sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Literatura é a arte da linguagem escrita

Quem vai atrás da literatura à procura de uma boa história, vai apenas repetir um reflexo que ocorre desde os primórdios da humanidade sapiens, ou até anterior, mas não vai encontrar literatura.

Literatura é arte, mas não de contar histórias, é a arte da linguagem escrita, que se comunica peremptoriamente com a ancestralidade da linguagem oral. É um feixe de procedimentos por trás do qual há uma técnica que busca a realização de uma forma, um modo específico de dizer a coisa dita (conteúdo).

Quem lê literatura, portanto, deve procurar saber como, em vez de procurar saber o quê ou qual. É assim que os autores mais fecundos veem a arte que fazem.

No bojo da liberdade, tudo pode. Mas se fosse apenas uma boa história, a literatura teria muito pouco a oferecer, seria pobre demais. Nenhum gênio, como Shakespeare, Proust, ou Machado de Assis, se ocuparia dela, muito menos os de outras áreas, como Schopenhauer, Freud e Heidegger.

Evidentemente, estou falando da prosa e do drama. A poesia é um caso ainda mais profundo e mais fecundo. Os deuses não me autorizaram a falar dela.



segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

O que é a vida?

Figura conhecida da cena artística e intelectual brasileira desde sempre, um dos grandes da dramaturgia brasileira, Antônio Abujamra é uma espécie de bruxo. Como o teatro não gosta de mim, conheço-o apenas da televisão desde Que Rei Sou Eu?, telenovela da Globo de 1989, replena de personagens inesquecíveis, incluindo o Ravengar, um malévolo e interessantíssimo bruxo interpretado por ele.

No final da década de 90, lá no século passado, Abujamra apareceu com Provocações, programa de entrevistas na TV Cultura, fazendo perguntas simples, mas que requerem do entrevistado um revirar de olhos para buscar respostas no caroço da alma. Dotado de inteligência e verve, ele sempre cria tiradas provocativas, irônicas, sarcásticas, engraçadíssimas. Um dia, perguntou para Modesto Carone: “Nesse país que ninguém lê, quem te lê?”

Às vezes, levanta a bola do entrevistado só para lhe dar uma rasteira. Pergunta, por exemplo, “que tipo de experiência você teve com a felicidade?”, e a pessoa, incauta, responde “tive várias”, e ele então diz: “Cite três.” Durante muito tempo, vi Abujamra, o velho Abu, com esse recurso de retórica provocativa. Passei um tempo sem vê-lo, e depois de eu mesmo dar a volta ao mundo da leitura em busca de aventuras verbais, reencontro Abujamra com um novo truque.

Ao se deparar com alguém muito esperto nas respostas, ele pergunta no final da entrevista: “Fulano, o que é a vida?” “A vida é uma droga alucinógena”, alguém responde. E ele pergunta de novo: “O que é a vida?” “A vida é o ar e seu redor.” “Fulano, o que é a vida”, insiste Abu, repetindo a pergunta à exaustão porque sabe que ninguém dará uma resposta satisfatória.

Mas tentar responder o que a vida é pode ser um ótimo exercício de consciência existencial. Em sua pergunta, talvez Abujamra queira apenas uma resposta shakespeariana: “A vida é uma sombra caminhante”. Mas eles hesitam. Ninguém sabe o que é a vida. Tampouco eu, muito menos eu. O que é a vida? É o fugaz movimento entre o trauma do nascimento e o último fôlego trazido pela morte. O que é a vida? É o suspiro de Deus.

O que é a vida? Deve ser alguma coisa entre sopros e barros, poeira úmida que se junta em torno de uma alma. Um fenômeno orgânico que se dá no intervalo da existência entre o não mais e o não ainda. Uma partícula mínima que por força da gravidade e das interações moleculares distribuiu matéria ao som (em fúria) de alguma música do universo.

Talvez seja isso. A vida vai surgindo em meio à lama primordial, ganhando seiva, caule e raiz, massa e sangue, osso e músculo, subindo impulsionada por uma pressão organizadora e passageira, que faz esta mesma vida pulsar, mas depois diminui e perde a potência, fenece, deixando apenas um rastro na memória de outros feixes de vida que a carregam até se extinguir para sempre.

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