terça-feira, 31 de março de 2009

GARCÍA MÁRQUEZ NÃO ESCREVERÁ MAIS?

García Márquez em 2008

O UOL Entretenimento replicou uma notícia da agência espanhola EFE, segundo a qual o escritor colombiano parou de escrever. A fonte dessa notícia é a agente literária do autor de O general em seu labirinto, Carmen Balcells, considerada “uma das mais atuantes no meio literário de língua espanhola.”

Em dezembro do ano passado, o UOL Entretenimento (leia aqui) havia replicado outra notícia, da agência italiana ANSA, informando que García Márquez estava escrevendo um novo livro, cujo tema era o amor. Na ocasião, a fonte era Plinio Apuleyo Mendoza, jornalista e amigo de Márquez, que publicou Cheiro de goiaba, livro de entrevistas com o escritor colombiano.

A afirmação dessa aposentadoria, no entanto, pode ser desmentida de uma hora para outra, junto como lançamento de mais um livro. O autor é craque em dar reviravolta naquilo que julgamos dele. A primeira peça pregada nos leitores é seu ano de nascimento, que consta nas fichas técnicas dos livros como sendo 1928, mas, em sua autobiografia, ele diz ter nascido em 1927.

Por volta do ano de 2000, saiu um boato de que ele estava morrendo de câncer e havia escrito uma carta melodramática, se despedindo de todos. O cronista Mário Prata chegou a escrever, no Estadão, sobre o drama de Márquez. Mas a carta não era dele. Depois disso, em 2005, lançou Memória de minhas putas tristes.


Leia trecho da notícia:

‘Acho que García Márquez não voltará a escrever nunca mais’, disse Balcells em entrevista ao jornal chileno La Tercera, na qual assegurou que o escritor representava 36,2 % do faturamento de sua agência literária.

O escritor Gerald Martin, autor da única biografia autorizada de García Márquez, concordou com Balcells. ‘Eu também acho que (García Márquez) não escreverá mais livros, mas isso não me parece lamentável. Como escritor, foi seu destino ter uma trajetória literária totalmente coerente’, declarou Martin.

No mês passado, durante a Feira do Livro de Guadalajara, no México, o autor de Cem anos de solidão chegou a declarar que ‘escrever livros dá trabalho’. Segundo Martin, García Márquez tem alguns livros completos guardados, mas ainda não decidiu se vai ou não publicá-los.

Leia também:


segunda-feira, 30 de março de 2009

LEITE DERRAMDO EM EL PAÍS

Foto retirada do site de divulgação do livro

O livro Leite Derramado de Chico Buarque foi resenhado no suplemento literário do El País. O correspondente do jornal espanhol no Rio de Janeiro Juan Arias chama Buarque de rei da música, músico e compositor imortal, o poeta dos olhos verdes. Segundo ele, tudo que o ídolo da MPB produz, seja música ou literatura, tudo que ele canta vira notícia.

A resenha de Arias parece ambígua. Ao mesmo tempo que elogia o livro, deixa entender que os elogios são para a figura adorada de Buarque. Ele cita dois resenhistas brasileiros para demonstrar como Chico Buarque é visto no Brasil.

Segundo ele, José Castello, jornalista e escritor, disse que Leite Derramado é um dos romances mais importantes lançados no Brasil nesta primeira década do século XXI. E completa: “Ou seja, a literatura para o silencioso Buarque, que, como sempre, não quis dar sequer uma entrevista aos meios de comunicação, já não é um hobby, já está inserida em sua arte polivalente. Chegou ao olimpo dos grandes escritores.”

Arias também cita Francisco Bosco, crítico semiólogo carioca, filho de João Bosco, que escreve no suplemento Prosa e Verso, de O Globo. Bosco diz que o romance revela “nitidez semântica e elegância sintática, que conferem claridade e estabilidade ao texto, configurando o equilíbrio de sua economia.”

Esse trecho citado por Arias me dá uma sensação de riso à crítica e ao livro, porque me parece mais um palavrório sem significado do que qualquer outra coisa. Mas, como não li livro ainda, fica como uma impressão crítica, apenas.

No final, o jornalista espanhol diz: “Tampouco, os críticos fariam falta ao livro. Nas mãos e na boca do deus da canção, tudo seu vira ouro. Tudo que é seu agrada a todos os brasileiros, porque é seu, é de Chico, o inalcançável, o sombrio, mas presente no coração do povo, aquele que, com suas canções, abriu raios de esperança aos tempos duros da ditadura militar dos anos setenta.”

domingo, 29 de março de 2009

CAMUS SEGUNDO SARTRE E BEAUVOIR

Jean-Paul Sartre (1905 - 1980) e Albert Camus (1913 - 1960)

O trecho dessa entrevista foi retirado do livro A cerimônia do adeus, que Simone de Beauvoir (1908 – 1985) escreveu em homenagem ao filósofo Jean-Paul Sartre (1905 – 1980), seu companheiro de toda a vida.

O post é dedicado, principalmente, aos que começam a se interessar por esses nomes. O interessante desse trecho, além de lermos a opinião de Sartre sobre o escritor, ator e dramaturgo franco-argelino Albert Camus (1913 - 1960), é vermos as interferências de Beauvoir, ora abrandando a imagem de Camus, ora atacando-o fortemente, e a maneira como funcionam decisões editoriais.

Jean-Paul Sartre: Conheci Camus em 1943, e com ele estive na pré-estreia de As moscas, quando ele veio ter comigo: sou Camus.

Simone de Beauvoir: Sim, você escrevera um artigo crítico, mas muito caloroso, sobre O estrangeiro.

J-PS: Isso pressupunha, evidentemente, que atribuía importância a esse livro.

SB: Pode falar de suas relações com Camus? Seu início, sua continuação?

J-PS: Seu início, mas sua continuação, após a guerra, isso seria muito complicado... Tínhamos relações originais que, creio, não se encaixavam inteiramente com o gênero de relacionamento que ele desejava manter com as pessoas, da mesma maneira que nós não tínhamos com ele as relações que gostávamos de ter com as pessoas.

SB: Não no início; eu gostava muito do relacionamento que mantínhamos com Camus.

J-PS: Não no início; durante um ano ou dois tudo transcorreu bastante bem. Ele era engraçado, extremamente grosseiro, mas muitas vezes muito engraçado; estava muito engajado na resistência e depois dirigiu Combat. O que nos atraía nele era seu caráter argelino; tinha uma pronúncia que se assemelhava à pronúncia do Midi, tinha amizades espanholas que eram amizades cuja origem eram suas relações com os argelinos e os espanhóis...

SB: Sobretudo, nossas relações não eram afetadas, sérias, intelectuais: comíamos, bebíamos...

J-PS: De certa maneira, careciam de intimidade; ela estava presente na conversa, mas não era profunda; sentia-se que havia coisas que nos fariam entrar em choque, se as abordássemos, e não as abordávamos. Tínhamos muita simpatia por Camus, mas sabíamos que não se devia avançar muito.

SB: Era com ele que mais nos divertíamos, a convivência com ele era agradável, víamo-nos com muita freqüência, contávamo-nos quantidades de histórias.

J-PS: Sim, havia uma amizade verdadeira, mas uma amizade superficial. As pessoas pensavam agradar-nos chamando-nos, aos três, de existencialistas, e isso deixava Camus furioso. De fato, ele não tinha nada em comum com o existencialismo.

SB: Então, como evoluíram suas relações com ele? Ele tinha pensado em encenar Entre quatro paredes e representar o papel de Garcin, portanto, vocês estavam muito próximos em 1943.

J-PS: Em 1944, também; entrei para o seu grupo de resistência pouco antes da Libertação; encontrei pessoas que não conhecia, que se reuniam com Camus para considerar o que poderia fazer a resistência nesse último período da guerra; muitos deles foram presos na semana seguinte, notadamente uma moça, Jacqueline Bernard.

SB: Depois, Camus lhe pediu que fizesse uma reportagem sobre a libertação de Paris, e, também, foi em grande parte por Combat que você esteve na América.

J-PS: Foi Camus que me inscreveu como repórter na América para Combat.

SB: E quando foi que tudo isso começou a se deteriorar? Lembro-me da grande cena que ele fez com Merleau-Ponty.

J-PS: Sim, isso nos indispôs um pouco. Ele foi à casa de Boris Vian [jovem escritor francês, que morreu aos 39 anos, em 1959] uma noite, em 1946. Acabava de passar alguns dias com uma mulher encantadora que depois morreu, e, em consequência dessa história amorosa, dessa separação, estava muito fechado, lúgubre; cumprimentou todo mundo e de repente atacou Merleau-Ponty, que estava presente, a propósito de seu artigo sobre [o escritor húngaro Arthur] Koestler e o bolchevismo.

SB: Porque, naquele momento, Merleau-Ponty se inclinava bastante para o comunismo.

J-PS: O artigo incriminado tinha sido publicado em minha revista Les Temps Modernes, portanto eu estava contra Camus. Na ocasião, Camus não tinha, certamente, nada contra mim, mas não suportava Merleau-Ponty. Também não concordava com a tese de Koestler, mas estava enfurecido; tinha razões pessoais para ser favorável a Koestler.

SB: Aliás, ele tinha relações estranhas com você; dizia frequentemente que, quando o via, só sentia simpatia por você, mas que, de longe, havia em você uma porção de coisas que censurava; tinha feito uma viagem pela América, na qual se referira a você de uma maneira bastante desagradável.

J-PS: Sim, tinha uma atitude ambivalente.

SB: Não aceitou colaborar conosco na revista e creio que ficava muito irritado porque, sendo você mais conhecido e ele muito jovem [Camus tinha nessa época 33, 34 anos, enquanto Sartre já estava com 40 anos e era consagrado], tomavam-no mais ou menos como discípulo seu; Le era muito desconfiado, não gostava muito disso. E como foi que as coisas pioraram até haver a ruptura?

J-PS: Houve um episódio pessoal, que absolutamente não me indispôs com ele, mas que o incomodou muito.

SB: A história de uma mulher com a qual você tinha tido um caso?

J-PS: Isso foi um pouco constrangedor e, como essa mulher rompeu com ele por razões pessoais, ele também ficou com um pouco de raiva de mim; enfim, é uma história complicada. Ele próprio tivera um caso com Casarès, e brigara com ela. Rompera com ela e nos fizera confidências sobre essa ruptura; lembro-me de uma noite com ele num bar, na época íamos muito a bares, estava sozinho com ele e ele acabava de reconciliar-se com Casarès, e tinha cartas de Casarès na mão, velhas cartas que me mostrava dizendo: ‘Ah, isto! Quando as encontrei, quando pude revê-las...’ Mas a política nos separava.

SB: O que supunha uma certa intimidade no plano privado.

