quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

As prostitutas de Gabriel

                                                                                                                                                        Ilustração: Blog Diario Sur-Espanha


A realidade da América Latina é mais fantástica do que sua própria literatura, disse o colombiano Gabriel García Márquez, em 1982, ao ser laureado com o Prêmio Nobel daquele ano. E não afirmou isso para efeito de retórica.

Sua obra, toda ela, vem carregada dos traços peculiares, excêntricos e exageradamente poéticos que se encontram nesse mar latino, desde sempre. A começar pelas prostitutas. Elas estão presentes na maioria de seus livros, povoam a paisagem feito pássaras noturnas, mulheres livres que ensinaram a Gabriel o caminho do humano.

Depois de serem lembradas, por tantas vezes, num viés secundário, as prostitutas de Gabriel ganharam uma homenagem definitiva em Memória de minhas putas tristes (2005). A homenagem está mais explícita no título, que traz um plural que não está na trama. A não ser em estatística.

O plural do título aparece quando o protagonista, um nonagenário viciado em sexo pago, que não consegue – e nunca o fez – transar sem pagar pelo serviço, diz: “até os cinqüenta anos eram quinhentas e catorze mulheres com as quais eu havia estado pelo menos uma vez”.

Levando em conta o que o autor diz em Cheiro de goiaba (1982) (“eu começo todos os meus livros a partir de uma imagem real e não de uma idéia”), essas prostitutas estão em algum lugar de suas lembranças.

E estão mesmo. Aparecem anônimas, na maioria das vezes, na primeira parte de sua autobiografia, de título sugestivo, Viver para contar. A partir dali, pode-se decodificar a solidão e a tristeza de suas meninas. É a chave para compreender que se elas não se apresentam de forma precisa em Memória de minhas putas tristes é porque vivem implicitamente em cada esquina dobrada e em cada rua percorrida nesta novela.

Todo o cenário composto pelo autor é retirado do ambiente vivido por ele mesmo nas cidades de Cartagena, Bogotá e Barranquilla, no final da década de 1940 e começo da de 50. Nessa época, estava com seus vinte e poucos anos. Era estudante de direito (que não chegou a concluir) e aprendiz de jornalista e escritor.

Com pouco dinheiro no bolso, a melhor alternativa que encontrou para sobreviver com o salário miserável que ganhava foi, em certa ocasião, morar num hotel de alta rotatividade. Lá, intensificou seu estágio com as prostitutas. Aulas que começara a ter em sua cidade natal, Aracataca, quando era garoto.

Sua iniciação sexual foi com uma dessas pássaras da noite, que lhe prestou serviços sem exigir em troca nenhuma paga, apenas por ser filho do boticário da cidade.

Memória de minhas putas tristes parece ser um título bem pessoal, do próprio Gabriel. Mas a história é fictícia, narrada em primeira pessoa, por um homem que se identifica apenas como sábio, alcunha merecedora, pelos anos vividos e tempo gasto no que há de mais profano e, por isso mesmo, o que demanda a maior fatia do conhecimento mundano: o sexo e suas mil faces.

Ao fazer noventa anos, o sábio decide comemorá-los num estilo peculiar, contratando uma cafetina para lhe arranjar uma virgem. Passando por cima da problemática moral e legal de aliciar uma menor, o protesto maior da senhora da noite é contra a dificuldade de obter tal donzela àquela altura do século XX. Com muito esforço ela consegue o intento, encontrando uma garota de 14 anos, que precisava do dinheiro para cuidar da mãe doente.

Mas o sábio não consegue efetivar suas vontades e fica apenas na parte teórica da filosofia de alcova, rememorando seus dias fugazmente felizes de apreciador de meretrizes, enquanto passa a noite com a donzela, sem fazer nada, apenas olhando-a dormir e contando-lhe historinhas, cantando cançõezinhas em seu ouvido, ninando a bela adormecida, como se quisesse plantar em seu coração a derradeira esperança de alguém que já está no crepúsculo. Fez isso por várias noites. Uma vida em seu final admirando a exuberância de outra no desabrochar.

Essa imagem de garota prostituída, ou amante de um homem bem mais velho, aparece em vários livros de García Márquez. E em suas memórias, ele deixa claro de que realidade ela surgiu, e até mesmo como foi fundida com outras similares para produzir sua ficção.

