quinta-feira, 30 de abril de 2009

ROBERTO SAVIANO, AUTOR DE GOMORRA: o mártir vivo da palavra

"Dizem que o TNT é o pior, mas eu sinto mais medo de balas. Sei que me farão pagar - está escrito."

Roberto Saviano ainda é um garotão, tendo apenas 29 anos de idade. Mas desde 2006, quando lançou Gomorra, deve ter envelhecido duas décadas interiormente. Isso porque seu livro denuncia a máfia napolitana, a Camorra, em riqueza de detalhes sórdidos e violentos.

O resultado foi uma ameaça de morte para a vida toda, que o fez se mudar da cidade natal, Nápoles, para viver em Roma, sob proteção policial 24 horas por dia.

Saviano nunca mais terá paz. A menos que a justiça de seu país consiga acabar com os 80 clãs e mais de três mil filiados da máfia, “aos quais se soma uma extensa rede de colaboradores”, conforme diz a ótima reportagem de El País, escrita por Miguel Mora, replicado no caderno Mais!, da Folha de S. Paulo de domingo passado (26/04).

O livro de Saviano foi traduzido para mais de 30 línguas, entre elas o português. Só na Itália, já vendeu 2 milhões de exemplares, e no Brasil, quase 40 mil. Virou filme e escancarou ainda mais a técnica de matar e comandar o crime da Camorra. A imprensa ajudou a espalhar o caso, apoiando-se na palavra do jovem corajoso, nascido na mesma região da máfia.

Mas os mafiosos não gostaram de ver sua imagem de inofensivos e até de bons moços ser estraçalhada pela pena de Saviano. Nem os mafiosos, nem boa parte da população mais pobre, os jovens que muitas vezes se tornam mão-de-obra da Camorra, porque lhes oferece dinheiro fácil, porque não há outras oportunidades de trabalho. “Saviano foi difamado, cuspido e insultado pelos jovens de sua própria terra e abandonado por seus amigos”, diz a reportagem.

A vida do jovem jornalista mudou radicalmente. “Seus velhos amigos se afastaram dele. Sua antiga namorada o deixou. Sua família se dispersou ainda mais do que já estava dispersa (...). E Saviano se culpa por tudo isso.”

Antes do livro, Saviano tinha um futuro brilhante. Agora, o que vê à sua frente é a possibilidade da morte a qualquer hora. Provavelmente, o que os mafiosos esperam para cumprir a promessa de matá-lo é o silêncio das ameaças. Saviano sabe disso.

Enxergando coisas que escapam a outros

Formado em filosofia e com uma grande capacidade de articular ideias e fatos, Saviano sabe que é um mártir vivo da palavra. Sabe que o que escreveu atingiu a fundo o coração da máfia e vai permanecer como um registro indelével do mal. E por isso mesmo é consciente de seu destino. “Sei que vão acabar comigo. Cedo ou tarde, vão fazê-lo”, diz ele a Mora.

Sua análise sobre a palavra escrita também é arguta. “Talvez se possa dizer que alguns escrevem palavras que não mudam as coisas e que outros escrevem palavras que permitem que as pessoas tenham instrumentos para mudar as coisas.”

Por causa de sua condição de protegido da Justiça, fez amigos entre os homens da lei. Aliás, segundo ele mesmo, seus amigos mais próximos são os cinco guardas que fazem sua proteção. Mas há também os de alta patente, como o general Gaetano Marucchia, chefe do Comando Provincial dos Carabinieri de Nápoles, homem afável, culto e cortês, segundo a descrição de Mora.

O depoimento do general Marucchia sobre Saviano revela a razão do alcance de Gomorra:

É um jovem brilhante, inteligentíssimo, sabe manejar as informações com enorme visão, analisando o presente e prevendo o futuro. Seu grande talento para escrever lhe permitiu fazer esse livro, baseado no estudo analítico do fenômeno e em seu grande conhecimento do terreno. Sabe enxergar coisas que escapam a outros.

Fatidicamente, Saviano agora enxerga um futuro negro. Dificilmente a máfia vai deixá-lo respirar com a naturalidade da vida cotidiana. Como diz Mora, o autor de Gomorra terá de viver sempre “agachado, rodeado de armas e de policiais, em alta velocidade e à meia-voz.”


Trecho da entrevista

Roberto Saviano: Não sei se estou meio morto ou meio vivo. O que sei é que a ameaça dos Casaleses [clã mafisoso da Camorra] me converteu em uma pessoa pior. Mais desconfiada, mais egoísta. Sinto ódio dos amigos que me abandonaram quando o livro saiu, entre uma partida de Playstation e uma da Liga Fantástica. Apenas saio de casa. Não posso usar cartão de crédito. Vivo sob escolta 24 horas por dia. Deixei de ser um homem – virei uma equipe. Os rapazes são ótimos, são napolitanos como eu. Praticamos esportes juntos, lutamos boxe no ginásio... Mas sinto falta de Nápoles, aqueles eternos atrasos de trem na estação... O tempo se deformou, os minutos são estranhos, cada movimento banal requer um dia inteiro. E não posso mais fazer as coisas mais simples: passear, tomar uma bebida num bar, comprar uma geladeira. Ontem fomos ao supermercado, e foi patético. Os ‘carabinieri’ [policias militares] em torno do carrinho, todos opinando sobre a pasta que eu devia comprar. As pessoas se assustaram; nos abriram um espaço no caixa para que fôssemos embora logo. Quando saímos, eu disse aos rapazes: ‘Não vamos voltar’.


Pergunta: O senhor encontra amigos em casa?

RS: Poucas vezes. Muitos de meus amigos se afastaram desde que o livro saiu. Foi muito doloroso entender isso. É natural, porque você desaparece, vira invisível e se torna outra pessoa. Você fica desconfiado, vive nervoso, com a cabeça em outro lugar, e nada nem ninguém parece estar à altura trágica de sua situação...


Pergunta: A normalidade se torna absurda.

RS: Sim, as propostas das pessoas normais, falar de coisas bobas, sair para tomar uma cerveja, bater papos superficiais, no início eu não suportava. Eu estava mergulhado num turbilhão no qual existia apenas meu trabalho, minha situação, e procurava respostas nos livros. Fiz uma espécie de descida aos infernos literários para entender quem, antes de mim, em situações mais graves, conseguiu sobreviver.


Pergunta: E quais autores o ajudaram?

RS: Os perseguidos pelos soviéticos: Boris Pasternak [1890-1960], Varlam Shalamov [1907-82]... e, mais recentemente, Anna Politkovskaia [1958-2006], que acabou de forma trágica, mas sempre enfrentou as difamações. Não vou esquecê-la. Tampouco me esqueço das cartas e dos diários do juiz Giovanni Falcone [1939-92], o que ele escreveu e publicou, porque resistiu a ataques cotidianos, parecidos com os que eu sofro.


Pergunta: Quando decidiu ser escritor?

RS: Aos 14 ou 15 anos. Eu sempre lia; adorava os clássicos. Nascer na terra da Camorra não supõe apenas viver entre morte e sangue - você também vive rodeado das melhores ruínas da Antiguidade. Aníbal e Espártaco eram os personagens de minha infância. Meu avô e meu tio sempre me contavam histórias de Espártaco.

A cultura é o que realmente salva nossa vida; minha terra me deu isso de presente. A “Anábasis” de Xenofonte se parece comigo.

Para escrevê-la, ele se tornou mercenário. Xenofonte era tatuado, e eu também. Ele se fez tatuar com a figura de um javali. Consideravam-no um reacionário. Mas no livro, dizia: “Não confia em quem escreve sobre coisas não vividas”.


Pergunta: O senhor pensa muito em sua própria morte?

RS: Bastante. Me dizem que o TNT é o pior, mas eu sinto mais medo de balas. Sei que me farão pagar - está escrito. Convivo tanto com isso que já não me assusta mais. Quando chegarem, porque chegarão, será dentro de algum tempo.

A tensão me defenderá por alguns anos. Enquanto isso, eles, seus 200 mil seguidores e tantos políticos que tentam minimizar o que acontece, dizendo que é exagero, continuarão com a difamação. Dirão que copiei, que sou um palhaço.

Diziam isso a Falcone. E ele disse uma coisa muito importante a sua irmã. Disse que não se defendia das calúnias porque elas se defendem sozinhas, e que a máfia lhe faria um favor matando-o, porque assim ficaria claro que não era arrivista e que dizia a verdade.

Pergunta: Não podemos terminar assim. Suas armas são a palavra e a verdade, e são mais poderosas que as balas.

RS: Contar a verdade me ajudou a afastar as sombras que eu carregava por dentro e que se projetavam sobre mim. Eles venceram em parte, por me fazerem viver assim.

Mas, por outro lado, perderam. Hoje no Facebook há milhares de jovens discutindo a Camorra. Destruíram minha vida, mas, quanto a mim, o que fiz já não é meu. É das crianças.

segunda-feira, 27 de abril de 2009

A FERIDA ABERTA DA ESCRAVIDÃO: Toni Morrison lança mais um romance

“Nossa gente não conversava, cantava. Cantava sobre si mesma, cantava canções espirituais carregadas de códigos que traziam suas experiências.”
Toni Morrison

“No final de meus livros, os personagens têm uma sabedoria que não tinham no começo. Há um raio de lucidez que os ilumina. Mas, digamos que o paraíso não existiria se o mundo inteiro fosse admitido nele.”

Toni Morrison
Toni Morrison (1931 - )

Em 2008, enquanto Barack Obama era cada vez mais enfático – e ficava mais próximo da vitória – ao dizer “Yes, we can” (sim, podemos), na luta verbal para ganhar as eleições dos Estados Unidos – e ganhou –, a escritora negra norte-americana Toni Morrison dava os retoques finais de seu romance A Mercy (em tradução livre, Uma clemência, ou, Uma sorte), livro que trata das feridas abertas pelo sofrimento dos negros numa terra que era governada por homens brancos para homens brancos.

