sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Pequena leitura de Curitiba

                                                Foto: Gilberto G. Pereira
Rua São Francisco, na direção do Lago da Ordem, centro de Curitiba

De Curitiba

É como aquela contenda poética de Vinicius de Moraes. Livros é como filhos, com a diferença de que a questão é por que lê-los, mas se não lê-los, como sabê-lo. Para qualquer lugar a que vou, compro livros. Se fosse ao Egito, tentaria comprar o Livro dos mortos, para aumentar minha argúcia sobre a vida. Nestas férias, estou num lugar mais perto de minha casa que o Cairo. Estou em Curitiba.

Gosto de Curitiba, apesar da fama da cidade de não gostar de forasteiros. Mas o que vejo na capital paranaense, que não costumava ver na primeira vez que vim para essas bandas, em 2001, é uma diversidade de gente nas ruas cada vez maior.

Boa parte dessa mistura se deve ao número de turistas saracoteando pela Rua XV, Largo da Ordem, Praça Osório, ou na Praça Tiradentes, pegando o ônibus panorâmico para conhecer os belos parques da cidade. Isso significa que Curitiba está recebendo bem seus turistas. Outra parte é a de imigrantes mesmo, de pessoas de outras regiões do país que vêm tentar a sorte no Sul.

Uma das coisas que adoro fazer em Curitiba é beber chope no Bar do Alemão, no Largo da Ordem. Quem frequenta a casa sabe que há uma bebida chamada Submarino, uma caneca de chope dentro da qual coloca-se uma canequinha de louça cheia de steinhäger (um destilado alemão) que vai se misturando ao chope enquanto bebemos. A canequinha pode ser levada pra casa. Já tenho uma coleção.

Gosto de fazer o passeio turístico, aquele do ônibus panorâmico que vai pingando turistas pelos parques da cidade. Há muitas outras atrações: folhear livros na Livraria Cultura do Shopping Curitiba, e eventualmente comprar um ou dois, comer e beber alguma coisa no Arrumadinho; folhear livros na Biblioteca Pública. E este ano descobri a Estofaria, a menina dos olhos etílicos do meu cunhado, no Hugo Lange.

Entes de carne e osso

Morei em Curitiba de 2002 a 2005, e li muitos livros na Biblioteca Pública do Paraná (BPP), onde corre uma história de que o prédio foi construído sobre um cemitério. Dizem as línguas soltas e imaginativas que alguns guardas tremem na base e saem correndo, largando o emprego e tudo, quando veem sombras suspeitas. Já outros fazem amizades com fantasmas e até transmitem recados para parentes vivos dos mortos de tempos antigos e de agora, que se reúnem por ali para eventuais encontros com entes de carne e osso.

Anedotário à parte, observando o acervo da BPP, percebi que muitos livros novos, e bons, que chegam à instituição têm o carimbo de doação de cidadãos, e não exatamente de outras instituições ou de compras.

Essas outras fontes também existem, e até com mais força do que a primeira, mas é aquela que me encanta porque mostra a dinâmica de leitura da sociedade e seu caráter de passar adiante o saber. Não sei se ainda é assim, mas testemunhei isso em meus tempos de carteirinha. Antes que um dos três leitores deste blog me julgue ingênuo, devo dizer que sou leitor do saudoso Jamil Snege, tenho inclusive em minha estante Como ser invisível em Curitiba, e tenho também Chá das cinco com o vampiro, de Miguel Sanches Neto. Conheço o solo em que piso.

Aquisições

Nos dias de hoje, quando venho para Curitiba, sempre compro uns livros. Sempre compro livros diferentes daqueles que tenho na minha linha de frente para a leitura, e acabo atropelando meus objetivos. Agora mesmo está rolando uma feirinha no Shopping Estação. Passei por lá com meu cunhado. Comprei dois livros. Comprei O ano literário: 2002-2003, de Wilson Martins (1921-2010), crítico de literatura que tive o prazer de conhecer justamente em 2003, quando ele ainda publicava no jornal O Globo e na Gazeta do Povo.

Alguns dos textos, portanto, eu já conhecia. Mas a maioria esmagadora, não. E o interessante é que essas coletâneas do Ano literário são muitas. É mais ou menos como outra sequência grandiosa de textos de Martins, Pontos de vistas (14 volumes). Mas me contento com minha aquisição.

