terça-feira, 29 de junho de 2010

O mundo é rugoso, torto e capenga, mas é belo


Quando Marcelo Gleiser lançou A dança do universo, em 2001, ainda seguia a proposição segundo a qual tudo que existe no cosmo é fruto de uma perfeição incontestável, uma arquitetura simétrica atrás da qual todos estavam e estão até hoje. Mas logo em seguida, o físico brasileiro, que construiu toda a sua carreira nos Estados Unidos e na Inglaterra, começou a mudar de ideia.

Este ano, ele lançou Criação Imperfeita: Cosmo, Vida e o Código Oculto da Natureza (Record, 2010, 366 páginas), livro que explica passo a passo as razões porque o Universo e, consequentemente, toda a matéria existente, até mesmo a vida na terra, não pode ser fruto da simetria tão buscada nos mínimos detalhes pela ciência.

Em Criação Imperfeita, Gleiser repassa um conhecimento gigantesco da astronomia desde seus primórdios até os dias de hoje para mostrar como os cientistas traçaram o conhecimento cosmológico sempre se baseando na linha invisível de Deus e como estão todos equivocados neste sentido. Ninguém, de Pitágoras a Einstein, salvo raras exceções, como Louis Pasteur, nega a criação de um Universo perfeito, simétrico.

Todas as pesquisas perseguem o achado que demonstraria a tese da simetria universal, em que tudo, das partículas mais elementares até a complexidade da inteligência humana, estaria simetricamente ligado a partir de uma origem comum. Esta ‘origem comum’ é o que muitos chamam de dedo de Deus, a chave para o acesso à mente de Deus. Mas, na verdade, diz Gleiser, esta busca pela explicação da simetria é quixotesca, desperdício de energia, de dinheiro e de tempo.

De acordo com Gleiser, os cientistas querem descobrir um mundo perfeito porque não suportam a ideia da imperfeição, da assimetria do Universo. E neste caso, a ciência segue um modelo divino da cosmologia. Para a maior parte das religiões, os deuses criaram o mundo. Não é diferente no pensamento religioso da chamada civilização Judaico-Cristã. Neste caso, um só Deus, Jeová, criou o universo, tão perfeito quanto Ele. É a fé monoteísta.

Os cientistas ateus, claro, negam a existência deste Deus, mas procuram respostas da perfeição do Universo nas leis da física. Esta busca é chamada de Teoria Final, ou Teoria do Campo Unificado. Haveria uma lei da física que explicaria passo a passo, simetricamente, a criação do Universo inteiro, com cada pedrinha se encaixando na outra, como luva na mão.

A pedrinha, neste caso, seria uma partícula elementar a partir da qual todas as partículas estariam ligadas de alguma forma, uma partícula tão polivalente que seria capaz de se tornar outras partículas, que se aglomeram e formam moléculas, gases e matérias. Todos os campos de força (o eletromagnetismo, a gravidade, a força nuclear forte e a força nuclear fraca) estariam ligados a ela.
Mas tal partícula nunca foi descoberta. Provavelmente não existe, diz Gleiser. No entanto, há muitas buscas, e a mais recente e mais famosa é a busca pelo bóson de Higgs, “a partícula responsável por dar massa a todas as partículas de matéria e de força”. Tudo isso é sonho em vão. “A Teoria Final é uma construção da mente humana, um mito monoteísta”, diz Gleiser.

Espelho quebrado

O espetacular no livro de Gleiser é sua recusa em acreditar em tudo que os mais geniais estudiosos da cosmologia e da física de partículas dizem. E ele faz isso usando as armas deles, quer dizer, apropriando-se dos estudos mais atuais dos próprios ‘simetristas’ que apontam para os fenômenos imperfeitos da criação, mas que os próprios estudiosos não acreditam, sempre levantando hipóteses belas, no entanto, improváveis.

Segundo Gleiser, esta insistência em querer descobrir um Universo perfeito é porque os cientistas não suportam a ideia de que o mundo é torto. Eles não aceitam o fato de que tudo que existe pode ser fruto de acidentes e imperfeições. Além disso, a assimetria tira o ideal de beleza que há nas teorias físicas que formam a Teoria do Campo Unificado.

No ambiente científico dominado pelos senhores da razão pura, da verdade absoluta, em que a palavra de ordem perfeição, a assimetria incomoda. Gleiser, no entanto, é categórico: “O fim de um certo modo de se fazer ciência se faz necessário, uma ciência que projeta conceitos divinos de ordem e simetria num mundo cheio de assimetrias e imperfeições.”

Há beleza na imperfeição do Universo, diz Gleiser. Somos “acidentes imperfeitos da criação”. Somos “agregados raros de átomos”. O universo é assimétrico e “a natureza usa um espelho quebrado”. Mas, apesar disso, ou por isso mesmo, há uma beleza fulgurante na existência. Apesar disso, ou por isso mesmo, somos especiais demais, diz Gleiser.

Cuidadosamente dividido em capítulos curtos, Criação Imperfeita é uma aventura pelas bandas mais incríveis do Universo. Apesar das densas teorias discutidas no livro, não há enfado, nem dificuldade de compreensão, porque Gleiser soube lidar com as palavras. Neste sentido, Gleiser é tão brilhante quanto Richard Dawkins, e muito mais diplomático do que este.

