segunda-feira, 31 de maio de 2010

O deus brincalhão

“Caminhou contra as línguas de fogo. Estas não morderam sua carne, estas o acariciaram e o inundaram sem calor e sem combustão. Com alívio, com humilhação, com terror, compreendeu que ele também era uma aparência, que outro o estava sonhando.” Jorge Luis Borges (As ruínas circulares)


“No princípio era o verbo, e o verbo estava com Deus, e o verbo era Deus. (...) E o verbo se fez carne e habitou entre nós.” Embora haja semelhanças, Este que aparece no Evangelho de João não é o deus crivado nas palavras da mais recente publicação do mineiro Whisner Fraga, O livro da carne (7 Letras, 2010, 80 páginas). Aqui, quem reina é um deus brincalhão, embora também saiba dar sua cota de tragédia e drama. É um deus cheio de poesia mundana, atada por tiras de fibra sagrada.

Mas também a Bíblia é um longo poema da criação, alguém pode argumentar com autoridade. E por isso mesmo, ao largo dos versos de Fraga, o sujeito poético, neste caso, o próprio deus, está imbuído de propriedades divinas do Velho Jeová e até de Cristo. No entanto, o espaço lúdico construído na geografia poética de O Livro da Carne oferece uma multiplicidade de sonhos e desejos, um turbilhão de rebeldia e senso de desconstrução, que vão além desses deuses ultrapassados.

Não é raro, neste livro insólito, o leitor se deparar com versos que renegam a velha tradição, ou que retiram dela o substrato de sua verdade, para recriar a vida, para partir praticamente do zero e criar de novo os ossos, os nervos, a carne, e talvez a inteligência. Mas aí já é exigir demais de um deus.

Os poemas são uma espécie de receita, ou ordem, conselho, todos nascem do imperativo, todos giram em torno de verbos no infinito, que é a potência determinante da linguagem verbal. “Empalhar deuses”, diz um verso. “Tolerar as feridas chamuscadas de lodo/ De deuses sem fé/ E sem divindade”, dizem outros versos. “Dois deuses cochilam no assoalho do criado”, observa o sujeito poético em outro poema.

Em “Roteiro para empreender a fuga”, vemos um exemplo de como a ideia de evangelho, ainda esconsa no testamento anterior, está inserida, como quem faz o mesmo caminho messiânico já conhecido, só que em outra dimensão. “Reter o vão/ Chacoalhar guizos de canduras/ Afivelar saudades/ Olhar derradeiro as disposições dos trigos/ recolher as tranças das rosas/ Beirar a ânsia de conter o então/ E depois.”

O desfecho do poema, que pode sugerir Moisés e seu séquito, é cheio de graça mundana, cheio de riso, quase uma pilhéria, mas, ao mesmo tempo, carregado de perplexidade e uma vontadezinha de ficar, de não ir embora: “Levar também a chave/ Para um possível retorno.”

Os títulos de cada poema são índices voltaicos que ajudam o leitor a penetrar o universo da criação desse deus que muitas vezes é puramente infantil, um deus menino. “Receita para dividir o vento”, “Roteiro para edificar o nada”, “Para ninar espíritos”, “Para prolongar infâncias”. É assim que vemos um desfile de propostas nascentes.

O arco e a lira

Uma dessas propostas explora com vigor poético a imagem de um personagem caro ao Deus hebreu e cristão, mas que também não tira o pé do terreno infantil, do imaginário de uma infância altiva e que já sabe planejar. É um poema que vale ser posto em sua totalidade aqui para a devida apreciação:

“Para escolher forquilhas”

Optar pelo galho mais alegre
De goiabeira de fim de cinza
De noite arredia
E sacis xeretas
Enfim se decidir pelo corte:
Improvável cumprir completo a vida
Esticar braços condoídos
Para teste da melhor goma
E divertir dos amigos
A penúltima manhã amarela
Não alvejar canários ou azulões
Nem estrelas
Acolher o travesseiro o estilingue
Ao presságio de outras guerras.


Quem traça esse plano não é um garoto, mas é. É e não é. É um deus menino que parece dar à luz a infância de um guerreiro, cuja primeira arma é o estilingue. Uma funda. Estamos diante de um vir-a-ser de Davi. É a recriação de um guerreiro caro a Jeová, por que ele soube conduzir o povo de Israel, embora tenha sido controverso e tenha decepcionado seu Senhor.