É mais que me deliciar com seus textos, é uma formação sobre como ler um livro literário, sobre o que de fato faz a diferença na leitura judicativa e na leitura a esmo, em que não se busca nenhum diferencial de compreensão do mundo pelo texto literário.

A leitura nos ajuda a compor um visão ampla da realidade, unindo o saber literário com a capacidade de olhar o mundo e arrancar significados novos da vida. Refina o gosto. Isso a gente aprende lendo, e lendo Wilson Martins aguça-nos certa inteligência, embora outro grande leitor que admiro, Haroldo de Campos, não se bicava com o saudoso crítico e chegou a proferir a seguinte provocação: “O Brasil é o único país do mundo que tem uma história da inteligência escrita por uma pessoa que não prima pela inteligência.”

Campos se referia ao livro História da inteligência brasileira, publicado em sete volumes, em que Martins faz um levantamento crítico das obras fundamentais do Brasil desde a Colônia, garimpando as raízes da inteligência nacional que foram forjando o pensamento brasileiro.

Junto com O ano literário, comprei ainda um velho livro do Zuenir Ventura que eu havia lido na época da faculdade de Jornalismo na Universidade Federal de Goiás. Intitulado, Mal secreto: inveja (da Coleção Plenos Pecados, da Editora Objetiva, de 1998), o livro ainda me interessa pela fluidez da prosa, pelas tiradas conceituais sobre inveja que são muito boas. Numa delas, Vera Loyola, a socialite, diz que inveja não é querer o que o outro tem, é querer que o outro não tenha.

A feirinha no Shopping Estação é da Top Livros, e vende todos os livros a R$ 10. Vai até o final de janeiro. Para quem procura livros raros ou grandes achados, talvez se decepcione, mas há sempre alguma coisa interessante perdida entre a massa de livros pedindo pra serem lidos. Ainda posso voltar lá. Estou entre a certeza e a ameaça.

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sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

Cool Heart – diário de viagem a Nova York (11)

                                                                                                          Foto: Gilberto G. Pereira
Prospect Park, Brooklyn: Arco Memorial dos defensores da União na Guerra de 1861-1865
    

Dia 11 (16 de julho de 2016)

A cidade de Nova York tem cinco distritos (boroughs): Brooklyn, Queens, Bronx, Manhattan e Staten Island. Este último é uma ilha isolada ao sul de Manhattan, entre a baías e um braço do rio Hudson. Bronx é o único distrito fixado no continente, e o mais pobre de todos. Bronx foi o primeiro borough que visitei, para experimentar a comida do Oeste Africano, conforme já disse em outro texto.

No dia 16 de julho, pegamos a Linha Q do metrô e fomos ao Brooklyn, mais especificamente ao Prospect Park, no Park Slope, bairro do Brooklyn Sul, que anda fazendo o maior sucesso na cidade, sendo objeto da famigerada gentrificação (prática do mercado imobiliário que cresce o olho sobre uma área pobre e começa a investir nela para sorrateiramente expulsar os mais pobres até que a área se torne nobre).

Procurando o Brooklyn Museum, avistei um prédio gigantesco, que achei já ser o museu, mas era o prédio da biblioteca do bairro, tão linda, tão imensa quanto a de Manhattan, estrela de Nova York que aparece em tudo quanto é filme. Pensei em entrar, porque “sonhava encontrar um livro que explicasse todos os segredos, revelasse de modo infalível o caminho certo”, mas não deu.

Tive de fazer uma escolha, e escolhi visitar o museu. Gigantesco, imponente e cheio de coisas pra dizer também. Talvez ali também houvesse segredos. Como alguém pode morar num lugar desses e não se sentir orgulhoso, pensei.

Muitos moradores do Brooklyn, o maior borough de Nova York, são ricos, outros de classe média, mas uma parcela considerável da sua gente, entre negros e latinos, é pobre. Alguns bairros (neighbourhoods) do Brooklyn são pobres, todos sabemos. Se eu morasse no Brooklyn, numa transferência de espaço sem transferência de renda, eu seria pobre do mesmo jeito. As vicissitudes da pobreza nunca devem ser subestimadas.

