quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Desagregação, de George Parker, revela uma nova América



O jornalista americano George Packer, de 55 anos, tarimbado repórter de coberturas internacionais, também sabe falar sobre como funciona o próprio país. Seu livro Desagregação – por dentro de uma nova América (Companhia das Letras, 2014, tradução de Pedro Maia Soares) é um dos mais sensacionais sobre a situação da sociedade americana depois das décadas brilhantes do pós-guerra (até 1960).

Neste livro ganhador do National Book Award, Packer traça o perfil e acompanha o desenrolar das vidas de alguns personagens cujas ações e cenários onde atuam vão jogando luz sobre a sociedade americana em ebulição. Há histórias tocantes de pobreza, persistência e riqueza de anônimos e de personalidades públicas, que ora caminham paralelamente, e ora se cruzam, como no caso de Tammy Thomas, mulher negra que lutou a vida toda para não ver seus filhos serem puxados pelo crime e pela pobreza absoluta que avizinha seu universo na pequena Youngstown, Ohio, uma das cidades mais violentas de todos os EUA, ou a experiência tocante da família Hartzell (pai, mãe e um casal de filhos), que só tinha um ao outro para contar, lutando para sobreviver num cenário de mudanças econômicas e de valores.

Packer é brilhante no modo como conduz sua narrativa. Pontua bem como a miséria começou a mais que cintilar na nação das oportunidades e passou a destruir a base da classe média, enquanto cingia outros fios que amarrariam a sociedade de um modo diferente.

São 494 páginas indo e vindo no tempo para captar o espírito da América se diluindo pelos fracassos coletivos, enquanto certos indivíduos surfam na onda de oportunidades de um novo tempo. À medida que o leitor vai acompanhando o texto de Packer, vai descobrindo a América anunciada no título, sob um terreno devastado. Descobre-se uma nação corroída por dentro. O autor expõe as ligas desfeitas, os laços rotos, um tapete social gasto sob o qual um novo jogo de interesses é germinado, pautado pelo lobby político e pelas jogadas financeiras de Wall Street.

Há uma grandiosidade no sentimento da sociedade americana que marca as histórias também, e ela aparece junto com a sordidez de certos elementos. O livro de Packer fala dos sonhos, das lutas diárias para se conseguir concretizar alguma coisa, fala sobre trabalho, sobre ação do Estado, sobre carreira política, sobre anônimos e famosos, sobre pobreza, sobre vencer e perder, lutar para a possível revanche, a volta por cima, sobre violência, atitudes violentas, sobre brancos e negros, cidades pequenas e metrópoles, sobre fragilidade e força, sobre sensibilidade e abismo.

É tocante o modo como Packer escreve sobre Raymond Carver, por exemplo. Autor de livros como De que falamos quando falamos de amor, Carver nasceu numa geração bem anterior às que protagonizam o tema central do livro de Packer, mas sua obra é prefigurada como uma espécie de prenúncio da derrocada, ou como o catalisador da desgraça americana.

A história de vida de Carver é semelhante à de Oprah Winfrey, com a diferença de que esta é mais bem sucedida, porque venceu as adversidades e descobriu o filão do sucesso a tempo de se salvar, ao contrário de Carver. Este se afundou na bebida e no cigarro e só foi se livrar do vício nos últimos dez anos de sua curta vida, embora tenha dado tempo de morrer sob o manto do sucesso e do respeito literário aos 50 anos na década de 1980, a mesma década em que Oprah despontava para o sucesso absoluto.

Os EUA são o país mais rico do mundo, com um PIB de US$ 17,35 trilhões (2014). Sua malha produtiva abraça o mundo com a indústria de armamentos, a indústria farmacêutica, a indústria de fast food, a indústria cinematográfica, a indústria de tecnologia de ponta (Vale do Silício). Não é o Estado americano, portanto, que está em xeque, por enquanto, mas sua base social.

