerante e romântico. Isso só nos primeiros parágrafos.

Trata-se de um texto brilhante, entusiasmado, laudatário até, mas muito verdadeiro, que chama o leitor anglo-saxônio para a arena das leituras novamente de um autor sem igual, conforme ele diz. O título do artigo é Redescobrindo um dos livros mais brilhantes já escritos (leia o texto no original). 

Eggers começa falando assim: 

“O talento sagaz pula séculos e hemisférios. Não fica empoeirado, e, quando acerta a mão, não envelhece. “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Joaquim Maria Machado de Assis, é um desses casos. Esquecido por muitos, é um dos livros mais brilhantes, mais divertidos e, por isso mesmo, um dos mais vivos e atemporais já escritos.

É uma história de amor – muitas histórias de amor, na verdade – e é uma comédia de classes e de costumes, e de ego, e é uma reflexão sobre um país e um tempo, e um olhar pleno sobre a mortalidade, e ainda por cima é uma exploração íntima e arrebatadora da arte de narrar.

É uma cintilante obra-prima, e uma alegria absoluta como leitura, mas que, por alguma razão obscura, quase nenhum falante de inglês no século 21 a leu (eu mesmo só vim ler pela primeira vez recentemente, em 2019).

Mas ele sobrevive, e deve ser lido, pela música de sua prosa e, mais do que qualquer coisa, por seu gracejo formal. A nova tradução, feita por Flora Thomson-DeVeaux, é um presente glorioso para o mundo, porque ela cintila, porque ela canta, porque é muito engraçada e procura captar o estilo inimitável de Machado, a um só tempo mordaz e melancólico, autodilacerante e romântico.”

Breves e lúcidos capítulos

Em seguida, contextualiza a trama, tece comentários sobre o personagem, sobre os capítulos e a sagacidade do narrador.


“Seu narrador, Brás Cubas, está morto. Ele conta a história de sua vida do túmulo, e, talvez porque não tenha nada a perder – estando morto e tudo -, narra a história exatamente do jeito que quer, a convenção que se exploda. O romance se desdobra em breves e lúcidos capítulos, elucidado além disso com infindáveis referências do narrador e dúvidas de si mesmo.

‘Começo a arrepender-me deste livro’, escreve Brás Cubas em um capítulo chamado O senão do livro (‘The Flaw in the Book’). ‘Não que ele me canse”, continua. “Eu não tenho que fazer; e, realmente, expelir alguns magros capítulos para esse mundo sempre é tarefa que distrai um pouco da eternidade.’

A história, no seu fulcro, é quase convencional, um triângulo amoroso aristocrático do século 19. Brás Cubas flutua pelo meio das classes endinheiradas do Rio de Janeiro, mas não tem vontade de se casar (obsessão da irmã), nem tem ambição de fazer carreira no funcionalismo público (desejo do pai).

Ele deixa passar a chance de se casar com a bela Virgília e assim ser catapultado para a vida pública com a influência do poderoso pai dela. Em vez disso, um honrado homem chamado Lobo Neves é que ganha a mão de Virgília e o apadrinhamento do sogro. E só então Brás Cubas começa a se interessar por ela. 

Eles iniciam um caso e tentam – sem dificuldade – manter a relação às escondidas do assaz despreocupado marido. Logo, todo mundo na sociedade carioca parece saber, e o perigo da descoberta só faz os amantes se aproximarem ainda mais.

Enquanto isso (do túmulo), Brás Cubas contempla o significado da vida, auxiliado pelo amigo Quincas Borba, que tenta popularizar um sistema filosófico chamado Humanitismo, destinado, escreve Machado, ‘a arruinar todos os demais sistemas.’ No centro da doutrina está a crença na retidão de todo ser humano. 

Brás Cubas admite que a doutrina é panglossiana, mas encontra um certo conforto na noção radical de que os humanos deveriam ser permitidos a fazer qualquer coisa que eles naturalmente fazem, de que devemos fazer qualquer coisa que queremos fazer – com uma reverência especial ao ato de fazer mais humanos. 

‘O amor, por exemplo’, escreve, ‘é um sacerdócio, a reprodução um ritual. Como a vida é o maior benefício do universo... segue-se que a transmissão da vida, longe de ser uma ocasião de galanteio, é a hora suprema da missa. Porquanto, verdadeiramente há só uma desgraça: é não nascer.’

Machado meneia entre a história de amor do livro e seus interlúdios metafísicos com facilidade, em parte porque, embora o livro seja sobre coisas sérias – amor, a vida em si, a finalidade da morte –, nunca se leva a sério.

No capítulo IV, A ideia fixa, Machado inicia uma grande analogia comparando menos esforços humanos para aqueles que ecoam através das eras. ‘Mal comparando, é como a arraia-miúda, que se acolhia à sombra do castelo feudal; caiu este e a arraia ficou. Verdade é que se fez graúda e castelã... Não, a comparação não presta.’

Os títulos dos capítulos em si já são desconcertantes. Um capítulo, habilmente chamado de Triste, mas curto, é seguido de outro chamado Curto, mas alegre, o que ambos são. Há um capítulo dedicado às botas, um outro às pernas do autor, enquanto outro é chamado de Que não é sério.

O capítulo CXXX é intitulado Para intercalar no capítulo CXXIX, e no seu final, o autor pede que o leitor o coloque entre a primeira e a segunda frase do capítulo anterior. Há também uma longa alucinação envolvendo hipopótamos.

De alguma forma, nenhuma das gags e diversão intertextual faz diminuir a força da história. O romance entre Brás Cubas e Virgília é convincente e selvagemente lírico. O sentimento que temos pelo ignorante Lobo Neves é verdadeiro, e o crime cometido pelo narrador e Virgília contra ele nunca é punido – nem na vida, nem na morte.