No Brasil, Morrison é conhecida por títulos como A canção de Solomon e Amada (Beloved), livro que virou filme em 1998, com Oprah Winfrey e Danny Glover, intitulado Bem-amada.

Inédito no Brasil, A Mercy já foi traduzido na Espanha (com o título Una bendición, leia o texto na íntegra aqui), onde o jornal El País acaba de publicar uma reportagem sobre a autora e seu novo romance.

Quem assina o texto é o jornalista Andrea Aguilar, segundo o qual, Una bendición retoma, sob nova perspectiva, “a dilacerante ferida da escravidão e segregação que sofreram os negros norte-americanos.”

“A escrita é sempre urgente”, é o título do texto de Aguilar, retirado da entrevista de Morrison. A escrita é urgente quando exige do autor um engajamento para falar daquilo que lhe aflige. Como todo grande escritor escreve basicamente sobre aquilo que lhe aflige ...

Vamos ao texto (trechos) de Aguilar:

A lápis e de madrugada. Foi assim que Toni Morrison (Ohio, 1931) começou a escrever no final dos anos sessenta, quando era uma recém-divorciada mãe de dois filhos pequenos. O resto do dia trabalhava numa editora. Passaram-se 30 anos desde então, mas a escritora, ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura de 1993, mantém-se fiel aos seus costumes.

No começo pensava que escrevia pelos filhos, mas com o tempo compreendi que gostava. Escrevo a lápis, e depois passo para o computador e vou corrigindo, explica.

Morrison conserva não só seus hábitos práticos de escritora, mas também seu estilo pessoal e sua temática. Ela retoma tudo isso em Una bendición (...) e reconstrói neste novo e ambicioso romance, que tem apenas 160 páginas, a origem da perversa relação entre raça e escravidão no Novo Mundo.

Ela passou dois anos pesquisando, conversando com antropólogos para criar a ambientação de Una bendición, cuja história, que vem dividindo a crítica, traz um tom experimental, confluindo vários pontos de vistas narrativos.

Situada no século XVII, esta história de amor, amizade e luta fala de uma adolescente negra, chamada Florens, que foi entregue pela própria mãe a um fazendeiro.


(...)

O trauma de 300 anos de escravidão e segregação tem sido um terreno fértil para a prosa de Morrison.

Nossa gente não conversava, cantava. Cantava sobre si mesma, cantava canções espirituais [spirituals] carregadas de códigos que traziam suas experiências. Mas o que queria era esquecer tudo aquilo e seguir adiante, explica.

Inclusive, escritores como Frederick Douglas [abolicionista do século XIX] não cantava os spirituals. O que eles queriam era que se abolissem as leis racistas, e não ficar falando de seu sofrimento, comenta Morrison, que, em função disso, decidiu romper o silêncio dos autores negros em torno do tema.

Não queria que outros falassem por mim. Não me parecia razoável viver com esse passado escondido. Desde então, muitos escritores escrevem sobre o assunto. Particularmente, fiz isso para entender minha própria identidade.

O mesmo ocorre com a impulsiva Florens, protagonista do romance de Morrison, que com arroubo e força conta sua história na fazenda, sua amizade com a leal Lina e a paixão por um negro livre.

À medida que Florens vai escrevendo, também vai se desenvolvendo, evoluindo a partir do próprio ato de escrever, e isso acaba outorgando-lhe um novo poder. É isso que faz o mundo ter sentido para ela, e tem sido assim para mim também. A escrita é sempre urgente, diz.

Com o passar dos anos, a senhora mudou como escritora?

Sempre me senti controlada quando escrevo, mas uso máscaras diferentes. Minha escrita agora é mais arriscada, e confio mais em mim, gosto de criar um diálogo entre o leitor e o texto. Isso dá vida, responde.

Feminista e lutadora, Morrison retoma em Una bendición outro dos grandes temas que marcaram seu trabalho: a amizade entre mulheres.

Nem mesmo nos romances de Jane Austen, as mulheres eram amigas. A única coisa sobre a qual falavam era de como se casariam. Não era assim entre a comunidade negra em que cresci, no entanto, a literatura relegava isso. Agora, a submissão da mulher continua até hoje, com a clássica burca ou com o que chamo de burca moderna, ou seja, a cirurgia plástica, que impede saber quem é quem.

Morrison arqueia as sobrancelhas quando se refere aos leitores que dizem que seus livros são tristes. Ela não concorda.

No final de meus livros, os personagens têm uma sabedoria que não tinham no começo. Há um raio de lucidez que os ilumina. Mas, digamos que o paraíso não existiria se o mundo inteiro fosse admitido nele.

FILMES NA TV: o playground de Inácio Araújo

Araújo: “Ufa! Já vi o filme do Charlie Kaufman, não tenho que passar mais por isso”


Sempre gostei muito de ler as resenhas mínimas de Inácio Araújo na seção de filmes na TV da Ilustrada (Folha de S. Paulo, que é basicamente o único jornal impresso que leio regularmente). Araújo tem umas tiradas ótimas, engraçadíssimas.

É como se ele se vingasse, e vinga-se, dessa tarefa de escrever sinopses de filmes, geralmente sofríveis, que passam na TV. Mas também não deixa de ser o seu playground. Em todo caso, como entende muito de cinema, seus comentários acabam sempre sendo aulas.

Por exemplo:

De Eu Sei que Vou Te Amar, do Arnaldo Jabor, ele diz:

Um tanto de Nelson Rodrigues insere-se na pena do autor, que parece também um tanto tocada pelo espírito de um Tennessee Williams. Resumindo, não é lá essas coisas.

Sobre Doze É Demais 2, com Steve Martin:

Doze é demais? Quando se trata de uma comédia sem graça, dois também.

Famoso pra Cachorro:

Depois de meter seu dono em várias confusões, cãozinho simpático ganha papel em filme. Oh, cães! Eles não largam o pé.

Nunca fale com estranhos:

Com Antonio Banderas, Rebecca DeMornay, Dennis Miller. Psicóloga começa a namorar rapaz meio estranho. Depois, começa a receber ameaças de morte. Liga uma coisa a outra. Será Banderas, o namorado, um psicopata? E o cara que escreveu semelhante argumento, será também um psicopata ou apenas uma besta?

Amnésia, um filme para se esquecer

Nesta segunda-feira, ele escreveu sobre Amnésia, e gostei do que li, porque quando vi o filme, em 2001, detestei e nem quis ler nada sobre. Muita gente gosta de Amnésia, chegando até a costurar argumentos inteligentes ao redor. Mas não consegui gostar do filme. Cheguei a dormir no meio da ‘desestória’.

Agora pude ler Araújo dizendo:

2009 tem sido um ano tão pobre para o cinema que algumas das melhores alegrias podem ser negativas. ‘Ufa! Já vi o filme do Charlie Kaufman, não tenho que passar mais por isso’, dizia alguém há dias.

Mas aí, na televisão, entra ‘Amnésia’ legítimo produto da enganação que é o ‘filme inteligente americano’. No caso, estamos às voltas com um homem que só se lembra do que passou nos últimos dez segundos, não retém nenhuma informação recente, a não ser o que anota onde pode e o que fotografa. Só sabe que a mulher foi morta e que busca vingar-se.

Em suma, trata-se de uma história simples de vingança, tipo ‘Desejo de Matar’. Apenas se complica um pouco para jogar poeira em nossos olhos.

domingo, 26 de abril de 2009

APOCALIPSE E MEMÓRIA: como salvar nossos escritos da ameaça futura

“Basta um pico de tensão, um raio no jardim ou qualquer outro acontecimento muito mais banal para desmagnetizar uma memória.”
Umberto Eco


O italiano Umberto Eco escreveu um texto sagaz sobre a fácil desintegração das mídias atuais. Podem falar o que quiserem de Eco, mas é uma delícia ler o que ele escreve.

Intitulado Sobre a efemeridade das mídias, publicado originalmente em The New York Times e replicado pelo Portal UOL (tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves) o texto fala da baixa durabilidade dos meios modernos como a fita cassete, o cd, o vinil, disco rígido, o VHS e o livro feito de papel de poupa de madeira, que parece ser o mais duradouro deles.

Leia trechos:

Foram suportes da informação escrita a estela egípcia, a tábua de argila, o papiro, o pergaminho e, evidentemente, o livro impresso. Este último, até agora, demonstrou que sobrevive bem por 500 anos, mas só quando se trata de livros feitos de papel de trapos. A partir de meados do século 19 passou-se ao papel de polpa de madeira, e parece que este tem uma vida máxima de 70 anos (com efeito, basta consultar jornais ou livros dos anos 1940 para ver como muitos deles se desfazem ao ser folheados).

Portanto, há muito tempo se realizam congressos e se estudam meios diferentes para salvar todos os livros que abarrotam nossas bibliotecas: um dos que têm maior êxito (mas quase impossível de realizar para todos os livros existentes) é escanear todas as páginas e copiá-las para um suporte eletrônico.

Mas aqui surge outro problema: todos os suportes para a transmissão e conservação de informações, da foto ao filme cinematográfico, do disco à memória USB que usamos no computador, são mais perecíveis que o livro. Isso fica muito claro com alguns deles: nas velhas fitas cassete, pouco tempo depois a fita se enrolava toda, tentávamos desemaranhá-la enfiando um lápis no carretel, geralmente com resultado nulo; as fitas de vídeo perdem as cores e a definição com facilidade, e se as usarmos para estudar, rebobinando-as e avançando com frequência, danificam-se ainda mais cedo.