Não se trata de uma América empobrecida. Trata-se de uma sociedade perdida nos vãos da individualidade, do culto à grana e ao hedonismo, uma sociedade pobre de valores nadando no espaço líquido de uma nação podre de rica, em que as escolas públicas “estão deixando os filhos de todo o povo semianalfabetos”, em que a desigualdade socioeconômica está sempre aumentando.

Grandes indústrias que durante muito tempo fizeram a economia americana robustecer foram sendo eliminadas em fusões gigantescas com empresas de capital aberto, controladas pelos magnatas de Wall Street. Tudo isso começou a dominar a vida econômica do país. Centenas de milhares de empregos foram ceifados e famílias se afundando no precipício financeiro e moral, com o uso de drogas e álcool se tornando cada vez mais frequente na vida dessas pessoas.

Uma imponente força empobrecedora se alastrou no meio da classe média americana. Esse é o dado terrível. É realmente um livro grandioso em sua concepção, com diversas chaves de interpretação dessa sociedade.

Quando você lê Desagregação, você tende a ter mais respeito pelo povo americano, mais compaixão pela sua luta diária. A nação do Tio Sam não é feita só de figuras do poder que usam o robusto PIB – e tudo que se consegue fazer com ele – para intimidar o mundo. Há os operários dessa grande máquina que dão duro para subir à superfície, mas que muitas vezes só conseguem, tal como certos peixes, pôr a cara de fora para uma célere respirada e já voltam para a base, de onde suspiram para empurrar a grande nau americana sabe-se lá para onde.

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quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Na dor do amor traduzida na voz, Adele é quase insuperável


Li a notícia de que 10 milhões de americanos se aboletaram na página de um site de venda de ingressos, para disputar vagas num show  de Adele nos EUA. O site caiu, saiu do ar com tanto peso virtual. Tudo isso porque a cantora lançou recentemente seu terceiro álbum, 25, que está bombando. Vendeu 3,3 milhões de cópias na primeira semana de lançamento.

Entendi o comportamento dos fãs americanos imediatamente. Sei por que isso acontece. Sei por que Adele é irresistível, por que consentimos seu chamado, sereia dos novos tempos, profetisa do novo blues. É porque existe amor e dor. Há um desencanto no seu canto difícil de se encontrar em outras vozes.

Sua voz chora dentro de nós também. O som de seu gemido dói de um modo profundo, e a gente sente a dor que ela canta, a gente sente vontade de colocá-la no colo e confortá-la. A gente a ama por isso.

Seus olhos tristes compõem o quadro da dor do amor. Todo mundo fala de amor, menos os trouxas. Todo mundo sente a correnteza do amor passar um dia ou outro, menos os insensíveis. Somos a corrente dessa eletricidade triste e densa impulsionada pela voz de Adele, e quando a vemos, entendemos mais claramente. Seus olhos são a expressão e a extensão da sua voz. É isso.

Seu canto é como um poesia profunda, condensação fabricada a partir da voz e do lirismo doído. Bastam meros cinco segundos para nos prender e nos levar juntos, sem salvação. Estaremos então presos na dor, embriagados na liquidez de seus olhos tristes, na tessitura de sua voz pedinte e potente, poderosamente solicitante de que fiquemos ali, de que a amemos, e a amamos.

Mesmo nas baladas mais ligeiras, como Set fire to the rain, dá pra sentir essa sensação de dor e de pedido de socorro de Adele. E essa marca é tão forte que já faz escola. Andra Day, cantando Rise up é fruto dessa escola. É claro que Adele não inventou a técnica de elevar a voz ao patamar da tristeza encorpada pela destreza vocal. Janis Joplin também fazia isso. Há outras, como Norah Jones e Katie Melua e a genial Billie Holliday. Mas neste quesito (dor do amor traduzida na voz), Adele é quase insuperável.