Dawkins, biólogo e intelectual brilhante, grande propagador da Teoria da Evolução de Darwin, diz que Deus é um delírio e que só idiotas acreditam no fenômeno divino. Diz isso com um escancaro de ofensas e sentenças que acredita serem verdades. Gleiser, por sua vez, sugere que se Deus é um delírio, a Teoria do Campo Unificado também o é.

A diferença é que Gleiser, mais polido nas palavras, sabe lidar com o divino com mais sabedoria. Ele afasta Deus de qualquer possibilidade de explicação cosmológica. Mas faz isso com muita diplomacia. “Acusar as pessoas que acreditam em Deus de serem ignorantes, loucas ou simplesmente estúpidas, não leva a nada”, diz.

Gleiser ainda levanta uma possibilidade. Segundo ele, ridicularizar a necessidade humana de fé é “demonstrar uma profunda ignorância (ou indiferença?) do que passa pelos corações e mentes de bilhões de pessoas espalhadas pelos quatro cantos do mundo.” Mesmo assim, seu livro, tal como os de Dawkins, nos joga na cara que a consciência é privilégio de poucos.

Homem culto e cientista aplicado, Gleiser cria com maestria uma espécie de passarela por onde desfilam os grandes magos da física, um por um, com o fim de montar as peças do quebra-cabeça do Universo. Pitágoras, Copérnico, Kepler, Galileu, Newton, Maxwell, Einstein, Bohr, e um imenso time de seguidores e renovadores de teorias estão presentes e analisados em Criação Imperfeita.

Brilhante

Muitos leitores já conhecem Gleiser de sua coluna no jornal Folha de S. Paulo. Houve um tempo em que ele também aparecia na TV Globo, na série Poeira das Estrelas, no Fantástico. Ele nasceu em 1959, no Rio de Janeiro. Graduou-se em Física pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, e em seguida foi para a Inglaterra dar continuidade em seus estudos. Seu pós-doutorado foi feito no Instituto de Física Teórica da Universidade da Califórnia.

Atualmente mora em Dartmouth, Estados Unidos, onde é professor de Filosofia Natural e de Física e Astronomia, no Dartmouth College. Casado e pai de quatro filhos, Gleiser está entre as mentes mais brilhantes da cosmologia. Aos que acham que para ser brilhante tem de criar algo novo, a tese defendida neste livro é profunda e no mínimo inquietante, embora não seja um pensamento original. Original talvez seja a abordagem.

A teoria da imperfeição vem sendo partilhada com outros pensadores e cientistas de nível não menos elevado, como o francês Louis Pasteur, citado por Gleiser, que disse: “O Universo é assimétrico e estou persuadido de que a vida, como nós a conhecemos, é resultado direto da assimetria do Universo ou de suas consequências indiretas.”

O filósofo alemão Hans Jonas também diz que “somos um acidente da matéria”. A Arte, como um dos campos do saber humano já havia cantado essa pedra de que se pode fazer a beleza a partir de elementos grotescos, horrorosos, anormais e outras assimetrias, há pelo menos uns três séculos, saindo da esfera clássica da criação e entrando na era moderna.

Já Gleiser, armado de argumentos e dados científicos, afirma que “a presença de toda uma gama de imperfeições terá um papel crucial na origem e na evolução da vida”. Criação Imperfeita é um belo livro. Para mentes mais suscetíveis talvez traga um pouco de desassossego. Mas aquele que sabe reconhecer o limite de seus horizontes não enlouquece com a vastidão do Universo.

Criação Imperfeita nos sugere uma dimensão extremosa do que pode ser o mundo e a vida. Mostra-nos o Universo como um abismo de segredos que se planta diante de nossos olhos e jamais sairá, como a esfinge nunca vencida, como a luz fina rodeada de escuridão. Esta floresta de desejo de conhecer, este mar de sede de saber mais sobre o fio destecido do destino humano, do fado da terra, nosso único lar até o momento, é a deliciosa aventura imprensa no livro de Gleiser.

Números

13,7 bilhões
de anos: idade do Universo, segundo a Teoria do Big Bang

13 bilhões
de anos: idade
da Via Láctea

4,6 bilhões
de anos: Idade da terra

3,6 bilhões
de anos atrás: a vida começou a
surgir na Terra

1,6 bilhão
de anos: surgem os
seres multicelulares

4 milhões
de anos atrás: surgem na África os primeiros gêneros Homo

1 milhão
de anos atrás (0,02% da história da Terra): manifesta-se e a inteligência tal como se conhece hoje

380 mil
quilômetros por segundo:
é a velocidade da luz

9,5 trilhões
de quilômetros: é o que a luz percorre em um ano, distância chamada
de 1 ano-luz

65 milhões
de anos-luz: é o limite do cosmo em expansão

2,5 milhões
de anos-luz: é a distância
de Andrômeda, galáxia vizinha da Via Láctea

4,37
anos-luz: é a distância
da estrela mais próxima
do Sol, a Alfa Centauro

100 mil
anos-luz: é o diâmetro
da Via Láctea

96%
da composição material do cosmo: são desconhecidos (73% = energia escura;
23% matéria escura)

4%
da composição material restante do cosmo: Prótons e Elétrons

Desses 4%:

75%
da matéria existente conhecida no cosmo:
Hidrogênio

24%
da matéria existente conhecida no cosmo:
Hélio

1%
restante: Carbono e urânio
e os outros elementos
da tabela periódica

1 trilhão
de trilhões de átomos: presentes em um grama de matéria

12
partículas (elétron, múon, tau, 3 neutrinos e 6 quarks).
“As outras centenas detectadas em experiências são combinações ou manifestações dessas 12 partículas.”


