sexta-feira, 29 de abril de 2016

Justin Bieber versus Shakespeare

Pesquisa nos EUA revelou que as letras de Justin Bieber são mais conhecidas pelos jovens entre 18 e 25 anos do que frases das peças de Shakespeare. Cinquenta por cento, por exemplo, reconhecem a autoria de “Girlfriend, girlfriend, you could be my girlfriend” ou “Is it too late now to say sorry?”, e apenas 33% sabem de quem são as frases “To be or not to be. That's the question” ou “Life's but a walking shadow, a poor player that struts and frets his hour upon the stage, and then is heard no more.”

Não me espanta. O problema não é esse. A contemporaneidade banha o sujeito com a água que tem. O tempo é outra coisa. Depois de sua morte, Shakespeare permaneceu obscuro por quase 200 anos, até ressurgir como um sol iluminando o mundo moderno. Quando Bieber morrer e for esquecido, talvez nunca mais volte à luz da lembrança humana. Never more! Quoth the Raven.

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Dez filmes extraordinários, segundo Fernando Meirelles

Cena de Ela, com Joaquin Phoenix no papel principal

Fernando Meirelles listou para a iTunes Store dez filmes com personagens incríveis e explicou (ou tentou explicar) “por que cada um deles é uma experiência única da sétima arte.” Eis uma lista de cinéfilo.

Birdman (2014), de Alejandro G. Iñarrítu (México, filme com extraordinário elenco americano, rodado em inglês)
Pela técnica apurada de fazer parecer um único plano sequência, “o mais impressionante que se viu. Um plano criado para falar sobre fama, sobre ego e sobre um certo cinismo dos nossos tempos.”

Além da linha vermelha (1998), de Terrence Malick (EUA)
“Um filme de guerra que não fala de guerra, mas do que está por trás da guerra. Um filme que tenta entender de onde vem o mal.”

O escafandro e a borboleta (2008), de Julian Schnabel (EUA)
O filme conta a história real de Jean-Dominique Bauby, jornalista francês que, ao sofrer um acidente cerebral, em 1995, e passar 20 dias em coma, acordou sem movimento nenhum no corpo e descobriu que era portador de uma doença rara, conhecida como síndrome de locked-in (encarceramento), que permite o paciente mover apenas a pálpebra do olho esquerdo. Piscando apenas uma das pálpebras, ele conseguiu escrever um livro, O escafandro e a borboleta, que virou o filme de Schnabel, artista plástico que deu um tom maravilhoso para as cenas do filme. “É brilhante!”, diz Meirelles. O personagem também é brilhante, com soluções incríveis para vida dele, escreveu um livro estupendo. (Leia resenha)

A grande beleza (2013), de Paolo Sorrentino (Itália)
“Tragicomédia sobre os ricos ociosos da Itália (...). Filme sensual, estranho e triste (...). Filme para deixar rolar e mergulhar sem ansiedade de querer chegar a algum lugar. Mereceu todos os prêmios que recebeu.”

A onda (2008), de Dennis Gansel (Alemanha)
“Ah, se as escolas fossem assim! Em sua aula sobre autoritarismo, o professor Wenger ouve dos seus alunos que a Alemanha jamais cairia no mesmo erro ao olharem para trás e saber o que sabem hoje. O professor organiza então uma espécie de clube no qual quase todos seus alunos vão entrando. Aos poucos, a classe vai compreendendo que caiu na mesma armadilha que levou a Alemanha ao Nazismo. Os mecanismos deste processo estão todos ali. Lembrei de A onda ao ver recentemente cartazes pedindo a volta dos militares (ao poder) no Brasil. Até que ponta a história nos ensina?”

Latitudes (2014), de Felipe Braga (Brasil)
Filme brasileiro, com Alice Braga e Daniel de Oliveira, sobre um fotógrafo que tem oito encontros amorosos com uma editora de moda em oito lugares diferentes. “O que o filme tem de extraordinário é ter sido rodado como uma série para internet, depois virou série para a TV e, finalmente, este longa com alto valor de produção.”

O homem duplicado (2013), de Denis Villeneuve (Canadá)
“Esta adaptação de uma história de José Saramago é a prova de que com quase nenhum orçamento é possível fazer um grande filme quando se tem um bom roteiro e um excelente ator (Jake Gyllenhaal).”