J-PS: Sim, ela sempre existiu, enquanto convivíamos mais de perto; até mesmo nossas diferenças políticas não nos incomodavam muito na conversa; por exemplo, ele estava com Casarès e foi vê-la ensaiar O diabo e o bom Deus, você se lembra?

SB: Sim, de fato. Quais eram essas diferenças políticas e como foi que isso acabou explodindo? Foi quando houve o R.D.R. [Reunião Democrática Revolucionária]?

J-PS: Não.

SB: E então, a briga definitiva?

J-PS: A briga definitiva foi quando ele publicou seu livro O homem revoltado. Procurei alguém que quisesse encarregar-se de fazer uma crítica em Les Temps Modernes, sem atacá-lo, e isso foi difícil. [Francis] Jeanson não estava lá, na ocasião, e entre os outros membros de Les Temps Modernes ninguém queria ocupar-se de falar a respeito, porque eu queria que houvesse uma certa discrição e todos detestavam o livro. De maneira que durante dois ou três meses Les Temps Modernes não falaram de O homem revoltado. Depois Jeanson voltou de viagem e me disse: ‘Eu quero fazê-lo.’ Aliás, a atitude de Jeanson era bastante complicada: ele procurava contatos com pessoas como Camus, para ver se poderia fundar, com ele, uma revista que seria a contrapartida de Les Temps Modernes, mas mais de esquerda, já que Les Temps Modernes era uma revista reformista enquanto que a outra revista seria revolucionária.

SB: Era estranho querer fazer isso com Camus, que nada tinha de revolucionário.

J-PS: Ele pedira isso a algumas pessoas; pedira a Camus, mas, evidentemente, isso não podia chegar a nada. Então, provavelmente para vingar-se de que Camus não tivesse querido trabalhar com ele, escreveu o artigo na linha que eu não desejava, isto é, violento, percuciente, e mostrando as falhas do livro, o que não era difícil.

SB: Ele mostrou sobretudo a pobreza filosófica do livro. Isso também não era difícil.

J-PS: Eu não estava presente, estava viajando, pela Itália, creio.

SB: De toda maneira, você não teria censurado um artigo de um colaborador.

J-PS: Não; mas Merleau-Ponty estava muito perturbado com esse artigo e achava – ele era o único responsável que estava em Paris – que não gostaria de que fosse publicado; queria que Jeanson mudasse de ideia, tiveram uma discussão violenta, e depois ele nada mais pôde fazer, a não ser deixar que o artigo fosse publicado, e o artigo foi publicado, mas em condições especiais: Jeanson concordara em mostrar seu artigo a Camus – foi a única restrição que aceitou – antes de que fosse publicado, perguntando-lhe se estava de acordo. Camus ficou furioso e redigiu um artigo onde me chamava: Senhor Diretor - que era cômico, porque não nos tuteávamos, mas nos falávamos bastante livremente, não havia Senhor entre nós. Então, fiz um artigo para responder às suas insinuações; Camus falava pouco de Jeanson em seu artigo, atribuía-me todas as ideias de Jeanson, como se tivesse sido eu que houvesse escrito seu artigo; respondi-lhe duramente e aí cessaram nossas relações; conservei simpatia por ele, embora sua política nada tivesse a ver comigo, entre outras coisas, sua atitude durante a guerra da Argélia.

SB: Isso foi depois. Ao mesmo tempo ele representava um papel, tornava-se importante, tornava-se muito diferente do jovem escritor muito alegre, muito agradável, a quem a glória subia um pouco à cabeça, mas de maneira ingênua. Bem. E então, Merleau-Ponty, Koestler, quais foram suas relações com eles?

sábado, 28 de março de 2009

CHICO BUARQUE LANÇA SEU QUARTO ROMANCE



A Folha de S. Paulo desse sábado deu uma cobertura completa a Leite Derramado, o mais recente romance de Chico Buarque, cantor, compositor e escritor. Além do texto da jornalista Sylvia Colombo, o jornal trouxe duas grandes resenhas de alta envergadura, de Roberto Schwarz, uma das maiores autoridades em Machado de Assis, autor de Ao vencedor as batatas, e de Eduardo Giannetti, autor de Felicidade.

Ambos avaliaram o livro de Chico Buarque como ótimo e fizeram longas análises dos tipos, da linguagem e dos cenários, que perpassam três séculos, da chegada da família real, em 1808, até 2007. Ambos enxergaram em Leite Derramado uma sintonia com a obra de Machado de Assis, citando o romance Dom Casmurro e o conto Teoria do Medalhão.

Rubem Fonseca, como primeiro leitor do livro, antes de ir para o prelo, detestou o título e sugeriu que Chico Buarque o trocasse, mas este não acatou a dica do mestre.

Chico Buarque já vendeu 540 mil exemplares de seus três primeiros romances: Estorvo (180 mil), Benjamin (85 mil) e Budapeste (275 mil), segundo Sylvia Colombo. Para o crítico literário Wilson Bueno, essa é uma literatura de engodo, que só é aceita pelo público por causa da grande popularidade do autor como cantor e compositor.

Embora Leite Derramado seja mesmo um título horroroso, isso é o de menos, principalmente quando seu desenvolvimento tem o aval de grandes leitores, como são Schwarz e Giannetti.

No site http://www.leitederramado.com.br/, você poderá ler um texto muito bom de Leyla Perrone-Moisés e o primeiro capítulo do romance, além de informações sobre o autor e suas outras publicações.

Leia trechos das críticas publicadas na Folha de S. Paulo:

Brincalhão, mas não ingênuo

Roberto Schwarz

‘Leite Derramado’ é um livro divertido, que se lê de um estirão. O título refere-se a um casamento estragado pelo ciúme e, indiretamente, ao curso das coisas no Brasil. Aos leitores mais atentos o romance sugere uma porção de perspectivas meio escondidas, que fazem dele uma obra ambiciosa. Os amigos de Machado de Assis notarão o paralelo com ‘Dom Casmurro’.

Entre as façanhas da narrativa está a figura de Matilde, uma garota incrivelmente desejável feita de quase nada. Quando ela entra no mar, daquele jeito dela, é ‘como se pulasse corda’. ‘Saía da igreja como quem saísse do cinema Pathé’ e circulava pela fila de pêsames ‘como se estivesse numa fila de sorveteria’. O ciúme que ela desperta no marido-narrador, Eulálio d'Assumpção (com "p", para não ser confundido com os meros Assunção), é o pivô do livro e dá margem a sequências e análises memoráveis.

Note-se, para contrabalançar a impressão de encantamento juvenil, que o narrador é um homem de cem anos, internado à força num hospital infecto. Entre gritos, vizinhos entubados e baratas andando na parede ele recorda -a 80 anos de distância- o breve casamento em que foi feliz e traído (em sua opinião). De tempos em tempos a boa lembrança ainda é capaz de transformar o macróbio acamado em ‘maior homem do mundo’, metáfora que é uma indecência alegre. Por sua vez, o feitiço irreverente de Matilde, entre modernista e patriarcal, também foge ao decoro: a esposa perturbadora não tem ginásio completo, é mãe aos 16 anos e assobia para chamar os garçons, além de ser aluna-problema do Sacré Coeur e congregada mariana.
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A vida desde o fim

Eduardo Giannetti

Farsa e profundidade. ‘Leite Derramado’ é o relato em primeira pessoa de um duplo malogro: a decadência da família Assumpção, egressa do patronato político brasileiro, e o colapso de um casamento carioca, provocado pelo misterioso sumiço da jovem esposa do narrador.

Obra de alta carpintaria literária, o quarto romance de Chico Buarque impressiona mais pela beleza e astúcia de peças isoladas -soluções felizes de linguagem espalhadas como dádivas pelo texto- do que pelo efeito conjunto do quebra-cabeça que ele nos instiga a montar. A leitura encanta e arrebata, mas o todo é menor que a soma das partes. O romance se desmancha em sopro assim que termina.

Eulálio Montenegro d'Assumpção, o narrador, tem mais de cem anos, está à beira da morte e conta sua história, entremeada de delírios, incongruências e devaneios, a partir de um leito de hospital. Ele é um elo - frágil ponto de inflexão - numa vasta linhagem de Eulálios que medrou no Brasil desde a vinda da corte portuguesa.

sexta-feira, 27 de março de 2009

VARANDAS DA EVA: conto de A cidade ilhada, de Milton Hatoum


Publicado nesta sexta-feira pelo portal UOL, na seção Entretenimento, o conto de Milton Hatoum, retirado do livro A cidade ilhada, nos arrebata com uma história simples e ligeira. É sobre a aventura de quatro amigos que se preparam para ir a um bordel. Um deles é muito pobre e desconfiado, misterioso, ninguém sabe onde mora, mas é aceito no grupo. O desfecho é a corrosão de sempre. A memória está no centro da trama, como sempre.

Para ler a resenha escrita por Marta Barbosa, clique aqui.


Varandas da Eva


"Varandas da Eva: o nome do lugar.

Não era longe do porto, mas naquela época a noção de distância era outra. O tempo era mais longo, demorado, ninguém falava em desperdiçar horas ou minutos. Desprezávamos a velhice, ou a ideia de envelhecer; vivíamos perdidos no tempo, as tardes nos sufocavam, lentas: tardes paradas no mormaço. Já conhecíamos a noite: festas no Fast Clube e no antigo Barés, bailes a bordo dos navios da Booth Line, serenatas para a namorada de um inimigo e brigas na madrugada, lá na calçada do bar do Sujo, na praça da Saudade. Às vezes entrávamos pelos fundos do teatro Amazonas e espiávamos atores e cantores nos camarins, exibindo-se nervosamente diante do espelho, antes da primeira cena. Mas aquele lugar, Varandas da Eva, ainda era um mistério.

Ranulfo, tio Ran, o conhecia.

É um balneário lindo, e cheio de moças lindas, dizia ele. Mas vocês precisam crescer um pouquinho, as mulheres não gostam de fedelhos. Invejávamos tio Ran, que até se enjoara de tantas noites dormidas no Varandas. A vida, para ele, dava outros sinais, descaía para outros caminhos. Enfastiado, sem graça, o queixo erguido, ele mal sorria, e lá do alto nos olhava, repetindo: Cresçam mais um pouco, cambada de fedelhos. Aí levo todos vocês ao balneário.

Minotauro, fortaço e afoito, quis ir antes. Foi barrado no portão alto, cuspiu na terra, deu meia-volta, quase marchando para trás. Era um destemido, o corpo grandalhão, e um jeito de encarar os outros com olho quente, de meter medo e intimidar. Mas a voz ainda hesitava: era aguda e grossa, de periquito rouco, e o rosto de moleque, assombrado, meio leso.