Tivemos tempo suficiente para ver quanto podia durar um disco de vinil sem ficar riscado demais, mas não para verificar quanto dura um CD-ROM, que, saudado como a invenção que substituiria o livro, saiu rapidamente do mercado porque podíamos acessar online os mesmos conteúdos por um custo muito menor. Não sabemos quanto vai durar um filme em DVD, sabemos somente que às vezes começa a nos dar problemas quando o vemos muito. E igualmente não tivemos tempo material para experimentar quanto poderiam durar os discos flexíveis de computador: antes de podermos descobrir foram substituídos pelos CDs, e estes pelos discos regraváveis, e estes pelos "pen drives".

(...)

Os suportes modernos parecem criados mais para a difusão da informação do que para sua conservação. O livro, por sua vez, foi o principal instrumento da difusão (pense no papel que desempenhou a Bíblia impressa na Reforma protestante), mas ao mesmo tempo também da conservação.

É possível que dentro de alguns séculos a única forma de ter notícias sobre o passado, quando todos os suportes eletrônicos tiverem sido desmagnetizados, continue sendo um belo incunábulo. E, dentre os livros modernos, os únicos sobreviventes serão os feitos de papel de alta qualidade, ou os feitos de papel livre de ácidos, que muitas editoras hoje oferecem.

Não sou um conservador reacionário. Em um disco rígido portátil de 250 gigabytes gravei as maiores obras-primas da literatura universal e da história da filosofia: é muito mais cômodo encontrar no disco rígido em poucos segundos uma frase de Dante ou da "Summa Theologica" do que levantar-se e ir buscar um volume pesado em estantes muito altas. Mas estou feliz porque esses livros continuam em minha biblioteca, uma garantia da memória para quando os instrumentos eletrônicos entrarem em pane.

sexta-feira, 24 de abril de 2009

42 FRASES DE GRANDE SERTÃO: VEREDAS – a sabedoria de Riobaldo

Foto: Valquíria Gonçalves/ Divulgação
Paisagem de buritis: vista do Parque Nacional Grande Sertão: Veredas

Sabemos que a leitura nos dá a capacidade de olhar para dentro de nós mesmos por intermédio da palavra do outro. Ler é colher as palavras, é juntá-las na malha fina do entendimento para abrir brechas na espessura misteriosa do texto e da vida.

Separo aqui mínimos trechos da fala de Riobaldo ao longo de Grande sertão: veredas. É para todos nós que amamos a literatura e aprendemos com os grandes mestres que conhecimento é texto, é o tecido do espírito.


O senhor ache e não ache. Tudo é e não é ...

Passarinho que debruça – o voo já está pronto.

Sou só um sertanejo, nessas altas ideias navego mal. Sou muito pobre coitado. Inveja minha pura é de uns conforme o senhor, com toda leitura e suma doutoração.

Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa.

Deus é paciência. O contrário é o diabo.

O mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando.

A gente quer passar um rio a nado, e passa; mas vai dar na outra banda é num ponto muito mais embaixo, bem diverso do em que primeiro se pensou. Viver nem não é muito perigoso?

Quem-sabe, a gente criatura ainda tão ruim, tão, que Deus só pode às vezes manobrar com os homens é mandando por intermédio do diá?

O que não é Deus, é estado do demônio. Deus existe mesmo quando não há. Mas o demônio não precisa de existir para haver – a gente sabendo que ele não existe, aí é que ele toma conta de tudo.

Cavalo que ama o dono, até respira do mesmo jeito.

Quem desconfia fica sábio.

Passarinho cai de voar, mas bate suas asinhas no chão.

Ser ruim, sempre, às vezes é custoso, carece de perversos exercícios de experiência.

O espírito da gente é cavalo que escolhe estrada.

Medo, não, mas perdi a vontade de ter coragem.

O jagunço Riobaldo. Fui eu? Fui e não fui. Não fui! – porque não sou, não quero ser.

Eu careço de que o bom seja bom e o rúim ruím, que dum lado esteja o preto e do outro o branco, que o feio fique bem apartado do bonito e a alegria longe da tristeza! (...) Este mundo é muito misturado ...

Mas, na ocasião, me lembrei dum conselho de Zé Bebelo, na Nhanva, um dia me tinha dado. Que era: que a gente carece de fingir às vezes que raiva tem, mas raiva mesma nunca se deve de tolerar de ter. Porque, quando se curte raiva de alguém, é a mesma coisa que se autorizar que essa própria pessoa passe durante o tempo governando a ideia e o sentir da gente.

A morte é para os que morrem.

A vida da gente vai em erros, como um relato sem pés nem cabeça, por falta de sisudez e alegria. Vida devia de ser como sala do teatro, cada um inteiro fazendo com forte gosto seu papel, desempenho.

Preto é preto? branco é branco? Ou: quando é que a velhice começa, surgindo de dentro da mocidade.

No centro do sertão, o que é doideira às vezes pode ser a razão mais certa e de mais juízo!

Sertão é isto: o senhor empurra para trás, mas de repente ele volta a rodear o senhor dos lados. Sertão é quando menos se espera.

O bom da vida é para cavalo, que vê capim e come.

E sei que em cada virada de campo, e debaixo de sombra de cada árvore, está dia e noite um diabo, que não dá movimento, tomando conta.

Tudo que é bonito é absurdo – Deus estável.

Liberdade – aposto – ainda é só alegria de um pobre caminhozinho, no dentro do ferro de grandes prisões.

Sertão é o sozinho.

Sertão: é dentro da gente.

Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende.

Só se pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor. Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura.

Tudo que já foi, é o começo do que vai vir, toda a hora a gente está num cômpito.

Um sentir é do sentente, mas o outro é o do sentidor.

Para o prazer e para ser feliz, é que é preciso a gente saber tudo, formar alma, na consciência; para penar, não se carece.

Obedecer é mais fácil do que entender.

Onde é que está a verdadeira lâmpada de Deus, a lisa e real verdade?

Tive medo não. Só que abaixaram meus excessos de coragem.

O sertão é sem lugar.

Rir, antes da hora, engasga.

Vivendo, se aprende; mas o que se aprende, mais, é só fazer outras maiores perguntas.

Somente com a alegria é que a gente realiza bem – mesmo até as tristes ações.

O senhor sabe o que o silêncio é? É a gente mesmo, demais.

Leia também Mais 32 frases de Grande sertão: veredas.

terça-feira, 21 de abril de 2009

LOBO ANTUNES: Que cavalos são aqueles, que fazem sombra no mar?

A Folha de S. Paulo publicou uma entrevista bem fraca com o escritor português António Lobo Antunes, sábado passado (18/04), com apenas nove perguntas simples, em conversa ao telefone. Mesmo raquítico, no entanto, é um papo de algum interesse.

Talvez o jornal esteja preparando um bom espaço para falar do autor de A ordem natural das coisas, como uma edição do Mais! ou três páginas na Ilustrada. Lobo Antunes vai participar da FLIP (Festa Literária Internacional de Paraty), que será realizada 1º e 5 de junho.

Na entrevista, ele disse que poderá se aposentar do ofício de escrever, depois de publicar seu próximo romance, o 21º, intitulado Que cavalos são aqueles, que fazem sombra no mar?, previsto para sair em outubro.

Veja quatro perguntas:

Folha de S. Paulo: Vir aqui ajuda a aproximar os leitores brasileiros de sua obra?

António Lobo Antunes: Não estou muito preocupado com a promoção da minha obra. Não sou caixeiro viajante, isso não me interessa. Quero ver os amigos que aí tenho, alguns familiares.

FSP: E depois de 20 livros há medo de começar a se repetir?

ALA: Claro que tenho medo. Não sei se tenho ainda muito ou pouco a criar, mas estava a pensar em fazer apenas mais um livro e depois calar-me. Não há nada mais terrível do que ver a decadência de um bom escritor. Olha os últimos romances do Faulkner ou os últimos contos de Hemingway.

FSP: E o livro que terminou há pouco? Há previsão de publicação?

ALA: Esse novo livro em outubro deve estar a sair aqui em Portugal. No Brasil não sei, não depende de mim. Escrevi esse livro por causa do título, algo que não costuma ocorrer. Eu estava ouvindo modas, que são canções de camponeses. Era uma moda do século 19, de camponeses analfabetos que nunca viram o mar. E seus dois primeiros versos são: "Que cavalos são aqueles/que fazem sombra no mar?" E esses dois versos ficaram em mim, impressionaram-me mesmo, foram o clique que fez o livro começar a sair. Achei esses versos espantosos e viraram o título.

FSP: De que trata esse livro?

ALA: Não gosto de falar dos livros, não é possível falar deles. Se pudesse resumir um livro em cinco minutos, para que escrevê-lo? O que me interessa é que as páginas sejam espelhos em que a gente se veja, é meter a vida inteira entre as capas de um livro.

OBS: Leia a entrevista completa aqui (tem de ser assinante do jornal).

domingo, 19 de abril de 2009

BIOGRAFIA MÍNIMA: Nietzsche e o pôr-do-sol ao meio-dia

“Conheço a minha sina. Um dia, meu nome será ligado à lembrança de algo tremendo – de uma crise como jamais houve sobre a Terra, da mais profunda colisão de consciência, de uma decisão conjurada contra tudo o que até então foi acreditado, santificado, requerido. Eu não sou um homem, sou dinamite.”
Nietzsche, em Ecce Homo

Deus morreu. Assinado: Nietzsche.
Nietzsche morreu. Assinado: Deus.
Estampa frente e verso de camiseta

Nietzsche, em cujo pensamento há "a vontade da interminável aventura do pensar"

Nenhum homem, por mais autoconsciente que seja, é capaz de viver toda sua vida sem direcionar o espírito a alguma coisa. O espírito é como as raízes. É ele que mantém o corpo equilibrado. Nenhum homem está isento disso, nem mesmo Nietzsche.

