quarta-feira, 31 de agosto de 2011

O poema-prato



Não se trata da leitura de poesia concreta, mas poderia ser. O livro Culinária Japonesa (Larousse, 2009, 160 páginas), de Harumi Kurihara, além de trazer dezenas de receitas, diz por que os pratos tradicionais do Japão podem ser considerados arte. De modo geral, os chefs de qualquer cozinha do mundo vão afirmar a mesma coisa em relação a suas respectivas especialidades. Cozinhar é uma arte.

Mas, no caso da cultura nipônica, o interessante é ver os procedimentos artísticos próprios de sua culinária, que se assemelham aos de um tipo de poesia muito popular até hoje no Japão, que influenciou inclusive poetas do concretismo brasileiro, o haicai. Segundo Harumi, a comida japonesa prima pela preocupação com a saúde, mas não deixa de aliar o saudável ao estético.

Como o Japão é um país isolado do continente asiático, sendo composto por ilhas, o espaço é exíguo para a criação de animais e por isso sua base alimentar é feita de arroz, peixes (crus) e frutos do mar. Ao travar essa relação íntima com aquilo que a natureza lhes oferece, os japoneses criaram também o hábito de consumir só alimento fresco e de acordo com a estação, aliado à simplicidade da composição dos pratos, com a escolha certa de combinações, sempre com pouca quantidade de comida.

E é aqui que entra a ligação com a poesia. O haicai é um gênero poético criado por Matsu Bashô (1644-1694), feito em três versos, com cinco, sete e cinco sílabas respectivamente, tendo obrigatoriamente de colocar ou sugerir uma das estações do ano em um dos versos. A sazonalidade imprime no poema o estado de espírito do sujeito poético, faz a ponte entre interioridade e exterioridade, como no exemplo abaixo de um poema de Bashô:

A cigarra... Ouvi:
Nada revela em seu canto
Que ela vai morrer
(tradução de Manuel Bandeira)


Não é difícil ver aí a primavera, nem a sugestão de transitoriedade, da passagem do tempo que leva tudo embora, deixando apenas uma sensação de angústia e espanto, que é a interioridade do poeta. É claro que há muito mais nesses três versos, como o risco do efêmero e a beleza (a arte) desafiando a morte, mas o que interessa neste momento é esta relação de simplicidade, economia e leveza. Eis o laço entre a culinária japonesa e a poesia do haicai.

Segundo Harumi, na preparação de um prato, três princípios devem ser seguidos: a variedade, a sazonalidade e a apresentação. Dentro dessa proposta as técnicas devem ser precisas e cuidadosamente executadas, levando em conta o frescor do alimento e a escolha dos pratos (recipientes), em suas cores e tipo de material (porcelana, vidro, madeira). “No verão usamos muito os pratos de vidro, pois eles nos transmitem a sensação visual de frescor”, diz.

Essa preocupação estética vai aos mínimos detalhes. Cada prato, por exemplo, tem de ter “apenas uma pequena quantidade de comida, de forma que um deles (a comida ou o prato) possa ser visto e apreciado”, ensina a chef. A pouca comida de cada vez não significa miséria gastronômica. “Achamos que se devem comer cerca de 30 tipos de pratos diferentes por dia”, diz Harumi, mostrando que não há necessidade de se encher um prato até a borda, principalmente do tamanho e da fundura desses que se usam no Ocidente. Aliás, esse comportamento de glutão é uma ofensa aos japoneses tradicionais.

Harumi é uma sumidade em sua área no Japão de hoje. Suas receitas são muito requisitadas e seus livros devorados tanto quanto a comida que ensina a fazer. Apesar das observações acima levarem a crer que ela segue a linha tradicional da culinária japonesa, na verdade, a chef é adepta da fusion cuisine e mistura vários ingredientes ocidentais em suas preparações. Mas sempre com o maior respeito a suas raízes. Nada de extravagância. Tudo é feito com simplicidade, bom gosto e apreço à arte milenar do bem comer. “Acreditamos que a simplicidade seja um elemento essencial da beleza”, conclui.

(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente na Tribuna do Planalto)

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

O homem que calculou Deus



Quem se interessa pela crítica literária, mesmo que seja apenas um leitor atento, não pode desperdiçar histórias e personagens de outras áreas, se estes tiverem algum tipo de conhecimento, inteligência ou sensibilidade a oferecer. É o caso de Einstein, um gênio da física que inspirou muita gente no campo da teoria da arte e até da filosofia.

Outro caso interessante, neste sentido, é o russo Georg Cantor (1845-1918). Incompreendido por seus colegas contemporâneos, foi ele quem colocou a matemática na rota da contemporaneidade. Ele criou uma série de teorias, entre as quais a teoria dos conjuntos, batendo de frente com os acomodados, mas grandiosos, professores da época.

Pela literatura, é possível explorar a perspectiva do infinito lendo Jorge Luis Borges, em O Aleph. Esta é a primeira letra do alfabeto hebraico, que deu origem à letra ‘alfa’, do grego, e a ‘a’, das nossas letras latinas. Mas, na álgebra, é também o suposto número do infinito, cuja equação Cantor passou a vida inteira tentando descobrir.

Não conseguiu, mas quase chegou lá. Em compensação, abriu fendas incicatrizáveis ao criar um novo campo de cálculos com o conceito de números transfinitos, que permite quantificar o infinito, usando operações matemáticas. Mais do que isso, criou uma esfera radical que sugere uma seara não quantificável de infinitos possíveis.