Serviço

Título: Criação Imperfeita
Autor: Marcelo Gleiser
Editora: Record, 2010, 368 páginas
Preço: R$ 49,90

(Publicado originalmente no jornal Tribuna do Planalto)

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Solidão e tristeza: um elogio da literatura latino-americana

Foto: Gabriel Figueroa Flores - 1984
Juan Rulfo (1918 - 1985): autor da obra prima Pedro Páramo

“— Como é que o senhor disse que se chama o povoado que se vê lá embaixo?
— Comala, senhor.
— Tem certeza de que já é Comala?
— Tenho, sim senhor.
— E por que isto parece tão triste?
— São os tempos, senhor.”
(Trecho de Pedro Páramo)


Uma vertente da literatura latino-americana rendeu muitos frutos nos últimos 50 anos. Vários escritores exploraram esse filão, vários leitores se identificaram com o tema: a solidão e a tristeza como essência da paisagem político-social em que todos se afundam. Em matizes diferentes, escritores como o peruano Manuel Scorza (1928 - 1983), o colombiano Gabriel García Márquez (1927 - ), o mexicano Ruan Rulfo (1918 – 1985) e o uruguaio Eduardo Galeano (1940 - ) se preocuparam em transferir para a ficção o peso dessa realidade. A obra deste último deixou mais marcas com um livro de pretensões sociológicas, As veias abertas da América Latina, que retrata a espoliação da riqueza do continente pelos predadores do Velho Mundo.

Mas é com Pedro Páramo, fonte da epígrafe do presente texto, que se sente a estocada maior. Rulfo escreveu este pequeno romance em 1958. Em cem páginas, o autor consegue armar e desfechar uma história densa, dramática, tendo como protagonista um rapaz chamado Juan Preciado que, quando a mãe morre, vai para uma cidadezinha chamada Comala, procurar o poderoso e violento Pedro Páramo, seu pai.

Narrado em primeira pessoa, o romance é polifônico. Juan não é o único a contar a história. Muitas vozes aparecem e somem, o que dá uma sensação de ladainha fantasmagórica, que posteriormente a trama se encarrega de revelar por quê. É assim que várias ações se sucedem, com diálogos que trazem à tona o silêncio e a indiferença, tudo milimetricamente pensado pelo escritor, com o objetivo de mostrar numa golfada de palavras o sentimento do povo.

Em certa passagem, a conversa entre duas mulheres nos dá a dimensão desse drama:

“ — Quantos pássaros você já matou na vida, Justina?
— Muitos, Suzana.
— E não ficou triste?
— Sim, Suzana.
— Então, o que é que você está esperando para morrer?
— A morte, Suzana.
— Se é só isso, já vem. Não se preocupe.”

Na visão do autor, eis o destino do homem comum: vir à terra para figurar como invisível, viver, se arrepender de ter vindo ao mundo e morrer. Rulfo é feliz em sua construção. O que se vê ao longo da trama é o tempo marcando o ambiente com o som e o cheiro da morte, envolvida em acrimônia e silêncio, medo e tristeza.

Mas por que a literatura latino-americana absorve tal sentimento, e faz dele quase um gênero? É verdade que isso está presente nas outras literaturas, mas não como uma corrente estética. Troquemos aqui o termo “tristeza” por “nostalgia”, ou seja, “estado de tristeza causado pela distância da terra natal”. E aí, pode-se traçar uma conjetura plausível.

O fato é que a nostalgia é endêmica à consciência histórica da América Latina. No Velho Mundo, esse tipo de saudade não existe tal como existe aqui, porque o povo de lá já executou seu processo migratório há milhares de anos. Depois disso, ao descobrir o Novo Mundo, a Europa enviou para um contexto geográfico diferente e longínquo seus aventureiros que há 500 anos chegaram e arrombaram tudo, rasgando a paisagem idílica que havia, se instalando feito donos do mundo e arquitetando a saudade de casa.

Nas américas, há um deslocamento impossível de ser corrigido. Os brancos, pobres ou ricos, vieram da Europa, os negros, miseráveis ou bem de vida, vieram da África, e os índios já quase não há. Dentro desse novo continente, o que diferencia a América Latina da Anglo-saxônica é a solidão. Só os daqui estão esquecidos pelo resto do mundo, e lembrados apenas como excêntricos, ou sendo levados a aparecer como tais. Foram essa solidão e essa tristeza que forçaram passagem no universo criativo de uma vertente de escritores, preocupados com o absurdo de sua realidade.

Mesmo com essa diferença entre as duas américas, existe uma tangência entre o círculo de suas culturas, que é o que vem dos negros dos Estados Unidos e do Brasil. Lá eles fazem blues, soul, gospel. Aqui, faz-se o samba. E o interessante é que quando se trata de tristeza na América Latina, talvez seja o único caso em que o Brasil se vira de frente para o resto do continente e compartilha essa dor. O samba de raiz apresenta um sentimento de saudade, um rasgo de nostalgia que não dá para não sentir.