O espírito é sempre direcionado a uma ideia de força capaz de salvá-lo do caos, da inexplicabilidade da existência, do absurdo da vida. Todo homem elege um deus: seja o Todo Poderoso, a Natureza, a Razão, Totens, a própria humanidade (Humanismo). Nietzsche não fez nada disso.

Elegeu a si mesmo como força absoluta (“um deus dança dentro de mim”). E se deu mal. “Do mesmo modo como os filósofos sistemáticos generalizaram seus próprios conceitos em leis universais, Nietzsche generaliza sua alma em uma alma universal”, diz Lou Andreas-Salomé, com muita propriedade, no livro Nietzsche em suas obras.

Ele morreu aos 54 anos, em 1900, depois de passar uma década completamente alienado, em função de um colapso mental irreversível, agindo como se fosse o próprio deus do êxtase e do entusiasmo, Dioniso. Sua vida produtiva, excetuando aqui as elaborações da adolescência, foi dos 27 (quando escreveu O nascimento da tragédia) aos 44 anos.

Estava em pleno vigor mental, quando sua doença, caracterizada por fortes dores de cabeça, tirou suas forças. Perdeu o tino com o sol a pino, no meio-dia da vida.

Seu pai, Karl Ludwig, morreu (aos 36 anos) quando ele tinha 5 anos de idade, com causa mortis diagnosticada apenas como ‘amolecimento do cérebro’. Nietzsche achava que esse seria o seu destino. E foi. Além disso, em 1850, seu irmão Ludwig Joseph, de dois anos, também morreu, quando Nietzsche tinha apenas seis.

Para alguém que disse “absurdamente cedo, aos sete anos, já sabia que nenhuma palavra humana jamais me alcançaria” deve ter sido impactante, pela sensibilidade profunda envolvida, absorver essas mortes na alma e ter de seguir a vida, dizer sim a ela.

Pântanos e montanhas do saber

O biógrafo Rüdiger Safranski, que escreveu Nietzsche – biografia de uma tragédia, diz que o autor de Humano, demasiado humano foi um laboratório do pensamento, que “não cessou de interpretar a si mesmo.”

Não é difícil imaginarmos essa inteligência profunda absorvendo todo o saber do mundo, da Grécia antiga a toda a cultura francesa, passando pela sabedoria oriental, incluindo o pensamento religioso, e depois tendo de dar conta disso segundo sua própria verdade, segundo uma interpretação nova.

O pai de Nietzsche era pastor protestante, e sua família esperava que o filósofo seguisse o mesmo caminho. Havia um contraste no espírito do menino Nietzsche, uma incrível tendência em obedecer cegamente às regras burguesas, protestantes, dentro das quais foi educado, e uma revolta contra tudo isso.

Chamado de Fritz quando garoto, entre os seis e sete anos também era conhecido como “o pastorzinho” pelos colegas, porque já sabia “recitar trechos da Bíblia e cantos religiosos” na escola, conforme comenta Safranski.

Um exemplo dessa tendência de seguir as regras é relatado por sua irmã, Elizabeth Nietzsche, publicado no livro de Safranski:

Uma vez, bem na hora de terminarem as aulas, caiu uma tromba d’água fortíssima; olhávamos pela Pristergasse procurando nosso Fritz. Todos os meninos corriam para casa como um bando de selvagens; finalmente aparece também o pequeno Fritz, boné escondido debaixo da lousa, seu lencinho por cima (...). Como nossa mãe o repreendesse por ter chegado totalmente molhado, ele disse bem sério: ‘Mas, mãe, as regras do colégio dizem: Ao sair da escola os meninos não devem saltar nem correr, mas ir para casa calmos e comportados.’

É claro que ao crescer, Nietzsche impõe ao seu espírito outras normas, mais grandiosas, em que o que não falta são voos e corridas largas, alcançado os espaços mais longínquos da mente.

Sua filosofia, para filósofos ou não filósofos, é impossível de ser estudada segundo critérios metodológicos convencionais, como o de observar temas, teses e objetos de discussão retilineamente.

Como fazer isso em Aurora ou Humano, demasiado humano, cujo pensamento é apresentado em pequenos blocos de aforismos, cheio de relevos e temas variados? O que parece ser fácil de entender acaba sendo o mais difícil. O que dizer de Assim falou Zaratustra? Como entender um pensamento que, em vez da clareza, procura a obscuridade, que, junto da retórica formal, usa também a gramática da música e da poesia?

Em certa parte de Zaratustra, quando este desce das montanhas após dez anos de solidão e contemplação para alcançar a sabedoria, ele começa a pregar suas verdades, mas ninguém dá a mínima para o que diz.

Zaratustra então lamenta não ser boca para aqueles ouvidos e pergunta: “Acreditarão somente nos que gaguejam?”

É uma referência a Moisés, que era gago, e de quebra à Bíblia, ao Cristianismo e seus princípios morais (já havia anunciado a morte de Deus, em A gaia ciência, e ratificado em Zaratustra). Eis apenas um átomo introdutório. Ainda assim, como sabê-lo, se não por meio de uma erudição exigente!

Nietzsche sabia que seu modo de pensar e ver o mundo tinha de ser relativizado e que cada um deveria seguir seu caminho, que cada um deveria saber que tipo de verdade era capaz de suportar.

No final de seu livro, Safranski diz: “Com o pensamento de Nietzsche não chegamos a parte alguma, não há resultante, não há resultado. Nele existe apenas a vontade da interminável aventura do pensar.”

É mesmo uma aventura, dentro da qual é muito fácil se perder. Mas a filosofia de Nietzsche ecoa na contemporaneidade em variados matizes, como em Heidegger, Sartre, Camus e em tudo quanto é pensamento ateu, para o bem e para mal. Em Assim falou Zaratustra, o subtítulo é “um livro para todos e para ninguém”. Isso deve dizer alguma coisa. O pensamento deve ser livre. Muitos leem Nietzsche apenas como literatura, como poesia, e da mais profícua.

Eis o homem!

No fim de sua fase lúcida, o filósofo alemão escreveu Ecce homo, livro de uma beleza estranhíssima, porque revela a fronteira entre razão e loucura, em meio à extrema inteligência do autor.

Em Ecce homo, Nietzsche diz coisas que soam engraçadas, e coloca títulos hilários nos capítulos, porque são verdadeiros, mas também pretensiosos, arrogantes, cheios de marra. Os textos desses capítulos revelam muito de seu modo de pensar.

Em um capítulo lemos o título, ‘Por que sou tão sábio’; em outro, ‘Por que sou tão inteligente’; depois, ‘Por que escrevo tão bons livros’; e após resenhar suas próprias obras, no final, escreve: ‘Por que sou um destino’.

Sobre isso, vale a pena nos determos num trecho do posfácio de Ecce Homo, escrito por Paulo César de Souza, tradutor deste e de vários outros livros de Nietzsche.

Em 1908, numa das reuniões semanais da pequena Sociedade psicanalista de Viena, na casa do dr. Sigmund Freud, o tema proposto para a discussão foi Ecce Homo. Durante a reunião – que tratou sobretudo do ‘caso’ Nietzsche, não de suas ideias – Freud fez três observações de interesse. Disse que o livro não podia ser desconsiderado como produto de insânia, porque nele se preservava o domínio da forma. Disse que ninguém havia antes alcançado, e dificilmente alguém tornaria a alcançar, o grau de introspecção alcançado por Nietzsche. E disse que nunca havia estudado Nietzsche, devido à semelhança entre as percepções do filósofo e as investigações da psicanálise (evitava-o para preservar a independência de espírito), e devido à riqueza de ideias daquelas obras, que o impedia de ler mais que metade de uma página (!).

Esta última afirmação deve interessar aos estudiosos da relação entre Freud e Nietzsche. As duas primeiras interessam ao leitor de Ecce Homo.

A profundidade da introspecção é algo que nos assombra já nas primeiras páginas. Suas análises da doença, do ressentimento, das relações entre as instâncias da psique, são de um grande psicólogo – algo de que ele se gabava. Por isso seus intérpretes mais certeiros foram aqueles que demonstraram compreensão e simpatia pelo modo de abordagem da psicanálise, e a isto se deve também sua incompreensão pela filosofia acadêmica: professores de filosofia raramente são bons psicólogos.

Quanto à loucura, ela se manifestaria nos ‘excessos’: na desinibição e na imodéstia sem freios, observadas já nos títulos dos capítulos. O tom exaltado se explica, em parte, pelas circunstâncias em que o livro foi escrito, e pelas intenções do autor.


Outros conflitos da alma

Nietzsche morreu solteiro, nunca teve envolvimento amoroso com nenhuma mulher, a não ser o caso nebuloso com Lou Andreas-Salomé, à qual chegou a pedir em casamento duas vezes e por duas vezes foi rejeitado, após ter recebido um ‘não’ também de outra mulher, chamada Mathilde Trampedach, seis anos antes.

Além disso, existe um livro apócrifo intitulado Minha irmã e eu, em que o filósofo de A genealogia da moral supostamente relata seu caso incestuoso com a irmã Elizabeth, entre outros conflitos da relação familiar.

Mas aí já tangencia a esfera da literatura, em que ele inspira a criação alheia, como o livro de Irvin D. Yalom, Quando Nietzsche chorou, ou, para a uma referência mais estética, Doutor Fausto, romance de Thomas Mann, cujo protagonista Adrian Leverkühn foi baseado em Nietzsche e no compositor erudito Arnold Schoenberg.

Biografia mínima

Para situarmos o nosso filósofo no tempo e no espaço, segue abaixo um resumo feito por Lou Andreas-Salomé, no livro Nietzsche em suas obras.

Friedrich Wilhelm Nietzsche nasceu em 15 de outubro de 1844, único filho de um pastor, em Röcken, perto de Lützen, de onde mais tarde seu pai foi transferido para Naumburg. Recebeu sua instrução escolar na vizinha Escola de Pforta e foi então, como estudante de filologia clássica, para a Universidade de Bonn, onde na época era professor o afamado Ritschl.