Tudo isso está contado em Cantor (Estação Liberdade, 2011, 274 páginas, tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira, R$ 43,40), de Jean-Pierre Belna.

Segundo Belna, antes de Cantor, desde Aristóteles, a ideia de infinito só tinha duas vertentes: o infinito potencial e o atual. O primeiro é um devir, que pode ser pensado a partir da perspectiva do finito, por ser divisível, como que separado para ser pensado, como a reta infinita.

Assim, explica Belna, “a reta é infinita em potência por ser sempre divisível e suscetível de ser prolongada [infinitamente]; o mesmo ocorre com a sequência dos inteiros porque, depois de cada número vem sempre um outro.” Ou seja, o matemático só conseguia até então racionar a partir de grandezas finitas.

Já o infinito atual realiza-se como “um todo acabado”, ou seja, não pode ser mensurado. E é justamente este que Cantor queria mensurar, descobrir sua equação. É com este infinito que os pensadores desenham o que poderia ser Deus. Ninguém tinha a ousadia de pensar nesses termos.

Um homem além
O maior matemático do século XIX, um dos maiores de todos os tempos, Carl Friedrich Gaus, dizia que o infinito era apenas uma “‘forma de falar’, reservada à linguagem dos limites”. Ninguém menos que René Descartes, considerado o fundador da filosofia moderna, e matemático extraordinário, defendia a seguinte tese: “a finitude de nosso entendimento impedir-nos-ia de conceber números que não fossem finitos.”

Mas Cantor concebeu. Cantor foi além desses espíritos e forjou os cálculos infinitos. Nem os cálculos infinitesimais, de Isaac Newton e Gottfried Leibniz, se infiltravam na magnitude dos infinitos atuais, concebendo apenas os potenciais. Quem chegou mais próximo disso, mas sem muito interesse de ir além, foi Blaise Pascal, contemporâneo de Descartes.

Nos Pensées (Pensamentos), Pascal dá uma mostra da profundidade que seu espírito conseguia alcançar. “Sabemos que há um infinito, e ignoramos a sua natureza. Como sabemos que é falso que os números sejam finitos, logo é verdade que há um infinito em número. Mas não sabemos o que ele é: é falso que seja par, é falso que seja ímpar, pois acrescentando-lhe a unidade ele não muda de natureza”, diz o gênio francês.

“Entretanto”, continua Pascal, “é um número, e todo número é par ou ímpar (é verdade que isso se refere a todo número finito). Pode-se, pois, reconhecer que há um Deus sem saber o que é.” O pensador francês se interessava pelo infinito à medida que isso assegurava um bom argumento para a existência de Deus, independente aqui de que Ele exista ou não.

Já a Cantor interessava o cálculo do próprio número. O que é louco, absurdo, genial demais para a compreensão fria. Cantor reconhecia em Pascal a única pessoa que realmente compreendeu o cálculo do infinito, mas, para o russo, quando o francês afirma que o humano não seria capaz de calcular o infinito, estava sendo arrogante, subestimava a própria espécie.

Sensibilidades
É claro que as secantes, as tangências, as esquinas dos números não estão ao alcance desta resenha. É como admirar o mar sem saber nadar. Depois disso, cabe apenas pensar sobre este homem que ousou encarar novas paisagens matemáticas, e que por esta ousadia pagou o preço do isolamento.

Ninguém lhe dava crédito, e só depois de sua morte em 1918, aos 73 anos, sofrendo de depressão bipolar, que na época ainda era diagnosticada como psicose maníaco-depressiva, é que sua teoria foi assimilada de vez pelos matemáticos. E hoje é praticamente impossível avançar nos estudos dos cálculos sem ela. Sua teoria dos conjuntos “tornou-se o próprio alicerce da matemática”, diz Belna.

Cantor, o livro, é para matemáticos possuídos por certa sensibilidade a ponto de querer entender o espírito humano. Ou pode também ser indicado a leitores mente-abertas, que mesmo não alcançando a extensão dessa linguagem de cálculos, é capaz de vislumbrar o mistério da vida pelos poros da matemática, as teorias descritas em palavras pelos grandes gênios.

Cantor, o homem, era dócil com os amigos e com a família. Era amante das artes, exímio violinista e profundo conhecedor da obra de Shakespeare. A certa altura de sua vida, num período de crise, quando se afastou da matemática, embarcou numa teoria furada, talvez fruto de seu estado mental, segundo a qual a obra shakespeariana fora escrita pelo filósofo empirista Francis Bacon. Muita gente até hoje leva isso a sério.

Embora russo, nascido em São Petersburgo, fez os primeiros estudos em Frankfurt, Alemanha, depois foi para Zurique, Suíça, onde estudou matemática, na Escola Politécnica, a mesma por onde passaria Einstein poucas décadas depois. Em seguida, foi para Berlim, fazer seu doutorado.

Seu pensamento excêntrico sobre a matemática não o permitiu se estabelecer como professor naquela universidade. Foi discriminado e teve de se contentar com a universidade de Halle, ao sul de Berlim e a oeste de Leipzig. Lá, ele lecionou e viveu até o fim da vida.

(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente na Tribuna do Planalto, 31/07/2011)