E esta é a chave. Este é um livro ateísta, em que não há julgamento que não seja o da consciência, e no qual o ofensor mente sozinho, num caixão permeado de vermes, recontando sua vida e seus fracassos sem qualquer consequência pesada. É engraçado também. É completamente original e diferente de todos os livros que vieram depois dele e que possam, conscientemente ou não, ter se influenciado por ele.”

Experimentar

E aí, Eggers segue seu texto avaliando o quadro geral dos clássicos, mostrando o quanto Machado está inserido nesse bojo de gênios, o quanto ele não está só, mas apontando sempre para o passado. Para frente de Machado, não há nada igual, como ele já disse. 

O que temos nos dias de hoje são romances de autores que se levam a sério demais, diz Eggers, e não conseguem experimentar nem na forma, nem no conteúdo. Na sua avaliação, na contemporaneidade, só temos autores que não experimentam a linguagem. 

Segundo o autor, ele participou de um concurso literário alguns anos atrás e havia mais de 400 romances para ler. Desses 400, algumas dúzias eram engraçados, mas apenas alguns eram divertidos de ler, e desses, apenas dois, exatamente dois, “eram, de modo significante, experimentais.”

“Se isso não for a indicação de um generalizado medo do novo, uma hesitação em aproveitar oportunidades, e uma assustadora e mal-orientada autosseriedade sobre o romance, não sei bem o que é”, diz ele.

“Não se trata de dizer que todos os romances, ou a maioria deles, deveriam ser, ou podiam ser, tão divertidos quanto este. Mas não ia doer ter mais alguns que permitissem os humanos – personagens, leitores, autores também – rirem. Negar as piadas na vida, e a piada da vida em si, é muito triste”, finaliza.

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Dave Eggers é autor de livros como O que um cidadão pode fazer? e O monge de Mokha (em tradução livre). Ele é o co-fundador do Congresso Internacional das Vozes da Juventude.

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quinta-feira, 28 de maio de 2020

Breve história da humilhação: fragmento do livro México, de Erico Verissimo


Em seu livro de viagem México (1957), Erico Verissimo (1905-1975) conta a história (à qual ele dá o título irônico de O Herói) de um coronel do exército legalista na Revolução de 1910, que foi pego pelos revolucionários comandados por Emiliano Zapata, julgado sumariamente e condenado à morte por fuzilamento.

E aí, o que Verissimo narra é digno de nota justamente por mostrar como nenhuma bravura consegue superar a capacidade humana de criar mecanismos de humilhação e maldade. Às vezes, a operação é simples, como esta, mas eficaz. Verissimo ouviu o relato do grande pintor mexicano David Alfaro Siqueiros (1896-1974).

Ao ser feito prisioneiro, “o coronel não se defendeu, não pediu clemência, não pronunciou uma palavra durante o julgamento. Recebeu a sentença sem mover sequer um músculo da máscula face. Saiu da sala pisando firme, a cabeça erguida, o porte ereto. Na prisão, onde aguardava com outros condenados a execução da sentença de morte, recusou-se a receber a esposa, que, tendo sido informada do acontecido, viera desesperada e em pranto pedir aos revolucionários que poupassem a vida do marido. ‘Retire-se!’, gritava este sem a mirar. ‘Não peço, nem quero clemência. Volte para casa!’

Numa dada madrugada, os guardas levaram os priosoneiros para o local de fuzilamento. Na porta da prisão, estavam as mães, as mulheres e os filhos dos condenados, inclusive a mulher do coronel. Quando eles passaram, o clamor começou e os acompanhou até o local do fuzilamento. 

“A esposa do coronel caminhava ao lado do marido, pendurava-se-lhe nos braços, no pescoço, beijava-lhes as mãos, que ele tinha amarradas às costas, mas o homem continuava a caminhar imperturbável, como se ela não existisse.”

A caminhada, no entanto, era longa, e a postura do coronel foi mudando aos poucos no percurso. “O homem agora não caminhava teso; a cabeça lhe caía sobre o peito e seus passos eram menos firmes. Ele já olhava para a esposa com um misto de ternura e pena.”

Ali, ele já estava quebrado. Talvez haja valentões que suportem mais, ao saberem que vão morrer. Mas ali o bravo coronel já estava partido ao meio. “Sua expressão transformou-se em terror quando, no alto do cerro, ele viu o primeiro companheiro cair diante do muro, crivado de balas. Haviam-no deixado para o fim, e ele tinha de olhar ou pelo menos ouvir o fuzilamento dos outros, em meio aos gritos de desespero das mulheres.”

“Clareava a barra do horizonte. Galos amiudavam. Soprava um ventinho frio. Ouviu-se nova descarga. O fuzilado tombou. Seu sangue respingou o muro. O tenente aproximou-se do corpo, tirou o revólver e deu o tiro de misericórdia na cabeça do agonizante.”

“Nesse momento, o orgulhoso coronel soltou um urro e atirou-se no chão, chorando como uma criança, e começou a pedir em altos brados que não o matassem. Beijou, babujou a mão do comandante do pelotão, enlaçou-lhe as pernas como uma fêmea desprezada e louca de paixão, e acabou rolando na poeira, o corpo dobrado, os joelhos contra o peito, a cabeça entre as mãos, recusando a erguer-se e marchar para o muro como um bravo.”

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sábado, 2 de maio de 2020

A gastronomia segundo Brillat-Savarin


Jean-Anthelme Brillat-Savarin (1755-1826) foi um juiz francês que viveu num dos períodos mais conturbados de seu país, entre a segunda metade do século XVIII e a primeira do XIX. A Revolução Francesa quase lhe tirou a cabeça, mas não foi por isso que ele entrou para a história.

Quem o colocou lá foi seu livro A fisiologia do gosto (Companhia das Letras, 2005, 384 páginas), um tratado bem-humorado e cheio de verdades sobre a gastronomia, que o colocou na boca de personagens de cinema e nas conversas de chefs de cuisine no mundo inteiro.