Estudou quase exclusivamente com Ritschl e com ele também teve um relacionamento pessoal intenso, seguindo-o no outono de 1865 para Leipzig. Em seu período de estudos em Leipzig ocorreu o primeiro contato pessoal com Wagner, que veio a conhecer na casa da irmã deste, a esposa do professor Brockhauss, depois de já se ter familiarizado previamente com suas obras.

Antes ainda de sua licenciatura, em 1869, a Universidade de Basileia convidou Nietzsche, com 24 anos, para a cátedra do filósofo Kiessling, que de lá partiu para o Johanneum em Hamburgo. Nietzsche recebeu primeiro o cargo de professor adjunto, mas logo depois o de titular de filologia clássica, e a Universidade de Leipzig conferiu-lhe o doutorado sem a prévia licenciatura.

Junto ao corpo docente universitário, Nietzsche assumiu o curso de grego na terceira (e mais elevada) série da Paedagogium de Basileia – um instituto intermediário entre o secundário e a universidade –, onde ensinavam outros professores universitários, como o historiador da cultura Jacob Burckhardt e o filólogo Mähly.

Nietzsche conquistou aí grande influência sobre seus alunos; seu raro talento de cativar jovens espíritos e de agir sobre eles, desenvolvendo-os e estimulando-os, desabrochou totalmente. Burckhardt pertencia ao círculo de amigos mais íntimos de Nietzsche, que contava ainda com o historiador eclesiástico Franz Overbeck e com o filósofo kantiano Heinrich Romundt.

Com os dois últimos Nietzsche morou em uma casa que, após a publicação de Considerações extemporâneas, recebeu na sociedade de Basileia o cognome de Gifthütte (choça venenosa). Ao fim de sua permanência em Basileia, Nietzsche viveu por algum tempo com sua única irmã, Elisabeth, que mais tarde se casou com Berhard Förster, amigo de juventude do irmão, indo o casal para o Paraguai.

Em 1870, Nietzsche participa da guerra franco-prussiana como enfermeiro voluntário; não muito tempo depois aparecem os primeiros sintomas ameaçadores de uma doença encefálica, que se manifesta em dores e náuseas violentas e periodicamente recorrentes.

Se dermos crédito às próprias declarações verbais de Nietzsche, esse mal seria de origem hereditária, e seu pai teria sucumbido a ele. No ano de 1876 já se sentia tão doente da cabeça e dos olhos que teve de se fazer substituir no Paedagogium, e a partir de então seu estado piorou de tal modo que várias vezes esteve perto da morte.


O ocaso

Quando Lou Salomé publicou seu livro, em 1894, Nietzsche já estava enfermo. Mas antes ele acompanhava de perto o trabalho da autora, e sabia do livro que ela estava escrevendo sobre ele. Os dois mantiveram uma intensa relação intelectual.

A nota biográfica de Lou Salomé esboça a história de Nietzsche só até antes de os dois se conhecerem. Depois disso, ele ainda sofreria muito com as dores de cabeça, até o colapso mental irreversível, em 1889, que o levaria a um estado vegetativo e à morte, em 1900.

Com o juízo comprometido pela enfermidade, em 1889, Nietzsche realizaria suas últimas façanhas, como a de dançar nu no quarto da pensão onde se hospedava, em Turim, na Itália, e abraçar, aos prontos, um cavalo na rua, que era chicoteado pelo dono.

Ao sentir que seu amigo precisava de ajuda, Jacob Burckhardt pediu a outro amigo em comum, Franz Overbeck, que fosse buscar Nietzsche em Turim. Em carta, Overbeck relata a forte impressão do que viu:

Enxerguei Nietzsche em um canto do sofá ... com aparência bastante arruinada; correu até mim e me abraçou fortemente ao me reconhecer.” (...) “Esse incomparável mestre da expressão não conseguiu nem expressar mesmo os arroubos de sua alegria, a não ser com as expressões mais triviais, ou dançando e saltitando ridiculamente.” Depois, “rompeu em lágrimas; então afundou no sofá em convulsões, e o choque também não me permitiu permanecer em pé.

sexta-feira, 17 de abril de 2009

RINDO DE NIETZSCHE

Nietzsche conheceu a bela e irresistível Lou Andreas-Salomé em 1882, por intermédio do amigo em comum, Paul Rée. Dias antes do encontro, Nietzsche escrevera uma carta a Rée perguntando de Lou, em tom irônico, mas que hoje, longe do fato e da atmosfera da época, soa ridículo. À minha mente não vem outra coisa senão uma grande vontade de rir.

Saúde essa russa por mim, se isso tem algum sentido. Sou cobiçoso por esse tipo de alma. Sim, à noite, saio à caça delas.

Ninguém escapa ao ridículo. Nem mesmo gênios como Nietzsche, ainda que isso tenha sido numa carta entre amigos.

Sete anos depois, Nietzsche, já doente, dança nu numa pensão de Turim. Tudo isso é muito engraçado, se observado à distância. Mas, devo admitir, prefiro observações do pensador profundo que disse: “A voz da beleza fala baixinho; insinua-se apenas nas almas mais despertas.”

ESTE BLOG É UMA JOIA


O Leituras foi lembrado mais uma vez pelo blog Minha Literatura Agora, do James, com o selo Este blog é uma jóia. Fico honrado pelo reconhecimento.

Retribuo a lembrança passando adiante a homenagem a dois blogs que acompanho.

Superlativa

Purpurina de Rua

quinta-feira, 16 de abril de 2009

DEU NA FOLHA DE S. APULO: Passo Fundo terá Guillermo Arriaga e Pierre Lévy

Arriaga, autor de Um doce aroma de morte (2007), e Lévy, autor de Cibercultura (2007)

O escritor mexicano Guillermo Arriaga, autor do roteiro de "Babel", entre outros, o canadense Pierre Lévy, filósofo da informação e professor de comunicação da Universidade de Ottawa, e os brasileiros Nélida Piñon e Zuenir Ventura, estão entre os convidados da 13ª Jornada Nacional de Literatura de Passo Fundo, que acontece entre 24 e 28 de agosto na cidade gaúcha. Anunciado no início do ano, o escritor português António Lobo Antunes não confirmou sua vinda.

Durante o encontro, que abordará o tema "Arte e Tecnologia", será anunciado o vencedor do 6º Prêmio Passo Fundo Zaffari & Bourbon de Literatura.

A notícia foi publucada no jornal Folha de S. Paulo desta quinta-feira.

quarta-feira, 15 de abril de 2009

BEAUVOIR E O RITO INICIÁTICO DA LEITURA

"Para quem foi um adolescente do interior que começou a ler muito cedo, a descoberta da dupla Simone de Beauvoir/Sartre foi uma revelação"
James, do blog Minha Literatura Agora

Ela merecia um prêmio alto como o Nobel de Literatura

Simone de Beauvoir dava certo até quando escrevia fracassos de crítica como Todos os homens são mortais, livro que eu gostava de ler pelo estilo delicioso da autora e suas tentativas de discutir o quiproquó da imortalidade.

Mas, James, autor do blog Minha Literatura Agora, tem razão, ao dizer que as memórias de Beauvoir são melhores que os romances dela. Talvez porque a escrita saia quente, tinindo, das lembranças tórridas de paixão intelectual.

Além disso, ela merecia um prêmio alto, como o Nobel de Literatura, pelo O segundo sexo, livro que entrou na lista de Martin Seymour-Smith como um dos cem que mais influenciaram a humanidade.

James acaba de postar o texto Simone de Beauvoir – uma digressão (leia o texto todo aqui), em que ressalta a qualidade da escritora que foi a grande companheira de Jean-Paul Sartre. Ele traça um perfil da autora de Os Mandarins, chamando a atenção para livros como Memórias de uma moça bem comportada, A força da idade, A força das coisas, A cerimônia do adeus e Balanço final.

Mas também fala de O segundo sexo. “Imaginem uma mulher, em 1949, dizendo que 'não se nasce mulher, torna-se mulher'; e de página em página ir demolindo todos os mitos sobre o 'eterno feminino', a suposta fraqueza psíquica inerente às mulheres. Foi um grande barulho, essa desconstrução da mulher como mito, essa constatação que a verdadeira mulher não era aquela construída pelos homens ao longo dos séculos.”

Uma mulher com a força de Beauvoir deve ser lida por todos que gostam dessa relação com a cultura escrita. Talvez ela tenha alguma coisa de rito iniciático da escrita, porque nos pega justamente na juventude.

terça-feira, 14 de abril de 2009

MEDEIA: um arquétipo da condição humana

“No tema do conflito entre razão e paixão, dificilmente encontraríamos um poeta grego mais representativo que Eurípedes.”
Sergio Paulo Rouanet

“Sei que crimes vou cometer, mas a cólera é mais forte que minha vontade.”
Medeia

“O coração tem razões que a própria razão desconhece.”
Blaise Pascal

                                                                                                                                                       Foto: Daniel Sorrentino / Divulgação
O coro em desespero, chorando espantado a morte das crianças: cena de Medeia na Fringe do Festival de Teatro de Curitiba 2009

Uma vez, o ator, diretor, homem culto e provocador Antonio Abujamra disse que aceitou dar aulas a uma turma de pós-graduação de certa universidade conhecida. Acho que era a PUC. Na primeira aula, ele quis estabelecer um diálogo com os alunos e perguntou se já haviam lido Eurípedes. Ninguém sabia quem era Eurípedes.

O dramaturgo grego, que viveu no século V a.C., pode ser conhecido por meio da leitura de seus textos, como As bacantes e Medeia, comprados em qualquer livraria, em várias traduções, como a de Mário da Gama Kury, da Editora Vozes.

