quarta-feira, 9 de julho de 2014

No rastro dos astros

Uma das graças de nossa interlocução pela leitura com as grandes mentes é a de poder ver um autor que admiramos repetindo outro maior ainda, ou sendo repetido nas gerações subsequentes como réplicas infinitas de criatividade, porque há sempre um dado novo, um novo olhar sobre o mundo. Para Harold Bloom, lemos para conhecer cérebros mais interessantes do que o nosso. É um modo de aprender e de crescer, sem dúvida. Em diversos autores acompanhamos essa dança de citações e releituras.

Maquiavel, por exemplo, no nono capítulo de Comentários Sobre a Primeira Década de Tito Lívio, diz “os homens se inclinam mais ao mal do que ao bem.” É interessante a observação dele, mas não era nova nem para seu tempo. Já havia sido dita por Aarão, irmão de Moisés, quando este o repreendeu por ter corrompido o povo de Israel com um bezerro de ouro: “Tu sabes que o povo é propenso para o mal”, disse Aarão.

Mas o Antigo Testamento hebraico também não está sozinho. O sábio grego Bias de Priene, do século VI a.C., deixou sua marca filosófica com uma frase semelhante: “A maioria é malvada.” Ou seja, não temos para onde ir. E por falar em maldade, o grande mito do bem e do mal, em que tudo se mistura em meio à névoa da vida é a história do sábio que vendeu a alma ao diabo.

Havia sido contada antes de Goethe, mas foi ele que a cristalizou na tradição da literatura ocidental. Como todo gênio, Goethe refaz o mito e põe Fausto como um doutor que, em vez de vender a alma, faz uma aposta com Mefistófeles, o diabo em pessoa. Este lhe daria tudo, e ele seria sempre sedento de saber, mas, caso falhasse, entregar-se-ia ao “ilustre herói”.

“O que se ignora é o que mais falta faz", diz Fausto. Por trás dessa premissa, há uma repreensão cristã. A sede de sempre saber mais é o que nos leva à ruína. Mas a frase reverberante da história de Fausto é outra. Ele acusa Mefistófeles de bisbilhotar a vida alheia, porque sabe tudo, e este diz: “tudo eu não sei: porém, ando bem informado.”

Esta frase veio parar em um clássico da literatura brasileira. João Guimarães Rosa, ao desenvolver uma fábula moderna da íntima relação entre o ser e o tempo em Grande Sertão: Veredas, põe Riobaldo, um Fausto supostamente malogrado, repetindo falas do próprio diabo. Mas a verve trocada entre Goethe e Rosa é mais que isso, é a expressão de um gênio pondo Fausto em outro caminho de novo.

Rosa embaralha tudo. Não fica claro se Riobaldo efetivou o pacto com o diabo. E aí, ele aparece pondo na própria boca as palavras de Mefistófeles: “Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa.” Além disso, Riobaldo tem como interlocutor um doutor, e bagunça ainda mais o coreto ao especular que talvez o diabo seja Deus. “Quem-sabe, a gente criatura ainda tão ruim, tão, que Deus só pode às vezes manobrar com os homens é mandando por intermédio do diá?”

(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente em O Popular, 07/07/2014)