Outro ângulo
A pobreza sempre nos afunda num lamaçal de impossibilidades, e reconheço que, sendo pobre, mesmo morando no Brooklyn, talvez não tivesse tempo de mergulhar naquele espaço de coisas antigas que narram novidades pra quem ainda não viu ou pra quem quer ver o mundo de outro ângulo.

Naquele momento, no entanto, o museu estava ao meu alcance. Quando entrei, fiquei encantado. No Brooklyn, tô sempre aqui. Não, não, isso é Sabotage. No Brooklyn, em espaços bem pertinho um do outro, havia uma biblioteca e um museu maravilhosos. Fiz minha escolha e entrei no museu, para o  espanto de meus fatigados olhos.

São cinco andares que encerram acervos próprios e acervos itinerantes. No quinto andar, há uma galeria egípcia com peças extraordinárias da arte e da cultura do Egito Antigo. Pergaminhos, peças de cerâmica, sarcófagos, múmias. Em um episódio de Black List, que não me lembro agora qual, há cenas gravadas nesse museu.

O museu fica no quarteirão da ponta leste do Prospect Park, perto de um arco sensacional, erguido em homenagem aos defensores da União, que lutaram na Guerra da Secessão americana (1861-1865), conforme vemos na foto de abertura deste texto. O museu tem um andar inteiro com pop art, street art, coleções de pintores americanos que retrataram a América, fotografias, colagens, um primor.

Sujeitos urbanos
“Estou mais interessada em estudar espaços que conseguem transformar seus habitantes em ‘sujeitos urbanos’.” Quando a socióloga e urbanista holandesa, Saskia Sassen, disse isso, referia-se ao metrô de Nova York. “É de ‘terceiro mundo’ em tantos sentidos, especialmente na manutenção”, disse ela, em uma entrevista ao jornal Folha de S. Paulo (14/06/2016). “Mas tem a capacidade de transformar todo mundo em sujeito urbano. Todas as classes sociais, religiões e raças estão ali, na mesma situação.”

Saskia é professora da Universidade Columbia (Nova York), onde é co-presidente do Comitê do Pensamento Global. E quando falou sobre espaços que transformam pessoas em sujeitos urbanos, deveria estar pensando também nos museus e bibliotecas públicas. Em Nova York, como em São Paulo, esse lugares são sensacionais, e têm essa mesma característica.

É incrível como passear por essas galerias engrandecem nossas perspectivas de espaço, de localização, de pensamento, de ideias sobre o sentir do mundo. Entendemos – e exercitamos esse entendimento – que o sentimento do mundo pulsa sem parar, que há sempre um modo diferente de ver as coisas, que há sempre novas conexões ou novas maneiras de se fazerem conexões.

O que encanta na visita a museus é a multiplicidade de olhares que vemos olhar para algum acervo, enquanto nós mesmos observamos os mesmos acervos.

Desencadeia-se uma energia interessante nesse contexto. Pessoas estão partilhando saberes, técnicas, histórias, sensações, e de alguma forma nos conectamos naquele momento, enriquecemos todos, muitas vezes silenciosamente, muitas vezes só entendendo ou sentindo com força o que vimos quando estamos solitários em nossos aposentos, ou até mesmo quando muito tempo depois, lendo um livro ou contando a experiência para alguém, ou escrevendo num blog, nos deparamos com mais sentidos daquilo que vimos.

Lembrei-me agora, por exemplo, da experiência que tive ao ver no mesmo dia o acervo de paisagens românticas na Pinacoteca do Estado, pela manhã, e o acervo de paisagens modernas no Museu de Arte Moderna, à tarde, em São Paulo. Como tudo muda, como tudo se transforma e mexe com nossas linhas de horizonte.

Viver é também saber olhar para o mundo, na expectativa de que vamos assimilá-lo melhor, ou pelo menos de modo mais plural, quando o olhamos de diversos pontos de vistas. Isso vale para as relações sociais. Um homem não é um quadro, é verdade, é mais rico, mais diverso, mais profundo, mais inesperado do que qualquer obra de arte.