É uma dor que está presente em todas as melodias do gênero. No carnaval ele parece animado, mas é só disfarce de alegria, como bem diz Vinícius de Moraes em seu Samba da benção: “fazer samba não é contar piada; quem faz samba assim não é de nada”, para emendar logo depois, “o samba é a tristeza que balança, e a tristeza tem sempre uma esperança (...) de um dia não ser mais triste, não”.

Mas a metáfora de maior impacto vem na frase que mais parece um chavão à toa: “o samba nasceu lá na Bahia, e se hoje ele é branco na poesia, ele é negro demais no coração”. Mais do que um trocadilho, há aqui uma constatação essencial. No cerne do samba paira uma tristeza que não tem mais fim. Na raiz do samba está a escuridão, a noite que se faz dia no instante da canção realizada – em nítida contradição – para alegrar a alma, porque a “alegria é a melhor coisa que existe, é assim como a luz no coração”.

Ao mesmo tempo que expõe a dor da alma, essa literatura da nostalgia apresenta contraditoriamente um viés irônico, risível da própria condição humana, talvez para continuar suportando o peso da vida. O primeiro livro da pentalogia de Scorza, sobre uma revolta camponesa por causa da exploração de uma companhia mineradora norte-americana, em 1960, no Peru, retrata bem esse outro lado da moeda. Bom dia para os defuntos, de 1970, é um grito de sobrevivência, mas com humor, a começar pelo título, que é uma tradução, mas que tem a mesma carga de ironia do título em espanhol, Redoble por Rancas.

A idéia de dar bom dia a um defunto é irônica, e a imagem de alguém cumprimentando vários deles é cômica, de um riso que não quer chegar à superfície, mas que se espalha nas camadas internas da consciência. E tudo isso para não morrer na solidão dos vivos.

Na verdade, a história do país de Scorza não dá muita margem a risos. A literatura da tristeza com lufadas de ironia serve como catarse, porque senão, seria preciso encarar no percurso de seu povo, do ‘descobrimento’ até hoje, um passado de violência e desamparo, como toda a realidade da América Latina, que muda muito lentamente, tão lentamente que os versos de Affonso Romano de Sant’Anna podem servir como eco para todos, ao falar da espada de Francisco Pizarro, o espanhol ambicioso que dizimou os incas e se figurou como o primeiro espoliador do Peru: “Eu vi a espada de Pizarro/ - era fina -/ numa tarde cinzenta em Lima.// Num museu podia ser um histórico ornamento./ Mas uma gota de sangue escorria/ escorria no assoalho ainda.”

(Publicado originalmente no jornal Tribuna do Planalto em março de 2006)

Deu na Folha de S. Paulo: Newton Cannito aprova próprio projeto

Newton Cannito

São Paulo, quarta-feira, 23 de junho de 2010, Ilustrada (Folha de S. Paulo)

Secretário do Audiovisual do MinC publica portaria autorizando um roteiro seu a concorrer a prêmio federal

Edital do concurso veta participação de pessoas ligadas ao Ministério; pasta afirma que houve um "erro no sistema"

DENISE MENCHEN
DO RIO

"O secretário do Audiovisual do Ministério da Cultura, Newton Cannito, teve um projeto de roteiro de longa-metragem de ficção de sua autoria habilitado para participar de um concurso público promovido pela pasta, que premiará sete pessoas com R$ 50 mil cada uma.

O ministério atribuiu a aprovação a um "erro no sistema" e, após ser procurado pela Folha anteontem, indeferiu a inscrição de Cannito.

A lista com os 68 roteiristas que tiveram inscrições aprovadas foi publicada anteontem no "Diário Oficial da União", em portaria assinada pelo próprio Cannito.

Criador da série "9 mm: São Paulo" e corroteirista do filme "Quanto Vale ou É por Quilo?", o secretário se inscreveu com o trabalho intitulado "Gênese".

O edital do concurso, divulgado em 1º de fevereiro, veta a participação de qualquer pessoa ligada ao Ministério da Cultura.

Procurada pela reportagem, a assessoria de imprensa da Secretaria do Audiovisual afirmou que a inscrição de Cannito foi indeferida, mas que, por um "erro no sistema", seu nome apareceu na lista de aprovados.

Não foi explicado que tipo de erro foi esse.

O órgão também afirmou que a informação seria corrigida na edição de ontem do "Diário Oficial da União", o que realmente foi feito.

Na nova publicação, o projeto de Cannito foi considerado indeferido porque "o concorrente exerce cargo público no Ministério da Cultura, contrariando o estabelecido no subitem 5.4 do edital".

Ainda segundo a assessoria, a inscrição do secretário foi feita antes de ele ter assumido o cargo, no último dia 7.

"A primeira coisa que fiz ao chegar à secretaria foi mandar cancelar todas as minhas inscrições. Houve erro de uma funcionária", disse Cannito, que participava de outros dois concursos.

Para ele, o fato não afeta sua credibilidade, pois o problema seria descoberto na etapa seguinte da seleção."

segunda-feira, 21 de junho de 2010

A Águia dos Méxicas

Bandeira mexicana

― Mestre, por que os mexicanos têm na bandeira nacional uma águia carregando uma cobra? No palco da Copa do Mundo, lá estão eles, orgulhosos e felizes, bonito de ver.