Segundo ele, em seus tempos de Cartagena, junto com os colegas de faculdade, virava a noite nos bordéis a céu aberto, à beira do mar caribenho. “De vez em quando alguma pássara nostálgica nos chamava para dormir com o pouco amor que lhe sobrava ao amanhecer. Uma delas, cujo nome e cujo tamanho recordo muito bem, se deixou seduzir pelas fantasias que eu contava enquanto dormia”.

Junto a essa imagem, uma outra compõe a essência de sua personagem mais recorrente. Agora em Bogotá, em 1954, Márquez ainda paupérrimo, morava num pensionato, onde testemunhou de ouvido, várias vezes, a sofreguidão amorosa de um casal de amantes. A surpresa era pela diferença de idade entre os dois. “Uma menina esquálida com um vestido de orfanato público, e um senhor de muita idade, com cabelos platinados e de dois metros de altura, que podia muito bem ser seu avô”.

As prostitutas ofereceram a García Márquez, em seu tempo de formação, um aspecto triste e fértil, e ele não se cansou de pintá-las em sua obra. Principalmente a jovem que ele conheceu em Cartagena, certamente. Em A incrível e triste história de Cândida Eréndira e sua avó desalmada (1972), Eréndira tem 14 anos, é órfã de pai e mãe, e mora com a avó paterna. Certo dia, num descuido, ela deixa a casa pegar fogo, e para puni-la, a avó passa a vender o corpo da menina. Andam pelo país inteiro, como caixeiras viajantes, cujo produto vendido e consumido na hora é o sexo de Eréndira.

Essa mesma história já havia sido contada, rapidamente, em Cem anos de solidão (1967), em que uma “mulata adolescente, com suas tetazinhas de cadela” se deitava – por vinte centavos cada vez – com todos os homens para pagar a dívida com a avó. Em O amor nos tempos do cólera (1985), outra adolescente aparece, com o nome de América Vicuña. Mas dessa vez, apenas como amante de Florentino Ariza, que a essa altura da trama já era um senhor de 75 anos de idade.

De todas as obras de García Márquez, Memória de minhas putas tristes é a que mais se assemelha às suas memórias próprias, não exatamente pelo que ele viveu de fato, mas pelo que presenciou e aprendeu. Passagens inteiras descritas em sua autobiografia estão presentes nessa novela.

Muito mais do que uma inspiração de A casa das belas adormecidas, de Kawabata (1899-1972), que aliás é citada na epígrafe, é um livro feito com o intuito de celebrar a velhice, que olha para si mesma, e resgatar a humanidade das tristes meretrizes que ele, o autor, deixou para trás.

Gabriel García Márquez, o homem que inventou a solidão, realmente explorou bem de perto o universo de suas prostitutas, e por isso mesmo soube retirar delas todo o sentimento de tristeza e abandono. Talvez por ter sido feliz nessa empreitada, ele goste de citar William Faulkner (1897-1962), seu mestre na arte de narrar: “um bordel é o melhor domicílio para um escritor, porque as manhãs são tranqüilas, tem festa toda noite e todos têm boas relações com a polícia”.

(Gilberto G. Pereira. Com ajustes ao tempo, publicado originalmente na Tribuna do Planalto, em 2005. Texto escrito e publicado antes do de John Updike, em The New Yorker, intitulado Dying for Love, que fala do mesmo assunto)

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

O inferno confirmado



Ler a pentalogia Inferno provisório, de Luiz Ruffato, não é fácil, não pelo que se imagina costumeiramente. É uma prosa compreensível, apesar dos sumidouros da linguagem, com personagens que aparecem e desaparecem da trama, vêm, dão seu recado e retornam ao nada de onde surgiram.

É difícil porque consegue retratar uma realidade complexa, sem perder a poesia daquilo. Para lê-lo, é preciso ter o coração na mão. Desde o primeiro volume, Mamma, son tanto felice, de 2005, passando por O mundo inimigo, Vista parcial da noite, O livro das impossibilidades e, agora, Domingos sem Deus (Record, 2011, 112 páginas, R$ 32,90), o último da série, o que prevalece é a sensação de desamparo.

O projeto de Ruffato é mostrar a labuta diária do homem do interior, que sonha em melhorar de vida, e acha que isso só é possível nas grandes cidades, nos parques industriais. Ele mostra a diáspora incessante dos moradores de pequenas cidades do interior de Minas Gerais rumo a São Paulo e Rio de Janeiro.

