terça-feira, 20 de julho de 2010

Biblioteca Mário de Andrade – Seção Circulante volta à ativa


Recebi um convite para a reabertura da Biblioteca Mário de Andrade – Seção Circulante, nesta quarta-feira, 21 de julho, a partir de 12:30. Infelizmente não vou poder ir. Não moro mais em São Paulo. Mas é com grande satisfação que recebo esta notícia, porque a Circulante está fechada (para mudar de endereço - leia post) há um ano e meio.

A Mário de Andrade (principal) também estava fechada, desde 2007. Já deve ter reaberto, mas quando havia me mudado de São Paulo, em maio de 2009, ainda continuava de portas cerradas ao público. Senhoras e senhores, cidadãos paulistanos, boa leitura!


Biblioteca Mário de Andrade - Circulante
Acesso pela Avenida São Luís, 235 – Centro (no mesmo prédio da Mário de Andrade, cujo acesso é pela Consolação)

O horário de atendimento da Biblioteca Circulante é de segunda a sexta-feira, das 8h30 às 20h30 e aos sábados, das 10h00 às 17h00.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Um conto de duas cidades: os bastidores da Revolução Francesa



Está nas livrarias uma nova edição de Um conto de duas cidades (Estação Liberdade, 2010, 478 páginas, tradução de Débora Landsberg), do inglês Charles Dickens. Não é o melhor livro do autor de David Copperfield, mas é uma delícia de romance histórico. Para quem tem fôlego e tempo de mergulhar numa trama cheia de nuanças, Um conto é a dica.

O livro retrata os bastidores do conflito sócio-político que culminou na Revolução Francesa, e as duas cidades são Paris e Londres. O médico inglês Alexandre Manette, acusado de traição, passa décadas a fio como prisioneiro na famosa Bastilha. Às vésperas do estouro da Revolução, quando o prédio é tomado pela massa em fúria, é que conseguem resgatá-lo, mas aí a trama já está do meio para o fim.

Armado para amarrar todos os fios de acontecimento, Um conto segue a linha de romance policial, que estava em seu início como gênero, na época de Dickens (originalmente, o livro foi lançado em 1859), mas consegue narrar magnificamente, no meio da trama, casos de amor, violência, conspiração, drama social, crime financeiro, traição política e uma saraivada de ecos históricos e de vozes colhidas nas ruas das duas cidades.

É baseado em História da Revolução Francesa, de 1837, de Thomas Carlyle, mas com a nova roupagem de ficção. A maior ambição deste romance talvez seja a tentativa de fazer da massa, tanto em Londres quanto em Paris, um personagem per si. Destaque para a rua Fleet, onde também é ambientada a sangrenta história do barbeiro Sweeney Todd, o thriller musical norte-americano de 1979 composto por Stephen Sondheim e Hugh Wheeler, que virou filme dirigido por Tim Burton, com Johnny Depp no papel principal, em 2007.


Trecho

Aquele foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos, foi a idade da razão, a idade da insensatez, a época da crença, a época da incredulidade, a estação da luz, a estação das Trevas, a primavera da esperança, o inverno do desespero, tínhamos tudo diante de nós, não tínhamos nada diante de nós, todos iríamos direto ao Paraíso, todos iríamos direto no sentido oposto – em suma, a época era tão parecida com o presente que algumas das autoridades mais ruidosas insistiram que ela fosse recebida, para o bem e para o mal, apenas no grau superlativo da comparação.


Serviço

Título: Um conto de duas cidades
Autor: Charles Dickens
Editora: Estação Liberdade, 2010, 478 páginas
Gênero: Romance
Preço: R$ 62,00

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Para estimular professores

Ford: "Em meio ao mais humilde dos ambientes
podem despontar heróis com poderes milagrosos"

Quando estava na faculdade, eu dava aulas em Nova York, durante o verão, para secundaristas afro-americanos que haviam repetido o ano anterior e eram rotulados de ‘alunos problemáticos’. Num período, dei um curso de geometria sem um só livro de matemática; em vez do livro, cada aluno tinha um exemplar dos discursos de Malcolm X. Meu raciocínio era que primeiro esses jovens deveriam aprender a apresentar um problema e depois elaborar uma justificativa lógica – coisa em que Malcolm X era extremamente bem dotado, coisa que a maioria dos garotos ‘de rua’ sabia fazer bem, coisa que, afinal, é a essência da geometria do colegial. Ela poderia ser chamada de geometria ‘rap’.