Gerinélson era mais paciente, rapaz melindroso, sabia esperar. Já namorava de dar beijos gulosos e acochos, e nos surpreendia em pleno domingo guiando uma lambreta velha, roubada do irmão. Na garupa, uma moça desconhecida, de outro bairro. Ou estrangeira. A máquina passava perto da gente, devagar, roncando, rodeando o tronco de uma árvore. Depois acelerava, sumindo na fumaceira. Ele sempre gostou de desaparecer, extraviar-se. Gerinélson era e não era da nossa turma. Eu o considerava um dos nossos. Ele, não sei. Tinha uns segredos bem guardados, era cheio de reticências: não se mostrava, o rapaz.

O Tarso era o mais triste e envergonhado: nunca disse onde morava. Desconfiávamos que o teto dele era um dos barracos perto do igarapé de Manaus; um dia se meteu por ali e sumiu. Raro sair com a gente para um arrasta-pé. Ele recusava: Com esses sapatos velhos, não dá, mano. Um cineminha, sim: duas moedas de cada um, e pagávamos o ingresso do Tarso. E lá íamos ao Éden, Guarany ou Polytheama. Depois da matinê, ele escapulia, não ficava para ver as meninas da Escola Normal, nem as endiabradas do Santa Dorothea. Tarso queria vender picolés e frutas na rua, queria ganhar um dinheirinho só para entrar no Varandas da Eva. Mas era caro, não ia dar. Então tio Ranulfo prometeu: Quando chegar a hora, pago pra todos vocês.

Tio Ran, homem de palavra, foi generoso: espichou dinheiro para a entrada e a bebida. Depois tirou um maço de cédulas da carteira. Disse: Isso é para as mulheres. E nada de molecagem. Cada um de vocês deve ser um gentleman com aquelas princesas.

Contamos as cédulas: dava e sobrava, era a nossa fortuna. Compramos na Casa Colombo um par de sapatos, e tia Mira costurou uma calça e uma camisa, tudo para o Tarso. Quando ele experimentou a roupa nova, parecia outro, ia chorar de alegria, mas Minotauro, maldoso, debochou: Deixa pra chorar depois da farra, rapaz. Quem fica feliz de roupinha nova é moça.

Eles ficaram cara a cara, os olhos com faíscas de rancor. Tia Mira se intrometeu, com súplicas de trégua e paz. Os dois olharam para minha tia, os rostos mais serenos, o pensamento talvez em outras searas.

Marcamos a noitada para uma sexta-feira de setembro. Gerinélson pegou o dinheiro, quis ir sozinho, de lambreta. Tio Ran nos levou em seu Dauphine, parou quase na porta, nos desejou boa noitada. Quando íamos entrar, Tarso hesitou: deu uns passos para a frente, recuou, quis e não quis entrar. Ficou mudo, mais e mais esquisito, fechou-se. Nós o desconhecemos: luz e dança não o atraíam? Minotauro puxou-o pela camisa, enganchou a mão no pescoço dele, repetindo: Bora lá, seu leso. Nosso amigo abaixou a cabeça, concordando, mas com um salto se desgarrou, e correu para a escuridão.

Tarso, um desmancha-prazer. Deixamos o nosso amigo. A vontade não é de cada um e em cada dia? Minotauro soltou um grunhido, resmungou: Não disse? Roupinha nova é mimo pra mocinha.

Entramos. Um caminho estreito e sinuoso conduzia ao Varandas da Eva. Aos poucos, uma sombra foi crescendo, e no fim do caminho uma luminosidade surgiu na floresta. Era uma construção redonda, de madeira e palha, desenho de oca indígena. Mesinhas na borda do círculo, um salão no meio, iluminado por lâmpadas vermelhas. Uns casais dançavam ali, a música era um bolero. Minotauro apontou uma mesinha vazia num canto mais escuro. Sentamos, pedimos cerveja, um cheiro de açucena vinha do mato. E Gerinélson, se extraviara? Na luz vermelha, quase noite, Minotauro me cutucou: uma mulher sorria para mim. Não vi mais o Minotauro, nem quis saber do Gerinélson. Só olhava para ela, que me atraía com sorrisos; depois ela me chamou com um aceno, girando o indicador, me convidando para dançar. Não era alta, mas tinha um corpo cheio e recortado, e um rostinho dos mais belos, com olhos acesos, cor de fogo, de gata maracajá. Dançamos três músicas, e dançamos mais outras, parados, apertadinhos, de corpo molhado. Ela percebeu minha ânsia, me apertou com gosto, e me levou, no ritmo lento da música, para fora do salão. Por outro caminho me conduziu a uma das casinhas vermelhas, avarandadas, na beira de um igarapé. Ficamos um tempo na varandinha, no namoro de beijos e pegações. Depois, lá dentro, ela fechou a porta, e deixou as janelas entreabertas. O som de um bolero morria na casinha avarandada.

Ela me ensinou a fazer tudo, todos os carinhos, sem pressa, com o saber de mulher que já amou e foi amada. Passamos a noite nessa festa, sem cochilo, e muitos risos, de só prazer. Fez coisas que davam ciúme, carícias que não se esquecem. Perguntei como ela se chamava. Ela disfarçou, e disse, rindo: Meu nome? Tu não vais saber, é proibido, pecado. Meu nome é só meu. Prometo.

A voz e a risada bastavam, minha curiosidade diminuía. Nome e sobrenome não são aparências?

Não quis me ver nem ser vista à luz do dia; quando as águas do igarapé ficaram mais escuras do que a noite, ela pediu que eu fosse embora. Obedeci, a contragosto. Saí no fim da madrugada, caminhando na trilha de folhas úmidas. Naquela manhã o sol teimou em aparecer no céu fechado.

Voltei ao Varandas no mesmo dia, a fim de revê-la; voltei muitas vezes, sempre sozinho, nunca mais a encontrei.

O Tarso disse que não entrou no Varandas porque teve medo.

Medo?

Ele sério, e calado.

Minotauro me contou sua farra, cheia de façanhas. A grande gandaia, noite e dia, ele disse com uma voz que não tremia mais, voz bem grossa, de cachorrão. O Gerinélson me olhou de soslaio, sorriu de fininho, desconversou. Ele não se mostrava mesmo. Gostava das coisas só para ele, guardando tudo na memória, dono sozinho de seus feitos e fracassos.

Nos meses seguintes, ainda tentei ver a mulher, pulava de um clube para outro, os lupanares de Manaus. Até hoje, sinto ânsia só de lembrar.

Tia Mira dizia que eu estava babado de amor. Estás tonto por uma mulher, ela ria, observando meu devaneio triste, meu olhar ao léu.

O Tarso não quis conversar sobre aquela noite. Foi o primeiro a se afastar da turma: teve de abandonar a escola, queria ser prático de motor, ou, quem sabe, capataz numa fazenda do Careiro.

Três anos depois, meus tios Mira e Ran mudaram de bairro; os encontros com meus amigos tornaram-se fortuitos, minha vida procurou outros rumos. O único que cruzou o meu caminho foi Minotauro; cruzou por acaso, quando eu saía do bar Mocambo e ele ia visitar um amigo no quartel da Polícia Militar. Estava fardado, era soldado S1 e se preparava para o exame de suboficial da Aeronáutica. Servia na base terrestre, de guerras na selva. Não queria voar.

Sou homem com pés no chão, ele foi logo dizendo. É emocionante a gente se perder na mata, os perigos me atraem, mano. A gente entra na floresta, escuta os ruídos da noite e a noite é escura que nem o dia. É um desafio. Toda a cambada tem que caminhar naquele ziguezague escuro, dormir sem saber onde está, matar os bichos e encontrar a saída para a sede do comando.

Falava com desembaraço, cheio de si, alisando com os dedos grossos a boina azul. O rosto continuava assombrado, quase feroz, e a risada saía que nem uivo. Ele havia topado com o Gerinélson:

O leso do Geri viajou para São Paulo. Quer ser doutor, médico de mulher. Quer se aproveitar delas, riu o Minotauro, tenebroso, mostrando dentes de cavalo. Tu nem sabes... O Geri sempre foi sonso, andou pelo Varandas antes da gente, sempre foi caído por mulheres de todas as idades.

Dei um risinho chocho, sem vontade. Minotauro já era meu ex-amigo? Está em outro mundo, nossos pensamentos não se encontram. Foi o que eu remoí naquele instante.

E o Tarso?

Mais pobre do que eu, ele disse. Deve estar caído por aí. Pobre pobre não se levanta, mano. Nem soldado o coitado do Tarso pode ser.

O Minotauro me tratou com carinho. Não sei se naquele dia eu tive pena ou raiva dele. Desprezo, talvez. Ele se despediu com um abraço forte, de estalar as costelas. Era socado, um monstro. Pôs a boina na cabeça e saiu andando, desengonçado, cumpridor de deveres.

Anos depois, num fim de tarde, eu acabara de sair de uma vara cível, e passava pela avenida Sete de Setembro. Divagava. E já não era jovem. A gente sente isso quando as complicações se somam, as respostas se esquivam das perguntas. Coisas ruins insinuavam-se, escondidas atrás da porta. As gandaias, os gozos de não ter fim, aquele arrojo dissipador, tudo vai se esvaindo. E a aspereza de cada ato da vida surge como um cacto, ou planta sem perfume. Alguém que olha para trás e toma um susto: a juventude passou.

Quando andava diante do Palácio do Governo, decidi descer a escadaria que termina próxima à margem do igarapé; parei no meio da escada e me distraí com a visão dos pássaros pousados nas plantas que flutuavam no rio cheio. Foi então que vi, numa canoa, um rosto conhecido. Era Tarso. Remou lentamente até a margem e saltou; depois tirou um cesto da canoa e pôs o fardo nas costas, a alça em volta da testa, como faz um índio. O corpo do meu amigo, curvado pelo peso, era o de um homem. Subiu uma escadinha de madeira, deixou o cesto na porta de uma palafita, voltou à margem e puxou a canoa até a areia enlameada. À porta apareceu uma mulher para apanhar o cesto. Reapareceu em seguida e acenou para Tarso. Num relance, ela ergueu a cabeça e me encontrou. Estremeci. Eu ia virar o rosto, mas não pude deixar de encará-la. Ela me atraía, e a lembrança surgiu agitada, confusa. A voz dela chamou: Meu filho! A mesma voz, meiga e firme, da moça, da mulher da casinha vermelha, no balneário Varandas da Eva. Era a mãe do meu amigo? Isso durou uns segundos. Por assombro, ou magia, o rosto dela era o mesmo, não envelhecera. Mal tive tempo de ver os braços e as pernas, a memória foi abrindo brechas, compondo o corpo inteiro daquela noite.

Tarso escondeu a canoa entre os pilares da palafita, e entrou pela escadinha dos fundos. A mulher já tinha sumido.

Permaneci ali mais um pouco, relembrando...

