sábado, 29 de julho de 2017

A origem do Big Brother

Modelo de Panóptico divulgado em reportagem do jornal americano The New York Times, em 2002: “O Panóptico é o diagrama de um mecanismo de poder reduzido a sua forma ideal.” Michel Foucault


Já imaginou os gabinetes de cada parlamentar munidos de câmeras apontando para tudo que dizem e fazem? Eles indo ao banheiro, falando ao telefone, articulando projetos e administrando a verba pública. Todos os dias. Vinte e quatro horas por dia, câmeras captando cada movimento, cada semblante alterado, cada uma das inflexões faciais, e as imagens sendo acessadas de qualquer computador?

Já imaginou esse procedimento também em todos os cômodos do Palácio do Planalto, na Granja do Torto, no Palácio da Alvorada, nos ministérios, nos apartamentos funcionais, nos carros e aviões oficiais, em cada uma das salas de qualquer órgão público, federal, estadual, municipal?

Câmeras escrutinando delegacias, cadeias, presídios, todas as selas de presos, sala do delegado? O olho eletrônico flagrando cada passo de cada um dos membros do funcionalismo público, seus agregados e degredados?

Seria bom ou ruim? Talvez só quando isso acontecesse, na inversão da distopia armada pelo inglês George Orwell (pseudônimo de Eric Arthur Blair), com câmeras filmando o Brasil, plugadas na internet, é que se poderia dizer que estrago ou benefício, que lixo ou luxo seria uma sociedade inteira olhando para os atos públicos como quem vê uma colônia de formigas por lupas potentes.

É claro que isso não passa de utopia. Não daria certo. É um tipo de lógica duvidosa, às raias do absurdo. Para partir já do extremo, os outros países teriam em mãos (em olhos) todas as informações da pátria vigiada. Mas o poder finalmente seria do povo, seria de quem vê com milhões de olhos, como se fosse uma mosca gigante de asas rápidas e voo rasante, pousando na ferida de quem desse um passo em falso.

É utopia porque o povo jamais será dono do poder. Pelo contrário, continuará sendo vigiado. De qualquer forma, esta é a gênese do Big Brother. A sugestão de fazer do povo “o grande e aberto comitê do tribunal do mundo”, no entanto, não é de Pedro Bial, nem de Tiago Leifert, tampouco de Boninho (diretor do Big Brother Brasil), nem mesmo de Orwell. Quem pensou pela primeira vez num sistema de vigilância permanente sobre prédios públicos foi um inglês do século XVIII chamado Jeremy Bentham.

A ideia de Bentham ficou registrada em O Panóptico, pequeno tratado de políticas públicas e filosofia, misto de projeto arquitetônico e conceito de reclusão de massa de 1787, que em 2008 ganhou nova edição em português, pela editora mineira Autêntica (200 páginas, tradução de Guacira Lopes Louro, M. D. Magno e Tomaz Tadeu). Mas o Panóptico não se estendia ao utópico desejo de o povo controlar o governo. Pelo contrário. O que o autor pregava era um projeto arquitetônico “aplicável a qualquer sorte de estabelecimento, no qual pessoas de qualquer tipo necessitem ser mantidas sob inspeção, em particular às casas penitenciárias.”

Não só as penitenciárias, mas fábricas, casas de pobres, manicômios, hospitais e escolas também eram alvos do autor. O prédio de qualquer um desses estabelecimentos deveria ser circular em cuja circunferência ficariam as celas. No centro do círculo, estaria o apartamento do inspetor, capaz de ver cada um dos quartos, numa perspectiva semelhante a raios “que saem da circunferência em direção ao centro.” O lado de dentro seria gradeado de modo a não atrapalhar a visão do vigilante e todos que quisessem olhar.

O olho vê

Os escritos de Bentham inspiraram uma legião de mentes férteis que viram no projeto um mundo inteiro de possibilidades. O mais famoso deles é 1984, livro de George Orwell, publicado originalmente em 1949, e que alguns anos depois da fatídica data, já na década de 1990, daria luz à um projeto de televisão bilionário, o Big Brother.

A parte de vigília cuidadosa e ininterrupta de quem gere a vida pública passa apenas de raspão no projeto de Bentham, quando ele diz que as portas desses edifícios seriam tal como as “de todos os estabelecimentos públicos deveriam ser: completamente abertas ao corpo do curioso em geral.” O que prevalece nos estudos, no entanto, é o detalhamento do sistema de controle social absoluto, em que cada minúcia da construção tem sua utilidade.

