terça-feira, 13 de novembro de 2012

Escalando o Everest com Jon Krakauer



Sem contar as viagens de avião (que não foram tantas assim), o lugar mais acima do nível do mar em que já estive talvez tenha sido a Serra do Mar na Estrada da Graciosa, num precioso passeio de carro até o litoral paranaense, ou o topo da Torre do Banespa, no centro de São Paulo. A nenhum desses lugares tive de subir com meu esforço físico. Agora, acabo de escalar meu Everest particular, também sem uma corda sequer. Nada de jumares, piolets ou grampões.

É que li No ar rarefeito (Companhia de Bolso, 2006, 288 páginas, tradução de Beth Vieira, R$ 24), de Jon Krakauer, um craque da narrativa de aventuras. Adquiri o livro de duas referências do nome do autor. A primeira é cinematográfica, quando em 2009 vi o filme Into the wild (Na natureza selvagem), dirigido por Sean Penn (outro craque), baseado no livro homônimo de Krakauer.

Nesse filme, senti que havia mais do que uma boa adaptação, havia o espírito de um grande escritor. Fiquei com o nome do autor do livro na cabeça, e quando li A turma que não escrevia direito, de Marc Weingarten, em 2011, lá estava ele sendo citado pelo título desta mínima resenha. No ar rarefeito é considerado uma obra prima do jornalismo literário, e eu paguei para ver. Não saiu caro.

Em Na natureza selvagem (1996), Krakauer conta a história de um rapaz de classe média alta que se desentende com o pai e decide viver sua vida da maneira que sempre quis, explorando a densidade da vida na selva, em lugares inóspitos do norte dos EUA.

No ar rarefeito, publicado originalmente em 1997, narra a história da escalada do Monte Everest, em 1996, em que o autor acompanhou como jornalista a expedição de uma equipe profissional que levava alpinistas amadores até o topo do monte mais alto do mundo, a 8848 metros de altura.

É um thriller psicológico, sem dúvida, uma aventura humana, um conto moderno de como algumas pessoas desafiam os limites impostos pela natureza com o objetivo de angariar força interior, realização pessoal, ou fama e prestígio.

O livro de Krakauer é tudo isso, mas é sobretudo a história de pessoas abnegadas, apaixonadas pelo alpinismo, pela força bruta da natureza envolvendo-as no limite (na linha tênue) entre a vida e a morte. Neste caso, a linha tênue se rompeu várias vezes, e muitos – dessa turma – que tentaram escalar o Everest (e até escalaram) morreram antes de descer para o ar denso do mundo cá embaixo.

Subi com eles. O talento de Krakauer é o de levar o leitor como quem nos toma pelo braço e nos põe na rota certa, no ângulo privilegiado da melhor paisagem. O Everest só não está por inteiro neste livro porque é impossível assimilá-lo por completo, assim nos sugere o autor.

Montado no topo do mundo, um pé na China, outro no Nepal, limpei o gelo de minha máscara de oxigênio, curvei o ombro para me proteger do vento e fixei o olhar distraído na vastidão do Tibete. Compreendia, em algum recanto obscuro e distante da mente, que aquela imensidão sob meus pés era uma visão espetacular. Durante meses a fio, eu tecera fantasias sobre esse momento, sobre as intensas emoções que o acompanhariam. Porém, agora que estava finalmente ali, de pé sobre o cume do monte Everest, não conseguia juntar energia suficiente para me dar conta do feito.

É assim que começa o texto de Krakauer, que foi ao Everest contratado pela revista Outside na expedição de Rob Hall, que morreu junto com outras várias pessoas, inclusive o líder de outra expedição, Scott Fischer, durante uma tempestade no topo do monte, enquanto se preparavam para descer.

Escalar montanhas é uma aventura e tanto, mas é também uma prática quase religiosa, no sentido de religar o espírito à energia vital do homem, ao senso de responsabilidade, a um sentido existencial muito forte.

Eu mesmo não tenho essa predisposição. Mas se um dia fosse subir qualquer morro, como o fictício Ninho dos Gaviões (para citar aqui José Maviael Monteiro, que li quando adolescente), voltaria com uma nova maneira de encarar a vida. Essa é a impressão que tive quando li No ar rarefeito. Eis a dica.


Trechos


"Velhos alpinistas experimentados, que durante a vida inteira escaparam da morte por um triz, gostam de aconselhar seus jovens protegidos e sempre dizem que permanecer vivo depende muito de ouvir com atenção a sua ‘voz interior’. Não faltam histórias de um ou outro alpinista que decidiu permanecer dentro do saco de dormir após detectar alguma vibração etérea pouco auspiciosa, sobrevivendo assim à catástrofe que liquidaria com todos os outros que não ouviram os presságios.