Nunca mais voltei àquele lugar.
"

Leia também:

NOVA BIOGRAFIA DE GARCÍA MÁRQUEZ


Quem for à livraria pedir uma biografia de García Márquez em inglês, receberá uma chuva de títulos. Mas em português, não será bem assim. Provavelmente só vai encontrar a primeira parte de sua autobiografia Viver para contar, que é ótimo, mas não sai do campo da verdade subjetiva, se é que isso existe (ou talvez toda verdade seja subjetiva).

Até mesmo a edição em português, lançada aqui em 2000, de Gabriel García Márquez: viagem à semente, do jornalista e crítico literário colombiano Dasso Saldivar, está esgotada. Em compensação, os americanos não se cansam de valorizar, meritoriamente, o velho Gabo. No ano passado, foi lançado mais um título sobre sua vida, Gabriel García Márquez: a Life, de Gerald Martin, que já tem reedição em 2009.

Especialista em literatura latino-americana, Martin discorda do próprio Márquez sobre a temática de seus livros. Enquanto o autor de O amor nos tempos do cólera diz que em toda sua obra o principal tema é a solidão (tendo inclusive intitulado seu discurso para o Prêmio Nobel de Literatura, de 1982, A solidão da América Latina) Martin diz que o tema recorrente da obra de Márquez é a maneira como os grandes sonhos do povo latino sempre acabam fracassados. Talvez dê no mesmo.

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quinta-feira, 26 de março de 2009

MARILENA CHAUI: a filósofa que escreve com a beleza da arte


Para Olavo de Carvalho, o mestre da erística (arte de vencer debates sem precisar ter razão), Marilena Chaui puxa a carroça carregada de burros e parvos do pensamento nacional. Mas ninguém dá muita bola para Carvalho.

Marilena Chaui, que foi capa da Cult do mês de março, é apresentada pelos jornalistas da revista como a filósofa mais importante do país. Para eles, “comprovando que também é possível romper com a elitização do ensino de filosofia sem abandonar o rigor que caracteriza a verdadeira atitude filosófica, seu livro Convite à filosofia tornou-se uma introdução surpreendente ao filosofar e referência praticamente obrigatória para o ensino médio.”

Ela é mesmo tudo isso. Meu encanto com Chaui começou quando li seu texto sobre o medo, publicado no livro Os sentidos da paixão, organizado pela Funarte em 1999. Nesse texto, ela escreve:

Temos medo do esquecimento e de jamais poder deslembrar. Da insônia e de não mais despertar. Do irreparável. Do inominável e do horror à perda do nome próprio, essa ‘doença mental’ que, um dia, Kierkegaard chamou de desespero humano.
(...)
Temos medo da fala do inimigo, mas muito mais, quão mais, do inesperado punhal a saltar na mão há pouco amiga para trespassar nosso aberto peito ou pelas costas nos aniquilar. É então, quem sabe, nesse ‘medo que esteriliza os abraços’ que descobrimos não termos medo disto ou daquilo, de algo ou de alguém, já nem mesmo medo de nossa própria sombra, somente medo do medonho. Susto, espanto, pavor. Angústia, medo metafísico sem objeto, tudo e nada lhe servindo para consumar-se até alçar-se ao ápice: medo do medo. Juntamente com o ódio, o medo, escreveu Espinosa, é a mais triste das paixões tristes, caminho de toda servidão. Quem o sentiu, sabe.

A revista Cult também traz um dossiê de Simone de Beauvoir, dizendo: “Ao trazer para a filosofia a figura do feminino, Simone de Beauvoir rompe com a neutralidade da tradição metafísica.”

MEDEIA: peça de Eurípedes será montada pelo Grupo Ethos



O Grupo Ethos Teatral vai estrear a peça Medeia, do dramaturgo grego Eurípedes, no dia 4 de abril, no Teatro Commune, situado na Rua da Consolação, 1218. O espetáculo ficará em cartaz até 31 de maio, com sessões aos sábados (21 horas) e domingos (19 horas).

Mas antes disso, neste final de semana, o Grupo vai participar da Fringe, mostra paralela do Festival de Teatro de Curitiba. Os dois leitores deste blog que moram em Curitiba, arrumem um tempinho e vão prestigiar a peça.

O espetáculo será realizado nos dias 27 (12 horas), 28 (15 horas) e 29 de março (18 horas), na Sala Londrina do Memorial de Curitiba, na Rua Claudino dos Santos, 79, no Largo da Ordem - Centro da capital. Ingresso: R$ 12,00 (inteira) / R$ 6,00 (meia).

Sinopse:

"Jasão, líder dos Argonautas, parte para Cólquida em busca do velocino de ouro, missão que lhe é imposta para que consiga retomar o trono de Iolco. Chegando ao seu destino, conhece Medeia, que se torna o principal instrumento em sua conquista. Embora filha do rei, ela usa seus poderes de feiticeira e ajuda Jasão a vencer todos os obstáculos impostos por seu pai. Vitoriosos, seguem para o reino da Tessália, cometendo uma série de atrocidades pelo caminho, e se casam. Alguns anos depois, Medeia é traída por seu marido, que a abandona com os dois filhos para se casar com a filha de Creonte, rei de Corinto. Injustiçada e furiosa, Medeia não poupará esforços para vingar-se de Jasão."


Serviço (São Paulo):

Título: Medeia
Autor: Eurípedes
Adaptação: Grupo Ethos Teatral
Direção: Lúcia de Lellis
Local: Teatro Commune
Horário: Sábado (21 horas) e Domingo (19 horas)
Endereço: Rua da Consolação, 1218 (entre a Universidade Mackenzie e o Tribunal Regional do Trabalho)
Preço: R$ 20,00 (inteira) e R$ 10,00 (meia)
Temporada: de 4 de abril a 31 de maio

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quarta-feira, 25 de março de 2009

A CERIMÔNIA DO ADEUS: um livro que ainda vale a pena ler

“A separação de Sartre era sempre um choro para mim.”
Simone de Beauvoir


Simone de Beauvoir e Sartre foram sem dúvida o casal mais bem-sucedido do universo intelectual do século XX. Colocando o Prêmio Nobel como parâmetro de sucesso e badalação, se fôssemos comparar algo parecido seria o que aconteceu no mundo das ciências com os Curie.

Os Curie foram o único casal que ganhou separadamente o Prêmio Nobel. Na verdade, Marie Curie e Pierre Curie ganharam juntos o Nobel de Física, em 1903. Depois Marie Curie foi laureada com o de Química, em 1911.

Sartre também ganhou o Nobel, o de Literatura, em 1964, mas não Beauvoir, embora o merecesse tanto quanto ele. Os dois se conheceram ainda jovens, e a afinidade intelectual, aliada ao apelo sexual, companheirismo, cumplicidade, o fizeram parceiros da vida toda.

Sartre morreu em 1980, aos 75 anos de idade. Talvez por saudade, por uma incompatibilidade de existência sem seu companheiro, Beauvoir, a quem Sartre chamava carinhosamente de Castor, faleceria seis anos depois, aos 78 anos.

Ela escreveu A cerimônia do adeus para homenagear Sartre. O livro tem duas partes. Na primeira, Beauvoir comenta os últimos dez anos de convívio com ele, de 1970 a 1980. Na segunda, publica de forma contínua uma série de entrevistas que fez com o autor de O ser e o nada, entre o verão e o outono de 1974.

Sartre conviveu com o que houve de mais ilustre no mundo das artes, da filosofia e da política em Paris, sendo ele mesmo um dos pensadores mais influentes de seu tempo. A dedicatória do livro de Beauvoir é para aqueles “que amaram Sartre, que o amam, que o amarão.”

O livro foi publicado em 1981, um ano após a morte do filósofo. Talvez hoje poucos o amem. Mas, o eterno retorno do mundo não nos garante nada. No mínimo, sua obra literária ainda vale uma leitura. E quem estuda filosofia, certamente não tem como pular o capítulo do existencialismo sartriano, por mais que o considerem datado.

De prêmios e livros

O que interessa em A cerimônia do adeus são as belas passagens da entrevista de Sartre, em que ele fala de Deus, de genialidade, de suas mil e uma amantes, seus amigos e inimigos, e, claro, da liberdade, de livros, viagens, cidades, política.

A entrevista com o filósofo e literato é uma conversa interessante até hoje, instigada pela inteligência e a profunda entrega de Beauvoir, que faz Sartre desenhar seu mundo e a maneira como ele o via, com toda sua carga de leitura e de vivência da ‘alta cultura’.

Coerente com suas ideias, recusou o Nobel que ganhou. É bom lembrar que valia cerca de 1 milhão de dólares. Segundo ele, o Prêmio consiste em classificar os escritores, hierarquizando a literatura.

Consiste em conferir um prêmio a cada ano. A que corresponde esse prêmio? Que significa um escritor que recebeu o prêmio em 1974, o que quer dizer isso em relação aos homens que o receberam antes ou em relação àqueles que não o receberam, mas que escrevem como ele, e que talvez sejam melhores?

A quem diga que Sartre falava isso tendo em mente a imagem de Albert Camus, seu amigo que depois tornaria inimigo, ganhador do Nobel de Literatura em 1957 (leia mais aqui).

Sobre livros, ele diz:

Desde minha juventude, e durante muito tempo, até 1950, considerei um livro como algo que proporciona uma verdade: o estilo, a maneira de escrever, as palavras, tudo isso era uma verdade, trazia-me algo. Não sabia o quê e não dizia a mim mesmo, mas pensava que isso me trazia algo. Os livros não eram apenas objetos, não só uma relação com o mundo, mas uma relação com a verdade, e uma relação dificilmente dizível mas que eu sentia. Então, quanto aos livros literários, era isso que esperava deles, essa relação com a verdade.

Sartre enclausurado

A cerimônia do adeus também vale pelo testemunho de uma mulher apaixonada, que via o amor como uma coisa burguesa e, por isso, teve de denominar e direcionar seus sentimentos de outro jeito. Mas era amor o que ela sentia. A recíproca talvez fosse verdadeira. Eles seguiam a máxima do existencialismo “se você me ama, não me ame”, com a pretensão de sempre deixar um ao outro livre.

Mas isso não impediu Beauvoir de abrir o prefácio do livro com as seguintes palavras:

Eis aqui meu primeiro livro – o único certamente – que você não leu antes que o imprimissem. Embora todo dedicado a você, ele já não lhe concerne.

Quando éramos jovens e, ao final de uma discussão apaixonada um de nós triunfava ostensivamente, dizia ao outro: ‘Você está enclausurado!’ Você está enclausurado; não sairá daí e eu não me juntarei a você: mesmo que me enterrem ao seu lado, de suas cinzas para meus restos não haverá nenhuma passagem.

Esse você que emprego é um engodo, um artifício retórico. Ninguém me ouve; não falo com ninguém.

Linguagem existencialista, é verdade, mas não deixa de ser uma declaração de amor.