Como é difícil acessar um homem com a mesma inteireza com que acessamos um quadro, às vezes incorremos no equívoco de pensar o contrário. Mas museus e bibliotecas nos dão justamente essas ferramentas do sentir e do pensar, esse ambiente de conexões. Acho que esses cruzamentos é que nos fazem sujeitos urbanos, pegando carona no conceito de Saskia Sassen, talvez tentando dialogar com ela.

Nesse dia da visita ao Prospect Park e ao museu, apreciamos também uma cena maravilhosa de convivência no gramado do parque, algo comum ali, com famílias inteiras fazendo piqueniques.

Fomos ao Zoológico. Tomamos sorvete. Almoçamos no Bar Corvo, onde fomos muito bem atendidos e onde eu comi o almoço mais gostoso da viagem, e tomei mais uma cerveja ruim, chamada Peroni.

Espacialização
Aprendi com Milton Santos que territorialização é quando uma força política toma o território do outro, ou seja, uma nação mais poderosa vai impondo seu domínio, por meio da diplomacia e das armas, sobre os territórios alheios.

Já espacialização é quando uma nação, em vez de tomar o território, invade a cultura alheia por meio dos símbolos e dos objetos de sua própria cultura, fazendo isso por meio do cinema, da literatura, da cultura de massa, da culinária, dos gostos, da estética, enfim.

Neste sentido, escolhi vir com minha família para Nova York porque já fui espacializado por ela, não exatamente pelo organograma inteiro da cultura americana, mas pelo blues, pelas figuras de Nova York, pela literatura, sim.

Como entendi isso, joguei os dados a meu favor. Aprendi a valorizar também o que há de maravilhoso na minha própria história, e por isso fiz de Nova York um tropo, e penso nela como espaço, entre o real e o imaginário, e não como uma realidade, qualquer que seja ela, rica e paradisíaca (que eu não alcançaria) ou pobre e cruel (dentro da qual não me jogaria). Sou produto dessa espacialização, ao passo que posso usufruir dela de modo autônomo.

Uma cidade, de qualquer tamanho que seja, atrai os espíritos inquietos e os estômagos vazios de igual modo. E muitos procuram as grandes cidades porque têm desejo de prosperar financeiramente ou arrumar um emprego pra pôr comida à mesa e educar os filhos.

Mas há também quem faça essa busca para poder discutir ideias, falar de coisas lidas nos livros, vistas nos filmes ou pensadas a partir da leitura do mundo. A procura por Nova York não foge a essa regra.

No caso da busca pela circulação das ideias, dizem que os americanos não são chegados na filosofia que discute conceitos abstratos demais, que consome a história do pensamento e fica remoendo gostos. Dizem que eles gostam da prática. Afinal, foi o espírito americano que desenvolveu a filosofia pragmática. OK! Isso pode servir para outras cidades americanas –  como Miami, Boston e a Califórnia inteira, apesar da indústria do delírio estar instalada lá –, mas não serve para Nova York.

Nova York é o centro da circulação das ideias de todo tipo. E há um argumento simples pra isso. Nova York não é uma cidade americana, nem de fundação nem de batismo. Foi fundada pelo espírito holandês, que encerra a tradição judaica do debate das ideias. A Holanda é a terra de Erasmo de Roterdam, que escreveu o Elogio da loucura. Pode estar aí uma das gêneses da Nova York delirante.

É claro que há também Wall Street. Mas essa parte do pragmatismo financeiro não me interessa, a não ser certo resultado disso que produz fascínio e, de algum modo, uma vertigem espetacular nos horizontes da retícula real que são os prédios e as instalações de infraestrutura novaiorquinas.

Transitando entre mundos
Andei bastante de metrô em Nova York, e senti aquilo que lembra a fala de Saskia Sassen sobre sujeitos urbanos. Percebi as instalações subterrâneas do metrô, muitas vezes simples e semelhantes a algo arcaico. Quando o metrô sai de Manhattan e ganha o espaço livre do Brooklyn, quanto mais para longe ele vai, mais parece precário e de terceiro mundo. Mas funciona que é uma beleza.

Dentro do metrô, vi de tudo. Gente pedindo trocado, gente delirando como louco, falando sozinho. Às vezes o metrô ficava lotado, às vezes está vazio. Pedi informações para pessoas brancas e negras, e todos foram gentis em me dar a informação correta. Um senhor me pediu informação dentro do metrô, e eu por acaso já sabia e o informei corretamente. Acho que isso é um modo de ser sujeito urbano.