Em Domingos sem Deus, é como se o inferno fosse confirmado, no sentido de haver um ciclo de vida completamente sem perspectiva dentro da diáspora. Se o mundo não está legal, se tudo isso parece infernal demais para uma boa alma, as coisas vão melhorar. Essa é a premissa das personagens. Mas não melhoram. Ou melhoram pouco.

Como volume que fecha os caminhos possíveis, Domingos sem Deus é marcante justamente pela constatação do fracasso de quase todos, para ser brando. Quando alguém parece ter se dado bem na vida, é apenas uma miragem de quem olha de fora, como no episódio de Sandra, menina do interior, ativa, inteligente, que é levada para trabalhar de doméstica no Rio de Janeiro.

Na Cidade Maravilhosa, Sandra vai se virando até que é contaminada pelo vírus da Aids. O título dessa história é “Sorte teve a Sandra”. Era o que diziam. E por quê? Porque quando se soube com Aids, “apelou ao doutor Samuel, que, demandando contra a Previdência, acertou encostá-la na Caixa, um salário-mínimo limpo, todo quinto dia útil do mês.”

Fratura

Ruffato tem fama de não criar enredo, e não cria mesmo. Desde o início de sua carreira como escritor, quando lançou Eles eram muitos cavalos e caiu nas graças da crítica nacional, seus livros passam por cima da fábula para chegar ao osso da narrativa e expor a fratura da realidade desse homem do interior que não consegue abraçar a cidade grande.

Os livros de sua pentalogia são chamados de romance por puro capricho classificatório, mas o que há são feixes de histórias que vão dando ritmo e cadência a um mundo cheio de vida, a realidade pulsante das vontades e sonhos do Brasil adentro.

As histórias desenham famílias inteiras que se dispersam, e narram rios de fracassos. E esses fracassos sempre vêm com uma desculpa ou um discurso de que não é bem assim, para depois, lá no fundo ou ao final, descobrirmos que o inferno ainda existe, que sua existência não é provisória para a maioria, que a maioria muda de endereço, mas não muda de situação.

A diáspora leva os filhos dessas famílias para longe. Muitos jamais voltam a pisar o pé novamente na terra natal. Quando fracassam, e quase todos fracassam, se tornam uma espécie de Ulisses que se esquece de Ítaca e que ainda não venceu a guerra. Quando vencem, simplesmente querem esquecer o passado rapidinho.

Malogro
O primeiro episódio de Domingos sem Deus é exemplar dessa dança de malogro em que a maioria das pessoas se vê coreografada. Narra a vida de um garoto inteligente como o diabo, o Mirim do Tatão Ribeiro, pequenino zanzando pelas ruas de Rodeiro, a pequena cidade onde todos o conheciam e apostavam no seu futuro.

Aos 18 anos, Mirim foi tentar a sorte em São Paulo. Foi parar nos campos de fábricas de Diadema, de onde já velho rememora sua trajetória de batalha. Repassa suas aventuras, imaginando as possibilidades que o mundo sugere (só as possibilidades). Imagina-se voltando à sua cidade natal. “Quem diria... É... assentou em São Paulo”, indagariam as pessoas, reconhecendo-o.

E ele passearia orgulhoso, vencedor, pela cidade natal:

É o Mirim, gente, o Mirim!, Alá ele! Ê, Mirim, apeia aí, vem tomar café com a gente! Ê, Mirim, apeia aí, vem comer com a gente! Ê, Mirim, apeia aí, vamos armar uma briga de galo, de canário, uma pelada, solteiros contra casados, ranca-toco e quebra-canela, Ê Mirim, alembra da Gina? Pegou corpo, inteligente como o diabo, logo-logo casa, assim ó, de pretendente, mas a preferência é procê, né, que a gente conhece desde um cotoquinho assim, Mosquito Elétrico voando pelo Rodeiro, Vamos lá, Mirim, vamos fazer uma farra, Esse Mirim é pedra-noventa!, É o Cão!, É o que há!

Mas não voltou.


Essa passagem não é o final da história, mas poderia acabar ali. Essa sentença final no texto de Ruffato é uma pá de cal nos sonhos do velho homem saudoso de um projeto que malogrou.