Segundo a Lenda – que no mundo da magia tem mais autoridade que a História – no ano de 1325 da Era Cristã andava uma tribo asteca, os méxicas, a errar pelo altiplano, em busca dum sítio para fixar-se, quando um dia Huitzilopochtli, o Deus da Guerra, apareceu ao Grande Sacerdote e ordenou-lhe que continuasse a caminhar com seu povo até encontrar uma águia empoleirada num Nepal, tendo nas garras e no bico uma serpente, pois nesse lugar deviam erguer uma cidade.

“Continuaram os méxicas sua peregrinação e um longo vale a cuja entrada se erguem os vulcões Popocatépetle e Ixtaccihuatl encontraram um cacto, a águia e a serpente, bem como havia predito a severa divindade. Numa ilha em meio do lago Texcoco, que cobria a parte central do vale, (isto já começa a ser História) ergueram os astecas suas primeiras cabanas de barro de barro e junco, dando à povoação o nome de Tenochtitlán.

“Só em fins do século XIV é que construíram as primeiras casas de pedra e as pirâmides, ou teocallis, destinadas aos sacrifícios. Entre a fundação de Tenochtitlán e a chegada de Hernán Cortés, mediaram duzentos anos, durante os quais a tribo méxica cresceu em número, poder e glória.

“Resolveu-se o problema de espaço vital com a construção de vastas jangadas – chinampas – que eram ancoradas ao redor da ilha principal. Nessas jangadas recobertas de terra, plantaram-se árvores e grama. O tempo encarregou-se do resto.

“Os sedimentos acumulados debaixo das chinampas e as raízes de suas árvores, que se aprofundavam penetrando no leito do lago, acabaram por transformar essas jangadas em pequenas ilhas. (Erico Verissimo, in: México. Editora Globo, 11ª ed., 304 páginas, pp. 34-5, 1996)

― Mas, Mestre, e Zaratustra, de Nietzsche, que se exila no topo de uma montanha, também com uma águia e uma serpente, por que ele faz isso?

“Eu sei lá! Não escrevi nada a respeito.”

A morte não faz intermitências

José Saramago (1922 - 2010)

José Saramago está morto. E junto com ele morre também uma dicção ímpar, uma voz que não só nos romances e nas crônicas, mas também na oralidade, prendia a atenção, convencia, uma voz persuasiva, muitas vezes ranzinza, outras vezes, tão jovial, no sentido de manter a esperança (ou seria a fé?) na humanidade melhorada.

Foi comovente ver todos os sites de língua portuguesa e de algumas outras línguas colocando em destaque a foto do escritor. A internet foi inundada de textos sobre o grande autor. O inevitável sopro contínuo da morte chegou até ele, contrariando a fictícia intermitência anunciada pelo romancista, que também gostava de mostrar o lado controverso da vida.

Li pouco Saramago e, confesso, gosto mais de Lobo Antunes. Mas trata-se de um nível de escolha que não exclui de forma alguma a delícia de leitura que é acompanhar Jesus Cristo, por exemplo, dando suas cabeçadas diante dos desejos mundanos e a vocação a mártir.

Lembro-me que no final de O Evangelho segundo Jesus Cristo, o narrador faz uma observação que imediatamente me remete aos ataques a qualquer bandeira de princípios. O bem é um branco delicado, e basta um pinguinho de sujeira para que se lhe creste para sempre a pureza. Não com estas mesmas palavras, ipsis literis, mas talvez com o mesmo sentido.

Não quis que meu blog deixasse passar em branco a última viagem desse homem admirável, autodidata que foi a alturas que muitos acadêmicos, por mais títulos e honrarias que possuam, jamais alcançariam. Não é um adeus. Em minha casa, dois desafetos que eram, Saramago e Lobo Antunes, podem conviver.

De seu blog Caderno, criado em 2008, retirei uma frase interessante sobre verdades e mentiras que caracteriza bem como o autor pensava o mundo. “Ao contrário do que geralmente se crê, por muito que se tente convencer-nos do contrário, as verdades únicas não existem: as verdades são múltiplas, só a mentira é global.”

terça-feira, 15 de junho de 2010

Mea culpa: tradutor é traidor, mas também é gente

Retrato de São Jerônimo: patrono dos tradutores

A ignorância é um troço difícil de ser expurgado. Quase sempre vence o homem. No meu caso, ela me vence diuturnamente. Nem precisava fazer tal afirmação como se fosse constatação nova. Bastaria lembrar daquilo que já foi e vem sendo dito há mais de dois mil anos.

O cartão vermelho mais recente de minha consciência veio quando disse no post anterior que não tinha lido nenhuma tradução de Denise Bottmann. “Não tenho nada a ver com o trabalho dela, sequer li alguma vez sua tradução”, disse, num contexto preciso, de repúdio aos argumentos duvidosos de donos de editoras contra ela.

Denise me deixou um comentário e, por causa disso, num átimo, decidi olhar no site da Livraria Cultura os livros que já traduziu. Não fiquei surpreso com ela, mas comigo mesmo. Como se diz bobagem neste mundo! O autoespanto é maior porque bastava uma olhadela rápida antes de ter publicado o post, mesmo que tenha sido uma publicação no calor da indignação com o senhor Emediato.

O fato é que descobri que já li pelo menos dois livros traduzidos por Denise. Claro. Isso me alivia de certa forma. Posso retirar parte do peso que havia colocado sobre mim quando dissera que não ter lido sequer uma tradução dela denunciava “minha pouca leitura”. Não me iludo. Diante de grandes leitores sei que sou minúsculo. Mas há músculos em meu cérebro de exercícios contínuos de algumas leituras.