“De início, ficaram encantados, depois um pouco revoltados, durante as duas primeiras semanas de um curso de oito. Em meio à alegria de ler os discursos de Malcolm surgiam protestos dos jovens, do tipo: ‘Talvez você não saiba nada de geometria, porque isso não é aula de geometria.’

“‘Como é que você pode saber?’, respondia eu bem-humorado. ‘Você bombou em geometria mesmo!’

“Mais ou menos no momento em que comecei a traçar uma relação entre a lógica de Malcolm e a comprovação da simetria entre dois triângulos, um aluno chamado Victor se aproximou e disse com voz mansa: ‘Sr. Ford, acho que entendi aonde o senhor quer chegar. Posso tentar dar a próxima aula?’

“Fiquei embasbacado! Eu tinha a minha frente um aluno classificado pelo sistema educacional como ‘incapaz de aprender’ que pedia para ensinar a minha turma. Contei ao Victor o que eu havia planejado para a aula seguinte e dei a ele instruções sobre os principais pontos que eu gostaria que os alunos entendessem. No dia seguinte, assisti estupefato à aula dele nesse curso de geometria, muito mais convincente do que as minhas – porque Victor estava empolgado com o recém-descoberto dom da compreensão. Eu dei só mais poucas aulas até o final do verão, rendendo-me sempre a chama de conhecimento acesa nesse adolescente notável. Em meio ao mais humilde dos ambientes podem despontar heróis com poderes milagrosos. (Clyde W. Ford, in: O herói com rosto africano – mitos da África, Summus/Selo Negro, 1999, 310 páginas)

Quem é ele?

O norte-americano de origem africana Clyde W. Ford é quiroprático, psicoterapeuta que trabalha com um sistema de cura (quiroprática) segundo o qual a manipulação da coluna, e das estruturas do corpo, é a chave para o alívio de todos os males. É também estudioso da cultura e dos mitos da África.

Nasceu em Nova York, em 1951, e aos 19 anos começou a trabalhar como analista de sistemas para a IBM. Aos 26, decidiu deixar um bom salário para trás e seguir seu ideal, a carreira de psicoterapeuta e escritor. É fundador-diretor do Instituto de Mitologia Africana (IAM, sigla em inglês), em Washington.

Clyde W. Ford tem um site: Clyde Ford.com

Seu canto é: clyde@clydeford.com

Serviço

Título: O herói com rosto africano – mitos da África
Autor: Clyde W. Ford
Editora: Summus/Selo Negro, 1999, 308 páginas
Preço: R$ 57,40

OBS: O livro analisa os mitos africanos, conforme indica o subtítulo. O texto postado é apenas um testemunho do autor sobre como certos elementos negativos se sedimentam no inconsciente coletivo, fazendo grupos inteiros de pessoas acreditarem que são incapazes de realizar algo positivo.

terça-feira, 6 de julho de 2010

Tabucchi não vai à FLIP

Tabucchi: escritor italiano

Saiu na mídia que o escritor italiano, especialista em literatura portuguesa, Antonio Tabucchi, não mais vai participar da Festa Literária de Paraty. O substituto é Ferreira Gullar, que está à altura, sem dúvida. Tabucchi não vem por causa de problemas na coluna. Gullar, que tem uma coluna na Folha de S. Paulo, está tranquilo.

O legal de Tabucchi ir à FLIP, na qual não estarei presente (por falta de dinheiro), como nunca estive, seria ouvir um escritor diferente, na minha modesta opinião. Li dois livros dele, cuja impressão foi boa. Um desses livros foi escrito em português, tamanha é a intimidade do autor com a língua de Pessoa, Requiem (Rocco, 2001). Veja que o título está em latim. Em português, haveria um acento agudo na primeira sílaba.