Para o autor, todos os campos do conhecimento humano acabam tangenciando o universo gastronômico, desde a física, a história natural, a química, a própria culinária até o comércio e a economia política. Para falar de gastronomia, ele usa todas essas referências, e seu texto enriquece com isso.

“A influência da gastronomia se exerce em todas as classes da sociedade; pois se é ela que dirige os banquetes dos reis reunidos, também é ela que calcula o número de minutos de ebulição necessários para que um ovo fresco seja cozido ao ponto”, diz.

Sinceridade e graça

Segundo Brillat-Savarin, os conhecimentos gastronômicos são necessários a todos os homens, embora os mais ricos sejam os que mais precisam deles em função de suas relações amplas dentro da sociedade, seus encontros políticos, posturas diplomáticas e reuniões de negócios. Mas são úteis também ao homem simples, pelos laços de amizade que esse conhecimento proporciona, ao saber fazer uma boa comida.

Publicado originalmente em 1825, um ano, portanto, antes de o autor falecer, A fisiologia do gosto é um livro peculiar do gênero pelo fino senso de humor de Brillat-Savarin. As definições de cada sensação ou de determinadas posturas são sinceras, mas escritas de forma graciosa. 

Ele define o apetite, por exemplo, como o monitor do corpo que avisa quando a contínua perda de nutrientes ameaça parar o funcionamento orgânico: “O apetite se anuncia por um certo langor no estômago e uma leve sensação de fadiga”, comenta.

Cegos gastronômicos

Nesse ritmo de conversa e ensinamento, o autor vai pontuando a complexa engrenagem da gastronomia. Fala dos sentidos, incluindo um sexto, que ele chama de ‘genésico’ ou ‘amor físico’, cujo estímulo pela boa comida é responsável por grande parte do prazer que o homem tem ao se alimentar, chegando próximo ao prazer do orgasmo. Mas adverte que nem todos são dotados de boa língua.

A língua de alguns desafortunados, diz ele, “é mal provida de terminações nervosas destinadas a absorver e apreciar os sabores. Estes suscitam-lhes apenas uma sensação obtusa; em relação aos sabores, são como cegos em relação à luz”, finaliza. 

Como exemplo de ‘cegos’ gastronômicos, Brillat-Savarin cita Napoleão Bonaparte, que “comia depressa e mal”. Neste caso, o autor demonstra aqui a vocação da gastronomia para a slow food em contraposição à fast food, que se tornou quase padrão no mundo veloz de hoje.

O livro passeia pelas dicas e receitas de como escolher um bom restaurante, os tipos de bebidas e suas combinações, fala de especialidades, da sede, da fritura, do prazer da mesa, da digestão, do sono, dos sonhos, da obesidade, da magreza, do jejum, da morte, da gastronomia clássica e até do fim do mundo. 

O que não se sabe é o que ele tinha comido quando lançou sua filosofia sobre os últimos dias sobre a terra. Em todo caso, nessas reflexões, ele diz que não vale a pena imaginar grandes catástrofes sobre o mundo, porque nada nesse universo conspiraria tão grandiosamente sobre nós, pois “não valemos tamanha pompa”.


Aforismos

O autor abre seu livro com uma série de aforismos que servem como trilha rumo ao que o leitor poderá encontrar nas páginas seguintes. 

1) O universo nada significa sem a vida, e tudo o que vive se alimenta.

2) Os animais se repastam; o homem come; somente o homem de espírito sabe comer.

3) O destino das nações depende da maneira como elas se alimentam.

4) Dize-me o que comes e te direi quem és.

5) O criador, ao obrigar o homem a comer para viver, o incita pelo apetite, e o recompensa pelo prazer.

6) A gastronomia é um ato de nosso julgamento, pelo qual damos preferência às coisas que são agradáveis ao paladar em vez daquelas que não têm essa qualidade.

7) O prazer da mesa pertence a todas as épocas, todas as condições, todos os países e todos os dias; pode se associar a todos os outros prazeres, e é sempre o último para nos consolar da perda destes.

8) A mesa é o único lugar onde jamais nos entediamos durante a primeira hora.

9) A descoberta de um novo manjar causa mais felicidade ao gênero humano que a descoberta de uma estrela.

10) Os que se empanturram ou se embriagam não sabem comer nem beber.

11) A ordem correta do comer é dos pratos mais substanciais aos mais leves.

12) A ordem correta do beber é dos vinhos mais suaves aos mais capitosos e perfumados.

13) Afirmar que não se deve mudar de vinhos é uma heresia; o paladar se satura; e, depois do terceiro copo, o melhor vinho não provoca mais que uma sensação obtusa.

14) Uma sobremesa sem queijo é uma bela mulher a quem falta um olho.

15) Aprende-se a ser cozinheiro, mas se nasce assador.

16) A qualidade mais indispensável do cozinheiro é a pontualidade: ela deve ser também a do convidado.

17) Esperar muito tempo por um conviva retardatário é falta de consideração para com os que estão presentes.

18) Quem recebe os amigos e não dá uma atenção pessoal à refeição que lhes é preparada não é digno de ter amigos.

19) A dona da casa deve sempre ter certeza de que o café é excelente; e o dono, de que os licores são de primeira qualidade.

20) Entreter um convidado é encarregar-se de sua felicidade durante o tempo todo em que estiver sob nosso teto.

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sexta-feira, 1 de maio de 2020

Gastronomia: o poder do alimento como vínculo social

                                                                                                                                                                             Foto: Divulgação
L’entrecôte: prato francês feito por um bistrô que virou moda no mundo das franquias (e já está em Goiânia)


Parênteses: Escrevi esta pequena reportagem em 2010, publicada no jornal Tribuna do Planalto, em Goiânia. Mas o jornal renovou seu conteúdo online, e o texto se perdeu. Então decidi ressuscitá-lo aqui. 