Eis que descobri que Maquiavel no inferno (Companhia das Letras, 1993), de Sebastian de Grazia, foi traduzido por Denise. Li esse livro quando fazia faculdade de Jornalismo, na Universidade Federal de Goiás. Eu me lembro que até escrevi um texto, tentando ser engraçadinho: FHC no inferno! Deus, ó, Deus, tire Maquiavel de lá, que acabo de descobri que está replicado no blog Nicolau Maquiavel, de Roberson Marcomini.

Outro livro traduzido por Denise, que li, foi Ariel (Unicamp, 1991), do uruguaio José Enrique Rodó (1872-1917). Este escritor já foi grande. Hoje parece meio esquecido. Mas foi ele quem propôs uma integração latino-americana, se não politicamente, pelo menos do ponto de vista da cultura. Em Ariel, ele evoca Shakespeare para falar mal do imperialismo norte-americano e dizer – isso no começo do século XX – que nós latinos deveríamos nos aproximar mais da Europa e nos afastar do mal yankee.

Ariel é um livro do qual gostaria um dia de falar aqui. Este ato falho, este esquecimento ou negligência do trabalho dos tradutores não é só meu, é de muitos leitores. Mas no meu caso, é imperdoável, uma vez que deixei de fazer algumas seções de exercício que propus para este blog.

Denise também traduziu autores dos quais tive contato com outros livros, como Hannah Arendt, Peter Burke e Rorbert Darnton.

segunda-feira, 14 de junho de 2010

“Não sou guerrilheira”

Nesta segunda-feira, uma matéria do jornal Folha de S. Paulo mostrou a continuidade de uma luta travada já há alguns anos pela tradutora e blogueira Denise Bottmann, que denuncia casos de plágio de tradução em algumas editoras brasileiras.

Pessoalmente não tenho nada a ver com o trabalho dela, sequer li alguma vez sua tradução, algo que talvez até denuncie minha pouca leitura nesta vida. O que leio de vez em quando são as dicas e comentários de traduções em seu blog Não gosto de plágio. Acho bacana esse combate via blog.

A matéria em questão cobre o fato de a editora Landmark ter sido acusado de plágio por Denise. A editora, por sua vez, a processou. E o quiproquó se fez. Mas o que me chama a atenção e que me faz postar este pequeno comentário é que em entrevista à Folha o editor Luiz Fernando Emediato, que também está envolvido nas acusações de Denise (não em relação à Geração Editorial, que é dele, mas sobre a editora Jardim dos Livros, da qual é sócio) faz uma observação de má fé, a meu ver.

Na matéria da Folha, Emediato afirma que Denise “não é boa tradutora, mas uma ativista”, e diz: “acho que ela faz a coisa certa, mas de maneira errada. Jamais trabalhará para nós.” Este “jamais trabalhará para nós” parece ser desnecessário e um tipo de intimidação também, embora não seja ilegal. Mas a matéria não diz que Denise já pediu emprego para ele.

E é isso que me deixou indignado, mesmo sem ter nada a ver com o peixe. É assim que figurões vivem, pensam e agem? Parece ser um recado: “Olha, para as editoras sobre as quais eu tiver influência, de amizade ou de participação de comando, você jamais trabalhará.”

Segue abaixo, copiado e colado, uma sequência de declarações de Denise, em matéria assinada por Fábio Victor. Não dá para ser apenas um trecho:


"MINHA HISTÓRIA DENISE BOTTMANN, 55
São Paulo, segunda-feira, 14 de junho de 2010

guerrilheira antiplágio

(...)Não existe uma tradução igual a outra. E é por isso que um tradutor é considerado um autor
(...)Compro um exemplar, comparo e vejo que são iguais, que é plágio. Publico no blog
(...)Não tomaram providência, entro no Ministério Público


FABIO VICTOR
ENVIADO ESPECIAL A REGISTRO (SP)


Uma vez, no Orkut, o tradutor Saulo von Randow Júnior comentou que tinha pegado um volume do "Ivanhoé", do Walter Scott, publicado pela Nova Cultural em nome de um fulano de tal qualquer e descobriu que a tradução era idêntica à do Brenno Silveira.

Depois descobri que desde 2001, 2002 Alfredo Monte e o poeta e crítico Ivo Barroso já denunciavam a prática de plágio. Logo a seguir [em 2007], a Folha publicou uma matéria grande sobre a Martin Claret e os plágios [de tradução] de "Os Irmãos Karamázov" [de Dostoiévski] e "A República", de Platão.

Comparei outros volumes da Nova Cultura com a Abril Cultural, tinham nomes diferentes de tradutores e o texto igual. Ôpa, peraí. Dois livros numa coleção só: vamos ver se tem mais. Assim comecei.

Num egroup de tradutores, o pessoal ficou revoltado com essa história toda, e surgiu um blog, "assinado-tradutores". Por divergências internas, saí. Em novembro de 2008, criei o naogostodeplagio.blogspot.com.

TRADUTOR É AUTOR

Não existe uma tradução igual a outra. E é por isso que um tradutor é considerado um autor, é por isso que a legislação, do Brasil e do mundo inteiro, desde 1880, diz que tradutor é autor.