O outro livrinho, porque curto, foi Sonhos de sonhos (Rocco, 1996). Neste, ele vai repassando sonhos de grandes nomes da pintura, da literatura, da música, como Lúcio de Apuleio e Freud. Freud deve estar aqui na lista dos poetas, sei lá. Para cada um dos sonhadores, digamos assim, havia um pequeno perfil. De Freud era “Profissão: analisar os sonhos dos outros.”

Mas, na falta de ter o que falar de Tabucchi, meu desalento é que não li aquilo que gostaria de ter lido, ou seja, Os três últimos dias de Fernando Pessoa (Rocco, 1996). Por falar em Pessoa, o fato é que estou em dívida com os patrícios. Também não li O ano da morte de Ricardo Reis (Companhia das Letras, 1988), de José Saramago.

As citações aqui são à toa. São ilustrações de um comentário sobre Tabucchi. Mas também servem como dica. E até poderiam não ser à toa. Poderiam servir de muleta para uma abordagem sobre a morte. Veja os títulos de Tabucchi e o de Saramago, e diga se não há ali uma ligação fúnebre. Até parece que Tabucchi só escreve sobre sonho e morte.

Requiem, cujo significado é ‘prece para os mortos’, é uma aventura errante, digamos, de um homem em estado de delírio, em que marca encontro com mortos e ao mesmo tempo desfila entre pessoas vivas, ou as vê desfilarem ao longo de seu caminho onírico.

Trecho de Requiem

Pensei: o gajo nunca mais chega. E depois pensei: não posso chamar-lhe ‘gajo’, é um grande poeta, talvez o maior poeta do século vinte, morreu há muitos anos, tenho de o tratar com respeito, ou melhor, com respeitinho. Mas entretanto começava a aborrecer-me, o sol dardejava, o sol do fim de julho, e pensei ainda: estou de férias, estava tão bem lá em Azeitão, na quinta dos meus amigos, porque é que aceitei este encontro aqui no cais?, tudo isto é absurdo. E olhei aos meus pés a silhueta da minha sombra, e também me pareceu absurda, incongruente, não tinha sentido, era uma silhueta curta, esmagada pelo sol do meio-dia, e foi então que me lembrei: ele tinha marcado às doze, mas talvez quisesse dizer doze da noite. Levantei-me e percorri o cais. Na avenida, o trânsito tinha parado, passavam poucos carros, alguns com chapéus de sol no porta-bagagem, era tudo gente que ia para as praias da Caparica, estava um dia quentíssimo, pensei: o que faço eu aqui no último domingo de julho?, e acelerei o passo para ver se chegava o mais rapidamente possível a Santos, talvez no jardim estivesse um pouco mais fresco.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

O poeta do instante

"O cinema é infinito": cena de Paris, te amo, com Natalie Portman

Entre nascimento e morte de Vinicius de Moraes (1913 –1980), vê-se um menino sensível e tímido, religioso, que cresceu apaixonado por uma única garota, e que a partir dos 20 anos se encontra intelectualmente desenvolvido, vai estudar em Oxford, Inglaterra, se torna membro do Itamarati e inicia uma carreira de diplomata, poeta, boêmio e homem de muitas histórias de amor.

Como poeta, primeiro fala de Deus e está envolto a um grupo católico, anticomunista e que flerta com o fascismo. Neste ambiente, lança o primeiro livro de poesia chamado O Caminho para a Distância, em 1933, e logo em seguida, Forma e Exegese, ambos marcados pela espiritualidade, exaltando o sublime, retrato da primeira influência de Sören Kierkegaard.

Mas depois, Vinicius sofre um processo de transformação e começa a exaltar também a matéria, sem conseguir superar a exaltação do espírito. O que lhe resta, portanto, é fundir essas duas correntes de inspiração, espírito e matéria. O resultado é uma poesia ímpar, em que o poeta utiliza conceitos da filosofia existencialista cristã de Kierkegaard e Blaise Pascal, o instante e o infinito. A partir de Cinco Elegias, de 1943, essa nova proposta toma conta de seu processo criativo.