Inferno provisório - que, nos moldes da burocracia brasileira, pretende ser uma ponte para algo melhor, enquanto se arma toda a papelada da vida, mas acaba se instalando como que para sempre - é uma das coisas mais interessantes da literatura nacional nos primeiros anos do século XXI. E Domingos sem Deus fecha essa série com muita força poética.

(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente na Tribuna do Planalto, 18/12/2011)

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

A lavoura prosaica de Edival Lourenço



Se será um clássico da literatura produzida em Goiás só o tempo vai dizer, mas Naqueles morros, depois da chuva (Hedra, 2011, 236 páginas, R$ 36), de Edival Lourenço, é uma obra de mestre, de quem sabe manejar a linguagem para alçar os voos altos da criação.

Ambientado no século XVIII, o romance narra os primórdios da fundação do estado de Goiás, mostrando os conflitos entre nativos e exploradores do ouro e, principalmente, a aventura quase errante de uma comitiva oficial que traz o novo governador da província de São Paulo para elevar o Arraial de Nossa Senhora de Santana a Vila Boa de Goiás.

Dom Luís de Assis Masca­renhas, personagem real, vem terminar o que seu antecessor não conseguiu. Este “veio da província de São Paulo, de mula, e voltou de vento: só a alma”. E quem narra é a figura mais interessante do romance de Lourenço, uma ficção que ganha vida absoluta e toma conta do livro inteiro num monólogo ritmado, que não deixa, em momento algum, a peteca cair.

O narrador é conhecido como o homem da cobra, porque como sentinela traz uma jiboia de nome Messalina enrolada ao pescoço, enquanto segura firme o pescoço dela, durante as vigílias noturnas. Se ele cochilar e afrouxar seu pulso, a cobra o enforca, e ao mesmo tempo não pode matá-la.

Há tanto tempo sendo chamado assim, nem se lembra mais de quando seu nome deixou de ser pronunciado. Diz que é filho bastardo de Barto­lo­meu Bueno da Silva, o segundo Anhanguera, com uma escrava. E que só por isso se livrou dos grilhões. Seu pai, que não o as­sumiu como filho, teve ao me­nos a decência de não o escravizar.

Pela armação do texto, desde o título, outra grande personagem do romance é o lugar, a região das Minas dos Goyazes e adjacências, em que se veem mescladas a vida privada e a pública. A viagem da comitiva oferece ao leitor a apreciação da paisagem e das cenas que ilustram uma época, uma passagem da história brasileira, em geral, e da goiana, em particular.

Outros sertões

Não é à toa que Naqueles morros, depois da chuva traz um título tão semelhante e ao gosto de Grande sertão: veredas. Têm naturezas parecidas. Longe de querer pôr aqui os dois no mesmo barco. Mas não há dúvida de que Lourenço tinha consciência dessa aproximação, e nem podia ser diferente.

Em certo trecho, o narrador diz “coragem em mim, às vezes é não, às vezes é sim. Sou muito carecedor é da sustância que na hora me acuda.” Quem leu Grande sertão: veredas deve se lembrar de um momento parecido, quando Riobaldo tenta explicar o medo que lhe correu pela espinha no confronto com o diabo: “Medo, não, mas perdi a vontade de ter coragem.”

O monólogo, tal como o faz Riobaldo no romance fundante de Guimarães Rosa, a linguagem trabalhada pela expressividade de um lugar e tempo que está diretamente ligada aos gerais, tudo isso dá ao romance de Edival Lourenço o tom de uma criação de grande valor.

No coração das minas dos goyazes surgem várias personagens que compõem o quadro geral desse romance de fundação. Muitas delas criadas na atmosfera do realismo fantástico, no ambiente místico de uma época dura, sem romantismo, pessoas afundadas numa realidade que não distinguia muito da magia e do mistério da vida, do medo, da sensação de esquecimento, da violência desmedida.

Fantástico

De um lado estão os caiapós, que se preparam para uma batalha épica contra os homens brancos que usurparam as terras dos goyazes e que certamente renderiam as outras tribos. Para antecipar a batalha e tentar salvar sua nação, os caiapós desenham estratégias bélicas, fazem exercícios de guerra e começam a atacar os mineiros, numa fúria arrasadora.