Trechos:

De Deus

Meu ateísmo passou de idealista a um ateísmo materialista. O ateísmo idealista é difícil de explicar. Mas quando dizia: Deus não existe – era como se me tivesse desfeito de uma ideia que estava no mundo, e tivesse colocado em seu lugar um nada espiritual, uma determinada ideia frustrada, no marco de todas as minhas ideias.

O ateísmo idealista é ausência de uma ideia, uma ideia de Deus. O ateísmo materialista é o universo visto sem Deus, e isso, evidentemente, é de fôlego muito longo, o passar desta ausência de uma ideia a esta nova concepção do ser; do ser que é deixado nas coisas e que não é eliminado das coisas numa consciência divina que as contemplaria e as faria existir.

Penso que houve um tempo em que era normal crer em Deus, no século XVII, por exemplo. Atualmente, considerando a maneira pela qual vivemos, o modo pelo qual tomamos consciência de nossa consciência e pelo qual percebemos que Deus nos escapa, não há intuição do divino. Penso que neste momento a noção de Deus é uma noção anacrônica já, e sempre senti algo de caduco, de ultrapassado nas pessoas que me falaram de Deus acreditando nisso.

Não tenho necessidade de Deus para amar meu próximo.

Do reconhecimento de sua obra

Jean-Paul Sartre: Considero que a maioria das pessoas que nos cercam ainda são muito sensíveis a uma Legião de Honra, a um Prêmio Nobel, a coisas que tais, quando, em realidade, tudo isso não corresponde a nada. Isso só corresponde a uma distinção dada na hierarquia a um ser que somos, mas que corresponde sem compreender bem por quê.

Simone de Beauvoir: Há, no entanto, reconhecimentos que você aceita. Você não aceita o reconhecimento por certos homens, do valor, digamos de sua obra filosófica, de maneira que lhe deem um Prêmio Nobel, mas aceita o reconhecimento, e até o deseja, da parte dos leitores, da parte do público.

J-PS: Sim, é minha função. Escrevo, portanto desejo que o público para quem escrevo considere boas as coisas que escrevo. Não que pense que sejam sempre boas, longe disso, mas quando por acaso elas podem ser boas, desejo que sejam imediatamente estimadas como tais por meu leitor.

segunda-feira, 23 de março de 2009

NÃO COMPREENDO PORQUE NÃO ATINO COM A CAUSA

Recentemente me desfiz de um livrinho intrigante, desses de esoterismo. O título já diz tudo sobre seu conteúdo: Ufos, ilusão ou realidade? Adquiri o livro em minha época de adolescência, que está ficando cada vez mais distante, e o que eu queria com aquilo era saber mais sobre essa questão tão surreal, tão presente e olhada sempre de soslaio pelos homens que se acham comprometidos com o pensamento racional.

Li o livro várias vezes. Os objetos de discussão são fatos históricos que poderiam ser frutos da ação extraterrestre, e neste ponto, os argumentos são divertidos. Um exemplo é a suspeita de que as pirâmides do Egito possam ter sido construídas pelos ETs.

Outro exemplo é o de que os sulcos, como se fossem arados, que foram feitos nas terras do Peru muito antes de Pizarro dizimar os incas, e que formam imagens só vistas do alto, de um avião ou algo que levanta voo, também seriam obra de ETs.

Li tudo isso, mas a única coisa que me chamou a atenção e que, isso, sim, é um ótimo instrumento de retórica, foi uma frase de Guy de Maupassant, autor que, aliás, fiquei conhecendo ali, e só mais tarde viria a lê-lo. A frase é a seguinte:

“Como é fraca a nossa mente. Como é pronta a perturbar-se e inquietar-se sempre que, de repente, se defronta com o menor fato explicável. Em vez de dizer ‘não compreendo porque não atino com a causa', o homem logo imagina espantosos mistérios e poderes sobrenaturais.”

Se eu não tivesse lido Ufos, ilusão ou realidade?, não teria alcançado esta lápide memorável. Fico devendo à minha pequena curiosidade essa inestimável contribuição ao meu espírito. Somos quase todos tão previsíveis!

quinta-feira, 19 de março de 2009

TRÊS POEMAS PARA UM MOMENTO DE TRISTEZA

Renúncia

Chora de manso e no íntimo ... Procura
Curtir sem queixa o mal que te crucia:
O mundo é sem piedade e até riria
Da tua inconsolável amargura.

Só a dor enobrece e é grande e é pura.
Aprende a amá-la que a amarás um dia.
Então ela será tua alegria,
E será, ela só, tua ventura ...

A vida é vã como a sombra que passa ...
Sofre sereno e dalma sobranceira,
Sem um grito sequer, tua desgraça.

Encerra em ti tua tristeza inteira.
E pede humildemente a Deus que a faça
Tua doce e constante companheira ...


(Manuel Bandeira)


Memento mori I

Nenhum sinal da solidão se vê
lá onde o Amor corrói a carne a fundo.
Dentro da pele, no entanto, você
é só você contra o mundo.

Esta felicidade que abastece
seu organismo, feito um combustível,
é volátil. Tudo que sobe desce.
Tudo que dói é possível


(Paulo Henriques Britto)


O casaco

Um homem estava anoitecido.
Se sentia por dentro um trapo social.
Igual se, por fora, usasse um casaco rasgado
e sujo.
Tentou sair da angústia
Isto ser:
Ele queria jogar o casaco rasgado e sujo no
lixo.
Ele queria amanhecer.

(Manoel de Barros)

terça-feira, 17 de março de 2009

RUY CASTRO: o design do humor inteligente

“Ler é a segunda melhor coisa do mundo. A primeira é escrever. A que você está pensando é horsconcours”
Ruy Castro



Os leitores brasileiros estão acostumados à literatura de Ruy Castro. Muitos já leram pelo menos um livro dele, em cuja bibliografia o que não falta é variedade de temas: biografias, romances, ensaios, humor, além de traduções, como a do Livro dos Insultos, de H. L. Mencken.

O gênero biografia fala mais alto em sua obra por causa de dois nomes que despertam em demasia o interesse do leitor: Garrincha e Nelson Rodrigues. Mais tarde, aos dois biografados se juntaria Carmen Miranda, outro ícone da cultura brasileira.

Eis que agora o próprio Ruy Castro tem sua vida exposta em livro, com um vasto acervo de fotografias, retratando-o desde ainda garotinho ao marmanjo de hoje, escritor premiado e best-seller.

O livro em questão foi publicado em 2008 pela Memorial, como parte do projeto Álbum de retratos, com o patrocínio da Petrobras (verba captada pela Lei Rouanet). A coleção já trouxe à luz o perfil de nomes como Cacá Diegues, Dona Ivone Lara e Jards Macalé.

Cada um desses perfis traz texto também de um escritor renomado. No caso de Ruy Castro, o livro foi organizado por sua mulher, a escritora carioca Heloisa Seixas, que tem conhecimento suficiente do retratado.

Alguém pode contestar a importância de Castro a ponto de se despender dinheiro público para a publicação de um livro assim, mesmo que o mote publicitário diga que o preço está abaixo dos valores do mercado.

O fato é que não costumamos nunca valorizar nada, a menos que venha de fora. Aposto que daqui a cem anos, provavelmente só teremos esse registro do homem que pesquisou e escreveu ótimas biografias de grandes personalidades de nossa cultura. O mesmo vale para a memória de Dona Ivone Lara e outros.

Ruy no embate verbal

O interessante do livro, além das fotos, é o desenho da personalidade forte de Ruy Castro. Quem o acompanha na imprensa, por meio de seus textos e entrevistas, sabe disso.

No programa Roda Viva, da TV Cultura, por exemplo, em 2006, por ocasião do lançamento de Carmen – uma biografia, Paulo Markun perguntou por que ele suavizara a vida sexual de Carmen Miranda. Castro respondeu que ou Markun não havia lido o livro todo ou fizera leitura dinâmica.

No programa Letra Livre, também da TV Cultura, em que dividia o palco com Paulo Lins, num debate mediado por Manoel da Costa Pinto, Castro comentou o caso da censura da biografia de Roberto Carlos, escrita por Paulo César de Araújo (Roberto Carlos em detalhes). A censura fora feita pela justiça, a pedido do próprio biografado.

Segundo Castro, não daria outra. Ele sabia que isso ia acontecer. Comenta que a alegação dos advogados do cantor foi a de que um dia o próprio Roberto Carlos escreveria sua biografia, e então atira: “Escrever o quê? Ele não escreve nada, não sabe escrever, não sabe nem ler.”

Grosserias a parte, esse comportamento demonstra bem quem é Ruy Castro no embate verbal. Ele diz o que quer. Não faz concessões por pouca coisa. Em seu Álbum de retratos, é descrito como um sujeito com grande senso de humor e que nunca sai do sério.

“Ruy é uma das pessoas mais bem-humoradas que já conheci. É quase impossível tirá-lo do sério. Nem fila de banco, nem engarrafamento, nem aniversário de criança, nada o deixa irritado. Talvez rock tocado alto ou festa funk, mas mesmo assim tenho minhas dúvidas”, diz Heloisa.

Coincidência ou não, o primeiro livro de Ruy Castro se intitula O melhor do mau humor, em que compila frases de diversas personalidades do mundo da arte e da literatura. Mais tarde o livro teria nova edição sob o título Mau humor.

Primeiros passos


O meino Ruy Castro com a máquina que aprendeu a manusear aos seis anos

Carioca enviesado, Ruy Castro nasceu em 1948, em Caratinga, interior de Minas Gerais. Seus pais, mineiros, moravam no Rio de Janeiro, mas em 1947 haviam se mudado para a cidadezinha, retornando à capital fluminense na década de 60.

Aprendeu a datilografar aos seis anos e aos dez já tinha certeza que queria ser jornalista, profissão que seguiu, mesmo tendo estudado Ciências Sociais, na UFRJ.

Seu primeiro emprego foi no Correio da Manhã, em 1967, passando mais tarde pelos principais jornais e revistas do país, como Jornal do Brasil, Manchete e Playboy. “Já trabalhei em praticamente todos os meios de comunicação, exceto, talvez, bula de remédio”, diz.

Hoje, além da atividade de escritor, tem um espaço na segunda página da Folha de S. Paulo, revezando com Carlos Heitor Cony e outros.