Sua poesia não é ingênua. Mas, livrar-se de um preconceito é tarefa árdua. Poucos se importam em prestar atenção no ritmo como fator dominante do trabalho poético de Vinicius. As palavras trazem um conteúdo novo que só pode ser compreendido se se buscar primeiro o que a batida e a musicalidade dos versos dizem. Neste caso, não fica abaixo de nenhuma outra grande criação.

Além de seu biógrafo José Castelo, quem mais tem contribuído para a divulgação e a recuperação crítica de Vinicius é outro poeta carioca, Eucanaã Ferraz, que organizou a quarta edição de Vinicius de Moraes Poesia Completa e Prosa (Nova Aguilar, 2004, Volume Único). Ferraz também é o responsável pelas novas edições individuais dos livros do poeta, entre elas, um inédito chamado Poemas esparsos, todos pela Companhia das Letras.

Autor de Folha Explica Vinicius de Moraes (Publifolha, 2006), Ferraz ensina, neste livrinho mui interessante, que “toda leitura exige que se desconfie da comodidade”, e que na leitura de Vinicius “corremos o risco de fruir apenas o que na paisagem nos parece confortável, sem atentar para o que ali é estranhamento, novidade, construção.”

Mergulho na eternidade

Entre as diversas possibilidades na obra aberta de Vinicius está esta do instante, que abre uma fenda de compreensão de como o poeta reconstrói a realidade ao seu redor, que é também o olhar que lançamos sobre o mundo, mas que muitas vezes não sabemos expressar.

O instante no vocabulário comum, lexical, significa “espaço de tempo indeterminado, geralmente breve; momento, hora, ocasião.” Já a poética de Vinicius utiliza o instante significando um ponto entre o tempo e a eternidade, mas fora de ambos, ao mesmo tempo que é a possibilidade de um mergulho na eternidade.

O poeta busca este significado provavelmente em Kierkegaard, que por sua vez retirou da filosofia de Platão (Parmênides). Há, no entanto, uma diferença cabal entre Vinicius e o filósofo dinamarquês. Para este, o instante é o ponto preciso em que se faz a escolha de estar com Deus. Neste caso, escolher o instante é mergulhar na eternidade divina.

Já Vinicius adotou o conceito, não para escolher Deus, mas para eleger o amor e a própria vida como celebração do instante. No Soneto de Contrição, por exemplo, o termo não aparece explicitamente, mas na última estrofe, ele surge como resultado e razão do amor. O soneto começa dizendo: “Eu te amo, Maria, te amo tanto/ Que meu peito dói como em doença”; e mais adiante diz “Só te amar é divino, e sentir calma ...”, para no final desfechar: “E é uma calma tão feita de humildade/ Que tão mais te soubesse pertencida/ Menos seria eterno em tua vida”.

Ou seja, ele se sente eterno na vida dela justamente por ela ter sido efêmera nessa posse, por ele tê-la tido apenas num instante de amor. A intensidade do amor vivido dentro do instante é o que caracteriza sua eternidade, ou o mergulho nessa eternidade, e não o prolongamento da ação, do ato de amar.

Entre os vários exemplos em que o instante está explícito, é no Soneto do Amor Total que lemos com clareza: “Amo-te afim, de um calmo amor prestante/ E te amo além, presente na saudade/ Amo-te, enfim, com grande liberdade/ Dentro da eternidade e a cada instante”.

Com o instante, o poeta mergulha na eternidade, mas sai. E pode mergulhar de novo, tantas vezes quiser, porque é livre para fazer tal escolha. O que lhe interessa mesmo, no fim das contas, é o ato de amar. Enquanto Kierkegaard diria que o instante serve para se fazer uma escolha, ou seja, é o momento em que se mergulha na eternidade para ser livre em Deus, na poesia de Vinicius, o instante serve justamente para perpetuar esta liberdade no amor físico.

O cinema é infinito

Vinicius usa o conceito de instante em vários poemas. Mas os sonetos parecem ser o melhor receptáculo dessa luz breve, que se prolonga no interior do sujeito. Apaixonado pelo cinema, tendo sido, contraditoriamente, censor cinematográfico do Governo Getúlio Vargas, e logo em seguida crítico de cinema, o poeta deixou um tríptico de sonetos para o cineasta russo Sergei Eisenstein.

