sábado, 29 de fevereiro de 2020

Café da manhã com os russos - Café 3 - Nikolai Gógol


Todo mundo sabe que o grande conto de Nikolai Gógol (1809-1852) é O Capote, cuja leitura faz muito brasileiro gaguejar na hora de repetir, aliás, toda hora, o nome do protagonista, Akaki Akakiévitch. 

Suas novelas e romances, como A briga dos dois Ivans e Almas mortas, também são clássicos da literatura russa, mas na sua obra há um conto chamado A carruagem, publicado em 1836 (quando Gógol tinha 27 anos), que, segundo os críticos, caiu no gosto de muitos autores que se tornariam clássicos mais tarde, de igual modo. É sobre ele este café.

A história se passa numa cidadezinha sem graça e feia, em algum lugar no Sul da Rússia. Antes, a cidade era monótona. Ninguém nas ruas, só bichos. Mas tudo muda quando se aquartela um regimento de cavalaria, mudando a rotina e o ânimo do lugar. Agora, carruagens e transeuntes. Nas cercas das casas, bonés de soldados dependurados, floreando a idílica paisagem.

Quando o general transferiu seu QG para lá, os proprietários de terras começaram a frequentar a cidade. A carruagem é o tipo de conto que assalta o leitor com um “vai vendo”. “Como acontece” é o grande lance, porque no fundo “o que acontece” na superfície é pífio.

Num magnífico dia de verão, a cidade está no auge de sua agitação, e o general decide oferecer um jantar. Tudo se volta para esse evento. 

Tchertokútski, o homem mais rico do lugar, vai ao jantar, bebe, joga cartas, conversa com o general e o convida para um almoço no dia seguinte. O general aceita ir com seus oficiais, e combina-se o encontro.

Mas, na noite do jantar, Tchertokútski bebe demais, e só chega em casa às 4 da manhã. Dorme até meio-dia. É acordado pela mulher dizendo que o general e seus oficiais estão chegando. Sem saber o que fazer, ele se esconde na estrebaria, e lá é descoberto. É uma peça cômica, muito bem engendrada. 

O que fica como memória do conto, como elemento nutritivo são a polifonia de figuras e vozes no espaço público da cidade, a convergência de movimentos pelas ruas e nas casas, de gentes e bichos, e objetos, tudo meio que dançando na narrativa, como carruagens e carroças, gente fumando, bebendo, almoçando, conversando. 

O mesmo acontece no interior dos personagens. Seus pensamentos, seus desejos e motivações aparecem. A cidade, antes praticamente morta, transforma-se num palco de vida. 

As pessoas em cujas vidas nada acontecia se animam, mudam suas perspectivas. É o que ocorre com Tchertokútski, que vê tudo se iluminar dentro de si, como fogos de artifícios que riscam a noite. Num átimo, a escuridão monótona da alma deixa a festa da existência acontecer, mesmo que a banalidade do cotidiano e o despreparo para os grandes feitos atropelem, depois, suas intenções.

No Brasil, A carruagem (tradução de Arlete Cavaliere) pode ser lido no livro Nova ontologia do conto russo (Ed. 34).

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sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

Café da manhã com os russos - Café 2 - Aleksandr Púchkin


Tblisi, capital da Geórgia: já era famosa pelos banhos termais na época de Pushkin, que ressalta essa qualidade em seu conto

Aleksandr Púchkin (1799-1837) tem uma semelhança com Machado de Assis, dizem os críticos. A primeira leva de sua obra seguiu as linhas gerais da narrativa tradicional russa, mas, na segunda, mudou completamente o próprio estilo e o de seus sucessores.

Mas não é só isso que Púchkin tem de semelhante com Machado de Assis. O Bruxo do Cosme Velho era mulato. Púchkin também. Ele era bisneto de Abraão Aníbal (1670-1762), nascido na Eritreia, escravo negro de Pedro, o Grande. Veja que esse negócio de imperador chamado Pedro nos persegue a nós negros. 

Há um conto famoso de Púchkin, intitulado O negro de Pedro, o Grande, com muitas edições no Brasil (na verdade, é um romance inacabado). Mas o conto em questão neste café da manhã é Viagem a Arzrum, publicado pela Editora 34 (tradução de Cecília Rosas).

A tradutora bancou a grafia Arzrum, em vez de Erzrum, provavelmente porque assim está no alfabeto cirílico russo. O próprio narrador do conto chama a atenção para a grafia adotada: “Arzrum (incorretamente grafada de Arzerum, Erzrum, Erzron) foi fundada por volta de 415, no tempo de Teodósio II, e chamada de Teodosópolis.”