A única coisa que desatualizou a informação sobre o restaurante do chef André Barros, que estava prestes a ser inaugurado na ocasião. Foi de fato inaugurado, mas já fechou as portas. As ideias de Barros, no entanto, e o modo como ele vê a gastronomia continuam valendo. 

O texto entra aqui pelo vínculo com a literatura, já que cito três nomes importantes para quem gosta de ler. Feita a ressalva, boa leitura!

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Quem nunca foi convidado para um almoço ou um jantar? Quem, mesmo que tenha sido na infância, não ofereceu a alguém um pedaço de pão com o intuito de fazer amizade, desfazer mal-entendidos? 

A comida sempre foi um elemento poderoso nas relações sociais. Elemento essencial da vida, é uma força capaz não só de matar a fome, mas também de criar vínculos entre pessoas.

Como laço de convívio social, o alimento pode ser usado para nutrir uma amizade, mas também para desfazer vínculos, pode inclusive virar armadilha para capturar o inimigo. É tão importante na cultura anglo-saxã que a frase usada pelos ingleses para dizer que a comida não lhe caiu bem é “the food didn’t agree with me” (“a comida não concordou comigo”).

De acordo com o chef de cozinha, André Barros, a gastronomia não é privilégio dos profissionais, pelo contrário, faz parte de uma rede de sociabilidade que leva as pessoas às casas umas das outras ou aos restaurantes. 

“O fechamento de um contrato de negócios, o início de um namoro, a visita à casa da namorada ou do namorado para conhecer os futuros sogros, nessas ocasiões sempre há uma boa comida para acompanhar”, diz Barros.

“Quanto melhor for o cardápio e o tempero, com maior naturalidade a conversa fluirá, mais harmônicos ficarão os ânimos, e mais positiva será a impressão entre as partes”, acrescenta o chef.

A cerimônia do alimento na cultura ocidental atravessou muitos costumes e valores até chegar aos dias de hoje. Agora concorre com um tipo de alimentação pouco agregador, que é a fast food (alimentação rápida). 

A fast food prega o contrário da harmonia. As pessoas não conseguem se relacionar na hora da refeição. É rápido demais, prático, e o estômago se sacia com a mesma velocidade das conversas ralas, quando há alguém com quem conversar.

É contra esse massacre que entra o papel da gastronomia. Ela preza pelo que se chama slow food (alimentação saboreada sem pressa), que no Brasil começa a reagir sobre o avanço do pouco mastigar das comidas rápidas. 

Vontade de voltar

A gastronomia “é o conhecimento fundamentado de tudo o que se refere ao homem, na medida em que ele se alimenta”, diz Jean-Anthelme Brillat-Savarin, um juiz francês do século XVIII, que escreveu A fisiologia do gosto, livro que se tornou um clássico da área.

Brillat-Savarin era um amante da boa comida, mas também um entusiasta da amizade, da moderação e do prazer adquirido numa mesa bem-posta. Muito antes dele, no entanto, antes mesmo do nascimento da cultura ocidental, a alimentação como vínculo social já era compreendida e cultivada em várias civilizações, como na Grécia Antiga. 

Segundo Junito de Souza Brandão, em seu livro Mitologia Grega (Vol. I), determinados alimentos têm um poder de fixação muito grande. Quem os come não resiste à vontade de voltar ao local onde os comeu para saboreá-los de novo. 

O autor cita o mito grego de Perséfone que foi raptada por Hades, o senhor dos mortos e deus da riqueza. A pedido de sua mãe Deméter (Ceres, deusa da terra cultivada, de onde vem a palavra cereal), Perséfone teria de voltar à terra, junto aos mortais. 

Hades não podia negar a solicitação de Deméter, mas não queria ficar sem ver a amada. Então pediu a ela que comesse uma semente de romã. Com isso, mesmo voltando para junto da mãe, Perséfone teria de retornar e ficar um terço do ano nas “terras brumosas do Hades”, num eterno ciclo de idas e vindas.

Segundo Brandão, o poder de fixação de certos alimentos ultrapassa o limite do simbólico, e chega aos dias de hoje ajudando a manter boa parte das relações sociais, do nascimento de novas amizades. 

Brandão também cita Câmara Cascudo, estudioso da cultura popular brasileira, para dizer algo semelhante ao que já dissera da cultura grega: “Quem come e bebe certos alimentos ou líquidos não pode esquecer ou deixar de regressar aos lugares onde os consumiu.”

Na lista de comidas e bebidas que têm esse poder de fazer o apreciador regressar, diz Brandão, incluem o Cabrito assado do Cáucaso, o “Puchero” da Argentina, a “Olla podrida” da Espanha, o “Porridge” da Escócia, o Iogurte da Bulgária, o Pato de Rouen (cidade próxima a Paris), o “Coq au vin du Languedoc”, o Vatapá e o Caruru da Bahia, a Água da Fontana di Trevi, em Roma, o Açaí de Belém do Pará, entre muitos outros de tantas outras regiões. 

Para o açaí, existe até uma quadrinha que reforça o poder de fixação do alimento: “Quem vai ao Pará,/ parou./ Bebeu açaí,/ ficou.”

André Barros não foi ao Pará, mas viajou para bem próximo. Foi para Manaus, local aonde retorna sempre. Segundo o chef, toda vez que viaja para lá, a trabalho ou não, vai ao restaurante preferido comer uma Caldeirada de Tambaqui.

Este, no entanto, não é o único prato que faz Barros chegar a Manaus já com água na boca. “O Tacacá e o Filé de Pirarucu com Tucupi (caldo da mandioca brava) são outros dois pratos deliciosos. Gosto muito dessa cozinha regional brasileira”, enfatiza.

Respeito pela comida

Quando o assunto é gastronomia, Barros não perde o fio da meada. Começa logo a falar de seus projetos de culinárias, de receitas e até de um restaurante que está prestes a inaugurar em Goiânia, o Malauí, nome de um país do sudeste da África, de origem banta, que quer dizer “fogo”, “chama”.