Adele cantando When we were young, do álbum 25


Andra Day com sua voz chorante e bela, cantando a emocionante canção Rise up

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terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Museu da Língua Portuguesa em chamas


Morei em São Paulo por quase seis anos (2001-2002, 2005-2009), num momento da minha vida que tudo era novidade, e como Sampa é rápida, também vivi novidades para mim que eram novidades para essa cidade célere, insana, essa cidade incenso de minha alma, essa cidade santa, profana, meu rio de coisas, como por exemplo a primeira Virada Cultural em 2005 e a inauguração do Museu da Língua Portuguesa, em 2006, que ontem ardeu para sempre e foi-se sob o fogo em labaredas terríveis que vi em vídeos e fotos à distância, como tudo se vai nessa cidade solta.

Doeu-me ver um ícone da cidade se desfazer. Será refeito, claro. Voltará, como a velha imagem da Fênix, eu sei, mas ainda assim é doloroso. Se tinha de ser, foi bom ter sido numa segunda-feira quando não havia visitantes. Um herói morreu, um dos bombeiros que tentavam controlar o fogo, e tudo ganha uma dimensão mais triste ainda.

Fica aqui minha tristeza por isso que se foi. Mas ficam também as lembranças de tantas sensações boas que vivi ali, como a primeira vez que assisti ao espetáculo de introdução do museu, com mil vozes de artistas brasileiros, lendo poesias e prosas da língua mãe e seus afluentes.


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quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

Domício Proença Filho é o segundo negro na presidência da ABL

Domício (direita) e seu colega imortal José Murilo de Carvalho

Membro da Academia Brasileira de Letras desde 2006 e agora presidente da instituição, Domício Proença Filho (79 anos) é um escritor afrodescendente, um dos poucos negros que tiveram a oportunidade de fazer parte do seleto grupo de escritores e intelectuais, e o segundo a presidir a ABL. O primeiro foi o cofundador da entidade Machado de Assis.

Diz que não vai debater a questão racial na ABL porque não faz parte da pauta da instituição, nem a favor nem contra. Diz também que não é cota, que não entrou na academia porque é negro e sim porque é escritor, embora seja a favor das cotas como política de momento. Mas mesmo que houvesse uma bandeira da consciência negra dentro da ABL, dificilmente Domício aderiria a ela. Ele parece não gostar muito da negritude como assunto de política. Não é de sua índole politizar a questão do negro nesses termos.

Eu já o entrevistei duas vezes por telefone, e nas duas vezes ele fugiu do assunto, mui educadamente, é verdade, mas fugiu. Mas a consciência negra, a meu ver, não precisa se eriçar por causa disso. Afinal, Domício é um grande poeta, um pesquisador de mão cheia sobre literatura, tendo o negro como objeto de sua pesquisa.

Em entrevista à Folha de S. Paulo, hoje, Domício falou de Machado de Assis e do fato de ele, Domício, ser o segundo negro na história da instituição a presidi-la. Não posso me furtar da coincidência de eu estar aqui, mulato como ele, na presidência da casa. Mas entre Machado de Assis e eu existe uma distância abissal não só no tempo, como na própria dimensão de produção. Ele era um gênio. Virou a mesa da literatura brasileira.

Estou ansioso para ler seu discurso de posse na presidência da ABL. Dos livros de Domício que já li, a mim me toca muito um pequenininho de poesia intitulado Dionísio esfacelado (Quilombo dos Palmares), de 1984, que já resenhei aqui (leia). Ele também está no monumental trabalho de crítica e antologia de autores negros Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica, volume 2 (Editora UFMG), cujo perfil foi escrito por Vera Casa Nova, livro este também resenhado aqui (leia).

Entre seus títulos de não ficção se destacam Estilos de época na literatura (Ática, 1978), Pós-modernismo e literatura (Ática, 1988), Estórias da mitologia, volumes 1, 2 e 3 (Global, 2000).

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