Andar a pé foi muito bom. Andei bastante a pé pelas ruas de Manhattan, mas também peguei muito táxi e usei muito metrô. Há quem diga que não é legal andar de metrô em Nova York, porque aí não se conhece a cidade. Neste sentido, fico com o modo de pensar de Saskia.

Andar de metrô é fundamental para se juntar a um tipo de massa diversa daquela com a qual topamos nas ruas. Andar de metrô em Nova York também faz parte da aventura de conhecer a cidade por dentro, escavando seu ventre, sentindo sua respiração, e depois saindo desses buracos artificiais como quem transita entre mundos.

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segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

Cool Heart – diário de viagem a Nova York (10)

                                                                                                                                                            Fotos: Gilberto G. Pereira
Fachada do Museu Nacional do Índio Americano, de frente para o Bowling Green, no Battery Park. Antes ali era uma alfândega
    
Dia 10 (15 de julho de 2016)


 “A brisa que vinha do Hudson trazia os cheiros do verão.”
Sombras sobre o Rio Hudson


Projeto ambicioso este, delirante que é, de visitar Nova York como um tropo literário. A base está clara. Parto de Rem Koolhaas, passando pelo meu delírio cotidiano e pelos 200 mil fragmentos do desejo contemporâneo.

Desejo é “qualquer forma de movimento em direção a um objeto cuja atração espiritual ou sexual é sentida pela alma e pelo corpo”, diz o dicionário de psicanálise. Para Freud, “o desejo é a realização de um anseio ou voto inconsciente”. Para Lacan, desejo é a “expressão de uma cobiça ou apetite que tendem a se satisfazer no absoluto, isto é, fora de qualquer realização de um anseio ou de uma propensão.”

Nova York é, portanto, meu delírio e meu desejo. Meu desejo delirante. Nova York é um delírio não só nas sandices arquitetônicas que não deram certo, ou na retícula bem-sucedida dos arranha-céus e na mistureba de culturas que se comunicam e fazem a cidade respirar sucesso. A face do desejo, a sereia (en)cantando.

Nova York delira também no mundo financeiro. Wall Street não é apenas uma ruela na Lower Manhattan; é o maior delírio de todos, a meca do capital especulativo, a cacimba-mãe das bolhas financeiras que por onde passam deixam rastros de destruição.

Sobre o mesmo espaço onde hoje corre a veia do mercado financeiro, os negros eram vendidos como mercadorias. Eles foram os primeiros a dar o sangue para fazer essa cidade crescer. Logo mais adiante, seriam enterrados, fora do perímetro urbano da incipiente Manhattan, como corpos sem valor, sem luz, sem descanso.

Hoje, rasgamos o ventre de Manhattam, passamos próximo desses corpos lá embaixo, sob prédios, sob calçadas, sob o som da nova selva, passamos como turistas felizes, e não damos a menor importância para a história. Quando apontamos a cabeça de novo à superfície, é para ver a massa de gente em meio ao concreto. Uma nova beleza brotou na ilha dos lenapes.


Visitas
Fui amarrar meu destino na embocadura do Hudson para ver Nova York (sereia da minha alma). Meu imaginário já estava espacializado. De modo consciente e com gosto é que decidi correr as ruas de Manhattan, porque “o que é de gosto é regalo da vida” (Ulysses). Com gosto, buscamos o diferente, e “vamos em busca de diferenças justamente para legitimar as fronteiras” (Zygmunt Bauman).

Minha mulher e eu pegamos o metrô (Linha 5, downtown), à 15 horas, e descemos na Estação Brooklyn Bridge. As outras duas companheiras de viagem (minha irmã e minha filha) ficaram no hotel descansando (não conseguiram acompanhar o pique). A ideia era visitar, primeiro, o African Burial Ground, uma quadra imensa sob a qual estão enterrados milhares de corpos de negros escravizados do século XVIII.

Depois, correríamos pelas galerias do National Museum of the American Indian (Museu Nacional do Índio Americano), no Battery Park, e em seguida passearíamos pela orla do Hudson até o sol se pôr. Foi o que fizemos. Mas o primeiro destino não deu certo.