A ideia de Barros é justamente fazer em Goiânia o que, segundo ele, ainda existe pouco em termos de gastronomia, um espaço que valoriza também a arte de apreciar o convívio social. 

O restaurante que está prestes a inaugurar, com área climatizada de 60 lugares, oferecerá um lounge e um ambiente para pocket shows, como jazz, blues, bossa nova, performance de DJs e stand-up comedy.

Além disso, haverá um fumoir, com seleção de charutos cubanos e nacionais, e uma pequena butique gastronômica na recepção. Dentro desse projeto, Barros quer dar continuidade àquilo que já sabe fazer muito bem, comida que desperte nas pessoas a vontade de voltar para comer mais.

Trabalhando atualmente no restaurante do Country Clube, o Bobó de Camarão que ele faz lá é muito apreciado. É um bobó mais encorpado, com lascas de coco fresco e castanha do Pará. 

“Há pessoas que acompanham o boletim do clube e vão lá pelo menos uma vez por mês. E se têm uma visita aqui em Goiânia, levam para conhecer essa releitura que fiz do bobó”, comenta Barros, orgulhoso.

Orgulho maior, ele sentiu quando o empresário carioca Max Araújo veio do Rio de Janeiro para fechar sociedade com ele na abertura do Malauí. Araújo é o investidor no negócio de mais de R$ 1 milhão. 

Araújo também é um grande connoisseur de gastronomia, tendo possuído restaurantes bem frequentados no Rio de Janeiro, além de já ter viajado para muitos países. Por onde passa, traz uma história de vínculo social proporcionado pela gastronomia.

Araújo e Barros, portanto, comungam os mesmos ideais. Ambos mantêm um profundo respeito pela comida, acham inclusive que ela tem sentimento, na medida em que é feita com amor, envolta a afetividades, elementos que acabam sendo transmitidos junto com os ingredientes à pessoa que vai comer. 

O caso mais ilustrativo dessa história de vínculos por meio da comida é a própria visita de Araújo a Goiânia, quando Barros ofereceu um jantar para receber o sócio. Araújo aproveitou a ocasião para convidar as pessoas que ele gostaria de agradecer e de conhecer melhor. “O resultado foi uma reunião de conversas agradáveis”, diz.

Ecos agradáveis

A experiência internacional dos dois também dá boas histórias de sociabilidade construída em torno de um bom prato, que também reforça a mística da fixação. Neste caso, Araújo cita um pequeno restaurante (bistrô) chamado L’entrecôte, em Paris (vale abrir um parêntese aqui para explicar que no fim de 2009, já estava chegando ao Brasil uma franquia desse bistrô, e atualmente, em pleno 2020, há uma rede gigantesca dele espalhada pelo país, que seguiu o exemplo do mundo inteiro; mas Araújo estava se referindo era mesmo à matriz, em Paris).

As pessoas ficam duas horas numa fila, muito bem organizada e plena de atenção, no L’entrecôte, para comer filés em tiras, acompanhados de um molho (cuja receita é mantida em segredo) e batatas fritas em caracol. “Sempre que vou a Paris me sinto atraído pelo restaurante, para comer aquele prato”, diz.

Um dos diferenciais do “L’entrecôte, diz Araújo, é o atendimento feito pelas duas chefes, que vão de mesa em mesa conversar com cada um dos clientes. “Elas são impressionantes. Têm um bom papo e são atenciosas. Por isso, já vi gente do mundo inteiro lá. Vão para comer, mas também para fazer amizade, conversar. Ou seja, a comida é o poder desse local”, comenta.

As histórias de Barros e Araújo são tantas e tão variadas, com cheiros, sabores e ambientações diversificados que, para quem escuta, ficam como ecos agradáveis na memória. Eles reforçam que o Malauí, com previsão de ser inaugurado no começo de dezembro (2010), terá espaço para todas essas delícias que giram em torno da gastronomia.

O Brasil tem uma afabilidade natural, e a comida faz parte dela. A feijoada e o churrasco, por exemplo, são manifestações populares de reuniões gastronômicas. Quem se propõe a conhecer o país e não se interessar por esses dois grandes pratos não chegará a tocar na essência do brasileiro. 

Por ouro lado, numa descrição mais sofisticada da gastronomia, um de seus elementos é a moderação, conforme lembra Barros. “Comer, sim, se empanturrar, não”, diz. Segundo o chef, em termos de variedade gastronômica, o Brasil ainda precisa aprender muito. Já em termos de ingredientes, é um dos mais ricos do mundo. 

O que falta é a exploração dessa riqueza. “Mas isso está melhorando. Hoje em dia, há pessoas que viajam atrás de comida, os chamados fooders, que vão a festivais conhecer a comida de um chef, tomar um vinho diferente. São pessoas que vão à feira, pesquisam ingredientes, conversam umas com as outras, descobrindo o país. Neste sentido, estamos vivendo um boom enograstronômico”, diz Barros.

(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente no jornal Tribuna do Planalto, em 20/06/2010)

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quarta-feira, 29 de abril de 2020

Rubem Fonseca: carnaval, livros, acúmulo e angústia

                                                                                                                     Foto: Zeca Fonseca/Divulgação
Rubem Fonseca (1925-2020): suas palavras permanecerão vivas por muito tempo, vivas e pulsantes na memória do leitor

O carnaval é o período da mistura de cores, da mescla de máscaras e almas que constroem a tessitura dramática de todos os contos e romances de Rubem Fonseca, e que tece de igual modo o imaginário social do Brasil. 

A literatura de Fonseca vem marcada pela insígnia do carnaval desde o começo. Não por acaso, o primeiro conto de Os prisioneiros, seu primeiro livro, de 1963, tem como título Fevereiro ou março.