Este Davi, tal como aparece aqui, não está na Bíblia, claro, é fruto do novo deus. Mas seu futuro é vencer outro Golias. Sua tarefa é dormir e sonhar com a batalha e a vitória que virão. O que deve ser enxergado nesse poema, como construção poética, é essa imagem buscada, ou rebuscada, entre os objetos de infância do poeta, mas não só isso, entre elementos da cultura brasileira, do imaginário da cultura popular tupiniquim.

É bom lembrar que a literatura de Fraga faz dos mitos uma ferramenta afiada para esculpir os signos atuais. Nestes poemas de O livro da carne, o que vemos é uma extensão temática de sua prosa. Muitos versos remetem a personagens e situações já trabalhadas em livros anteriores, como Helena, que está em Abismo poente.

Sua marca segue a tradição poética. Não se alcança o significado polissêmico proposto sem a perseguição do ritmo e a disposição das palavras, suas formas dançantes e troca de sílabas ressoantes entre uma palavra e outra. Esta poesia, cheia de brincadeiras, esta experimentação poética, como um deus que brinca de criar, tem muito daquilo que se chama de sentido logopeico, em que se fincam significados substanciais.

Abismo

A denominação conceitual trabalhada por Ezra Pound nos ajuda, e muito, a fixar significados aqui. Em O livro da carne, além dos recursos vocabulares, há também a riqueza da melopeia (musicalidade) e, principalmente, a exploração fosfórica da fanopeia (condensação poética que forja o significado por meio da sugestão de imagens), porque é por ela que encontramos as figuras mais fulminantes deste livro.

Como em “Receita para tolerar a miséria do voo”:

Contra o viço e o alvoroço resedá
A transição do peito engatilhado
Atenuar a voracidade do húmus
O hostil e inquieto rumor de precariedades
O disparo vermelho
O tambor com seus desgostos giratórios
E o projétil da vez
O pulso mortificado pelo curso vacilante
Que já nem denuncia uma pista da vida
Como urubus camicases.


Depois de várias receitas sobre como criar um novo mundo de gente mais humana, resgatando um projeto divino que falhou, que malogrou entre todos os deuses do passado, o sujeito poético aparece com uma receita de acabamento final, uma sugestão de suicídio. “Receita para tolerar a miséria do voo” é, por isso mesmo, um dos poemas mais interessantes do livro, porque chega como uma espécie de abertura para o abismo da existência, porque emerge como chave para fechar o que havia sido aberto como possibilidade.

Em todo O livro da carne, as temáticas rondam os poemas como uma engrenagem de moinho. No entanto, o mais interessante é que muitas vezes as palavras dançam no interior do poema, como acontece em “Receita para tolerar a miséria do voo”. O desenho do suicídio vai surgindo justamente nessa dança fúnebre dos vocábulos.

Além do metralhar onomatopaico de ‘contra, alvoroço, transição’, e inversões silábicas entre ‘atenuar’ e ‘voracidade’, o leitor segue o drama macabro com os termos “peito engatilhado”, “rumor de precariedades” (que é a própria vida), “disparo vermelho”, “tambor” (do revólver), “projétil” e a execução final, em que o pulso fenece e já não há mais vida.

Os últimos versos desenham bem a beleza mortífera do poema: depois do tiro, o pulso, aquele que poderia conferir a vida, está como urubus camicases. O termo “urubus camicases” faz o leitor levantar os olhos e reparar o título. Ele vê ali “miséria do voo”, e se baixar vertiginosamente as vistas completará “miséria do voo da vida” e sentirá o baque da queda.

Os urubus voam alto, e só descem para saborear a morte dos outros, para comer carcaças, carniças, mas ainda assim, dão pista de vida, pelo menos a deles próprios, ou, em última hipótese, indicam que houve ali uma vida. Mas urubus camicases são urubus suicidas, eles descem do céu, em voos fulminantes, para, hipoteticamente, se racharem no chão. Não há mais nada.

Sopro de verbo

Em O livro da carne, possibilidades são o que não faltam aos poemas, que, junto ao lirismo, oferecem versos de violência e ternura, como quem quer abarcar a vida toda. Tudo é uma tentativa. A começar pela proposta de fazer versos com verbos no infinitivo para quase todas as peças. Entre uma página e outra, há ideias micros e projetos macros. Neste sentido, é um livro repleno de mundos e sonhos, em que a natureza humana se aproxima de novo da Natureza. E a magia, a artimanha, está presente em cada sopro de verbo.