Em um desses sonetos, ele diz: “O cinema é infinito – não se mede./ Não tem passado nem futuro. Cada/ Imagem só existe interligada/ À que antecedeu e à que sucede.” Eis aqui também um exemplo da tradução do mundo pelos olhos do poeta. De fato, “cada imagem só existe interligada”, não só no cinema, mas na vida cotidiana, na leitura da história, na memória e na experiência afetiva.

A eternidade é algo fora do tempo. O tempo é um fenômeno que pode ser contado, a eternidade não. Mas existe uma maneira de se mergulhar na eternidade, e esta maneira é o instante, porque é ele que sempre acontece, imagem por imagem. A contemplação de uma imagem pode ser infinita, se tiver qualidade. No plano dos sentimentos, então, nem se fala. Desse modo, uma lembrança pode ser eterna.

O cinema é infinito porque as imagens captadas ali não são mais nem passado nem futuro, nem presente. Ao se ter acesso a elas, entra-se justamente no instante, e aí, mergulha-se na eternidade. E isso é feito em cada frame, pois esta passagem, de uma imagem a outra, é que faz surgir o movimento e a vida.

Na poesia de Vinicius, o estranhamento está na maneira como ele retrabalha as coisas mais simples da vida cotidiana. E ri delas, ou chora com elas. A morte, sua musa, é a mais requisitada. A tristeza também. Não há ninguém mais triste que Vinicius de Moraes. “Sou um homem triste, com uma grande vocação para a alegria”, disse, em entrevista de 1965 para a revista Manchete.

A contradição é sua matéria-prima, e por isso mesmo, a sensação que ele nos transmite é de uma alegria imensa, que nos faz querer ser seu amigo ou amante (no caso das mulheres). Essa tristeza e esse gosto pela vida, ele levou para os palcos quando deixou de ser poeta e se tornou o showman que todo mundo conhece mais do que ao poeta, uma das razões porque os homens que se acham sérios cassaram sua poesia.

Na mesma entrevista à Manchete (1965), ele diz: “Não sou especificamente músico, sou poeta. A música em mim é uma decorrência”. No entanto, em 1979, um ano antes de morrer, seu espírito já era moldado pelo universo das canções e, definitivamente, já tinha deixado de ser poeta. Em entrevista daquele ano para a revista Veja, diz: “Eu sempre fui músico, mas me achava fundamentalmente um poeta.”

Nas letras de suas canções, Vinicius ajuda a traduzir o significado de sua poesia. Em Samba da Bênção, o poeta diz “pra fazer um samba com beleza é preciso um bocado de tristeza.” Ou seja, beleza e tristeza continuam em seu processo criativo. Não é só porque o samba é essencialmente triste, como toda a música negra do continente da diáspora. É porque a beleza da arte é proveniente deste sentimento.

Nisso também, sua poesia está de acordo com toda a grande literatura. Baudelaire e Mallarmé, dois grandes poetas forjadores da poesia moderna, deram o tom de um processo criativo trazido à tona por Edgar Allan Poe, segundo o qual, “a melancolia é o mais legítimo de todos os tons poéticos.” O coro é engrossado quando Mikhail Bakhtin, grande pensador da literatura do século XX, diz que “a alegria é o estado mais passivo, mais indefeso e lastimável da existência.”

Vinicius de Moraes não cabe em duas páginas, nem é esta a pretensão do presente texto. Pelo contrário, a intenção é justamente mostrar a grandiosidade de um autor que alguns sabichões prontamente dizem ser poeta para mulheres. Talvez seja mesmo, à medida que se sabe de antemão que as mulheres têm mais sensibilidade.

Sem razões

Para fechar, uma história que lapida o exemplo do instante. No livro Um veneno chamado amor, de Carmen Posadas, entre tantas outras histórias de desditas amorosas, ela conta a de uma obsessão vivida nos ano de 1960 pela assistente do cineasta Jean-Luc Godard, Patricia Finaly. Uma garota livre e liberal, dona de si, que ninguém era capaz de conquistar. Até que um dia conhece o diretor André Labarthe e sua vida muda completamente.