De outro lado, vem a comitiva do novo governante de São Paulo de Piratininga. É nessa trilha onde surgem os principais acontecimentos da narrativa, caminho pelo qual a comitiva vai encontrando os rastros de destruição deixados pelos indígenas, além de sofrer fenômenos estranhos de doenças e superstições.

A certa altura eles se deparam com uma figura maravilhosa (do realismo fantástico) chamada Zumba Macumbela, que para alguns já passou da idade de morrer de tão velho, e para outros já morreu há muito tempo, mas, por ter pacto com o diabo ainda zanza por aquelas plagas. “Tem capacidade de exalar-se quando não quer ser visto (...). às vezes desaparece, sem mais nem menos, como que por encanto.”

“Às vezes, vira outra coisa: um murundum de cupim, um toco de pau seco, um cogumelo, uma árvore com vento individual ou com flores de chama, um enxame de abelhas ferozes, um sapo emproado, uma jaguatirica furiosa, um pássaro voando, um grito zunindo, um rodamoinho, uma nuvem que passa com zunido de chuva sem chover.”

As proezas de Zumba Macumbela são inúmeras. Ele caberia sem dificuldades num roteiro de HQ. É ca­paz de voar “enganchado em seu bastão de peregrino, com a tralha tremulando ao vento e tamborilando nas costas (...). Às vezes salta com suavidade do cimo das montanhas, segurando seu cajado ao meio e fazendo ele rodar por entre os dedos feito as pás velozes de um moinho de vento.”

“Dizem que ele banca até um riacho correndo para cima com cachoeira e tudo (...).” To­das essas proezas ainda parecem mínimas perto de realizações ainda mais fantásticas, que o aproximam sem a menor sombra de dúvida do grande pai das peripécias, o próprio diabo.

Tem o dom da onipresença e de “chegar ao destino antes de sair de onde esteja, ou de aparecer de repente, como se chegasse sem ter vindo. Às vezes não chega de todo, só o mau cheiro; às vezes chega a tralha, depois ele. Às vezes chega a voz e ao redor da voz ele se faz sem chegar.”

O romance e a negação da fábula

Zumba Macumbela tem uma importância fundamental dentro da narrativa de Na­que­les morros porque é ele quem evita o confronto da comitiva com o batalhão de índios que passa pelos povoados arrasando tudo. Ele previne dom Luís de Assis Masca­renhas, que acampa no Arraial do Meia-Pon­te (futura Pirenópolis) e fica lá até se sentir seguro para con­tinuar a marcha rumo ao Ar­raial de Nossa Senhora de Santana.

Neste sentido, Macumbela é o anticlímax da história. E é a chave principal do não-romance proposto pelo autor. Por causa dele não existe a batalha épica, da mesma forma que ele mesmo é uma figura simbólica da aventura humana, ele mesmo existe apenas no imaginário da cultura, é um não personagem dentro de um romance histórico.

O que não acontece nesta narrativa de Edival Lourenço é matéria para outra leitura, mas podemos vislumbrar algumas coisas. Anhanguera, por exemplo, surge no início como uma promessa de protagonista, como se sua velhice é que fosse ser contada, o outono do diabo velho. Mas, nada.

No decorrer da viagem, a comitiva encontra um vilarejo massacrado pelos índios, onde sobrevivem apenas um velho com sua filha. Aquele põe a filha à venda. O governador diz não à proposta. Mas aceita levá-los na trupe, fazendo nascer a promessa de um futuro romance, que é frustrado ao longo da narração.

A narrativa (não a narração em si, mas a técnica, a linguagem, a forma, enfim) dá a entender que haverá o confronto. Os caiapós se preparam para isso, e o governador continua a marcha na expectativa da resistência. Mas os índios desistem da luta, e os homens brancos chegam sãos e salvos.

O narrador é fulcral, muito bem desenhado pelo autor. Foi castrado num momento pré-narração. Conta essa história e promete vingança. “Jurei a mim mesmo, por tudo de mais sa­gra­do que possa haver, que o dia em que eu topar o Trairi­nha, o chefe da escumalha que botou fora meus petrechos de macho, vou vingar dele, com adornos de crueza.” O leitor espera essa vingança, mas ela não acontece.

Genocídio

Por tudo isso, a narrativa é o grande sucesso do romance. Uma linha da história contada é capaz de comprovar a eficácia do autor. Até certa altura, o narrador é o sentinela substituto, e assume o posto definitivamente quando morre o primeiro, que é um legítimo goyá. E aí o narrador diz: “morria ali o derradeiro dos derradeiros da dita nação goyá.”