Bentham pôs em evidência a tirania do olhar. Esta edição é composta de três outros textos de Jacques-Alain Miller, Michelle Perrot e Simon Werrett, que comentam o projeto inventivo do inglês. Segundo Miller, o maior mérito da ideia benthamiana é a possibilidade de o olho ver sem ser visto. “Uma instância em que é mesmo preciso reconhecer um Deus artificial”, diz.

E foi justamente essa faísca de gênio, que aponta para uma onipresença, capaz de ver tudo, invisivelmente, um deus de espreita, cujo olhar se mantém na consciência do vigiado até mesmo quando o inspetor cochila, é que incendiou a imaginação de Orwell e o fez criar o primeiro grande irmão, que tudo sabia e tudo via. A gênese da figura do Big Brother, o tirano virtual, o poder totalitário de 1984, está no começo da primeira carta de Bentham.

O Panóptico é uma série de cartas escritas por Bentham da Rússia a um amigo na Inglaterra. Na primeira delas, ele diz, num estilo gaguejante: “Caro ***, vi, outro dia, em um de seus jornais ingleses, que se falava, em um anúncio, de uma Casa de Correção, planejada para *****. Ocorreu-me que o plano de um edifício concebido por meu irmão que, sob o nome de Casa de inspeção ou Elaboratório, ele está para construir aqui (...) pode proporcionar algumas sugestões para o estabelecimento acima mencionado.”

Distopia

O princípio do poder absoluto, capaz de controlar uma sociedade inteira por meio do olhar, da vigilância total, foi visto por Orwell como o fim da utopia. A liberdade não mais existia. E apontou para o futuro o momento em que essa ideia seria realidade. Por meio de um sistema de rede televisiva, todos os homens são controlados, reduzidos em sua individualidade a autômatos, falantes de uma língua reducionista de vocabulário e ideias.

Voltando a Bentham, hoje em dia, as grandes e médias cidades têm sistema de vigilância cujo objetivo é semelhante ao do pensador utilitarista do século XVIII, o de vigiar e às vezes punir (quando necessário, embora a ideia fosse a de coibir com a medida), mas numa perspectiva bem contemporânea, em que a vigilância intensa, o olho mirando todos, fendeu os espíritos em exibicionistas,  recuados e na defensiva.

Por outro lado, no que diz respeito a pesquisa e análise sócio-política, quem se debruçou nos estudos de Bentham mais profundamente foi Michel Foucault, em seu Vigiar e punir. Em A microfísica do poder também há uma entrevista de Foucault concedida a Perrot, um dos autores dos textos de apoio do livro de Bentham. Fica a dica para estudos sérios sobre a arquitetura como organização do espaço físico, social, mental e, sobretudo, político.

O programa Big Brother, que se vê na televisão do mundo inteiro e cujo preconceito intelectual coloca-o na esfera da lepra do entretenimento televisivo, é um programa que deveria ser estudado sob essa perspectiva filosófica. A sociedade do espetáculo, neste sentido, se constrói pela lógica do olhar, um tirano capaz de vigiar todas as ações e retirar do indivíduo qualquer possibilidade de reação espontânea. Tudo é show. Tudo é espreita. Só os ingênuos continuariam exercendo a espontaneidade.

O comportamento, o modo de agir, de se vestir, de comer também estão sendo monitorados pelas câmeras do Big Brother da vida real, nos shoppings, supermercados, nas ruas movimentadas de comércio etc. Para conferir, basta acessar um desses mecanismos de busca de imagem, como o Youtube, onde tudo está registrado.

A grande diferença da possibilidade do controle de Bentham para o que existe hoje, e existirá com mais força amanhã, é que não há necessidade de casas circulares com um ponto central. O que existem, e cada vez mais potentes, são câmeras circulares, olhos que tudo veem, tanto em realities shows quanto na realidades cotidiana.

(Gilberto G. Pereira. Texto de 2010 recuperado)
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terça-feira, 18 de julho de 2017

De costas para a África

                                                                                                                                               Photo: Lagos @ 50 website    

Fachada da Water House (Casa da Água), no quarteirão brasileiro em Lagos, Nigéria, ícone da herança dos descendentes de escravos

Sempre que assisto ao programa Inside Africa, da rede de TV americana CNN, sinto uma sensação ruim de que o Brasil, como sociedade e como Estado, não dá a mínima para a África, nem como mercado, tampouco como origem de uma porção fecunda da cultura brasileira. Com exceção dos movimentos negros, o resto alimenta o silêncio retumbante.

Em toda a história brasileira, o período em que o Brasil mais voltou seus interesses econômicos para o continente africano foi entre 2003 e 2010, no Governo Lula. Também foi quando as políticas sociais voltadas para os grupos marginalizados no Brasil foram implementadas ou reforçadas.