Há, no entanto, outra maneira – mais orgânica, mais viva – de se estabelecer contato com essa rica herança da cultura mediterrânea: o teatro. O Grupo Ethos, por exemplo, que trabalha com teatro experimental, de pesquisa e montagem, vai ficar em cartaz com a peça Medeia até 31 de maio, aos sábados (21 horas) e domingos (19 horas), no Teatro Commune (veja serviço).

É uma ótima chance de se mergulhar num dos mais fascinantes e terríveis arquétipos da condição humana, de amor e ódio, do momento em que se vê a razão ceder espaço à paixão mórbida, sem freios, num delicado abismo em que nem por isso a razão sai de cena, criando um embate entre aquilo que manteria a unidade do ser e o que poderia levar à desintegração total. A última proposição, neste caso, é a medida do trágico.

O mito

Mas antes de falar da peça, sigamos as pegadas do mito. Segundo a mitologia grega, Medeia mata os próprios filhos para se vingar do marido, Jasão, que a trocara por outra mais jovem. A história dos dois começa em Cólquida, reino do pai de Medeia, Eetes, para onde Jasão viaja como chefe dos argonautas. A missão dele era resgatar um velocino (pelo de carneiro) de ouro a pedido de seu tio, Pélias, que o queria ver longe do trono de Iolco.

Medeia se apaixona por Jasão e o ajuda a pegar o velocino, traindo a confiança de toda a família, inclusive matando o irmão Absirto. Ela então foge para Iolco com Jasão, que descobre que seu pai, Éson, fora morto por Pélias.

Medeia, conhecedora de magia e protegida da deusa Hécate, mata Pélias a pedido de Jasão, e os dois fogem para Corinto, onde são acolhidos pelo rei Creonte. Em Corinto, eles se casam e têm filhos. Mas quando ela começa a envelhecer e perder a beleza, Jasão, oportunamente, se apaixona pela filha de Creonte, Glauce, a herdeira do trono.

Após colecionar tantos assassinatos em nome do amor que sentia por Jasão e se ver assim, usada, Medeia se vinga, matando a nova mulher de Jasão. No pacote, mata também Creonte. Já enlouquecida pelo veneno do sentimento de vingança, acha pouca a dor do ex-marido, mata os próprios filhos e foge, deixando Jasão prostrado no mais dilacerante dos sofrimentos até cometer suicídio.

A razão enlouquecida

A peça de Eurípedes começa no momento em que Jasão troca Medeia pela filha de Creonte, e a esposa renegada, ameaçada de ser expulsa da cidade, se prepara para realizar sua vingança. É aí que se constrói a personalidade vacilante de Medeia. Ela sabia que, ao deixar a família para acompanhar um estrangeiro, estava fazendo uma besteira. Mas o amor lhe falou mais alto.

Medeia era inteligente, dotada de bom senso, absolutamente consciente de seus atos, mas ainda assim, incapaz de domar a ferocidade da sua paixão. Ao ser trocada por outra, depois de tudo, aparece com força aquilo que já existia dentro dela, o sentimento oposto ao do amor.

Apesar da loucura, contraditoriamente, ela não perde a razão, o que torna tudo ainda mais terrível. Tinha consciência de cada passo que tomava, e por isso sabia que “o destino do homem nasce do demônio que habita em seu peito”, conforme observa Junito de Souza Brandão, o maior estudioso de mitologia grega – aliado à teoria junguiana – que esse país já teve.

Aliás, o Grupo Ethos Teatral, criado em julho de 2006, tem forte influência dessa linha de pesquisa, em que os mitos são analisados para se retirarem deles os arquétipos da condição humana. Paralelamente, o grupo desenvolve um estudo sobre a cultura oriental, em que trabalha com várias obras, entre as quais está O herói de mil faces, livro de Joseph Campbbel, segundo o qual, todos os mitos de todas as culturas se beijam, têm algo em comum, em relação à estrutura conceitual de seus heróis e deuses.

Pode-se ver o livro de Campbbel na encenação de Medeia por meio dos mil símbolos presentes no palco. O que a diretora Lúcia de Léllis procura mostrar nesta peça é a verdade e a força do arquétipo do mito de Medeia. Para isso, o que ela traz de diferente, dentro da proposta experimental de seu teatro, é um conjunto sincrético de outras vozes que dialogam com esse mito, sem perder o texto original e sem deixar cair na banalidade venal de nossos dias. É pura arte.

Segundo a diretora, a arte é uma jornada da alma, na qual o que se procura explorar é o sentido da existência, utilizando-se de um fio que percorre o dentro e o fora da vida. “Meu pretensioso trabalho como diretora de teatro, que jamais terá todas as respostas, tem por princípio a transformação do ser, como o casulo que abriga a crisálida e desenvolve as asas dessas almas.”

Símbolos

É assim que, na arte de Lúcia de Lellis, vemos elementos das culturas africana, clássica, árabe e judaica, todos envoltos em raízes mediterrâneas, diga-se de passagem. Uma das referências mais sutis e significativas desse trabalho é a pequena fala que ecoa Grande sertão: veredas.

Quando Medeia fica sabendo dos planos de Jasão, que vai abandoná-la, a voz do coro, que ressoa a totalidade do texto, inclusive a consciência da própria Medeia, já prevê a desgraça. Já sabe que a mulher de Jasão se valerá dos artifícios da magia para matar seus inimigos e até seus filhos.

Ao ser perguntado sobre o que sabe do futuro de Medeia, alguém do coro diz: “Não, nada.” ‘Não, nada’ é igual a ‘nonada’, a primeira palavra de Grande sertão: veredas, a ponta do fio que destrincha toda uma epopéia do espírito, da relação do homem com a natureza, da negação e da afirmação da vida no sertão, mas também na alma.

Riobaldo não quer dizer, mas diz. Quer não-dizer dizendo, sobre seu amor, seu medo, sua coragem, sobre a tragédia no sertão (na alma) que aconteceu e acontecerá sempre.

Talvez Riobaldo, e seu pacto com o diabo (cujo epíteto é Lúcifer, “o que leva a luz celeste”), não se assemelhe a Medeia, em termos de destino, mas o sertão de Rosa, que também é um personagem naquela história, representa um viés mítico da mensagem, o fio de mistério que liga real e irreal.

Os elementos sincréticos levantados por Lúcia de Léllis chegam sutilmente ao livro de Guimarães Rosa, é verdade, mas, sem dúvida, refletem parte de sua essência. Mais direta é a ligação com Ogum, cujo nome foi pronunciado junto com a evocação à deusa Hécate. Ambos podem ser aproximados à medida que o pedido de Medeia tem a ver com o domínio da natureza e sua força selvagem e violenta.

Hécate era uma deusa do campo e, ao mesmo tempo, ligada às forças ocultas das trevas, da morte, mas que também possuía um epíteto semelhante ao de Lúcifer (Phosphóros, “a que transporta a luz”). Na encenação, o coro se veste semelhante aos fantasmas, refletindo esse destino funesto da anti-heroína.

Muitos outros símbolos perpassam a encenação. Jasão surge com chifres de bode nas costas de Creonte, prenunciando o trágico (bode em grego é tragos + oidé, canto = tragédia), acentuando o transe entre sanidade e loucura, evocando Dioniso, o pai do teatro, o deus do êxtase e do entusiasmo.

Não nos estendendo diante das inúmeras chaves, vemos também a diadema de ouro, presenteada a Glauce por Medeia, se transformar numa coroa de espinhos semelhante à de Cristo. Por fim, os filhos sacrificados por Medeia aparecem na encenação como o globo, a terra e seus dois hemisférios, a terra como vítima da fúria humana.

Montagem e atuação

A adaptação de Medeia com elementos diferentes não é novidade. Em 1975, Chico Buarque escreveu A gota d’água, musical que teve Bibi Ferreira interpretando a filha de Eetes e cantando a canção do título, com diálogos e trejeitos marcados pela linguagem da época.

E é justamente essa música, Gota d’água que, na voz de Cida Moreira, percorre toda a encenação de Léllis. Mas sua adaptação vai além disso. Em termos de música, detalhe muito importante para a montagem, o sincretismo acolhe uma polifonia que vai de sons afros, árabes, passando pela música clássica e a MPB.

Não sou Bárbara Heliodora, longe disso, em todos os quesitos. Mas não é preciso ser expert para saber que Medeia não é uma peça fácil de se representar. Neste caso, o peso dramático parece inibir os atores principais.

Os personagens trazem uma carga densa de sentimentos complexos, conflituosos, principalmente em Medeia, mãe, mulher apaixonada, traída, enlouquecida pelo ódio em meio ao amor que ainda sente por Jasão.

Um dos recursos cênicos criados pela diretora foi a divisão do personagem de Medeia, que no palco é representada por duas atrizes (Ana Maria Ribeiro e Karina Bastos). É uma proposta interessante, que permite um eco e um jogo de espelhos que só podem ser concebidos no plano da consciência.

Mas faltou certo vigor na representação das duas atrizes. É claro que a encenação vigorosa, exigida pela complexidade de Medeia, pode incorrer no risco do dramalhão mexicano. Por outro lado, havia também o momento em que era preciso fazer a serenidade sustentar a loucura. Nesse quesito, as atrizes não ficaram distante do êxito.

Todavia, em termos de atuação individual, o destaque vai para a participação de Fernanda Brandão, atriz que faz a Ama. Ao todo, o palco é dividido por 18 atores, muitos dos quais compõem apenas o coro, o personagem mais perfeito da peça.

O coro em Medeia é importante sempre, como o era em todo o teatro grego. Mas, no caso de Eurípedes, o coro não só sustenta a ressonância dramática da peça, como também interpreta situações mínimas que saem do embate entre razão e loucura.

Uma das cenas mais comoventes é quando o coro chora a morte das crianças e se vê incrédulo diante da loucura de Medeia. Esta é chamada de desditada, mas Jasão (Alessandro Marba), embora cínico e frio, também o é. Ambos são jogados na teia nefasta do destino humano, em que a morte feliz não tem vez e a vida é um barco veloz que engole a todos.