Os dois se apaixonam e passam sete tórridos anos se encontrando todas as noites, no apartamento dela. Mas tudo passa. Nada que está em movimento faz parte da frieza do eterno. Há sempre um novo frame para a vida seguir adiante. O diretor, um dia, ou melhor, uma noite, não aparece, e a obsessão de Patricia naquele momento dá o ar da graça.

Ela o quer de qualquer maneira, ainda que seja em prestações ínfimas no espaço dos anos. Depois de alguns acertos e súplicas de amigos em comum, Labarthe aceita encontrar-se com a ex-amante três dias por ano, entre 23 e 26 de dezembro. Tudo bem, diz Patricia. “Viverei três dias por ano, mas é uma eternidade. A minha eternidade.”

Eis o instante que se estica, o mergulho na eternidade. Esta história não poderia ser mais metafórica à poesia de Vinicius. Seu Soneto de Fidelidade está aí: o amor infinito enquanto dura. A infinitude em exíguos três dias anuais.

A história de Patricia também pode ser traduzida num poema de Carlos Drummond de Andrade, um poema que, neste caso, não poderia ser feito sem a influência de Vinicius, sem dúvida. É As sem razões do amor, que na última estrofe diz: “O amor é primo da morte,/ E da morte vencedor/ Por mais que o matem (e matam)/ A cada instante de amor.”

(Publicado originalmente no jornal Tribuna do Planalto)

Um elogio a Vinicius de Moraes

Vinicius de Moraes: (1913 - 1980)

Na sexta-feira, 9, trinta anos pela manhã. É a idade da morte de Vinicius de Moraes, o poeta carioca que inundou de lirismo a literatura e a música popular brasileira e que faleceu no amanhecer de 9 de julho de 1980. Perguntado certa vez qual era sua grande musa, não fraquejou: “A morte’, respondeu.

A resposta pode até ser retórica poética, mas há visivelmente um sulco depressivo na poesia de Vinicius, por onde correm a tristeza e a ironia, sendo esta última, a grande marca da literatura contemporânea. Em sua obra madura, para quase todo verso de amor há uma correspondência à pulsão destrutiva da vida, como se amar fosse morrer.

Nos momentos mais intensos de gozo, amor e morte se abraçam, e numa viagem de entrega, a sensação de prazer que demora pouco parece durar para sempre: é o instante, o mergulho na eternidade, aquilo de que tanto fala o poeta. Só para lembrar uma correlação, no caso do sexo, os franceses chamam o orgasmo de “la petite mort” (a pequena morte).

Mas esta sensação do breve que pretende prolongar não está só na relação amorosa. Ela está presente na vida moderna de forma muito acentuada em tudo que se faz, a tal ponto que Paul Valery, tido como o mais lúcido e agudo pensador da poesia do século XX, chegou a dizer que “o homem de hoje não cultiva o que não pode ser abreviado.”

É claro que, neste caso, a intenção é sempre abreviar a materialidade das coisas e tentar esticar na alma a sensação do vivido. Neste sentido, Vinicius de Moraes é moderníssimo. Dos poetas mortos, das gerações do século passado, é um dos mais significativos e não deixa nada a desejar a Carlos Drummond de Andrade, nem a João Cabral de Melo Neto, nem a Murilo Mendes, poetas que sem dúvida, cada um a seu modo, construíram a base da poesia brasileira contemporânea.

Vinicius canta magistralmente bem os destroços e a balbúrdia da vida moderna, como frutos do efêmero. Vide Rosa de Hiroshima, vide O operário em construção, ou os poemas das Cinco Elegias. E faz isso com personalidade de poeta, se joga no lodo da vida sem medo. Por isso mesmo a intimidade de seus versos se confunde com a própria existência do poeta. Por isso mesmo essa intimidade é única, e esta singularidade é também a razão por que tanta gente o repele.

Quem mais o nega são os acadêmicos, em particular, os professores da PUC de São Paulo, aqueles que estudaram ou leram o criador mor da grade curricular de literatura ensinada naquela instituição, ou seja, Haroldo de Campos, um intelectual incontestável, um estudioso da poesia que deixou contribuições inestimáveis ao acervo da literatura brasileira, mas que não é dono da verdade, como ninguém o é.