De condessas a prostitutas, de punguistas a executivos, analfabetos e poliglotas, loucos e médicos, polícia e bandido, gente do morro e moradores solenes do Leblon e Copacabana desfilam em toda sua obra como quem passeia em carros alegóricos.

Neste pequeno texto, discorrerei sobre algumas questões da literatura fonsequiana produzida nas décadas de 1960 e 70. Com uma variação ou outra, é ela que dará o tom nas décadas seguintes até o fim. E para fazê-lo, nada melhor do que a imagética do carnaval e sua verve de misturas.

Em um dos contos de Lúcia McCartney, a terceira coletânea do autor, de 1969, o narrador diz que num baile de carnaval era “tudo misturado, puta, mãe de família, donzela, artista, estudante, ratazana de praia, filha da mamãe, comerciária, vedete, grã-fina, manicure. Mas o que tinha mais mesmo era puta. Tava assim de puta.” 

Sua estética é isso, passa pela pluralidade. Mineiro de Juiz de Fora, radicado no Rio, Rubem Fonseca morreu no dia 15 de abril de 2020, aos 94 anos. Mas antes de partir, ao longo da vida criativa, construiu um legado estético muito importante para a literatura brasileira. 

Autor de 32 livros, entre contos, romances e um de ensaios, Fonseca produziu uma obra que sai das entranhas cariocas para expressar o espectro social brasileiro. Seus contos respiram as mazelas e a festa. 

Estética do acúmulo

Tudo na literatura de Fonseca aparece como jorro, por acúmulo. As citações, por exemplo, estão em todos os livros desde o começo, e surgem como erva daninha em terra fértil. Uma das funções é a ironia. “Todo mundo só sabe nomes e datas, e epígrafes”, diz um dos personagens (A opção, in: A coleira do cão).

Esse tipo de ironia chegou ao ponto máximo quando, no romance Buffalo & Spalanzani, o narrador cita Rubem Fonseca (narrativa narcisista). Os principais personagens são leitores contumazes ou mesmo escritores. 

“Ermê olhou as estantes cheias de livros” (Nau Catrineta, in: Feliz ano novo). “Acordado a noite toda. Livro aberto em cima do peito” (Zoom, in: Lucia McCartney). “Via televisão, lia, dormia” (O outro, in: Feliz ano novo).

Se catássemos as citações de autores e títulos ao longo de contos e romances, ergueríamos uma biblioteca inteira.  Há algo de estético nisso. Em alguns contos, os livros giram nos ambientes da história como circulariam ingredientes de um apetitoso prato numa cozinha - causando efeitos estimulantes nos leitores.

No conto A matéria do sonho (conto incrível e merecedor de atenção pela atualidade de sua proposta estética, pela intrigante relação entre homem, tecnologia e desejo), o narrador cita uma lista com mais de 100 livros.

Há também alguma coisa de exibicionismo nisso, por um lado, e de generosidade, por outro. Há algo de sugestivo, como se dissesse ‘hei!, leia esses livros aí pra ver se fica mais culto, mais educado, mais inteligente, mais interessante, com mais repertório, com mais conteúdo, com mais possibilidades de aprender alguma coisa para além da organicidade que emana de minhas narrativas.’ 

E, ao mesmo tempo, todo esse fluxo de citações é uma transfiguração da afetação da classe média. Neste caso, não só livros, mas o hábito de falar frases ou trechos de frases em inglês aparecem como efeito de comicidade e do ridículo.

Técnica inovadora

Quando surgiu na década de 1960, Rubem Fonseca foi considerado um renovador da prosa brasileira. Chamou a atenção da crítica pelo experimentalismo, misturando linguagem de cinema e de teatro aos procedimentos literários e uma profunda relação com o vocabulário do senso comum.

Os críticos chamaram isso de técnica inovadora. Fábio Lucas, em resenha da época, disse que a literatura de Fonseca inovava porque trazia expressões feitas “por meio de elipses, criando novos signos, organizando uma semiologia própria” - segundo cita Sergio Augusto, por ocasião do relançamento da obra completa do autor pela Editora Agir (que Augusto organizou, em 2009). 

Fonseca imprimiu com precisão cenas do cotidiano, abertas, que apenas sugerem múltiplos desfechos, como se o leitor acabasse de chegar a um local onde alguma coisa estivesse acontecendo e saísse de lá antes do fim, só ficando com o “como estava acontecendo” pulsando na memória recente. 

Mesmo lendo agora, o leitor pode sentir a mesma sensação. A técnica não envelheceu. As tramas são feitas numa naturalidade que plasma a violência, os desejos e a indiferença social. E a forma continua inteira, atualíssima. 

Como autor, Fonseca nasceu tarde, mas já nasceu maduro. Os prisioneiros (1963) foi publicado quando ele tinha 38 anos. A crítica chamou o livro de primor.

As narrativas são concisas, cuja economia de movimento pode ser descrita tal como fez o advogado Mandrake, no conto Dia dos namorados, em Feliz Ano Novo (1975), quando diz: “(Sou) Mandrake, uma pessoa que não reza, e fala pouco, mas faz os gestos necessários.”

(É bom lembrar que Mandrake viria a aparecer em três romances, A grande arte, de 1983, E do meio do mundo prostituto só amores guardei ao meu charuto, de 1997, e o homônimo Mandrake, de 2005, além de em vários contos, mas sua primeira aparição fora em 1969, no conto O caso de FA, do livro Lúcia McCartney.)

Os finais ficam em aberto, com uma surpreendente atualidade e relevância, muitas vezes desenhando situações que viveríamos hoje com mais intensidade. O leitor fica meio que preso no suspense da trama cujo desfecho se realiza sempre na contramão da expectativa (anticlímax).

“A realidade do sr. Ruben Fonseca é inquietante, ou, pelo menos, ele sabe mostrar o que existe de inquietador sob as aparências exteriores da realidade”, diz Wilson Martins, em resenha publicada no jornal O Estado de S. Paulo, em 1° de fevereiro de 1964. 