Tendo esse pressuposto, vem a pesquisa sistemática. Você pega "A Divina Comédia": quantas traduções existem? Eu tenho "A Divina Comédia" pela Abril Cultural, com tradução de Hernâni Donato. Como será essa tradução da Nova Cultural em nome de Fábio M. Alberti?

Compro um exemplar, comparo e vejo que são iguais, que é plágio. Copio trechos e publico no blog.

Só passo de uma editora à outra depois de ter esgotado aquele catálogo. Leva umas quatro horas por dia, e uns 15 dias pra eu detectar -até ir atrás, pesquisar as várias traduções existentes, encomendar, receber, comparar e chegar a uma conclusão. Antes de publicar, entro em contato com as editoras. Aí entro no site das livrarias para ver se tiraram de circulação.

Não tomaram providência, entro com pedido de representação no Ministério Público. Tenho 15 pedidos.

Já denunciei 110, 120 casos de plágio, documentados no meu blog. De 16 editoras.
No caso da Landmark, fui avisada [de suposto plágio da tradução] da "Persuasão", de Jane Austen, e do "Morro dos Ventos Uivantes", de Emily Brontë.

Entrei com representação contra a Landmark em maio [de 2009], e em setembro eles entraram com ação contra mim, contra a [blogueira] Raquel Sallaberry, porque deu o link para o meu post, e os provedores dos blogs. Recebi [a notificação] em fevereiro.

MANIFESTO

E aí foi muito bonito, porque alguns colegas -Jório Dauster, Ivo Barroso, Ivone Benedetti e Heloísa Jahn- escreveram um manifesto em minha defesa, que teve quase 3.000 assinaturas.

A Landmark pediu a remoção imediata do blog, aí a coisa se abriu mais, porque pegou a liberdade de expressão na blogosfera -e quem disse isso foi o juiz que indeferiu o pedido de liminar.

Seria uma intimidação a mais -já sofri tanta. Foram duas da Martin Claret, uma notificação extrajudicial, pela editora, e uma ação do sr. Martin Claret -esta o juiz julgou improcedente, eles recorreram e perderam. Agora só cabe recurso no Supremo.

Tive uma intimidação do sr. Luiz Fernando Emediato [denúncia de três livros plagiados pela Jardim dos Livros, da qual ele é sócio].

A AMARRAÇÃO

Era difícil no começo entender a amarração da coisa. Hoje entendo que é uma consequência razoavelmente direta da lei do direito autoral de 1998, a lei 9.610.

Porque [as obras plagiadas] são basicamente obras cujo original está em domínio público e cujas traduções no Brasil estão esgotadas -de editoras que fecharam ou que foram compradas.

Mas são traduções que estão protegidas pela lei, que determina que as obras só podem entrar em domínio público decorridos 70 anos após a morte do autor.

SEM XEROX, COM PLÁGIO

Essas obras são o quê? Platão, Aristóteles, Max Weber, Kant, Hobbes, Locke... São para o público universitário. São obras que até existem nas bibliotecas das universidades, são bibliografia em ciências humanas. Só que são esgotadas, e a lei de 1998 proibiu o xerox.

Das 16 editoras [que pesquisei], apenas duas praticavam plágio antes de 98. Tenho a maior clareza que foi a proibição do xerox que criou um mercado líquido e certo.

Vêm os espertos, pegam essas traduções que ninguém mais lembra, porque são dos anos 30, 40, 50, crau, mudam o nome, publicam e vende que nem pãozinho quente. Cinco, dez, 20 edições, reedições. Os tradutores estão mortos, as editoras estão fechadas, as que não estão fechadas poucos se interessam, os herdeiros dos tradutores não estão nem aí.

Não faço isso por interesse profissional ou por categoria. É que eu tenho 55 anos, sou pré-internet. E junta minha formação de historiadora e a ideia de que a cultura não se constrói num estalar de dedos. O português é uma língua secundária, o Brasil é um país que depende essencialmente de tradução, quer dizer, a tradução não é só uma tradução. Basta pegar quem são nossos tradutores: Machado, Bandeira, Drummond, Cecília Meirelles.

QUEBRA-CABEÇAS
Uma coisa que gosto muito é o desafio mental, intelectual, algo meio competitivo de você consigo mesmo. É quase um jogo, uma espécie de quebra-cabeças.

Tenho uns 80 livros traduzidos, de inglês, francês e italiano, sempre em humanidades, história da arte -não faço tradução literária nem técnica. Trabalho para três editoras: Companhia das Letras, Cosac Naify e L&PM.

Não, guerrilheira não. Uma vez eu me referi ao nao gostodeplagio como um blog de combate.
Entro com representação nos casos de quem não dá satisfação. A Nova Cultural relançou uma edição especial da "Divina Comédia", ressarciu tradutores. Tenho a satisfação de dizer que de seis a oito editoras retiraram [as edições plagiadas]. Eu escrevo, telefono, falo. Você tem resultados concretos. É isso que me permite continuar."

terça-feira, 8 de junho de 2010

Só a arte salva




A drinking song

Wine comes in at the mouth
And love comes in at the eye;
That’s all we shall know for truth
Before we grow old and die
I lift the glass to my mouth,
I look at you, and I die.


W. B. Yets


Só a arte é capaz de salvar, e talvez por isso, sendo espelho da arte, a Psicanálise tenha ajudado tanto o Ocidente a se redimir de suas culpas, construídas, na maioria das vezes, pelos princípios cristãos, dentro dos quais eu mesmo – ainda que ateu, agnóstico, cético, desembestado, cristão revoltado, ou qualquer coisa – estou inserido até a medula.