A linha teórica deixada como legado por Haroldo de Campos, como a ideia do Barroco em tudo quanto é prosa, de Guimarães Rosa a Milton Hatoum (neste caso, é a tese de seus seguidores), não contempla a poesia de Vinicius justamente porque esta segue outros parâmetros. Há uma complexidade em sua obra que vai da iniciação poética, dos versos que cantam o sublime, às últimas criações, cada vez mais em contato com o chão da vida, livrando-se das asas da águia para se rastejar com a serpente.

Balanço

Em Vinicius de Moraes, o Poeta da Paixão – uma biografia, José Castello entendeu bem a maneira como seu biografado pensava poeticamente e como procurava passar a verdade de seus versos. Vinicius “deve ser alinhado, obrigatoriamente, entre os mais importantes estilistas que a língua portuguesa produziu no século XX”, diz Castello.

Segundo o biógrafo, Vinicius “foi um poeta prolixo, que não sabia jogar nenhum rascunho fora, que escrevia compulsivamente – e que viveu compulsivamente, deixando sempre os versos atrelados à experiência. Isso criou, para alguns, a falsa impressão de um poeta descuidado e até desinteressado no fazer poético.”

Contra argumentos, segundo os quais, Castello é de pouca autoridade para falar de poesia, Antonio Candido, outro gigante da ensaística e da história literária brasileira, deixa na fortuna crítica de Vinicius uma contribuição valorosa, embora curta e grossa, em afirmações que valeriam um estudo:

“Os poetas que valem realmente fazem a poesia dizer mais coisas do que ela dizia antes deles. Por isso, precisamos deles para ver e para sentir melhor, e eles não dependem das modas nem de escolas, porque as modas passam e os poetas ficam. Se hoje dermos um balanço no que Vinicius de Moraes ensinou à poesia brasileira, é capaz de nem percebermos quanto contribuiu, porque, justamente por ter contribuído muito, o que fez de novo entrou para a circulação, tornou-se moeda corrente e linguagem de todos.”

O que há por traz da resistência em se aceitar Vinicius como um grande poeta, portanto, não passa de preconceito. Não se pode estudá-lo como se estuda a poesia de Drummond, claro. É outra veia, outra proposta. Mas nem por isso menos importante. Em Formação da Literatura Brasileira – Momentos Decisivos, mais uma vez Antonio Candido nos oferece uma chave para entender Vinicius ao traçar o perfil de Tomás Antonio Gonzaga, considerando este um dos raros poetas brasileiros “cuja vida amorosa tem algum interesse para a compreensão da obra.”

Gonzaga é o poeta mineiro do século XVIII, integrante do famoso grupo dos arcadistas, da qual também faziam parte Basílio da Gama e Claudio Manoel da Costa, cuja obra influenciou a própria criação poética de Gonzaga. Este, ao conhecer uma garota de 17 anos de idade chamada Doroteia de Seixas, no alto de seus 40 anos caiu de amores pela ninfa. É ela o personagem título do poema Marília de Dirceu.

Segundo Candido, “amor e poesia refinaram a personalidade de Gonzaga; sem Doroteia e sem Claudio não teríamos a sua obra. Entretanto, mais do que o cantor de Marília, ele é o cantor de si mesmo”, analisa. Algo semelhante acontece com Vinicius de Moraes. Ele também pode ser descrito como fruto do amor e da poesia. Ele também é o cantor de si mesmo.

Não foi por outra razão que Drummond confessou que queria ter sido Vinicius de Moraes, porque, em sua opinião, foi o único poeta que viveu como tal. E essa vida mergulhada na sensação do prazer, no hedonismo sem fim, é transposta para a poesia à medida que o poeta, ele mesmo, começa a deixar para trás a experiência místico-religiosa em que estava afundado e passa a viver as experiências abertas do mundo, como o amor e a boêmia.

Infinitude

Nascido em 19 de outubro de 1913, no Rio de Janeiro, até os 23 anos, Vinicius era praticamente um carola. Nutria amores furtivos e um sentimento platônico de infância. A essa altura já era um poeta publicado. Seu primeiro livro, O caminho para a distância, fora lançado em 1933, quando ainda não tinha feito 20 anos, e já estava no fim do curso de Direito da Faculdade do Catete, onde havia entrado aos 16 anos.