Medeia permanece há séculos no seio da cultura ocidental, com uma atualidade impressionante, não porque faz cócegas na sensibilidade do espectador ou porque se mostra adocicada no paladar de quem aprecia teatro, mas, isso, sim, pela força dramática de seu texto, pela carga representativa do íntimo da condição humana, da violência que trazemos escondida e não revelamos a ninguém, nem a nós mesmos.

Diante dessa terrível trama do destino, o que nos salva? Nonada. Talvez a arte.


Serviço:

Título: Medeia
Autor: Eurípedes
Adaptação: Grupo Ethos Teatral
Direção: Lúcia de Lellis
Local: Teatro Commune – 83 lugares (Tel. 3476-0792)
Horário: Sábado (21 horas) e Domingo (19 horas)
Endereço: Rua da Consolação, 1218 (entre a Universidade Mackenzie e o Tribunal Regional do Trabalho)
Preço: R$ 20,00 (inteira) e R$ 10,00 (meia)
Temporada: Até 31 de maio

OBS: Estacionamento; acesso para cadeirantes.

sexta-feira, 10 de abril de 2009

AS VOZES DE HILDA

Hilda "Quando era jovem, e vivia cercada de homens bem-sucedidos,
ninguém levava a sério o que escrevia, porque textos tão densos não
podiam vir de uma mulher tão desejada; e deviam ser tomados como
uma brincadeira inofensiva, ou uma fraude." (Inventário das sombas)

Hilda Hilst (1930 – 2004) foi uma grande escritora que viveu bom tempo refém da própria beleza, que escamoteava sua literatura. Para muitos críticos, durante muito tempo, ela era apenas o rostinho lindo que escrevia umas coisinhas.

Sua obra, com mais de 40 livros, entre poesia, contos, romances e teatro, vem sendo republicada pela Editora Globo desde 2001. Mas não parece ser o bastante. Continua obnubilada.

Hilda sofreu preconceitos por ter sido bela, mas o olhar de cigana dissimulada dos críticos à obra dela também se deve a outro comportamento. Ela ouvia vozes do além, e acreditava piamente em suas alucinações auditivas.

Essa história é bem conhecida, inclusive, contada no livro de José Castello, Inventário das sombras, de 1999. A escritora montou em sua casa “um equipamento de radiofonia destinado a captar, através das ondas de rádio, mensagens emitidas por extraterrestres e falecidos, experiência que se iniciou ainda nos anos 70, inspirada nos experimentos do músico suíço Friedrich Jungersson.”

Hilda chegou a gravar alguns trechos dessa paranormalidade. E mais. O caso foi parar no Fantástico do dia 18 de março de 1979.

Navegando pelos registros de vídeo da Globo.com, cujo acesso, em sua maioria, é gratuito, encontrei o vídeo (veja), que a Globo deve ter usado na comemoração dos 30 anos do Fantástico. Não sei até quando vai ficar disponível.

Em certa passagem dos dez minutos de reportagem, Hilda diz o seguinte:

“Era mais ou menos 11 horas da noite, estava tocando uma música e de repente aparece o meu nome nessa fita. A cantora, em vez de dizer o que teria eventualmente de dizer, diz: ‘Hilda, tu es après du mois.’ [Hilda,você está perto de mim]”

Ela acreditava que tinha gravado a voz da própria mãe, já falecida. A razão de a voz surgir em francês, e não em português, nem sei eu.

Na reportagem, um psicólogo disse que se trata de um fenômeno psíquico, em que Hilda grava a própria voz, sem perceber.

OBS: Quando tentei linkar diretamente o vídeo, a janela do post se multiplicou rapidamente em mais de 50 vezes. Desliguei o computador imediatamente e desisti. Não acredito em bruxas, mas elas devem existir.

quarta-feira, 8 de abril de 2009

DESVENDANDO O ARCO-ÍRIS: beleza, ingenuidade e pretensão no livro de Richard Dawkins


Richard Dawkins é biólogo e está entre os mais influentes de sua área, sendo respeitado mundialmente por divulgar e defender com veemência a teoria da evolução, de Charles Darwin.

Já escreveu vários livros esclarecedores sobre os mistérios da vida, numa linguagem acessível aos leigos, o que tem despertado muitas pessoas para o universo complexo da biologia.

Em 1998, ele também tentou fazer um despertar estético nos leitores, ao publicar Desvendando o arco-íris – ciência, ilusão e encantamento, livro gracioso, mas de tese estranha, sobre a vantagem científica na inspiração poética.

Poesia e ciência

Em Desvendando o arco-íris, Dawkins afirma que a poesia está na ciência. O livro argumenta que a ciência não só é instrumental, eficaz em seu campo do saber, mas também pode proporcionar um sentimento do belo à altura da poesia e da música.

Segundo o autor, a ciência pode ser inspiração para a mais alta poesia. Escreveu o livro, diz ele, porque não tinha “talento para comprovar seu argumento por meio de uma demonstração”, ou seja, criando versos dignos dessa beleza científica. Por isso, partiu para a persuasão em prosa.

Dawkins quer nos persuadir de que pelo corpo do saber científico correm veios poéticos, filões de beleza tão profundos que deveriam ter mais atenção por parte dos poetas maiores. O problema é que os grandes poetas, avessos à ciência como objeto de inspiração, refutam essa premissa.

“A minha tese é que os poetas poderiam fazer melhor uso da inspiração fornecida pela ciência e que, ao mesmo tempo, os cientistas deveriam procurar se comunicar com o grupo que, na falta de uma palavra melhor, chamo de poetas.”

Armado o jogo, o biólogo, extremamente culto e inteligente, discorre 400 páginas sobre o assunto, muitas vezes deixando a impressão de que, para ele, ciência é apenas o conjunto de saber proveniente da biologia, física, química, matemática e adjacências. Muitas vezes também se esquecendo de que grandes poetas, como Goethe e Shakespeare, para citar o óbvio, observavam a natureza com muita propriedade.

Desvendando o arco-íris é um belo livro, mas, a meu ver, ingênuo, fruto de dias ociosos, em que Dawkins parecia não ter nada a fazer pela biologia. Entre uma e outra passagem muito bela, o leitor testemunha os arroubos de arrogância do autor.

De cores e versos

O livro tem um título retirado do poema de John Keats (1795-1821), em que este acusa a filosofia de “conquistar os mistérios com régua e traço” e “desvendar o arco-íris.” Neste caso, Keats se referia à parte epistemológica da filosofia que cuidava da investigação da natureza, que daria à luz a ciência moderna, como a física de Isaac Newton, por exemplo.

Por causa disso, segundo Dawkins, Keats detestava Newton, por ter destruído toda a poesia do arco-íris, reduzindo-o às cores prismáticas, explicando-o. O biólogo então argumenta:

“Alguém poderia seriamente sugerir que estraga o prazer proporcionado pelo arco-íris ser informado do que se passa no interior de todas essas milhares de populações de gotas de chuva que caem, cintilam, refletem e refratam a luz?”

Em função desse modo de pensar, Dawkins já havia dito: “Vou me limitar neste ponto à especulação não comprovável de que Keats, como [William Butler] Yeats (1865-1939), poderia ter sido até um poeta melhor, se tivesse recorrido à ciência em busca de inspiração.”

Ou seja, ele passa por cima do sentimento de Keats em relação a Newton. Não pensa – ou não quer aceitar – que se Keats fosse procurar informações detalhadas na ciência talvez tivesse se tornado um poeta medíocre, sem dar asas à imaginação criativa.

Além disso, é preciso pensar no contraponto do argumento de Dawkins. Alguém, de igual modo, poderia dizer que o prazer é menor, não ser informado cientificamente do que se passa no interior de um arco-íris, e ler um belo poema de um poeta que inventou em cima daquilo que vê e conhece do arco-íris?

A inspiração nasce do olhar e da contemplação, até mesmo da leitura de livros e do mundo, mas certamente não precisa – nem seria melhor para todos os grandes poetas – da dissecação científica, ainda que tais informações nos deem outro tipo de beleza.

A ciência fixa significados e procura não dar margem a interpretações variadas, enquanto a poesia faz justamente o contrário. Além disso, Dawkins se baseia numa visão clássica da poesia, em que os poetas procuravam trabalhar com verdades estabelecidas ou mistificações.

O modelo da poesia moderna é o contrário disso. Segundo o crítico Michael Hamburger, em A verdade da poesia, o poeta hoje explora verdades em vez de afirmá-las.

O poeta é um pensador

Desvendando o arco-íris é de fato um belo livro, com algumas pedras no meio do caminho. Mas o feijão pode ser catado, sem prejuízo algum ao tempo gasto do leitor, apesar da tese ingênua de Dawkins e de sua arrogância.

O livro traz um ror de informações interessantes, resultados do acúmulo do saber científico. Mas o que Dawkins parece ignorar, aliás, o que sua arrogância não o permite ver, é que a poesia, a arte, também tem suas antenas, tem suas ferramentas de investigação.

Embora essas ferramentas sejam diferentes dos métodos da ciência, elas são eficazes, chegam a atingir profundamente o universo que interessa à poesia: a condição humana. Além disso, nem sempre a poesia descarta a ciência, diga-se de passagem.

Em tentativa semelhante, Martin Heidegger foi mais feliz do que Dawkins. O filósofo alemão argumentava que a linguagem é a casa do ser, cujos guardiões são os filósofos e poetas. Muitos filósofos não gostaram dessa equiparação, porque isso lesaria a lógica, a razão. Mas também alguns poetas refutaram o pensamento heideggeriano.