Eu mesmo tenho as minhas culpas. Eu mesmo tenho as dores do mundo em minha alma. Sinto o peso do universo inteiro sobre meus ombros, porque acho, em quase certeza, de que o universo conspira contra, porque no cavalgar de minha vida quixotesca sempre vi donzelas em perigo e tratores imensos de descaso passando por cima dos meus.

A arte salva, não porque seja o Novo Cristo, mas porque carrega consigo um interminável gama de recursos de linguagem e de compreensão, que ultrapassa a lógica formal, e que por isso é tida como veículo da emoção, mais até, representante de um tipo de conhecimento sem núcleo, ou seja, sem a coerência repressora. “Não me exijam coerência, sou um artista”, teria dito Glauber Rocha.

Mas a arte, o arco e a lira, a arte, o ar e o fogo, a arte queima e purifica, forja nos moldes da água. A arte salva em seu discurso, vão, louco, logos descabido e só aos loucos destinado.

Desatinados. É como tratam os que levam a arte a sério, a arte como um campo do saber tão importante quanto a filosofia, a arte que ensina a pensar. Por isso mesmo chamaram Heidegger de imbecil, porque colocou poetas e filósofos lado a lado, como se um não voasse sem o outro, e não voa.

Heidegger, raio rápido que racha a árvore ao meio, a árvore do saber, dentro da qual está a casa do ser, dentro da qual mora o homem, inquilino do ser, não qualquer um, mas filósofos e poetas.

Vinicius lia Nietzsche como o mais inspirado dos poetas em Assim falou Zaratustra. E era. Nietzsche queria ser músico. Se fosse um deus, seria Dioniso, aquele que dança. O mais louco dos deuses, gênio do entusiasmo, da transformação, das máscaras, do êxtase, do fora de si, antiapolíneo, antirracional, antissol, noturno, visceral, morador por anos a fio das cavernas mais profundas, para depois submergir em dias claros, para dominar Apolo e pular de alegria no espaço luminoso do carnaval.

Dioniso é a parte da arte mais verdadeira. Embora precise do mar, da praia e do sol. Embora todos os deuses ligados à desconstrução do ser racional, para a criação de outro eu, mais equilibrado entre a noite e o dia, sejam fulminados, como foi Dioniso.

O que será então do novo deus Lacan, que retirou do túmulo anunciado a teoria de Freud e jogou nela Heidegger, e inoculou Nietzsche, o arco recurvo de Heráclito em rios soturnos?

Só a arte é capaz de salvar. Mas salvar do quê?

terça-feira, 1 de junho de 2010

Morre Wilson Bueno

Wilson Bueno (1949 - 2010)

Aos 61 anos de idade, o escritor paranaense Wilson Bueno foi encontrado morto em sua casa, em Curitiba, na noite de segunda-feira, 31. Passei um tempo querendo entrevistá-lo, e sempre adiava. Agora, o adiamento se estende à eternidade.

Um de seus livros mais expressivos, do ponto de vista literário, é o romance Meu tio Roseno, a cavalo, de 2000. Ali, Bueno cria uma espécie de geografia poética do interior do Paraná, à medida que o cavalo avança. O narrador, sobrinho de Roseno, conforme diz o título, descreve num plano a aventura do herói na volta para casa a fim de ver sua filha nascer, e em outro plano, narra as atrocidades de uma guerra fictícia, a Guerra do Paranavaí, que pode ser a sangrenta Revolta do Contestado, embora as datas não coincidam.

Roseno tinha de chegar a Ribeirão do Pinhal a tempo de assistir ao nascimento da filha, Andradazil. Ele então viaja 50 léguas e meia em sete dias.

Em homenagem a Bueno, eis aqui uma pequena mostra de sua lavra:

Com o entardecer que faz sobre a cabeça, mais um motivo para compreender tudo, e o que este céu tem para dizer, agora que imensas as nuvens se estiram, dourado-velhas, chumaços coral e âmbar, aqui ali desmaiando num quase lilás ou ascendendo às tintas de roxo supremo, transgressor.

E foi como que sob o segundo entrecéu desta história trotada no vento, cavalo e cavaleiro, a lagoa e o grasnar de seus batráquios, e todo o universo ainda antes de Andradazil, florestas e árvores, capim e água, cruzes e ossos a Xuguari e o Gruxal, como que ao segundo entrecéu desta lenda molhada de rios, tocado pelo movimento das nuvens e da lua, oblíquo e suspenso debaixo do firmamento, o mundo inteiro andasse.

No valoroso romance Chá das cinco com o vampiro, de Miguel Sanches Neto, em que o autor cria personagens com características de escritores paranaenses, Bueno aparece como Uílcon Branco, um escritor de comportamento pouco elogiável e dono de uma literatura ausente de verdade. Sanches Neto, que é do interior do Paraná, assim como Bueno, embora de cidades diferentes, não quis ou não soube reconhecer o valor literário de seu conterrâneo.

Entre seus livros também estão A copista de Kafka, Amar-te a ti nem sei se com carícias, Cachorros do céu, e um livrinho de tankas (gênero de poesia japonesa) chamado Pincéis de Kyoto, que eu ainda estou sorvendo como quem bebe um cálice do mais precioso vinho.