Não precisa mais do que isso para ter narrado (sem narrar) a extinção de um povo. O genocídio está registrado, como está prenunciado o que virá contra os caiapós. Esse jogo de tramas e não tramas é típico do romance moderno. E o de Edival Lourenço traz essa carga de modernidade, principalmente, em se tratando de uma ambientação de época.

A riqueza de detalhes da pai­sagem humana e geográfica é outra mostra da importância do lugar como personagem. Isso vem aliado a uma su­cessão de frames narrativos, com cortes e zooms cinematográficos e um narrador que ultrapassa seu tempo. Sua cultura livresca às vezes parece extrapolar a fronteira de seu sa­ber, deixando escapar vestígios de erudição do próprio autor.

Não pelos livros e ideias citados, porque isso, inteligente que é, mesmo num fim de mundo como era o Brasil colonial, ele poderia ouvir e ler (talvez às escondidas) dos viajantes cultos, como o próprio dom Luís de Assis Mascarenhas. Mas algumas palavras provavelmente não tinham registro em sua época.

Palavras como ‘guerrilheiro’ e ‘negrada’ são vocábulos que só vieram a ter registro no final do século XIX. E é pouco provável que elas existissem na boca de quem quer que fosse na primeira metade do século XVIII. Menos provável ainda é que o autor, em suas pesquisas, as tivesse encontrado.

Filhos da mistura

Ou seja, é um prova da mo­dernidade do texto, porque há uma intervenção do autor, que ultrapassa o narrador em si. Existe um ditado popular, se­gun­do o qual uma pessoa falastrona ‘fala mais do que o ho­mem da cobra’, e esta é a sen­sação do leitor quando (ouve) lê o narrador de Naqueles morros.

O sopro moderno na alma desse narrador que nasceu no último ano do século XVII também pode ser visto pelo riso, a ironia, o jogo de palavras, o rit­mo de sua fala, que vêm em con­traste com o espírito da época.

O narrador, o espaço e o tempo em que se crava a narrativa são as melhores coisas deste livro, que ainda têm inúmeros casos e personagens excêntricos e interessantes. Há uma fina sugestão de que somos mesmo, do aedo ao grão-mestre, filhos da mistura.

O que vale pouco (o narrador) é filho de um dos homens mais importantes da história de fundação de Goiás. O que mais manda, gene da alta roda, é fi­lho incógnito de um “flâmulo ser­viçal da casa.” Goiás agora tem um débito com Edival Lourenço.

(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente na Tribuna do Planalto, 11/12/2011)

sábado, 10 de dezembro de 2011

Umberto Eco e os livros que não lemos

Temos todos em nossas casas dezenas, ou centenas, ou mesmo milhares (se nossa biblioteca for imponente) de livros que não lemos.

Entretanto, um dia ou outro, acabamos por pegar esses livros na mão para perceber que já os conhecíamos. E aí? Como reconhecemos livros que não lemos? Primeira explicação ocultista que não considero: ondas circulam do livro até você.

Segunda explicação: ao longo dos anos, não é verdade que você não abriu esse livro, você deslocou-o diversas vezes, talvez tenha até mesmo folheado, mas não se lembra.

Terceira resposta: durante esses anos você leu um monte de livros que citavam esse livro, o qual terminou por lhe ser familiar. Logo, há diversas maneiras de saber alguma coisa sobre livros que não lemos. Felizmente, senão, onde arranjar tempo para reler quatro vezes o mesmo livro?

(Umberto Eco, in: Não contem com o fim do livro (Record, 2010, 272 páginas, tradução de André Telles, R$ 39,90)

domingo, 4 de dezembro de 2011

Caminhando, deslumbrado, sobre pedras


Atualmente, nossas estantes estão mais enriquecidas com traduções diretas da fonte de literaturas importantes sempre como a japonesa, a russa, a árabe e a chinesa, além das que se já conhecem tradicionalmente. Uma das razões para isso é a chegada de um novo tempo para o valor que se dá aos tradutores.

Muitos nomes surgiram com força nos últimos 20 anos, como Mamede Jarouche (árabe), Rubens Figueiredo (inglês e russo), Paulo Henriques Britto (inglês), Paulo César Souza (alemão), Paulo Bezerra (russo), Sonia Branco (russo) e tutti quantti. Como lastros deste grupo tão competente, há nomes fundamentais.