Autodescrição

O restante da história pode ser resumida em sua autodescrição:

“Um dia me perguntaram o que era preciso para o sujeito ser um bom biógrafo. Respondi que, para isso, ele deveria também ser uma pessoa biografável – ou seja, ter sido alguém que passou por muitas experiências humanas, e não ficou a vida inteira trancado numa sala e enfiado atrás de um livro. No meu caso, vivi profundamente a rua, no sentido mais amplo da expressão: namorei pra burro, bebi todas (parei em 1988), levei borrachada da polícia nas passeatas (quando estudante), fui preso, enfrentei maridos ciumentos (um deles me obrigou a entrar no carro e ameaçou me matar), pulei muro de estádio (aos 36 anos!) para ver o Flamengo jogar, tive mais de 10 empregos, conheci todos os grandes jornalistas ou escritores brasileiros de 1950 para cá, morei na Europa, assisti a duas revoluções, amei e fui amado, traí e fui traído, sofri e fiz sofrer, tive uma doença grave e, antes que isto vire letra de tango ou de samba-canção, só resta dizer que estou no terceiro e último casamento, tenho duas filhas, dois netos [hoje três], dois gatos, publiquei uma quantidade de livros e já ganhei quase todos os prêmios literários. Mas as coisas de que realmente me orgulho são ter sido reconhecido pelo rei Momo num Carnaval no Rio e ver meu nome citado num coquetel de palavras cruzadas. Se alguém quiser escrever minha biografia, será problema dele. Mas só por cima do meu cadáver.”

Frases

“O único animal que faz sexo por prazer é o homem. E algumas mulheres”

“Não torço pela Seleção, torço pelo Flamengo”

“A segunda cidade mais linda do mundo é o Rio com chuva”

“O apogeu na vida de um homem é entre o primeiro e o segundo casamento”

“Mulher é um bicho que acredita em horóscopo, gosta de vinho branco e sente frio nos pés”

Fotos

Os jornalistas João Luiz de Albuquerque, Carlos Heitor Cony, Janio de Freitas, Sérgio Augusto, Ruy Castro e João Máximo, na mesa redonda do restaurante Arlequino, em Ipanema, numa reunião chamada pelos participantes de “Jantar dos canalhas”.



Castro e Nelson Rodrigues, que seria seu biogrofado em O anjo pornográfico

Ruy rindo

“Dizem por aí – jamais consegui apurar isso direito – que o personagem Fradinho, do Henfil, com aquele sorrizão enorme e aquela crueldade ímpar, foi inspirado em Ruy Castro. Verdade ou mentira, a semelhança é inegável.” Heloisa Seixas.

Trecho:

Ruy Castro e Heloisa Seixas

“Ruy não tem muita intimidade com a vida prática. O mesmo sujeito que desfia fichas técnicas inteiras de filmes poloneses de quarenta anos atrás, incluindo contra-regras e maquiador, ou fala com propriedade sobre a poesia russa, é capaz dos comentários mais absurdos.

Certa vez, estávamos na praia em Fortaleza (num intervalo entre duas palestras de uma feira de livros) quando chegou à areia um camarada que tinha uma perna mecânica. A perna era dessas modernas, muito bem feitas, com um pezinho todo torneado, imitando um pé de verdade. Eu cutuquei Ruy e mostrei: ‘Olha lá. A perna daquele homem é mecânica’. E Ruy, com o ar mais cândido: ‘E o pé? Também?’

Pois é. Eu, que sou vizinha do Millôr (temos nossos estúdios de trabalho no mesmo prédio da Gomes Carneiro, em Ipanema), outro dia ouvi dele a seguinte pergunta no elevador: ‘E aí? A vida ao lado de Ruy Castro é uma eterna festa?’ Não sei se ele estava me gozando (muito provavelmente estava), mas a verdade é que a resposta é: Sim.”

sábado, 14 de março de 2009

EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO: Proust e a floresta estética

“Os esnobes gostam de salientar que, se Proust fosse mais bem-educado e não costumasse molhar o bolinho no chá, a literatura do mundo seria mais pobre.”
Edmund White



O novelo vai se destrinchando, ao mesmo tempo tirando o fôlego do leitor e causando-lhe embriaguez. Ao darmos o primeiro passo em direção à mata, estamos mergulhando numa experiência única da literatura. Não é à toa que dois volumes têm títulos que levam a palavra caminho: No caminho de Swan e o Caminho de Guermantes.

Uma floresta densa, essa do texto de Marcel Proust, cujo caminho deve ser marcado com alguma coisa, uma picada, uma série de objetos imaginários distribuídos ao longo do caminho, como se nós leitores fôssemos João e Maria, e ainda assim, dela não se consegue sair como entrou, e se entrar, de novo haverá nova mudança de olhar, transformação ad infinito, conforme depõe o bibliófilo José Mindlin, em seu livro Uma vida entre livros: reencontros com o tempo (Edusp/Companhia das letras).

“Comecei a ler o Em busca do tempo perdido quando tinha vinte e poucos anos, achando difícil, e estando em dúvida se iria continuar ou não, quando uma noite encontrei Tristão de Athayde (Alceu Amoroso Lima) em casa de Luiz Camilo de Oliveira Neto – um de meus maiores amigos – e Proust surgiu na conversa.

Não sei se por rompante da mocidade ou por querer ser espirituoso (o que em geral não dá certo), fiz um comentário meio bobo, dizendo que ‘Proust descrevia o sono tão bem que a gente adormecia’.

‘Você está muito enganado rapaz’, disse-me o Dr. Alceu. ‘Leia com todo o esforço que seja necessário as primeiras cinquenta páginas. Se nessa altura, você não sentir que entrou no universo de Proust, leia, também, com todo o esforço, mais cinquenta, que aí você não vai largar mais.’

Segui o conselho, e fiquei devendo àquele grande crítico um serviço inestimável, pois o que ele disse aconteceu. Ao todo, li a Recherche cinco vezes, com intervalos de mais ou menos dez anos, e cada leitura foi diferente, mas todas me deram muito prazer.”


O início do labirinto

Muitos leitores apontam o início de Em busca do tempo perdido como a grande barreira da narração de Proust. O próprio Mindlin foi salvo pelo peso da opinião de Alceu Amoroso Lima.

Em compensação, muitos outros leitores não veem essa barreira. Eu, pessoalmente, não creio que seja menos penoso do que todo o resto do romance, tampouco menos brilhante. Assim começa o primeiro parágrafo:

“Durante muito tempo, costumava deitar-me cedo. Às vezes, mal apagava a vela, meus olhos se fechavam tão depressa que eu nem tinha tempo de pensar: ‘Adormeço’. E, meia hora depois, despertava-me a ideia de que já era tempo de procurar dormir; queria largar o volume que imaginava ter ainda nas mãos e soprar a vela; durante o sono, não havia cessado de refletir sobre o que acabara de ler, mas essas reflexões tinham assumido uma feição um tanto particular; parecia-me que eu era o assunto de que tratava o livro: uma igreja, um quarteto, a rivalidade entre Francisco I e Carlos V. Essa crença sobrevivia alguns segundos ao despertar; não chocava minha razão, mas pairava-me como um véu sobre os olhos, impedindo-os de ver que a luz já não estava acesa. Depois começava a parecer-me ininteligível, como, após a metempsicose, os pensamentos de uma existência anterior; o tema da obra destacava-se de mim, ficando eu livre para adaptar-me ou não a ele; em seguida recuperava a vista, atônito de encontrar em derredor uma obscuridade, suave e repousante para os olhos, mas talvez ainda mais para o espírito, ao qual se apresentava como algo sem causa, incompreensível, algo de verdadeiramente obscuro. Indagava comigo que horas seriam; ouvia o silvo dos trens que, ora mais, ora menos afastado, e marcando as distâncias como o canto de um pássaro em uma floresta, descrevia-me a extensão do campo deserto, onde o viajante se apressa em direção à parada próxima: o caminho que ele segue vai ficar gravado na lembrança com a excitação produzida pelos lugares novos, os atos inabituais, pela recente conversa e as despedidas trocadas à luz de lâmpada estranha que ainda o acompanham no silêncio da noite, e pela doçura próxima do regresso.” (Globo, Tradução de Mário Quintana)

Haverá poucos parágrafos menores, e as frases não serão menos centopéicas. O leitor precisa se agarrar nas sinuosidades do texto para não sucumbir na tempestade que troa dentro da selva labiríntica do livro.

A experiência

Pela editora Globo, Em busca do tempo perdido foi publicado em sete volumes: No caminho de Swan; À sombra das raparigas em flor; O caminho de Guermantes; Sodoma e Gomorra; A Prisioneira; A Fugitiva; e O tempo redescoberto.

De vez em quando mergulho ao léu nesse mar de palavras e encontro sempre tesouros inestimáveis de linguagem, frases tão bem torneadas que queremos fixá-las na memória para repeti-las, fazer delas mantra. Mas são tantas e tão polissêmicas, ecoam tão profundamente que o melhor a fazer é calá-las no espírito e trabalhá-las em nossa alma silenciosamente.

Quem lê Em busca do tempo perdido não perde tempo. O mínimo que se ganha é uma aula bem dada de história da pintura, de história da literatura, lições de estética, de como escrever com forma e conteúdo.

Mais ainda, Proust nos envolve nos mais delicados questionamentos éticos e suscita em nós o sentimento da paixão, da amizade, do ciúme, do preconceito, verdades e mentiras com as quais construímos nossa base moral. Só depois vem o lugar da crítica social, em que o autor denuncia o vazio da burguesia e da aristocracia francesas.

Trechos:

“O carro da sra. de Villeparisis ia depressa. Mal me dava tempo para ver a menina que vinha em nossa direção; e, contudo, como a beleza das criaturas humanas não é igual à das coisas, e sentimos muito bem que pertence a uma criatura única, consciente e de livre vontade, enquanto a sua individualidade, alma vaga, vontade desconhecida, se pintava em imagem prodigiosamente reduzida, mas completa, no fundo de seu distraído olhar, imediatamente – misteriosa réplica do pólen preparado para o pistilo – sentia em mim o embrião vago, minúsculo também, do desejo de não deixar passar aquela menina sem que seu pensamento tivesse consciência da minha pessoa, sem impedir que seus desejos se dirigissem a outro homem, sem que eu entrasse nessas ilusões e me assenhoreasse de seu coração. Enquanto isto, o carro afastava-se, a rapariga ficava para trás, e como carecia a meu respeito de quaisquer das noções que constituem uma pessoa, os seus olhos, que mal me tinham visto, já me haviam esquecido.” (À sombra das raparigas em flor; Globo; Tradução de Mário Quintana)


“Se e pudesse descer do carro e falar com a moça que passava, talvez me houvesse desiludido qualquer imperfeição de sua pele, que não se poderia ver do carro. (E então, de súbito, todo esforço para penetrar na sua vida me pareceria impossível. Pois a beleza não é senão uma série de hipóteses, e a fealdade a reduz, postando-se naquele caminho que já vimos entreabrir-se para o desconhecido.) Talvez uma só palavra sua, um sorriso, me tivessem dado uma chave ou código inesperado para compreender a expressão de seu rosto ou de seu porte, que imediatamente já me pareceriam banais.” (À sombra das raparigas em flor; Globo; Tradução de Mário Quintana)