Eu não duvidava do valor em potencial das dicas do subconsciente. Enquanto esperava Rob, que iria liderar o caminho, o gelo a meus pés emitiu uma série de estalos sonoros, como pequenas árvores sendo partidas ao meio, e eu estremecia a cada estalido  e a cada rugido vindos das profundezas do glaciar movediço. O problema é que essa voz interna vivia berrando que eu estava prestes a me esborrachar; ela fazia isso toda vez que eu me abaixava para amarrar o cordão das botas. Portanto fiz o possível e o impossível para ignorar minha imaginação histriônica e segui carrancudo atrás de Rob rumo ao sinistro labirinto azulado."

(...)

Pequeno conto sobre o lendário heroísmo de Pete Schoening, membro sexagenário do grupo de Scott Fischer que subia o Everest naquela temporada. Seu grande feito, segundo Krakauer teria sido em 1953, quando escalava o monte K2, o segundo pico mais alto do mundo, também no Himalaia, com 8611 metros.


"A equipe de oito homens foi apanhada por uma feroz nevasca, no alto do K2, e esperava para atacar o cume quando um dos integrantes do grupo, chamado Art Gilkey, sofreu uma tromboflebite provocada pela altitude, ou seja, estava com um coágulo sanguíneo que poderia ser fatal. Percebendo que teriam de descer Gilkey imediatamente, para que houvesse a mínima chance de salvá-lo, Schoening e os outros começaram a baixá-lo pela empinada crista Abruzzi, em meio à furiosa tempestade. Aos 7620 metros, um alpinista chamado George Bell escorregou e levou quatro outros consigo. Por puro reflexo, Pete Schoening enrolou a corda em volta dos ombros e do piolet e conseguiu, sabe-se lá como, segurar Gilkey sozinho e ao mesmo tempo sustar o escorregão dos cinco sem ser puxado montanha abaixo também. Esse foi um dos feitos mais incríveis registrados nos anais do alpinismo e passou a ser chamado, dali em diante, simplesmente de The Belay."


(...)

"As pessoas que não praticam o alpinismo – vale dizer, a grande maioria da humanidade – costumam achar que esse é um esporte irresponsável, que se trata de uma busca dionisíaca de todas as emoções que uma escalada possa fornecer. Porém essa noção de que o alpinista não passa de um viciado em adrenalina, sempre à cata de uma dose legítima da droga, é uma mentira, pelo menos no caso do Everest. O que eu estava fazendo lá em cima não tinha nada em comum com pular de bungee, saltar em queda livre de um para-quedas ou andar de motocicleta a 190 quilômetros por hora.

Acima dos confortos do acampamento-base, a expedição tornou-se na verdade uma empreitada quase calvinista. O coeficiente de aborrecimentos, em relação ao prazer, era de uma magnitude infinitamente maior do que qualquer outra montanha que eu tivesse escalado; logo percebi que escalar o Eeverest dizia respeito sobretudo à capacidade de suportar dor."

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

O Alzheimer de Skidmore

Lucas Ferraz/Folhapress


Thomas Skidmore (foto) está com 80 anos de idade, sofre do mal de Alzheimer em estágio inicial e de síndrome do pânico. Está num asilo numa cidadezinha de 20 mil habitantes, no interior dos Estados Unidos, sendo cuidado por enfermeiras. A família e alguns amigos vão visitá-lo lá, no lugar que ele mesmo escolheu para passar os últimos anos de sua vida.

Em entrevista a Lucas Ferraz, na Folha de S. Paulo de hoje, Skidmore diz que exercita a memória – que vai se apagando aos poucos – se lembrando do Brasil. Também disse ao jornalista que ficou sabendo do golpe militar de 1964 um dia antes, em 31 de março, com o então embaixador americano Lincoln Gordon, coisa que ele não havia contado em seus livros, nem em seus diários.

Fico triste e comovido ao saber do estado de saúde de um historiador que me ensinou a história do Brasil do século XX. Tenho os livros de Skidmore, leio-os com frequência, e o respeito pelo zelo com que tratou do assunto, a paixão e o vigor de pesquisa.

"Tudo o que escrevi não era uma explicação ou interpretação minha, de gringo, mas de meus amigos brasileiros. Meu conhecimento do país vem todo deles. Não é à toa que a amizade é uma das mais fortes características do Brasil", disse o autor ao repórter, referindo-se a amigos como “o cientista político Hélio Jaguaribe, o jornalista Francisco de Assis Barbosa (1914-91), o advogado e político San Tiago Dantas (1911-64), além do editor Fernando Gasparian (1930-06), do historiador Caio Prado Júnior (1907-90) e do ex-deputado e jornalista Márcio Moreira Alves (1936-09).”

Por outro lado, sei que Skidmore viveu sua vida plenamente e agora se prepara para finalizar seu destino humano. Hoje em dia há muitos livros importantes que tratam da história do Brasil no século XX, mas ainda assim Brasil: de Getúlio a Castelo, Brasil: de Castelo a Tancredo e Preto no Branco - raça e nacionalidade são valiosos pra mim.