Richard Dawkins é biólogo e está entre os mais influentes de sua área, sendo respeitado mundialmente por divulgar e defender com veemência a teoria da evolução, de Charles Darwin.
Já escreveu vários livros esclarecedores sobre os mistérios da vida, numa linguagem acessível aos leigos, o que tem despertado muitas pessoas para o universo complexo da biologia.
Em 1998, ele também tentou fazer um despertar estético nos leitores, ao publicar Desvendando o arco-íris – ciência, ilusão e encantamento, livro gracioso, mas de tese estranha, sobre a vantagem científica na inspiração poética.
Poesia e ciência
Em Desvendando o arco-íris, Dawkins afirma que a poesia está na ciência. O livro argumenta que a ciência não só é instrumental, eficaz em seu campo do saber, mas também pode proporcionar um sentimento do belo à altura da poesia e da música.
Segundo o autor, a ciência pode ser inspiração para a mais alta poesia. Escreveu o livro, diz ele, porque não tinha “talento para comprovar seu argumento por meio de uma demonstração”, ou seja, criando versos dignos dessa beleza científica. Por isso, partiu para a persuasão em prosa.
Dawkins quer nos persuadir de que pelo corpo do saber científico correm veios poéticos, filões de beleza tão profundos que deveriam ter mais atenção por parte dos poetas maiores. O problema é que os grandes poetas, avessos à ciência como objeto de inspiração, refutam essa premissa.
“A minha tese é que os poetas poderiam fazer melhor uso da inspiração fornecida pela ciência e que, ao mesmo tempo, os cientistas deveriam procurar se comunicar com o grupo que, na falta de uma palavra melhor, chamo de poetas.”
Armado o jogo, o biólogo, extremamente culto e inteligente, discorre 400 páginas sobre o assunto, muitas vezes deixando a impressão de que, para ele, ciência é apenas o conjunto de saber proveniente da biologia, física, química, matemática e adjacências. Muitas vezes também se esquecendo de que grandes poetas, como Goethe e Shakespeare, para citar o óbvio, observavam a natureza com muita propriedade.
Desvendando o arco-íris é um belo livro, mas, a meu ver, ingênuo, fruto de dias ociosos, em que Dawkins parecia não ter nada a fazer pela biologia. Entre uma e outra passagem muito bela, o leitor testemunha os arroubos de arrogância do autor.
De cores e versos
O livro tem um título retirado do poema de John Keats (1795-1821), em que este acusa a filosofia de “conquistar os mistérios com régua e traço” e “desvendar o arco-íris.” Neste caso, Keats se referia à parte epistemológica da filosofia que cuidava da investigação da natureza, que daria à luz a ciência moderna, como a física de Isaac Newton, por exemplo.
Por causa disso, segundo Dawkins, Keats detestava Newton, por ter destruído toda a poesia do arco-íris, reduzindo-o às cores prismáticas, explicando-o. O biólogo então argumenta:
“Alguém poderia seriamente sugerir que estraga o prazer proporcionado pelo arco-íris ser informado do que se passa no interior de todas essas milhares de populações de gotas de chuva que caem, cintilam, refletem e refratam a luz?”
Em função desse modo de pensar, Dawkins já havia dito: “Vou me limitar neste ponto à especulação não comprovável de que Keats, como [William Butler] Yeats (1865-1939), poderia ter sido até um poeta melhor, se tivesse recorrido à ciência em busca de inspiração.”
Ou seja, ele passa por cima do sentimento de Keats em relação a Newton. Não pensa – ou não quer aceitar – que se Keats fosse procurar informações detalhadas na ciência talvez tivesse se tornado um poeta medíocre, sem dar asas à imaginação criativa.
Além disso, é preciso pensar no contraponto do argumento de Dawkins. Alguém, de igual modo, poderia dizer que o prazer é menor, não ser informado cientificamente do que se passa no interior de um arco-íris, e ler um belo poema de um poeta que inventou em cima daquilo que vê e conhece do arco-íris?