“Em Paris, alguns anos depois da minha primeira viagem a Balbec, ia eu de carro com um amigo de meu pai quando vi uma mulher andando muito depressa na escuridão da noite; ocorreu-me que seria tolice perder por uma questão de cortesia a minha parte de felicidade na única vida que sem dúvida existe; desci sem desculpa alguma e lancei-me em busca da desconhecida; perdi-a num cruzamento de ruas, dei com ela no seguinte, e afinal, sem fôlego, me vi cara a cara com a velha sra. Verdurin, da qual eu sempre fugia, e que me disse, muito contente e admirada: ‘Que amabilidade a sua, correr para vir cumprimentar-me!’” (À sombra das raparigas em flor; Globo; Tradução de Mário Quintana)


“É espantoso como o ciúme, que passa o tempo engendrando pequenas suposições falsas, tem pouca imaginação quando se trata de descobrir a verdade.” (A Fugitiva; Globo; Tradução de Carlos Drummond de Andrade)


“Para figurar numa situação desconhecida, a imaginação pede elementos conhecidos, e por isso não a figura, mas a sensibilidade, ainda a mais física, recebe, como o traço do raio, a assinatura original, e por muito tempo indelével, do acontecimento novo.” (A Fugitiva; Globo; Tradução de Carlos Drummond de Andrade)



“Deixemos as mulheres bonitas aos homens sem imaginação.” (A Fugitiva; Globo; Tradução de Carlos Drummond de Andrade)

quinta-feira, 12 de março de 2009

DESCOBERTOS DOIS NOVOS LIVROS DE ROBERTO BOLAÑO

A Folha de S. Paulo desta quinta-feira (12/03) deu a seguinte nota:

"Dois novos romances do escritor chileno Roberto Bolaño, morto em 2003, foram encontrados na Espanha, onde ele morou, entre papéis deixados após sua morte e só agora verificados, segundo o jornal espanhol "La Vanguardia". Os manuscritos foram titulados como "Diorama" e "Os Problemas do Verdadeiro Oficial de Polícia". De acordo com o jornal, os documentos incluem o que pode ser a sexta parte do épico "2666". A agência literária que cuida do espólio de Roberto Bolaño não quis se pronunciar."

Leia também:

terça-feira, 10 de março de 2009

POR TEU AMOR ME DÓI O AR, O CORAÇÃO E O CHAPÉU

María Luisa aos 15 anos: que trabalho custou a Lorca!

Essa bela moça, de olhar que escrutina algo a sua frente, chegando a trespassar o objeto mirado, foi o grande amor impossível da adolescência do poeta espanhol Federico Garcia Lorca. Ela se chamava María Luisa Natera e tinha 15 anos na época, e ele 18.

Embora fosse homossexual, havia mulheres na vida amorosa de Lorca, mas a história desse amor, especificamente, era desconhecida até agora. E quem a desvela é o espanista Ian Gibson, que acaba de lançar na Espanha uma nova biografia do poeta, Lorca y el mundo gay.

Talvez o que chama a atenção para esse fato sejam os inúmeros poemas de amor de Lorca que, certamente, não eram direcionados a homens. Muitos desses poemas foram escritos na juventude.

Entre eles há um que José Paulo Paes traduziu como poema infantil e está no livro, publicado pela Editora Ática, Os encontros de um caracol aventureiro e outros poemas.

Es verdad

"!Ay, qué trabajo me cuesta
quererte como te quiero!
Por tu amor me duele el aire,
el corazón
y el sombrero.

¿Quién me compraria a mi
este cintillo que tengo
y esta tristeza de hilo
blanco, para hacer pañuelos?

!Ay, qué trabajo me cuesta
quererte como te quiero!"


Não tenho o livro de Paes. Fico, portanto, devendo a tradução.

O texto dessa notícia está publicado no site de cultura do jornal espanhol El País. Leia.

Trecho:

"Com o tempo, o preto-e-branco das fotografias só deixa entrever a sombra de uma luz. A magnitude atraente no olhar um tanto esquivo. Mas essas imagens dão crédito a um verdadeiro mistério que hoje pode ser esclarecido. Aqueles olhos que Federico García Lorca não queria contemplar ('... pero que sin mirarlos dan la muerte / con el puñal azul de su recuerdo', conforme escreveu em Madrigal triste de ojos azules) não respondem a um mero tema poético, como muitos críticos pensavam. Têm nome e dona.”

segunda-feira, 9 de março de 2009

VARGAS LLOSA ESCREVE SOBRE JUAN CARLOS ONETTI

Onetti: talento narrativo, universo fantasioso e sentimento de fracasso

No ano do centenário de seu nascimento, o uruguaio Juan Carlos Onetti, falecido em 1994, é lembrado por um dos mais célebres escritores da América Latina, Mário Vargas Llosa.

Notável pelos romances, como A cidade e os cachorros, Pantaleão e as visitadoras e, mais recentemente, Travessuras da menina má, Llosa também é reconhecido pelos seus ensaios, entre os quais está A orgia perpétua, em que analisa Madame Bovary, de Gustave Flaubert.

Agora em 2009, Llosa acaba de lançar El viaje a la ficción [A Viagem à Ficção] (inédito no Brasil), traçando um panorama elogioso da obra de Onetti. Segundo o autor peruano, em entrevista publicada no caderno Mais!, da Folha de S. Paulo (8 de março), Onetti foi um contista extraordinário e “um homem muito inteligente e muito culto.”

Onetti nasceu em Montevidéu, em 1909. Aprendeu o ofício de jornalista em Buenos Aires, onde morou dos 22 aos 30 anos. De volta à terra natal, publicou seu primeiro livro, O poço (que em junho será lançado aqui pela Editora Planeta). Seus livros mais reconhecidos pela crítica são os romances O estaleiro e Deixemos falar o vento.

Tinha uma vida conturbada, que o levou a se afastar do convívio social, escrevendo seus livros com um olho na pena e outro nas relações humanas, de espreita e com muita argúcia. Por razões políticas, em 1975, mudou-se para a Espanha, onde morou até sua morte.

Segundo Llosa, o que mais o impressiona no escritor uruguaio é sua técnica narrativa: “Creio que ele é um dos primeiros, senão o primeiro escritor na língua espanhola a fazer uma literatura completamente moderna”, diz.

Outra coisa impressionante em Onetti, é seu mundo pessoal. “É um mundo de grande autenticidade, evidentemente direcionado ao pessimismo, a uma visão muito negativa da condição humana”, diz Llosa.

De acordo com o escritor argentino César Aira, os três elementos básicos da obra de Onetti são o talento narrativo, o universo fantasioso e o sentimento de fracasso. Llosa vai mais longe e diz: “Seu mundo é um mundo que nos entristece, nos desmoraliza.”

Como a literatura não é armada para servir de bonbonnière, vale a pena ler Onetti. Alguns de seus títulos foram publicados no Brasil e estão disponíveis nas livrarias: 47 Contos de Juan Carlos Onetti, O estaleiro e Junta-Cadáveres.

Também podem ser encontradas nos sebos as edições esgotadas de Tão triste como ela e Deixemos falar o vento.

Até comprarmos seus livros ou pegá-los emprestados em alguma boa biblioteca e vermos o que o uruguaio tem a nos dizer sobre essa condição humana, fiquemos com um trecho da entrevista de Llosa.

Trecho:

PERGUNTA - Existem teorias feministas sobre a visão que Onetti tem da mulher.

VARGAS LLOSA - Imagino que as feministas não devam estar muito contentes com Onetti.

PERGUNTA - Elas criticam sobretudo essa visão coisificada da mulher. E a sua teoria, qual é?

VARGAS LLOSA - Seu mundo é um mundo machista, claro, mas onde os homens, de modo geral, são muito fracos. Em "El Infierno Tan Temido" [O Inferno Tão Temido], quem é mais temível: o jornalista ou a atriz? É a atriz quem concebe a vingança, que ao mesmo tempo não se sabe se é uma vingança ou uma busca de recuperação com uma frieza mental e uma amoralidade que homem nenhum chega a superar.

Ou seja: essas mulheres são mulheres também tremendas, que têm uma capacidade feroz de resistência às adversidades. Mas é um mundo que se pode chamar de machista; não é um mundo igualitário.

PERGUNTA - Que consolo nos resta depois de ler Onetti?

VARGAS LLOSA - O consolo da ficção. Sua obra parece destinada a ilustrar como, por meio da ficção, somos recompensados por tudo aquilo que nos faz sofrer ou que nos desmoraliza na vida, como, ao mesmo tempo, vivemos mais, enriquecemos nossa experiência, amamos, vivemos aventuras extraordinárias. Ou seja, a função da ficção não é apenas compensatória -é também enriquecedora da experiência.

Graças à ficção podemos converter em realidade apetites, desejos, anseios que, sem a ficção, ficariam para sempre frustrados, pois jamais na vida alguém estará à altura do que são seus sonhos e seus desejos. Esse é um tema fundamental, e por isso chamei meu livro de "A Viagem à Ficção", pois esse é um tema recorrente nos contos e nos romances.

sábado, 7 de março de 2009

LITERATURA INDIANA: o perfil de Rohinton Mistry

Mistry: outro escritor indiano que também é matemático

Nascido em Mumbai (Bombaim), em 1952, Mistry graduou-se em Matemática na cidade natal, em 1974. No ano seguinte, se mudou com a mulher para o Canadá, onde estudou inglês e filosofia, na Universidade de Toronto, enquanto, para se sustentar, trabalhava como bancário.

Escreveu seu primeiro livro (de contos), One Sunday, em 1983, com o qual venceu o Prêmio Canadian Hart House Literary. O sucesso continuou nas publicações seguintes e ele então deixou o antigo trabalho para se dedicar exclusivamente à literatura.

Tem três romances publicados, Such a Long Journey (de 1991, inédito no Brasil), Assuntos de família e Um delicado equilíbrio, além de vários contos espalhados pelas principais revistas do gênero, nos Estados Unidos e na Europa.

Serviço:

Dos dois livros de Mistry publicados no Brasil, um está esgotado. O outro pode ser comprado na Livraria Cultura, clique no título.

Título: Assuntos de família
Autor: Rohinton Mistry
Editora: Objetiva, 2003, 464 páginas
Gênero: Romance
Preço: R$ 58,90

quinta-feira, 5 de março de 2009

BIBLIOTECA MÁRIO DE ANDRADE: reforma é reforma em todo lugar

Venho acompanhando, meio de longe, a reforma da Biblioteca Mário de Andrade, Acervo Principal, e o da Seção Circulante (que empresta livros), antes situada na rua da Consolação, 1.204, fechada em dezembro de 2008 para se instalar no mesmo endereço da Principal, rua da Consolação, 94. O prazo para a reabertura da Circulante era o mês de março. Mas vai demorar um pouco mais.