Como autor, Fraga carrega uma luz literária peculiar. Escreve com absoluta consciência. E isso é bom. Para quem gosta de referências, há aqui algo que lembra Manoel de Barros. Mas parece que suas fontes estão num passado mais longínquo, como a Bíblia, a mitologia, as verdades religiosas, desbancadas em cada uma das receitas poéticas.

Estas receitas riem da febre de livros de autoajuda que inundaram o mercado editorial nos últimos anos. Mas também, se seguirmos o ritmo dos versos, sentiremos uma sensação de que estamos orando, fazendo uma prece. São preces poéticas, que acabam contrariando o sentido da vida na religião. É um novo religare. Coisa que se faz muito na literatura. Aliás, no fim das contas, a literatura é isso, uma espécie de religião ao contrário, cujos deuses são humanos demais, próximos demais de cada leitor.

Acompanhando os versos, o leitor pode chegar a uma conclusão. Talvez essas regras, essas recomendações, ou ordens presentes em O livro da carne, sejam para ele mesmo, para o próprio deus propositor da nova existência. Talvez essa escritura seja como bilhetes na porta da geladeira que as pessoas solteiras e que moram sozinhas deixam, na desculpa de ter pouca memória, mas que, no fundo, é para travar um diálogo consigo mesmas, diálogos para espantar a solidão. Todos os deuses estão sós.

(Publicado originalmente no jornal Tribuna do Planalto, 30/05/2010)

Serviço

Título: O livro da carne
Autora: Whisner Fraga
Editora: 7 Letras, 2010, 80 páginas
Gênero: Poesia
Preço: R$ 28,00

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Medo Líquido – a fluidez do terrível


Na Idade Média, o grande medo nascia da escuridão da noite, num tempo ainda longe da eletricidade e dos feixes de clarão das lâmpadas, quando era impossível se enxergar um palmo à frente do nariz. Nos dias de hoje, o medo está no clarão que ofusca os olhos, que também não permite que se veja nada, só se deixa imaginar excessivamente a ameaça da morte, a ameaça da dor e de tudo, tudo mesmo, porque “tudo que dói é possível”, como disse Paulo Henriques Britto, num belo poema sobre a solidão.

Mas aqui o que interessa é lembrar este Medo líquido (Jorge Zahar, 2005, 240 páginas), livro de Zygmunt Bauman, sociólogo polonês que criou o conceito de liquidez sobre a produção humana, vida e coisas, na contemporaneidade. No fim das contas, o medo líquido, o amor líquido, a modernidade líquida, a vida líquida, enfim, que são títulos do mesmo autor, traduzem a ideia de pós-modernidade, em outras palavras. São releituras do pensamento marxista, desde Tudo que é sólido desmanchar no ar, de Marshal Berman.

O bom da leitura das ideias de Bauman, conhecido no Brasil principalmente por O mal-estar da pós-modernidade, é sua capacidade de transitar entre o frívolo e o denso. Ele valoriza os reality shows como manifestação genuína do comportamento humano, algo do qual não se pode fugir. Ele cita Big Brother e similares como indicadores certeiros de nosso mal-estar, de nossa liquidez e de como valorizamos a cultura da eliminação, da exclusão, da extorsão, a punição como norma e a recompensa como exceção.

O mundo líquido mostrado por Bauman é uma espécie de irrealidade dentro da qual estamos mergulhados, porque é um mundo de aparência absoluta, de ameaças que quase nunca se configuram como reais, mas que são alardeadas o tempo todo pelos meios de comunicação, pelos institutos de pesquisa, pelos arqueólogos do patógeno, por todos os ditadores de realidade. E aí temos de aderir ao movimento do inexistente para podermos existir.

“Há muito mais infortúnios sendo proclamados iminentes do que aqueles que acabam realmente ocorrendo”, diz Bauman. No mundo líquido moderno, diz o sociólogo, o discurso é de que “amanhã não pode ser, não deve ser, não será como hoje.” Tudo muda, tudo ameaça mudar, há “um ensaio diário de desaparecimento, sumiço, extinção e morte”. O mundo de hoje chama a atenção a cada instante para nossa fragilidade.

O mundo de hoje, diz o mestre da contemporaneidade, era para ser diferente do da Idade Média, isento de medo, desde o Iluminismo, desde a tomada do poder da ciência frente ao senso comum, ao discurso religioso (arrisco a dizer). Esta era a ideia. Mas vivemos num “imenso cemitério de esperanças frustradas”. Esta é nossa herança. “Vivemos de novo numa era de temores”, diz Bauman.