Boogie nights: prazer sem limites (1997), de Paul Thomas Anderson (EUA)
“Apesar de ele contar a história de um lavador de pratos bem equipado que vira astro do cinema pornô, pode-se dizer que este é um filme sobre uma família (...). Fama, inveja, sexo e dinheiro são elementos comuns em filme e, estão todos lá. nada disso é fora da casinha. O inusitado é conhecer um pouco o lado de dentro desta indústria e, principalmente, a maneira como este diretor, este, sim, fora da casinha (genial), conta suas histórias.”

Azul é a cor mais quente (2013), de Abdellatif Kechiche (tunisiano francófono)
“O filme é pura nitroglicerina (...). Apesar da busca desenfreada pelo prazer, o que fica é a delicada história da descoberta dos sentimentos pela jovem Adele.”

Ela (2014), de Spike Jonze (EUA)
História de um homem que se apaixona pela voz de uma secretaria eletrônica. A diferença é que o homem é o ator Joaquin Phoenix e a voz é de Scarlett Johansson. “Este filme fala sobre a capacidade de as máquinas aprenderem, mas numa área onde os humanos ainda acreditam serem imbatíveis, o sentimento e a capacidade de amar. Máquinas poderão sentir? Desconcertante por ser real e por estar mais próximo do que imaginamos.”

Para fechar, um trecho da abertura do texto de apresentação que diz: “Uma das marcas de um bom filme é se lançar além do seu enredo imediato e entregar algo mais ao espectador: uma ideia, um sentimento, uma contemplação.”


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quarta-feira, 6 de abril de 2016

Literatura e nós

Literatura é linguagem carregada de significado em seu grau máximo, como disse Ezra Pound, e dentro dessa carga estão o arquétipo, o mito, a lenda, as tradições retrabalhadas. Neste sentido, a obra mais brasileira, mais original é Macunaíma. Grande sertão: veredas é uma espécie de Fausto, Dom Casmurro é um Otelo. Já Macunaíma nasceu de um arquétipo genuinamente amazônico. É nóis por inteiro, pela criatividade, pela agilidade mental, pela capacidade de ser preto e branco ao mesmo tempo (pluralidade) e, claro, pela preguiça, quer dizer, não exatamente a indisposição ao trabalho, mas a fatídica indisposição à ação. A passividade é uma tragédia tupiniquim.


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segunda-feira, 4 de abril de 2016

A epifania sinistra: leitura de Lúcifer e outros subprodutos do medo, de Whisner Fraga


Todo artista cria como quem quer trazer ao mundo uma novidade, uma nova verdade incrustada nas coisas, uma revelação. Uma coisa interessante na obra de Whisner Fraga - escritor mineiro de 45 anos com vários livros de contos, romances e poesia publicados - é o modo como ele representa essa vontade de recriar.

Sua coletânea de contos, aqui propostos como micronarrativas, intitulada Lúcifer e outros subprodutos do medo (Editora Penalux, 2015), nos expõe a um cotidiano fracassado, um mundo caído, em que o medo é o elemento fulcral. Mesmo o afeto, quando manifestado, é manifestado a partir de uma situação criada pelo medo, como no conto Sorte, em que um homem é assaltado, e ao chegar em casa são e salvo, se põe a manifestar uma sensação de alívio por estar perto da família.

Modo geral, a prosa de Fraga avança sobre o significado das coisas usando a gramática da poesia. Seus romances têm pegadas de contos contínuos, progressivos, como Abismo poente, mas em imagens superpostas semelhantes ao fazer poético, que muitos chamam de proesia, proemas.

Seus contos também têm essa pegada poética. Neste sentido, Lúcifer e outros subprodutos do medo é um avanço sobre o que o autor havia feito na coletânea de poemas publicada em 2010, O livro da carne. Este trouxe um deus propondo em vez do verbo a carne, um deus mundano, recriador do universo cristão, recriador da mitologia, um deus meio sacana, meio profano.

Lúcifer e outros subprodutos do medo, para representar a recriação do cotidiano, que a rigor é o mesmo que recai sobre nós, ensaia um deus da individualidade que troca a narrativa baseada no verbo (Bíblia) e na carne (O livro da carne), passando direto para o elemento sexual, cuja premissa pode ser a seguinte: no princípio era o sexo, e o sexo estava com Deus, e o sexo se fez medo e habitou entre nós. E do medo criaram-se todos os males.

Coisas do cotidiano

O medo é o produto orgânico da existência, e também prolifera suas crias como animal selvagem. Mas o medo também é a própria existência. Eis a tese da narrativa de Fraga. Ao longo dos microcontos, aparecem vários dos tais subprodutos, como a recusa da entrega ao desejo (medo do prazer ou da crítica moral), negação da paternidade (medo da responsabilidade sobre a vida), escamoteação da velhice (medo da morte), um motivo para a separação (medo de amar), o exercício da violência (medo do outro). Ou seja, são as coisas do cotidiano atualizadas nesse mesmo mundo em que vivemos. Somos nós, de certo modo.