Como a observação está entre parênteses, vá saber se não é coisa da própria tradutora. Dúvida eterna. Só o que se sabe é que nos mapas modernos a grafia é Erzurum – veja Google Maps). 

Publicado em 1836, o conto já mostra na introdução uma característica da prosa moderna, que é mistura de nomes e dados factuais do autor com a trama fictícia, enfatizando elementos de ironia (não ainda uma autoficção, mas seu germe, tendo o narrador, inclusive, o nome de Pouchkine).

Há um momento em que o narrador cita um poema de Aleksandr PúchkinO Prisioneio do Cáucaso e diz “a obra é toda fraca, juvenil, incompleta; mas há muito ali fielmente intuído e expressado." E há um conde Pushkin que viaja no mesmo grupo e um soldado chamado Mikhail Puschin. 

O conto é um relato de viagem que o poeta russo Pouchkine fez à Turquia, para cobrir a guerra russa-turca, em Arzrum. Nessa jornada, ele atravessa o sudeste do país, e algumas fronteiras, até chegar ao seu destino e se encontrar com o comandante das tropas russas, o conde Paskévitch. 

Ele sai, então de Moscou e passa por Kaluga, Beliov, Oriol (cidade de Ivan Turguêniev), Kursk, Karkhov, Voronej, Stavropo, atravessa o rio Podkumok (com os recursos do Google Street, você olha o rio e vê que Púchkin imortalizou um rio da envergadura do Tamanduateí, ou João Leite, para quem é de Goiânia).

Alcança Vladikavkaz, atravessa o rio Terek, chega a Lars, passa pela cadeia de montanhas Darial, já na Geórgia, observa o monte Kazbek, por onde ele diz ter passado com indiferença porque queria chegar logo a Tbilisi, ou seja, atravessa toda a região do Cáucaso, espremida entre o Mar Negro e o Mar Cáspio.

Atravessou o rio Kura, que banha Tbilisi, a capital de Geórgia (“Tbilis-kalak, em georgiano significa cidade quente”, diz o narrador, que chama a cidade de Tiflis, tal como se diz em russo), e passou por Guiumri (Armênia), Kars (Turquia), avistando, dos vastos campos abertos, o monte Ararate, a mais de 100 quilômetros de distância.

Esse passeio saindo do Sudoeste da Rússia rumo à Ásia Menor, às terras da Turquia, forma uma cartografia interessante. É uma narrativa aos moldes das crônicas de viagem, com riqueza de detalhes. As impressões de lugares e costumes que ele fixa no texto ressaltam seu estilo de prosador e sua fantástica capacidade de pintar a natureza.

É um texto que deveria ser lido por todo jornalista interessado em escrever reportagens de fôlego. A viagem não é toda fictícia, porque Pushkin de fato fez um trajeto semelhante em 1829. 

As gentes descritas são reais, as magníficas paisagens com seus rios, montanhas, desfiladeiros e céu azul, neve e chuva são reais, a comida, os banhos termais em Tbilisi são reais.

Acompanhe a leitura que você faz usando o Google como ferramenta de apoio. Você verá uma magnitude que os leitores do século 19 não puderam ver, só puderam sentir o impacto das palavras de Púchkin, que não é pouco. 

Os personagens históricos não são inventados, como Alexandr Griboiedov, poeta e diplomata, que sofreu uma morte horrível em Teerã por fanáticos persas, cuja citação no segundo capítulo do conto é de uma beleza ímpar, pela comoção do narrador e pela descrição da personalidade do poeta morto.

“Suas capacidades como homem de estado ficavam sem uso; seu talento de poeta não era reconhecido; até sua coragem fria e brilhante esteve algum tempo sob suspeita. Alguns amigos sabiam de seu valor e viam surgir um sorriso incrédulo, esse sorriso tolo e insuportável, quando por acaso falavam sobre ele como uma pessoa extraordinária.”

O narrador passa de Kars e chega ao acampamento das tropas russas, na guerra contra os turcos, num avanço imperialista de Moscou. Essa narrativa não deixa de ser exaltação aos valores da Rússia, às suas forças armadas, sua inteligência, sua capacidade de territorialização. É a exaltação de um pensamento imperialista. 