Fomos até o African Burial Ground, com entrada pela Broadway, mas estava fechado. Seguimos então para o Museu Nacional do Índio Americano, no grandioso prédio de quatro andares que outrora abrigara a alfândega novaiorquina. Caminhando pela Broadway, sendo acompanhados à direita pelo imenso One World Trade Center, onipresente, visto de todos os lugares da South Manhattan.

Chegando ao Museu do Índio, foi um deleite. Todas as referências indígenas que não pudemos ver nas ruas da ilha estavam lá. Não há índios na civilizada Manhattan, e com exceção de seu nome gravado na geografia da cidade, não há vestígios de sua pré-história fora dos museus. Em Manhattan tem de tudo, chineses, coreanos, latinos, negros, europeus, indonésios, bengalis, menos índios.


Manhattan e Goiás
Neste sentido, Manhattan e Goiás têm algo em comum. Os índios que moravam nessa ilha - mergulhando no Hudson ainda com outro nome, pescando no Hudson - não existem mais, a não ser no nome Manhattan, e só. Procura outro nome indígena no traçado quadricular da ilha e não verás nome algum.

Assim também é Goiás, mais especificamente sua capital. Em solo goiano não se vê uma alma viva dos goyá, povo indígena que morava na região quando os primeiras bandeirantes deram as caras e passaram o rodo em todo mundo.

Há poucas homenagens aos índios no Estado, principalmente aos que foram dizimados. Em Goiânia, como registro indelével do genocídio, uma avenida atravessa a cidade com o nome de Anhanguera, para tocar no coração dos mais sensíveis a lembrança de um assassínio sistemático até que não houvesse mais nenhum goyá pisando sobre a terra. Hoje em dia, há uma política de apoio aos indígenas de outras etnias, é verdade, mas os goyá, esses dormem no berço do não mais.

Esse eito humano ceifado da história cria na memória dos ignorantes ou dos que não sabem ficar de outro lado que não dos vencedores o lastro do esquecimento (palimpsesto, raspagem etnográfica). Curioso batizar o Estado de Goiás com o nome de um grupo indígena desaparecido. Mas o batismo não me parece por acaso. Parece-me ser um modo de se apropriar de tudo, inclusive do nome.

O museu
O suntuoso interior do prédio desenhado por um xará, Cass Gilbert (1859–1934), que desenhou também o Woolworth (outro edifício famoso em Nova York), é fascinante. Como fascinantes são as peças da cultura indígena, de roupas a utensílios domésticos, objetos de caça, de guerra e de arte, propriamente, como música e dança, desenhos, fotografias e algumas peças criadas dentro das tradicionais técnicas de artes visuais do Ocidente, por renomados artistas indígenas como Dallin Maybee.

Fiquei surpreso ao ver tantos objetos de indígenas brasileiros de tribos como caiapó, karajá e marajó. Karajás da Ilha do Bananal, lugar onde morei, onde, quando criança, eu, de pele escura e cabelo escorrido, era chamado de indiozinho. Diziam-me que eu havia sido tomado dos índios. De certo modo, fui um indígena sem nunca ter vivido entre eles de fato, nem nunca ter falado uma língua indígena.

Hoje, digo pra minha filha que nossa origem é afro-indígena, embora jamais tenha querido negar o sangue e a cultura de Europa que também correm em minhas veias e em meu imaginário. Sou tudo isso. Sou brasileiro, nascido e criado na pluralidade, com o pensamento voltado para o respeito ao outro, embora, claro, forjado na necessidade de reivindicar uma identidade étnica.

Passeando por todas essas galerias dentro do museu, senti-me em casa, mais uma vez, como me sentiria em casa no universo dos negros americanos, porque são negros da diáspora, cuja narrativa tangencia minha própria narrativa, cuja identidade tangencia minha própria identidade. Tudo isso fui pensando enquanto registrava os passos de nossa visita.

Na parede de uma das galerias, vi um quadro com um texto razoável de uma escritora e artista performática indígena-canadense, da etnia mohawk, chamada Tekahionwake em sua língua, mas muito conhecida como Pauline Johnson (1861-1913).