Na Faculdade, ele fez amizades com os mais fervorosos pensadores católicos do país, entre eles Octavio de Faria, Mário Vieira de Mello e San Thiago Dantas, junto com os quais varava a noite lendo Blaise Pascal e Sören Kierkegaard, influência que é visível até mesmo nos poemas e sonetos posteriores à fase metafísica.

O Caminho para a Distância foi bem recebido pela crítica. Mas nele, o que se vê é um poeta distante da realidade vivida, preocupado com as elucubrações do sublime, enfurnado num desespero impraticável, teórico, letrado, kirkegaardiano. “Desesperados vamos pelos caminhos desertos/ Sem lágrimas nos olhos/ Desesperados buscamos constelações no céu enorme/ E em tudo, a escuridão./ Quem nos levará à claridade/ Quem nos arrancará da visão a treva imóvel/ E falará da aurora prometida?”, canta o poeta em Os inconsoláveis, poema do primeiro livro.

Pode-se sentir aí o ritmo alucinado, uma musicalidade em transe. Este ritmo permanecerá em muitos de seus poemas, mas não com um conteúdo tão carola. Em todo caso, em 1936, Vinicius conheceu Manual Bandeira, e sua vida não seria a mesma. Nos anos seguintes, Bandeira, que era pernambucano, ciceroneou o jovem poeta carioca pelos bares e noites do Rio de Janeiro, principalmente pelo ambiente de prostitutas e beberrões da velha Lapa.

Em meio à boêmia e à poesia de Bandeira, a aventura foi um descobrimento, um deslumbramento do qual nunca mais o poeta se curaria. A ironia maior, no entanto, aconteceu no ano seguinte, quando Vinicius conheceu Beatriz Azevedo, a Tati, sua primeira grande paixão, com quem viveria até 1950, para depois engatar em mais oito casamentos vida adentro.

Tati, que muito tempo depois viraria nome de perfume, era sobrinha de ninguém menos que Octavio de Faria, o intelectual católico que levou Vinicius a ser o poeta do sublime. Ela foi a musa que inspirou este mesmo poeta a compor nada menos que Soneto de Fidelidade, em 1939, quando, apaixonado, voltava de Oxford, Inglaterra, onde havia estudado literatura.

“De tudo, ao meu amor serei atento/ Antes, com tal zelo, e sempre, e tanto/ Que mesmo em face do maior encanto/ Dele se encante mais pensamento”, diz a primeira estrofe do poema mais conhecido e recitado de Vinicius. Já na primeira leitura, sente-se a ambiguidade dos versos, em que se pode atrelar o significado de ‘amor’ à própria mulher, no caso, Tati, ou ao sentimento, que no fim das contas era aquilo de que falava o poeta.

Percorrendo o corpo do poema, também vemos a presença da morte ao falar de amor, a morte como angústia da vida e a solidão como a ausência de afeto. O desfecho é, sem dúvida, arrebatador. Esse amor vai acabar, seja pela chegada da morte, seja pelo abandono do ser amado. O fato é que quando isso acontecer, já não importa mais, porque o que interessa não é a imortalidade, é a infinitude, é o desdobramento infinito do amor no ser que ama, mesmo que dure um piscar de olhos.

(Publicado originalmente no jornal Tribuna do Planalto)

quinta-feira, 1 de julho de 2010

A ambiguidade e o chiste

“Um missionário chega à aldeia. Os fiéis acorrem a seu sermão. Ele começa assim: ‘Sabem o que direi?’ – ‘Não, são sabemos.’ – ‘Então, que lhes posso dizer a respeito do que não sabem?’. O sermão não aconteceu. Esta anedota tem um prolongamento que acentua o caráter ambíguo da palavra ‘saber’. Na vez seguinte, os fiéis responderam à mesma pergunta: ‘Nós sabemos.’ – ‘Se sabem sem mim, não vale a pena que eu lhes fale.’” (B. Tomachevski, in: Teoria da Literatura – Formalistas Russos. Porto Alegre, Globo, 2ª Ed., 1973, página 196).