Em 2003, por exemplo, foi criada a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir). A instituição alavancou, e muito, a presença da cultura imaterial negra nas matrizes escolares e incentivou a denúncia contra o racismo institucional ou civil.

Se por um lado, a CNN fala sobre a África mais do que todos os canais brasileiros juntos, para ficar no paralelismo das ideias, por outro, não vejo a Globo News dedicando sequer um programa semanal à África, por exemplo. A CNN tem pelo menos três: African Voices; Inside Africa; Marketplace Africa.

Os EUA também foram exploradores da mão de obra escrava, e o interesse pelo continente dos ancestrais dos afro-americanos reflete um pouco essa demanda, mas certamente não é só por isso. Afinal, a meca do capitalismo não dá ponto sem nó. Há uma competição com a China, que também está muito interessada nesse mercado, sobretudo no Oeste africano.

O mundo árabe, que também foi um grande consumidor da mão de obra escrava africana desde o século IX, já faz tempo se aboletou lá a ponto de quase a metade das 22 nações árabes estar no continente africano. Além disso, muitas outras nações, mesmo não sendo árabes, são muçulmanas, ou dividem a supremacia religiosa com o cristianismo meio a meio, como a Nigéria.

O Brasil é o maior herdeiro dos costumes, das cores, da alma da África, principalmente do Oeste do continente. A cultura brasileira deve muito à matriz africana vindo da Nigéria. Isso legitimaria uma atenção maior às nossas ancestralidades, mas não é o que se vê.

De solo nigeriano vieram para o Brasil os escravos da etnia iorubá. No século XVIII, após a Revolta dos Malês (muçulmanos), na Bahia, o governo imperial expulsou muitos negros livres e descendentes de escravos com receio de que houvesse nova revolta.

A partir daí, abriu-se um canal de deportação para a África, principalmente para a Nigéria. Muitos dos que voltaram foram justamente os iorubás, para Lagos, onde foi criada uma vila só de negros brasileiros, descendentes de escravos, ou africanos livres  forçados a voltar para lá.

No dia 14 de julho, o programa Inside Africa, da CNN, mostrou justamente a decadência dessa vila. Ela está sendo corroída pelo tempo, pela falta de interesse do poder público de mantê-la viva. Essa chama de aproximação entre a África e o Brasil está presente na culinária, nos prédios com traços da arquitetura brasileira e na música, em festas como o carnaval.

Reportagens como essa da CNN tinham de ser feitas pela imprensa brasileira também, mostrando o empenho de descendentes dos negros brasileiros que regressaram e levaram com eles a memória do Brasil. É uma espécie de refusão, como alguém que viaja e traz na mala de volta elementos que ressignificam uma riqueza já existente.

Na reportagem do Inside Africa, aparecem gente muito importante da comunidade nigeriana-brasileira, como Madame Angelica, 89 anos, dona da famosa Water House (Casa da Água). Segundo Nei Lopes, em sua Enciclopédia brasileira da diáspora africana, a Water House é um empreendimento “baseado na exploração de um poço artesiano para obtenção de água potável, segundo técnica desenvolvida no Brasil.”

A Water House foi fundada pelo avô de Madame Angelica, Cândido da Rocha, que nasceu na Bahia, em 1870, filho de escravos. A reportagem da CNN é uma pontinha do iceberg dessa história e está calcada no presente. Nei Lopes já aborda o fator histórico. Mas toda a história está em outros livros, incluindo o romance de Antonio Olinto, A Casa da Água, de 1969.

Essa história também está na internet. Não há novidade. A novidade seria uma abordagem jornalística em português, com captação de imagens recentes, ouvindo os personagens envolvidos nessa luta pela manutenção da memória e do vínculo cultural entre Brasil e África.

Segundo o arquiteto Lanre Towry Coker, a deterioração da comunidade é uma perda nacional. Ele e Pejy Fatuy, também arquiteta, são figuras importantes em Lagos que estão lutando para preservar a herança brasileira na cidade.

Historicamente, a  Nigéria tem uma importância por muito mais que isso. Basta lermos um dos livros fundamentais da literatura nigeriana, O mundo se despedaça, de Chinua Achebe, para percebermos certos elementos caros à nossa herança africana, como o cará e o inhame.

Histórias como a da luta pela preservação de uma memória em comum, no entanto, deveriam ser justamente a conexão inicial, deveriam estar na pauta de nossa imprensa. Esse silêncio escancara a mensagem de que estamos de costas para a África.


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