Em inglês, o texto diz o seguinte:

“Por que seu povo me forçou a usar o nome Pauline Johnson? Meu nome indígena não era bom o bastante? Vocês acham que nos ajudam em alguma coisa impelindo-nos a esquecer nosso sangue? Instruindo-nos a jogar fora toda a memória de nossos mais altos ideais e nosso glorioso passado? Sou uma indígena. Minha pena e minha vida eu devoto à memória de meu próprio povo. Esqueçam que já fui Pauline Johnson, mas lembrem-se sempre de que  fui Tekahionwake, a mohawk que humildemente aspirou ser a cantora da saga de seu povo, o bardo do mais nobre saber popular (folclore) que o mundo já viu, a triste historiadora de sua heroica raça.”

Bonita reivindicação estampada no museu. Pena que está registrada em inglês. Não vi a versão em seu idioma de nascença, ainda que eu não pudesse entendê-lo sem a chave da língua inglesa. Espero que ela tenha escrito esse belo texto, que nos instiga a reivindicar nossa própria identidade, ou nos faz lembrar que temos uma identidade por cuja permanência devemos lutar, em sua língua-mãe, sendo posteriormente traduzida.

Por causa do texto de Tekahionwake (que em mohawk significa “vida dupla”), pesquisei na internet sobre o povo mohawk e conheci mais sobre sua história de perseguição e extermínio. Nada diferente do que houve com todos os indígenas América adentro.

E  o museu que resguarda esse registro acaba se tornando uma espécie de refúgio simbólico dos indígenas americanos, mas também uma confecção do cinismo imperial, uma vez que não há mais indígenas para contar essa história, não nessa região, não especificamente em Nova York. Ou seja, há aí uma duplicidade, uma ambiguidade tal qual o significado do nome da própria artista mohawk.

Nova York, meu tropo literário, me ensinou alguma coisa, exatamente como eu esperava. Deixamos o museu e  começamos o deleite ao lado do Hudson, ainda sob um sol quente, mas na expectativa de que ele se repousasse e nós colhêssemos o delicioso fruto da sombra decorrente, vendo ainda o espetáculo do ocaso. E foi assim que se deu. Nova York sonhada.

Hudson sob o sol
Hudson, o caudaloso rio que beija Nova York, a cidade entregue ao sonho, para alguns, e ao pesadelo imenso de tentar sobreviver, para muitos.

Vejo o Hudson e me lembro de Fernando Pessoa, cuja poesia cutuca nossa consciência histórica, por meio de nosso senso estético. “O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,/ Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia/ Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.”

O Hudson é mais belo que o rio Jaburu. Mas o Hudson não é mais belo que o rio Jaburu, porque o Hudson não é o rio Jaburu, nem o Tapirapé, nem o Meia Ponte, nem o Xavantinho, nem o Xavante, nem os córregos de minha infância.

Quando os córregos de minha infância enchiam na período de chuvas, levavam os peixes para papear ao lado de minha casa. Os peixes e bichos da água tornavam-se meus vizinhos. O Hudson não é nem o João Leite, sobre o qual passei mil vezes de ônibus para ir estudar no câmpus da Universidade Federal de Goiás.

Os parcos estudos me levaram a leituras que me trouxeram aqui. Pelo Hudson chega-se ao mundo, mas não chega ao mundo que trago comigo, world without end. São tantos rios, tantas curvas. O jaburu é o rio da minha primeira infância, é o primeiro rio a correr em minha memória, em cujas águas vi verterem sangue e lágrimas. (Uma solução de quase morte saiu de minhas entranhas quando quase me afoguei aos três anos de idade no rio Jaburu).

Quando li Odisseia pela primeira vez, juro que chorei ao ver Ulisses chorando sobre o mar. Foi identificação imediata. Fui Ulisses aos cinco anos de idade, quando saí para a guerra, rio Araguaia abaixo, com minha mãe e minha irmã, guerra da sobrevivência.

Da Ilha do Bananal, fui para terras estrangeiras, nos confins do Pará, perdido em águas que não acabavam mais. Fui lutar pela sobrevivência, e  quando voltei, os que ficaram tinham histórias pra contar, histórias que imprimiam mais dor na minha alma, narrativas mais fantásticas do que as minhas próprias, eu que havia descido o Rio Araguaia até o Pará num barco de pescador. Sou um anti-Ulisses.