No caso da cultura russa, Boris Schnaiderman é um dos que mais contribuíram para a elevação da qualidade nas traduções dos principais romances de lá. Para saber mais sobre essa aventura e arte de traduzir, chega às livrarias Tradução, ato desmedido (Perspectiva, 2011, 216 páginas, R$ 30), que Schnaiderman vinha prometendo publicar há uns dez anos, e que agora chega aos olhos do leitor.

Tradutor de linha de grandeza incomparável, Schnaiderman é responsável por uma gama incrivelmente rica de traduções do russo, das grandes obras de Dostoiévski, Tolstói, Tchekhov e, em parcerias, dos poetas Maiakovski e Pushkin. Além disso, é fundador do curso de russo da Universidade de São Paulo, ensaísta e dono de uma prosa fácil de ler, que foge aos clichês intelectuais.

Quem lê Tradução, ato desmedido sai ganhando com as dicas literárias, com o debate em torno da dificuldade imposta pelo ato de traduzir e com a sensação de que o autor esteve falando pessoalmente com o leitor.

O livro é composto de textos publicados na imprensa em épocas diferentes, resultado de conferências, reflexões, anotações e impressões de viagens à Rússia. Aborda os inúmeros aspectos de um trabalho de tradução.

As complicações, as impossibilidades, o delicioso labor da palavra convertida, a ponte armada para a transposição dos sentimentos possíveis, as lacunas, as ambiguidades e chistes de uma língua, que parecem não caber em outra jamais. Eis a tarefa do tradutor, alinhavar tudo isso, que vem como prazer doloroso.

Néctar e fel

Segundo Schnaiderman, o ato de traduzir é desmedido porque não se pode prender aos grilhões da gramática, nem da semântica mesma, ou de alguma lógica linguística, simplesmente, sob pena de se perder o filão da arte contida nas palavras da língua de partida. É preciso navegar com coragem, portando uma bússola de sensibilidade. É preciso mergulhar na vida.

Para ele, o exercício da tradução é “elixir e veneno, néctar e fel”, e cita o título de um dos livros de Ortega e Gasset, indispensável a quem queira se aventurar por essas águas tão imprecisas, “esplendor e miséria”, é o que é o ato de traduzir. E arremata: “a tradução é dos atos capitais da vida humana.”

Um xará seu, Boris Pasternak, lembra que traduzir é uma “entrega total”. E isso implica, dialoga Schnaiderman, “numa caminhada sobre pedras, em obsessão contínua, mas ainda em momentos de raro deslumbramento. E não estará neles a verdadeira recompensa do tradutor?”

Em seu livro, Schnaiderman fala de um universo imenso, mas fala sobretudo da literatura russa, cuja língua é a sua de origem. Nasceu em 1917, na cidade de Úman, Ucrânia. Seus pais, no entanto, só falavam em russo, passando ao largo do ucraniano. Como veio para o Brasil aos oito anos de idade, com a família, acabou se naturalizando brasileiro e hoje chama o português de “nossa língua”.

Ler Tradução, ato desmedido é também estar em contato com uma inteligência superior e bem ilustrada. Não deixa de ser uma grande aula de literatura, humanismo e um ensinamento de como se permeia o outro lado, o lado estrangeiro, a face além-fronteira da linguagem.

Apesar de haver uma autobiografia publicada do autor, neste livro podemos acompanhar outros elementos de sua vida que jogam luz sobre sua condição de tradutor e de homem desenraizado que ele é. Ele conta casos pitorescos que se convertem em caminhos de espinho e delícia da tarefa de traduzir. Mas também relata situações dramáticas, emocionantes que lhe são caras.

Um exemplo daquilo que se passa em sua alma é o relato memorialístico, em que ele diz se sentir um estranho no mundo. Embora tenha nascido em Úman, viveu sua infância em Odessa. Mesmo de família judaica, não falou ídiche, tampouco ucraniano, e muito cedo ainda partiu de sua terra natal para um país completamente distante.

Diáspora

Em suas memórias e neste livro agora resenhado, Schnaiderman explica que a razão de sua diáspora não fora política. Seu pai era comerciante se sentiu sufocado no ambiente pós-revolução que se criava na região e decidiu vir tentar a vida no Brasil. Mesmo assim sabemos quão caro seria ficar na terra dos pogroms. E sentimos isso na revelação que o autor faz nesses relatos.