Apalpando a vida

Em A coleira do cão, seu segundo livro, de 1965, o primeiro conto, A força humana, exibe o momento exato em que o sujeito, ao se entregar à força do mundo, é invadido pelas sensações vitais, pela agonia da existência, pela dor de se perceber nesse mundo. 

É como se trocasse sopapos com a realidade das coisas, numa tomada de consciência de que viver era mais do que a sensação física da existência, era uma angústia também. Essa angústia varria o cotidiano e tomava as pessoas de sobressalto. Ele estava sendo tomado por ela agora. Ele estava se descobrindo vivo, humano. 

Ali, Fonseca demonstra um poder de síntese impressionante. Os contos trazem para o leitor de 2020 informação de um passado semilongínquo, da segunda metade do século XX, quando as mulheres ainda lutavam por direitos básicos. Mas também encerra um efeito estético admirável.

A narrativa nos fornece uma sensação de desconforto com o mundo, uma inquietação sensível, uma espécie de choque do eu com a realidade vivida, um conflito que é mais existencial do que social, embora aponte as relações sociais como parte fundadora do drama.

O conto O gravador demonstra com destreza a origem desse conflito. Expõe a relação do homem com a tecnologia, com a violência, com o amor, com a virtualidade. 

Nesse conto, uma mulher muda completamente sua postura diante da vida ao travar relação pelo telefone com um sujeito que ela não conhece. É como se ela transferisse sua imaginação para uma relação paralela, que tampouco deixa de ser imaginativa. 

No conto O grande e o pequeno, uma atmosfera comum é exposta em primeiro plano para dali, do subterrâneo das emoções, saírem os sentimentos, as sensações, a pulsação da vida em suas manifestações mais comezinhas, mas tão fortes, tão doloridas, tão presentes.

Nesta obra-prima de Fonseca, A coleira do cão, tudo aparece com clareza na mesma proporção que vem em poucas palavras. Tudo, o ambiente de sol, a praia e a noite cariocas, os bairros de classe média da década de 1960, o conflito familiar, as relações amorosas, o sexo, a violência, o dinheiro, tudo.

Os contos trazem narrativas marcadas pela angústia existencial, com personagens apalpando a vida para ver o que é, sem saber direito como viver, enganchados em alguma coisa, incomodados. 

Mas o último conto, que traz o título do livro inteiro, A coleira do cão, é diferente dos demais. A angústia existencial está dispersa, em meio à tensão entre polícia e bandido. Tudo fica muito físico.

O conto trata dos assassinatos no morro e da investigação policial. Talvez aí, Fonseca comece a se tornar mais autor de literatura policial de fato. A coleira do cão mostra a rotina de uma investigação, mostra como são os ladrões e a corrupção da polícia e dos repórteres que cobrem essa área. 

O morro aparece em A coleira do cão. A cor do morro é preta. Mas o morro se desvela na contramão do delegado que gosta de poesia e tem aversão a pobreza e tortura. 

Barbárie e humanidade

O Rio de Janeiro que serve “de moldura ao eclético elenco de desajustados urbanos” nos primórdios da literatura de Rubem Fonseca, como diz Sérgio Augusto em 2009, é “um Rio de Janeiro violento, sensualista, socialmente injusto, mas ainda sem favelas dominadas pelo tráfico de drogas — só por bicheiros que no máximo se protegiam com uma pistola 45mm.”

Quando A coleira do cão foi lançado, Boris Schnaiderman ficou extasiado com a verve de “barbárie e humanidade” dos contos. Hoje, ao lermos, isso ainda nos inquieta de certa maneira, mas esse sentimento em especial foi superado pela realidade brutal dos noticiários e das narrativas policiais atuais, tanto no cinema quanto na literatura, inclusive a literatura posterior do próprio Rubem Fonseca.

Mas, nesta coletânea, o conto A força humana ainda continua intacto em sua capacidade de sugar o estranhamento da vida a partir da invisibilidade. Continua capaz de nos envolver sutilmente com esse estranhamento, como se nos envenenasse. 

Na ocasião, Wilson Martins, escrevendo para O Estado de S. Paulo, vaticinou, segundo cita Sérgio Augusto:  “(A força humana) não é apenas um dos melhores contos brasileiros até hoje escritos; é, também, um dos melhores contos da literatura universal.” E até hoje esta observação de Martins ainda vale. 

Em 2002, o professor e crítico literário Italo Moriconi selecionou algumas narrativas de Fonseca para a coletânea Os 100 melhores contos brasileiros. O primeiro deles foi A força humana. Isso demonstra a importância deste conto e sua força na história da contística brasileira. 

Chutando a porta

Os primeiros livros de Fonseca não esgotam toda a criatividade do autor, mas expressam o que há de mais inovador em sua linguagem e no seu conteúdo. Depois disso, vieram os romances e mais contos. 

Depois disso, veio muita sofisticação narrativa, mas vieram também as repetições. Muito das tramas de seus romances é uma releitura ou recuperação de ideias e personagens já existentes na série de contos desses livros primeiros.

Após lançar três coletâneas de contos (Os prisioneirosA coleira do cão e Lúcia McCartney), Fonseca publicou seu primeiro romance, O caso Morel, em 1973. Em 1975, veio a público seu quinto livro, Feliz Ano Novo, o quarto de contos, que chegou chutando a porta da cozinha literária brasileira. 

Feliz Ano Novo tem um tom de janeiro, no sentido de apresentar duas faces, olhando para o tempo que passou, por meio do estilo, e apontando para o que seria Fonseca no futuro, suas tramas, seus personagens, sempre ecoando de certo modo – com sofisticação e alguma novidade – o que já fizera.

Como já era marca do autor, os personagens de Feliz Ano Novo aparecem num ambiente aberto de possibilidades. Na maioria dos contos, estão “sem saber para onde ir”. É o que ocorre, por exemplo, em Abril, no Rio, em 1970.