O Hudson é um rio imenso que nasce lá no caixa-pregos americano (como se diz mesmo caixa-pregos em inglês?) e vem morrer nos braços do Atlântico. Mas o Hudson não é o Jaburu. O Jaburu é beleza e tristeza. O Hudson é só alegria. O jaburu é um menino espiando as águas cheias de piranha, um menino afundando uma orelha de vaca na água e puxando piranhas para dentro da canoa.

Quero marcar uma audiência com os lenapes. O Hudson é uma imagem, uma vontade atravessando a nado para alcançar, do outro lado, uma outra imagem: Rubin Carter, o boxeador Furacão (Hurricane), algemado no auge da carreira por ser negro, preso apenas por ser um preto passando perto de uma cena de crime, na “hot New Jersey night”; Bob Dylan cantando sua liberdade. História de racismo que faz Bob Dylan sentir-se “envergonhado por viver num país onde a justiça é apenas um jogo.” O Hudson é a fronteira de todos os lugares.

O Hudson é uma corda amarrada a uma pedra arrastando um cadáver. Aqueles índios que outrora caminhavam pelas suas margens com o peito estufado de orgulho afundam-se agora no curso escuro da memória caudalosa.

As águas desse rio beijam o Atlântico e se comunicam com as vozes afogadas dos negros que ficaram para trás, cujos ossos se desfizeram enquanto corriam levados pelas correntes do velho oceano, ou assentaram-se em cálcios marinhos para jamais testemunhar história alguma do horror que foi, e que é, qualquer escravidão.

Abaixo das avenidas, um calçadão arborizado corta a orla inteira do Hudson. Iates ancorados no píer em frente ao Brookfield Place e seu Winter Garden, um belo shopping perto da One World Tower, embelezam a vista. Pessoas se divertem nos bares lotados à sombra. Pessoas passam com câmaras e registram o paraíso.

Caminhamos e respiramos o ar de Tribeca. Ancoramos no Pier 25. O sol, o barulho do som e da fúria dos turistas felizes invadiam a atmosfera do lugar. Esperamos o sol se pôr. Eram mais ou menos 17:40, quando chegamos. Achei que o sol afundaria do outro lado do Hudson, atrás dos prédios de Nova Jersey, lá pelas 19 horas. Não perguntamos a ninguém, nem consultamos nada. Havíamos nos essquecido dessas coisas de rotação e inclinação do eixo da Terra, de que a despedida do sol no hemisfério Norte é tardia. Esperamos.


Luzes, sombras, noite
Um bar flutuante ancorado do lado esquerdo do Pier estava lotado. Sob o sol, novos clientes esperavam numa fila. Um fotógrafo, com uma objetiva de dar inveja, se recostou nas grades do cais e ficou ali disparando fotos contra quem estava no bar flutuante. Devia haver alguém importante naquela civilizada horda de homens e mulheres contentes com seus destinos.

No curso do rio, barcas passavam flamejantes de alegria, abarrotadas de turistas “full of joy and happiness.” O sol foi se pôr lá pelas 20:45. Mas foi lindo. Deixamos o Pier 25 e subimos até o Pier 45, onde, ao longo do espaço retangular, havia três aglomerações. No pé do Pier, logo na entrada, um grupo de jovens negros ensaiava passos de dança semelhante ao kuduro angolano. Havia uma bela mistura de gêneros, mas todos negros.

No meio, um cantor negro cantava belas canções pops, apreciadas por um grupo de jovens de todas as cores. E na ponta do Pier, uma roda de capoeira: o mestre puxava em português uma cantiga ao som do berimbau: “Tem que saber cair”; e assim ia.

Já era noite. O sol havia caído por completo. Caminhamos ainda na orla do Hudson até a altura da Rua 12, pela qual fomos até a Oitava Avenida, e subimos rumo à Rua 32, presenciando a  diversão nova-iorquina nos bares do Chelsea.

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O sol se põe em Nova Jersey, cidade que faz fronteira com Nova York, do outro lado do Rio Hudson

  
Sombras do fim da tarde sobre o Rio Hudson, com Nova Jersey escurecendo do outro lado. O pôr-do-sol foi um espetáculo