Além do medo instintivo da morte, da necessidade de sobrevivência, os humanos sofrem outro tipo de medo, o medo de “segundo grau”, o “medo derivado”, argumenta Bauman. Segundo ele, é um “sentimento de ser suscetível ao perigo”.

Os perigos de que se tem medo são de três tipos, segundo o sociólogo: os que ameaçam o corpo e as propriedades; os que rondam a durabilidade da ordem social, “e a confiabilidade nela, da qual depende a segurança do sustento (renda, emprego); e os que ameaçam “o lugar da pessoa no mundo – a posição na hierarquia social, a identidade (de classe, de gênero, étnica, religiosa).”

Como combater esse medo? Como buscar uma nova diretriz de vida em sociedade? O livro de Bauman é belo de se ler, mas sua função é mostrar a face do terrível, não de apontar soluções. Sua sociologia é a da leitura do real, de um tipo de realidade que esvai como a água, que escorre por entre os dedos. O livro de Bauman não mostra o material com o qual se pode fazer o dique.

“Os perigos que tememos transcendem nossa capacidade de agir; até agora não chegamos sequer ao ponto de podermos conceber claramente como seriam as ferramentas e habilidade adequadas a essa tarefa, que dirá conseguir começar a planejá-las e criá-las.” Ou seja, estamos ferrados.

Serviço

Título: Medo Líquido
Autor: Zygmunt Bauman
Editora: Jorge Zahar, 2008, 240 páginas
Gênero: Sociologia
Preço: R$ 32,00

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Einstein no sonho de Helen Dukas e outras histórias

Einstein: Conversava com todos na mesma tonalidade e atenção, de doutor a operário

O físico alemão Albert Einstein tinha uma secretária chamada Helen Dukas, que conhecia bem a vida simples do patrão. Um sonho que ela teve com Einstein traduz bem a vida dele.

O sonho

“Einstein estava comendo num restaurante, quando um homem entrou e mandou todo mundo encostar na parede, ele inclusive. Então começou, pelo primeiro da fila, a tirar dinheiro, relógios e outros bens de todas as pessoas. Quando chegou em Einstein, o ladrão parou: ‘Eu não vou tirar nada do senhor, professor Einstein!’ Ao que Einstein protestou: ‘Que horror! Quero ser tratado como todo mundo!’ No sonho, Einstein esvaziou o bolso e só caiu uma moeda.”

Essa história é contada no livro Einstein - a ciência da vida (Ática, 1999), de Denis Brian, tradução de Vera Caputo. Além do desfecho, outra coisa engraçada é perceber como Einstein era famoso, que até os ladrões mais pé-de-chinelo (ladrões de relógio e carteira) conheciam o físico, e mais, era tão famoso e querido que até esse tipo de criminoso (unha de fome e necessitado) o respeitava. Mais ainda, tão universalmente conhecido que até em sonhos de terceiros era reconhecido por ladrões dessa categoria.

Racismo

“Uma bonita jovem americana, que defendendo a discriminação, perguntou a Einstein: ‘O que o senhor faria se seu filho se casasse com uma negra?’ Ele respondeu: ‘Provavelmente eu pediria para conhecer a noiva. Mas se ele me dissesse que ia se casar com você, eu perderia o sono e o apetite’.” In: Einstein - a ciência da vida (Ática, 1999).


Simplicidade

“No outono [de 1948], o assistente de pesquisa de Einstein, Ernst Strauus, deixou-o para assumir um cargo acadêmico. John Kemeny estava entre os possíveis substitutos. Refugiado húngaro de 22 anos de idade, Kemeny estava a meio caminho de sua tese de doutorado quando chegou ao escritório de Einstein. A tese de Kemeny sobre lógica matemática não tinha nenhum interesse concebível para ele [Einstein], que não conhecia absolutamente nada daquilo. ‘Então’, disse Kemeny, ‘tive de explicar a teoria, o que ela queria provar [...] Devo ter levado meia hora [...] e tive medo de estar tomando seu tempo. Mas ele fez questão [...] Interrompia-me com perguntas quando não entendia [...] E então disse minha frase preferida, da qual jamais me esquecerei: ‘Muito interessante. Agora vou lhe contar no que estou trabalhando’, exatamente no mesmo tom de voz, como se nós dois tivéssemos a mesma importância.” In: Einstein - a ciência da vida (Ática, 1999).