Neste conto, um rapaz de 18 anos, contínuo numa empresa, tenta a carreira de jogador de futebol nos finais de semana. Ele espera alcançar o sucesso, sonha jogar um dia no time do Madureira, e assim alcançar a seleção brasileira. Mas, por enquanto, ele está mesmo é num time de várzea. Joga e perde. Sente-se um perdedor.

O conto Feliz ano novo, que estampa o título do livro, já não impressiona; a violência expressa nele está todos os dias nos jornais, na televisão, na internet. Mas na época de lançamento foi a maior sensação. 

Em compensação, Passeio noturno (Parte I e Parte II) se mantém intacto em sua proposta narrativa. Nele, um homem de classe média desconectado da vida, ligado às máquinas e ao mundo dos negócios, combate seu tédio em escapadelas noturnas para, incógnito, atropelar alguém com seu Jaguar preto. 

O tema, psicopata que age na calada da noite, não é o mais interessante, no entanto. A técnica, a economia dos gestos, a combinação de movimentos, como dinâmicos frames de cinema, é que mantêm a tensão e a beleza dessa narrativa. 

Está lá um homem encalacrado na cidade, absolutamente violento e frio, narrador de suas experiências, de ficha limpa e bem-sucedido na sociedade, com mulher e um casal de filhos já adultos que não trabalham, um predador urbano que age com classe e anonimato na imensidão noturna da cidade grande. 

A violência aparece de modo brutal nas duas partes do conto, brutal por causa das mortes e porque a cidade não se importa. A cidade não está nem aí. A tese do conto é a de que o cérebro pode ser uma máquina assassina, capaz de ficar à espreita da oportunidade criminosa.

A mesma tese aparece em Dia dos namorados, conto interessante na problematização dos personagens e no modo de narrar, bicameral. Um banqueiro está dirigindo pela Avenida Atlântica e vê uma moça linda andando pela calçada.

O banqueiro oferece carona. A moça aceita, diz que tem 16 anos. Ele a leva para uma suíte presidencial de um hotel. Lá, o banqueiro descobre que ela é ele, e tenta se livrar do problema, mas o garoto saca uma lâmina e começa a se cortar dizendo “eu sempre quis morrer destruindo um poderoso, como no filme A viúva negra!” 

E aí, a jovem travesti põe a lâmina na própria carótida, ameaçando se matar com um corte na garganta. O banqueiro liga para Mandrake, seu advogado, para resolver o caso.

É Mandrake que narra a história – costurando os movimentos dele e do banqueiro – em dupla perspectiva, mostrando o que ocorria com ele, Mandrake, no momento do encontro do banqueiro com a jovem travesti. O desfecho pouco importa. A vertigem da narrativa é o que mais interessa neste conto.

O conto O pedido também está intacto em sua proposta estética. Não é uma narrativa inovadora, mas o sentimento pulsante em seu interior permanece atual. É a história de uma amizade desfeita por razões emocionais completamente idiotas entre dois imigrantes portugueses que vieram juntos de Portugal ainda criança, e sobre a miséria material de um que reflete a miséria afetiva do outro.

Já Agruras de um jovem escritor é a gênese dos personagens masculinos que matam mulheres nos contos e romances de Fonseca, como em Búfalo e Spalanzanni e Diário de um fescenino.

Outra história que também tem citações genéticas do romance Diário de um fescenino é Nau Catrineta, um incrível conto de canibalismo. “As minhas tias cuidaram de mim desde que nasci. Minha mãe morreu de parto, e meu pai, primo-irmão de minha mãe, suicidou-se um mês depois”, diz José, o narrador de Nau Catrineta.

Em Diário de um fescenino, Rufus, o narrador, diz que sua mãe morreu ao lhe dar à luz e que seu pai morreu de enfarte, quando Rufus ainda era bebê. Uma professora aposentada, sua vizinha, o levou para morar com ela. 

A vizinha “tinha três irmãs, e todas, além de velhas, eram muito doentes, creio que tinham uma forma grave de diabetes. Cuidavam de mim com desvelo, era como se eu tivesse quatro mães”, lembra Rufus.

Como o narrador de Diário de um fescenino, José, de Nau Catrineta, mata a amante. A diferença é que este confessa o que fez, mata por motivos antropofágicos, enquanto Rufus não confessa nada abertamente. 

No conto Intestino grosso, há uma passagem que também se repete em Diário de um fescenino:
“Quantos livros você tem aqui nesta sala?”
“Cerca de cinco mil.”
“Você já leu todos?”
“Quase.”
“Você lê diariamente? Quantos? Qual a velocidade?”
“Leio no mínimo um livro por dia. Minha velocidade, hoje, é de cem páginas por hora. Já li mais rápido.”

Em Diário de um fescenino, Rufus diz: “Respondi que não gostava de estudar, mas de ler e de escrever, e ela me perguntou o que eu havia lido, e eu disse que ia ter que ficar falando o dia inteiro, pois lia um livro por dia desde que tinha dez anos.”

Na literatura de Rubem Fonseca, tudo se permeia. É como um carnaval, dialogando em metáforas com comida, tiros, livros, filmes, cores, questões sociais de raça e de classe, força física e nuanças intelectuais, além do amor e a violência atravessando filtros morais, chegando à permissividade do sexo e das trocas de sensações.

Vários de seus romances se tornaram filmes e seriados, como A grande arteAgostoMandrakeBufo & Spallanzani, além de contos. Seu último livro publicado é a coletânea de contos Carne crua, de 2018. 

A característica marcante de sua técnica narrativa é o que os teóricos chamam de “showing” (mostrar), que difere da técnica “telling” (dizer) por essa capacidade de conduzir o leitor pelas imagens vivas de suas palavras. E vivas elas permanecerão por muito tempo, vivas e pulsantes na memória do leitor.

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