A inspiração nasce do olhar e da contemplação, até mesmo da leitura de livros e do mundo, mas certamente não precisa – nem seria melhor para todos os grandes poetas – da dissecação científica, ainda que tais informações nos deem outro tipo de beleza.
A ciência fixa significados e procura não dar margem a interpretações variadas, enquanto a poesia faz justamente o contrário. Além disso, Dawkins se baseia numa visão clássica da poesia, em que os poetas procuravam trabalhar com verdades estabelecidas ou mistificações.
O modelo da poesia moderna é o contrário disso. Segundo o crítico Michael Hamburger, em A verdade da poesia, o poeta hoje explora verdades em vez de afirmá-las.
O poeta é um pensador
Desvendando o arco-íris é de fato um belo livro, com algumas pedras no meio do caminho. Mas o feijão pode ser catado, sem prejuízo algum ao tempo gasto do leitor, apesar da tese ingênua de Dawkins e de sua arrogância.
O livro traz um ror de informações interessantes, resultados do acúmulo do saber científico. Mas o que Dawkins parece ignorar, aliás, o que sua arrogância não o permite ver, é que a poesia, a arte, também tem suas antenas, tem suas ferramentas de investigação.
Embora essas ferramentas sejam diferentes dos métodos da ciência, elas são eficazes, chegam a atingir profundamente o universo que interessa à poesia: a condição humana. Além disso, nem sempre a poesia descarta a ciência, diga-se de passagem.
Em tentativa semelhante, Martin Heidegger foi mais feliz do que Dawkins. O filósofo alemão argumentava que a linguagem é a casa do ser, cujos guardiões são os filósofos e poetas. Muitos filósofos não gostaram dessa equiparação, porque isso lesaria a lógica, a razão. Mas também alguns poetas refutaram o pensamento heideggeriano.
De qualquer forma, poesia e filosofia laboram em campos muito próximos, que podem, sim, ser cômodos da mesma casa, com flexibilidades e jogos de imagens que talvez a rigidez da ciência não o permitisse. Vejamos as alegorias e metáforas de Platão, do próprio Heidegger, de Nietzsche etc.
Mesmo assim, não podemos nos esquecer da psicanálise, que nasceu como ciência e que nos oferece encantamento poético de alto valor.
Em todo caso, poesia e filosofia se aproximam mais entre si, porque ambos fazem uma procura amorosa da verdade. A ciência quer ser mais metódica e dona da razão, pelo menos na maioria do corpus científico, o que a torna mais próxima da religião do que da poesia.
Trechos:
“A ciência, como os estudos literários apropriados, pode ser difícil e desafiadora, mas é – assim como os estudos literários apropriados – maravilhosa.”
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“A ciência verdadeira tem direito ao formigamento na espinha que, num nível mais baixo, atrai os fãs de Jornada nas estrelas e que, no nível mais baixo de todos, tem sido lucrativamente explorado pelos astrólogos, videntes e médiuns de televisão.”
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O mito inventado por [J. R. R.] Tolkien (autor da trilogia O senhor dos anéis) é “outra forma bastarda de ficção científica.”
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“Temos um apetite por maravilhas, um apetite poético que a verdadeira ciência devia estar satisfazendo, mas que está sendo saqueado, frequentemente por causa de ganhos monetários, pelos que fornecem a superstição, o paranormal e a astrologia. Frases retumbantes como ‘a Quarta Casa da Era de Aquário’ ou ‘Netuno começou a retrogradar e entrou em Sagitário’ criam um contexto romanesco e falso que, para os ingênuos e impressionáveis, é quase indistinguível da autêntica poesia científica.”
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“Seria de esperar que, no final deste século XX, que é o mais bem-sucedido de todos em termos científicos, a ciência houvesse sido incorporada em nossa cultura e o nosso senso estético houvesse se elevado para estar à altura de sua poesia.”