Eu me sinto às vezes como um bicho estranho, um pterodáctilo surgido de repente em nosso mundo.

Tendo passado a primeira infância em Odessa, vivi ali num meio completamente russo, embora a geografia nos ensine que essa cidade e porto importante do Mar Negro fica na Ucrânia. Eu só ouvia falar russo, frequentei escola russa e aprendi a ler em grandes cartilhas onde havia sempre um retrato de Lênin.


Numa passagem mais adiante, ele comenta que essas lembranças parecem estar todas ligadas a seu trabalho de tradutor. São lembranças que formam ou questionam uma identidade, mas também, pela vivência e pelas diversas leituras da palavra e de mundo, calam em seu espírito por ser judeu.

Em 1987, Schnaiderman e a mulher, Jerusa, viajaram para Odessa. Na ocasião, tinha 70 anos de idade, 62 anos, portanto, depois de sair de lá. Nessa viagem, ele fez uma série de reflexões de todo o passado que tangencia sua vida e que, na opinião dele, influencia em sua maneira de traduzir a literatura russa.

O que dizer da visita que fizemos ao prédio onde morei com meus pais e minha irmã, antes de viajar para o Brasil?

Soubemos que ali ficara instalada, durante a ocupação romena de Odessa, a polícia política, o equivalente romeno da Gestapo, e que atuou numa íntima cooperação com esta. E ali mesmo se efetuavam os interrogatórios acompanhados de tortura.

Quem me contou isso foi um judeu velho residente no prédio, um homem triste, grisalho e muito magro, que se afeiçoou fortemente a Jerusa. Ficamos sabendo, também, que a tristeza em seu rosto tinha um motivo bem concreto: ele fizera os maiores sacrifícios para que sua filha pudesse emigrar para o exterior com o marido, e agora ela nem mandava notícias.

“Mas para onde ela foi?” - perguntei-lhe. Resposta: “Ora, ela foi para onde todos vão, para o Brooklin”. Abraçamo-nos por despedida, e como não tivéssemos conosco nenhum objeto melhor, Jerusa deixou-lhe de lembrança uma canetinha sem valor. Quando saímos dali, ele ficou acenando de longe e apertando ao peito aquela canetinha.


Sim, “a tradução vivida”, afirmou Paulo Rónai e eu me convenço cada vez mais da justeza desta afirmação.


Obstinação

Apesar de passagens comoventes como estas, e tantas outras que defrontam o homem com sua condição judaica, e humana, acima de tudo, há também o horizonte aberto da arte de traduzir, amplo demais, perigoso demais, e ao mesmo tempo fascinante ao extremo.

Tudo isso aprendemos com Schnaiderman. Ele reforça que uma língua se aprende quando se entende o funcionamento de seu ritmo. Na tradução, ainda é preciso ir além e compreender o ritmo da cultura, do autor e da linguagem construída naquilo que se vai traduzir. “Qualquer tradução de uma obra, o tradutor tem de lê-la ‘em seus ritmos’ e recriá-los. Caso contrário, não existe tradução digna deste nome.”

Outro nó górdio da tradução é o fato de se pretender à altura do traduzido. “Não tenhamos dúvida: qualquer compromisso de traduzir um grande escritor é ato de soberba”, avalia. E humildemente se retrata: “falando com franqueza, quem sou eu para traduzir um Tolstói, um Dostoiévski.” Mas logo se recompõe para encarar o desafio. “É uma exorbitância que eu tenho de assumir, quem puder que o faça melhor.”

Numa passagem adiante, Schnaiderman explica melhor essa angústia, e alivia os tradutores medianos, argumentando que não é necessário estar à altura do gênio do traduzido (pois muitas vezes é impossível), mas pelo menos à altura de sua obstinação.

“Evidentemente não se pode esperar que Dostoiévski seja traduzido por outro Dostoiévski, mas, desde que o tradutor procure penetrar nas peculiaridades da linguagem primeira, que se aplique com afinco e faça com que sua criatividade orientada pelo original permita, paradoxalmente, afastar-se do texto para ficar mais próximo deste, um passo importante será dado.”



(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente na Tribuna do Planalto, 4/12/2011)