De qualquer forma, poesia e filosofia laboram em campos muito próximos, que podem, sim, ser cômodos da mesma casa, com flexibilidades e jogos de imagens que talvez a rigidez da ciência não o permitisse. Vejamos as alegorias e metáforas de Platão, do próprio Heidegger, de Nietzsche etc.

Mesmo assim, não podemos nos esquecer da psicanálise, que nasceu como ciência e que nos oferece encantamento poético de alto valor.

Em todo caso, poesia e filosofia se aproximam mais entre si, porque ambos fazem uma procura amorosa da verdade. A ciência quer ser mais metódica e dona da razão, pelo menos na maioria do corpus científico, o que a torna mais próxima da religião do que da poesia.

Trechos:

A ciência, como os estudos literários apropriados, pode ser difícil e desafiadora, mas é – assim como os estudos literários apropriados – maravilhosa.

(...)

A ciência verdadeira tem direito ao formigamento na espinha que, num nível mais baixo, atrai os fãs de Jornada nas estrelas e que, no nível mais baixo de todos, tem sido lucrativamente explorado pelos astrólogos, videntes e médiuns de televisão.

(...)

O mito inventado por [J. R. R.] Tolkien (autor da trilogia O senhor dos anéis) é outra forma bastarda de ficção científica.

(...)

Temos um apetite por maravilhas, um apetite poético que a verdadeira ciência devia estar satisfazendo, mas que está sendo saqueado, frequentemente por causa de ganhos monetários, pelos que fornecem a superstição, o paranormal e a astrologia. Frases retumbantes como ‘a Quarta Casa da Era de Aquário’ ou ‘Netuno começou a retrogradar e entrou em Sagitário’ criam um contexto romanesco e falso que, para os ingênuos e impressionáveis, é quase indistinguível da autêntica poesia científica.

(...)

Seria de esperar que, no final deste século XX, que é o mais bem-sucedido de todos em termos científicos, a ciência houvesse sido incorporada em nossa cultura e o nosso senso estético houvesse se elevado para estar à altura de sua poesia.

terça-feira, 7 de abril de 2009

LER RUBEM FONSECA

O escritor argentino Tomás Eloy Martínez escreveu um texto sobre Rubem Fonseca em The New York Times, que foi replicado no Portal UOL, no dia 1º de abril.

A sensação que ele teve ao ler Fonseca pela primeira vez vale para muita gente, inclusive para mim. Os contos, e também os romances, do escritor carioca têm alguma coisa de canto da sereia.

Leiamos um trecho do que disse o argentino:

Nunca esquecerei a primeira vez que o li, durante as últimas semanas de meu exílio em Caracas. Eu estava sentado a uma mesa junto da calçada, esperando um amigo. Como a espera se prolongava, atravessei até a livraria em frente em busca de algum texto para me entreter. Um dos vendedores me recomendou um volume de contos que, segundo ele, havia lido com a alma em suspenso, sem poder dormir.

Assim caiu em minhas mãos ‘Feliz Ano Novo’, na tradução espanhola de Pablo del Barco. Mal entrei na atmosfera trivial de ‘Passeio noturno, parte 1’, ouvi bater os tambores do inferno e nada mais foi igual para mim. Essas poucas páginas bastaram para que o universo de Fonseca me tatuasse a alma com a malignidade de uma flor carnívora.
(tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves)

A tatuagem em mim não funciona por muito tempo. Logo perde a tinta. No meu caso, não dá para repetir a leitura muitas vezes. Mas, devo admitir, sempre que pego algo de Rubem Fonseca para ler, e ainda não li toda a obra (nem sei se vou fazê-lo), não consigo parar. É uma droga perigosa (no bom sentido, e no mal também, na ambigüidade de quem lê Bataille, enfim).

O texto de Martínez na íntegra.

GARCÍA MÁRQUEZ NÃO PAROU DE ESCREVER

Foto: Arquivo/ El Tiempo/ Divulgação
García Márquez: "A única verdade que existe é que não faço outra coisa senão escrever"

Jornais do mundo inteiro foram rápidos em noticiar a aposentadoria de Gabriel García Márquez, no dia 31 de março, e até este blogueiro replicou a nota (leia aqui). Repliquei com uma ressalva, é claro, porque já sabia da possibilidade da reviravolta da notícia. Não é que isso aconteceu?

Mas parece que os jornais do mundo inteiro não se interessaram em comentar a réplica de Márquez. O escritor colombiano, com 82 anos de idade, desmentiu sua agente literária, Carmen Balcells, e diz que não vai parar de escrever por agora.

García Márquez conversou com o jornal colombiano El Tiempo ainda no dia 4 de abril, sábado passado. Mas, como não leio, ou não lia, o periódico, só fiquei sabendo disso pelo Jornal da Globo de ontem, 6 de abril.

Jornal este que havia comentado o fato da aposentadoria de Márquez em duas edições, dia 31 (quando a agência de notícias espanhola EFE divulgou o fato) e no dia 1º de abril (dia da mentira).

Será que Carmen Balcells pregou uma peça no mundo literário? Vá saber!

Em todo caso, segue abaixo a nota de El Tiempo, que é hilária. Parece até ficção do próprio Márquez. Parece até mentira. Será?

A imprensa de Santiago do Chile informou que o Prêmio Nobel de Literatura não voltaria a escrever.

Por isso, El Tiempo ligou para o escritor colombiano para que ele comentasse a informação.

Nossa conversa aconteceu da seguinte forma:

EL TIEMPO: Mestre, o senhor poderia responder umas perguntas para El Tiempo?

GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ: Liguem mais tarde, que estou escrevendo agora.

Ligamos depois para seu escritório na Cidade do México, e ele só aceitou responder duas perguntas.

ET: É verdade que não voltará a escrever?

GGM: Não só não é verdade que a única verdade que existe é que não faço outra coisa senão escrever.

ET: Mas é que disseram que o senhor não voltará a publicar mais livros.

GGM: Minha profissão não é publicar livros, mas escrevê-los. Em to caso, saberei a hora de comer os pães que estou assando.

A tradução não é boa, porque é minha. Então, leia o original aqui.

segunda-feira, 6 de abril de 2009

RICHARD DAWKINS NA FLIP 2009

Dawkins: "A ciência pode proporcionar uma profunda paixão estética."

A Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP) 2009, que será realizada entre 1º e 5 de julho, vai contar com a presença do biólogo inglês Richard Dawkins, autor de best-sellers da biologia como O relojoeiro cego e O gene egoísta.

O biólogo, um dos principais defensores e divulgadores da teoria da evolução de Charles Darwin, é também um grande polemista. Seu livro sobre o ateísmo, Deus – uma ilusão, despertou fúrias para todos os lados, até mesmo por gente que talvez nem seja religiosa, mas que discorda frontalmente dos argumentos dele.

Com seu perfil agressivo, se formos criar uma metáfora biológica, mais precisamente, zoológica, diríamos que Dawkins é uma mistura de águia, leão e lobo da tasmânia, e que, por isso mesmo, deve-se ter certa cautela estando do seu lado ou, principalmente, do lado oposto a ele.

Considerando isso ou não, parece que os organizadores da FLIP decidiram que Dawkins não participará de debates em mesa redonda. Sua participação será em forma de entrevista ou de conferência.

A pergunta que fica é sobre o que tratará um biólogo numa festa pretensamente literária, mas que cada vez mais tende ao oba-oba generalizado.

Dawkins poderá falar de tudo, já que, teoricamente, tudo pode ser objeto da literatura. Mas, se quisermos ser mais rigorosos, podemos lembrar um livro pouco comentado atualmente do biólogo britânico: Desvendando o arco-íris – ciência, ilusão e encantamento, de 1998.

Nesse livro, Dawkins defende a importância da ciência, principalmente as grandes descobertas dos dois últimos séculos, como inspiração para os grandes poetas.

Desvendando o arco-íris é muito bom, tem passagens maravilhosas, mas pode ser paradoxal, porque a tese do autor é um disparate. Para ele, a ciência retiraria do poeta o invólucro de ilusão que atrapalha a realização poética mais profunda. Uma bobagem assustadora vindo de um homem da inteligência e da influência de Dawkins.

domingo, 5 de abril de 2009

AL ALVAREZ E O SUICÍDIO

A paixão pela destruição também é uma paixão criativa.
Mikhail Bakunin

Al Alvarez (1929 - ): "Subi as escadas, me tranquei no banheiro
e tomei quarenta e cinco comprimidos para dormir."

Os parvos que me desculpem, mas o suicídio é um sentimento que perpassa a alma de quase todos nós. Quem nunca pensou em se matar, ou imaginou o suicídio como um fio de fuga, que se atire no primeiro precipício. Digo isso em solidariedade a um homem que venceu o sentimento de auto-aniquilação: Al Alvarez.

Suicida confesso, Alvarez nos deixou um legado exemplar: O Deus selvagem – um estudo do suicídio. O autor ainda não se matou, quer dizer, ainda não morreu. Pelo contrário. Após tentar dar cabo da própria vida, na meia idade, faz agora, em 2009, aniversário de 80 anos.

Seu livro trata do suicido na literatura do Ocidente (autor ou obra) e traz um belo ensaio sobre a obra e a morte da poeta norte-americana Sylvia Plath, que se suicidou em 1963.

Segundo Alvarez, o suicídio pode ser o último grito de um pedido de socorro. “Atingido um certo grau de desespero, uma pessoa pode se matar apenas para provar que está falando sério.” É mais ou menos essa a linha que ele traça para explicar que o que Plath queria era ajuda. Mas isso é resenha para outro dia.

Por enquanto, deixo aqui parte de um poema de Plath, anotado como epígrafe do ensaio de Alvarez sobre ela, que fora amiga dele.

"Morrer
É uma arte, como tudo o mais.
Eu, por exemplo, morro excepcionalmente bem.

Morro para me sentir no inferno.
Morro para me sentir real.
Acho que se pode dizer que tenho um dom."