Digo que acompanho a reforma de longe porque nunca falei com os diretores da instituição, que têm a resposta oficial. No entanto, pela informação de um funcionário da Biblioteca, que atende a gente sempre com muita simpatia, ainda vai demorar pelo menos mais três meses para a Seção Circulante voltar ao funcionamento. Os livros continuam encaixotados e os computadores em processo de instalação.

A Seção Circulante ainda não possui novo telefone para contato. Quem quiser mais informações pode ligar para a Biblioteca Mário de Andrade, Acervo Principal: (11) 3256-5270.

O Acervo Principal, por sua vez, só vai reabrir lá por agosto deste ano. Reforma é reforma em todo lugar, dizem. Neste caso, a observação resvala na ambiguidade. Realmente demora mais do que desejamos, mas, por outro lado, em outro lugar, será que demoraria tanto?

Espero que volte com equipamentos de última geração. Para quem usa os serviços do sistema de biblioteca pública de São Paulo, ainda há outras alternativas de empréstimo.

Para os moradores da região central, por exemplo, a alternativa mais próxima e de fácil acesso é a do Centro Cultural São Paulo, perto da Estação Vergueiro de Metrô.

Clique aqui para acessar o endereço eletrônico e consultar todo o acervo do sistema.

terça-feira, 3 de março de 2009

O PRAZER DE LER JORNAL – DA ACTA DIURNA AO BLOG

“Agora abra o seu jornal. Ele é um telescópio voltado para o futuro, um retrovisor assestado para o passado e um espelho para o momento que corre.”
Walter Galvani



O jornalista e escritor gaúcho Walter Galvani é um mestre da palavra. Grande conhecedor dos caminhos do bom texto, tem vários livros publicados, entre romances, história, comunicação e crítica literária. No ano passado, lançou O prazer de ler jornal: da Acta Diurna ao blog (Unisinos, 2008), um perfil histórico e editorial do jornalismo impresso e sua vertente online.

Tenho a sensação de que Galvani é pouco conhecido fora do meio acadêmico e jornalístico. Mesmo aí, haverá uns desavisados que ainda não ouviram sequer falar deste senhor de 75 anos, nascido em Canoas, autor de Anacoluto do princípio ao fim e Crônica: o voo da palavra, para ficar na esfera de alcance nacional, que é o livro.

Para quem quiser conhecê-lo, eis aqui uma boa dica. O prazer de ler jornal é uma crônica do jornalismo atual. Galvani manipula os fios históricos para mostrar que, embora tenha se multifacetado, o jornalismo ainda mantém, no jornal impresso, o prazer da leitura.

A fonte

De acordo com Galvani, nos dias de hoje, as notícias negativas crescem como erva daninha e matam pela raiz a possibilidade do texto agradável. Ainda assim, diz ele, o jornalismo diário impresso, acompanhado de sua versão online, oferece um pequeno espaço para quem busca o prazer de ler.

“Ler ou não ler, demorar-se na visitação, ir além do primeiro clique, ou buscar as edições em papel, tudo depende de uma decisão que passa pelo sentimento do prazer”, comenta o autor.

O jornal já foi um meio privilegiado de reportar a notícia. Hoje, ele compete com os blogs, os celulares, os twitters (meio que não foi citado pelo autor por ser recente demais), o youtube, a TV, o sistema wiki, como a Wikipédia, e outros.

Apesar de todos esses concorrentes, o jornal continua “lutando pela sua permanência” como “o grande difusor de notícias.” É aí que entra a tese de Galvani: como fazer com que o jornal continue com o status de veículo importante?

Um passo atrás, dois à frente

Não dá para competir com os novos meios usando as mesmas armas, ou seja, dando espaço cada vez mais aos fatos menores e sensacionalistas, “a notícia pueril do acidente na esquina ou o que seria hoje o corriqueiro crime no tiroteio entre bandidos ou nas balas perdidas que punem a violência e a falta de civilização”, diz o autor.

Há as exceções, e Galvani cita várias delas que dão ao leitor a oportunidade de descobrir esse prazer que deveria estar no centro do jornalismo. Ele argumenta que o jornal tem de prender o leitor pela leitura edificante, que oferece um prazer duradouro, voltando-se aos moldes dos grandes jornais do século XIX, fazendo “chegar ao leitor a opinião crítica, política, filosófica, ideológica.”

Para tanto, seria necessária uma nova leva de jornalistas gabaritados, com sólida formação cultural, capaz de ler melhor os fatos, ler a alma da nação e as condutas de cada setor da sociedade, para que, aí, sim, fosse capaz de oferecer ao leitor algo prazeroso de ler.

Jornalistas bem formados são capazes de desenvolver pautas geradoras de textos que penetram mais o coração do leitor. Neste caso, os concorrentes, principalmente os blogs, passariam a ser aliados, como inesgotáveis fontes de boas pautas.

Segundo ele, outra linha muito própria dessa fonte do prazer da leitura é a crônica, esportiva ou não. “A crônica é um espaço privilegiado. É talvez o local onde mais acentuadamente se produz o ‘prazer de ler jornal’”, diz.

E assim Galvani vai tecendo seus argumentos, que beiram sempre a utopia, é verdade, mas com clareza de ideias. Ao longo de suas pinceladas argumentativas, o autor vai, paralelamente, relembrando a história do jornal e seus principais desafios.

Ele lembra, por exemplo, que a primeira manifestação do que se pode chamar de jornal é a Acta Diurna, criada no ano 131 a.C. pelos romanos, oficializada por Júlio César, em 59 d.C.

Os cidadãos romanos (os que sabiam ler, diga-se de passagem) se aglomeravam diante do Senado para saber das últimas boas novas, resumidas numa grande pedra, “desde uma vitória esportiva a uma conquista guerreira ou ao falecimento de alguém importante.”

Jornalismo X literatura

Um dos desafios do jornalismo, hoje, se encontra no campo da cultura: sua conturbada relação com a literatura. O namoro existe há séculos. Muitos dos romances de escritores do nível de Dostoievski, Balzac e Machado de Assis, por exemplo, nasceram dessa relação. Mas, atualmente, a literatura anda em baixa nos jornais. Galvani se ressente.

Para nos atermos a um fato próximo aos nossos dias, que nem foi possível ser comentado no livro de Galvani, temos o exemplo do Washington Post, tradicional jornal norte-americano, que cortou a circulação de seu caderno literário.

Desde 15 de fevereiro, o Book World não existe mais, segundo informação da Folha de S. Paulo, de 1º de março, no Caderno Mais! A alegação é a crise. Talvez mais a crise do modelo de civilização do que a econômica, que assola os Estados Unidos atualmente.

Galvani revive um argumento que já rola há um bom tempo na boca dos mais experientes, como um misto de saudosismo e utopia, o que não é demérito. A utopia nem sempre é demérito. Ele cita o livro da jornalista Cláudia Nina, Literatura nos jornais, para dizer que estes estão substituindo as resenhas de análise da literatura por “releases promocionais.”

O prazer e o número

No contexto do prazer de ler jornal, podemos incluir o prazer de ler um livro, que, aliás, segundo Galvani, é muito semelhante ao primeiro. Ambos têm de ‘pegar o leitor pelo pescoço e não soltá-lo até o final’, para lembrar aqui uma frase da escritora chilena Isabel Allende, citada no livro de Galvani.

Embora as argumentações de Galvani sejam pertinentes, receio que a tradição oral da sociedade brasileira tenha mais peso na falta do prazer de ler jornal do que a carência de bons textos. Se houvesse leitor, imagino, haveria a preocupação para este fim.

Abro aqui um parêntese para dizer que o número de leitores no Brasil sempre foi muito reduzido. Quando se trata de jornal, as estatísticas apontam uma leve inclinação para cima, mas nada que faça vencer um concurso de devoradores de notícias.

É verdade que essa constatação pode ser um quiproquó, na linha da questão “quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha?”. Será que se houvesse mais textos nos moldes dos reivindicados por Galvani, haveria mais leitores?

Para se ter uma ideia, o jornal mais lido do país, a Folha de S. Paulo, tem uma tiragem em torno de 400 mil exemplares no final de semana. Trinta vezes menor do que a tiragem do jornal japonês Yomiuri, que é de 14 milhões de exemplares diários.

Parece mentira, mas é esse o dado da Associação Mundial de Jornais (WAN), de 2003. E ainda temos de considerar que o Japão tem uma população menor do que a brasileira, com 127 milhões de habitantes, segundo dados de 2001, publicados no Portal Japão.

Há mais. Os outros quatro principais jornais do país do Sol Nascente também têm tiragens diárias altas. O do Asahi Shimbun é de 12,3 milhões, o Mainichi Shimbun imprime 5,6 milhões exemplares todos os dias (para fazer aqui um trocadilho invisível), além de 4,7 milhões do Nihon Keizai Shimbun e 4,5 milhões do Chunichi Shimbun.

Os maiores jornais do Ocidente ficam a léguas de distância desses números. Ainda segundo a WAN, o USA Today tem uma tiragem de 2,6 milhões de exemplares por dia, o Wall Street Journal, 1,8 milhão e o New York Times, 1,6 milhão.

Ou seja, o índice de analfabetismo, portanto, cairia por terra como argumento. A razão talvez esteja mesmo na questão da tradição de leitura e na importância dada a isso.

Só vale o prazer

Números a parte, para fechar, O prazer de ler jornal vale pela leitura fluente, pela aula de história do jornalismo, pela posição clara do autor, vale pela formação e informação, principalmente para a enxurrada de alunos de comunicação que todo ano se gradua no Brasil.

Mas também vale por uma questão fundamental. O ótimo texto de Galvani nos premia com frases muito boas. Essa particularidade pode ser vista ao longo do livro, como a que diz: “A vida está difícil, comprimida entre o ódio e o rochedo, entre a impotência e a aparente onipotência do mal”, se referindo à insistente cobertura que a mídia faz da violência de toda sorte.

Ele também diz: “Onde há eletricidade, há globalização”, sobre o fato de não mais haver isolamento, em tese, uma vez que é possível assistir a TV ou falar ao telefone em quase todo o país, informando-se sobre tudo que acontece em quase todo o mundo.

O livro de Galvani não tem a pretensão de grande manual e, por isso mesmo, consegue alcançar o objetivo de ajudar o leitor a encontrar o caminho do prazer de ler jornal. Como ele mesmo diz: “Só vale o prazer, mesmo que, por vezes, dolorido.”

Serviço:

O livro de Galvani pode ser comprado na Livraria Cultura, clique no título.

Título: O prazer de ler jornal: da Acta Diurna ao blog
Autor: Walter Galvani
Editora: Unisinos, 2008, 140 páginas
Gênero: Comunicação/Jornalismo
Preço: R$ 20,00