Mas, apesar desse realismo político, trata-se de uma bela peça literária pelo tratamento dado, pelos procedimentos estéticos entre o realismo e o romantismo. O que fica como memória do conto, como elemento nutritivo, é a exuberância dessa paisagem exterior da Rússia, complexa em sua formação cultural e geográfica.

A coloração social mostra uma diversidade de povos impressionante (tártaros, calmucos, nogais, circassianos, ossetas, cossacos, e mais adiante armênios, persas), por meio dos quais o narrador desfila, em sua jornada rumo a Erzurum. 

Os conflitos naturais e sua beleza, no entanto, não acarretam transformações marcantes na alma do narrador, nem em subjetividade alguma. Neste sentido, pelo menos neste conto, presente no livro Nova antologia do conto russo (Ed. 34), talvez o último que ele tenha escrito, Púchkin está distante de Machado de Assis (além da distância geográfica e temporal, pois este só viria bem depois).

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quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

Café da manhã com os russos - Café 1 - Nikolai Karamzin


Pobre Liza é um conto russo de Nikolai Karamzin (1766-1826) publicado em 1792. A história se passa nos arredores de Moscou, na zona rural, perto das torres góticas e sombrias do mosteiro de Simonov, instalada sobre uma colina de cujo cume dava pra ver toda Moscou. Isso no século 18, porque hoje a capital russa tem quase 12 milhões de habitantes e já tomou tudo aquilo. Mas o mosteiro, erguido em 1370 (pesquisei), continua de pé. 

Próximo do mosteiro, passa o Rio Moscou. Próximo do rio, num pequeno bosque, havia uma cabana onde 30 anos antes (1762) morava uma moça chamada Liza, “a bela e doce Liza”, com sua velha mãe, que ao ficar viúva (quando Liza tinha 15 anos) empobreceu. 

Por causa dessa orfandade e uma mãe sem forças, Liza começou a trabalhar. Ia a Moscou vender coisas do campo. Sua mãe era grata por isso, e dizia que Liza era “graça divina, arrimo de família, deleite de sua velhice, e pedia a Deus que a recompensasse por tudo o que fazia pela mãe."

Um dia, dois anos depois da morte do pai, vendendo lírios em Moscou, Liza conheceu um sujeito chamado Erast, muito simpático e generoso com mãe e filha. Os dois se apaixonaram. Como ele era nobre, e ela, camponesa, o amor permaneceu clandestino. Até que surgiu um boato de que os camponeses haviam arranjado um noivo pra Liza. Eis a a encruzilhada do destino.

Por causa disso, Liza decidiu se entregar ao doce Erast. Fizeram muito sexo por muito tempo, até que Erast disse que tinha de partir para a guerra porque morrer pela pátria era nobre. Amava-a, mas tinha de cumprir seu dever de cidadão e coisa e tal. Foi para a guerra. Liza não se casou, não tinha noivo nenhum, e sofreu pelo amor de Erast. 

Dois meses depois, Liza indo a Moscou vender suas coisas, ela se depara com Erast, vivo e são, sem o menor sinal de que estivera em algum front. Ele diz a ela pra esquecê-lo porque agora estava casado.

Não. Ele foi pra guerra, sim, hypocrite lecteur. Mas, lá, não lutou contra ninguém, nem contra seu vício em jogo. Jogou apostado até perder toda a fortuna, e teve de se casar com uma viúva rica. Alas me, oh my God! 

Mas não teve tempo de explicar nada à jovem amante. Liza se jogou nas águas do Rio Moscou e morreu afogada. Agora, me diga, com um título desses, numa história contada em 1792, ou era isso ou a solução romântica dos franceses. Mas os russos são os russos. Liza fora enterrada no cemitério do mosteiro, que o narrador contempla ao contar essa história.

Esteticamente, o conto narra uma história da miséria humana, contrapondo a beleza da natureza e sua paisagem exterior irretocável ao roto tecido da pobreza envolvendo a paisagem interior de Liza. 

O que fica como memória do conto, como elemento nutritivo é a imagem do infortúnio de Liza, que parece ter sido o mote para um personagem de Dostoievski em Crime e castigo, de 1866. Em Gente pobre, de 1846, Dostoievski já havia colocado um dos personagens das trocas de cartas para citar esse conto.

Em português, o conto está presente no livro homônimo de Nikolai Karamzin (tradução de Natalia Marcelli de Carvalho e Fatima Bianchi) e na coletânea Nova antologia do conto russo (vários tradutores; sendo Pobre Liza a mesma tradução da publicação citada acima; Org. de Bruno Barretto Gomide), ambos publicados pela Editora 34.

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