A grande pergunta, no entanto, é por que o autor escolheu a figura de Lúcifer como subproduto do medo para ser o título da coletânea? A micronarrativa que dá conta dessa resposta é a vigésima primeira. E aí o leitor entra numa bifurcação de todos os contos e suas razões de estarem no livro.

No conto Lúcifer, o leitor acompanha o drama de três colegas que querem se desfazer de um cachorro chamado Lúcifer. Ninguém quer o bicho, porque tem medo dele por ser um dobermann. Os donos então decidem matá-lo. Lúcifer foi crucificado “para o bem de todos”. Há uma série de metáforas embutidas aí, mas talvez a mais significativa delas seja o fato de lúcifer significar “condutor da luz”. Apagar o cachorro pode significar, portanto, apagar a luz, escolher o medo como sombria habitação da alma.

Em Grande sertão: veredas, Guimarães Rosa, tão mineiro quanto Fraga, escolheu falar do medo de Riobaldo como fruto do confronto com o diá, “Medo eu não tenho, perdi a vontade ter coragem”, diz Riobaldo. Nessa encruzilhada criativa, Riobaldo escolhe a luz, nega o medo (embora o tenho dentro dele), enquanto os personagens de Fraga escolhem o medo, ou o aceitam, e ele aparece sempre, eis a epifania sinistra.

O livro traz 61 micronarrativas. Há contos dotados de um peculiar senso de humor, como Erro, por exemplo, em que um rapaz faz uma tatuagem com o nome Jezus e depois descobre que está errado. Vê-se um deus errante na pele do sujeito que agora não tem coragem de mostrá-lo. Há contos polifônicos, como Swing, que de tão curtinho cabe aqui dentro: “Então, amor, gozou? Ele é melhor de cama do que eu?” Há um medo implícito aí, embora o subproduto explícito talvez seja o desejo. O que não está explícito é a identidade de gênero do sujeito que pergunta, nem a quem pergunta, só sobre quem pergunta.

Decifra-me ou cala-te

A segunda micronarrativa de Lúcifer e outros subprodutos do medo é uma advertência, sugere uma mensagem do tipo: compreenda que o que eu escrevo é hermético. Há uma mistura de cores e tecidos. Ao me ler, saiba por onde passam os fios. Decifra-me ou cala-te. O texto é uma ameaça, mas também é um convite. É, portanto, um crivo, uma peneira, um divisor de medo e coragem de enfrentar a literatura.

Fora da leitura de inspeção, de verificação da palavra, há a leitura do intervalo (vide João Alexandre Barbosa), a reflexão sobre o dito e a especulação sobre o não dito, que em síntese formam a judicação do crítico, o novo texto. Eu poderia me alongar sobre as micronarrativas fulcrais do sentido dessa coletânea, mas o leitor também tem o direito de se perder, para depois se achar, nesse microuniverso. Em todo caso, textos como A revolta, A promessa (belo exemplo do sopro da vida), Uma vez, Guerra, são os marco-guias dessa coletânea.

Guerra é o microconto que mostra mais que a guerra dos sexos. É o texto em que o autor deixa claro sua intenção de mostrar que há vários narradores e que o deus da individualidade, Eus, é um deus plural (leitura do intervalo), um deus contemporâneo, hedonista, terrestre, sem luz, criador da fertilidade, da vontade, um deus cujo altar é feito de sêmen, que pelo embate sexual torna-se o elemento reprodutor da vida, elemento replicador da vida, esta perpetuadora do medo.

Whisner Fraga persegue o sentido da criação (cosmogonia). Nosso juízo implacável sempre nos cobra posicionamento, sempre nos exige uma postura de acusação contra o mundo. Como não podemos criar mundos, porque não somos deuses, inventamos como artistas e expomos a criação diante do juízo estético. É isso que bons artistas fazem. Recriam o mundo. No caso de Fraga, há uma atitude deliberada de denunciar a inépcia da criação. O que há são projetos.

A criação do mundo fica na vontade de inteireza. Fica a denúncia de que o mundo vai mal e precisa ser recriado. É uma crítica a todas as cosmogonias, inclusive à cristã, a todas as invenções, inclusive a literária, a todas as promessas de um mundo melhor, inclusive as políticas. O conto Avenida liberdade, em que o narrador cita a fecundação dos fracassos idealizados, é um exemplo cabal disso.


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