terça-feira, 25 de março de 2014

Casa Grande & Senzala: uma releitura mínima


No início do capítulo IV de Casa Grande & Senzala, Freyre diz:

Todo brasileiro traz na alma “a sombra, ou pelo menos a pinta, do indígena e do negro.” Depois, entre lengas e molengas, ele completa: todo brasileiro (e aí, parece-me que ele já está falando, eis a minha leitura, todo brasileiro branco, ou herdeiro da brancura que fez desse brasileiro senhor) traz essa sombra ou essa pinta, “na ternura, na mímica excessiva” (…), da “negra velha que nos contou as primeiras histórias.”

E aí, ele continua lá na frente, “da que nos iniciou no amor físico e nos transmitiu, ao ranger da cama-de-vento, a primeira sensação completa de homem.” Aqui ele tá de sacanagem, né? Teria de dizer: da que foi estuprada, aliciada, seduzida entre aspas, ameaçada para ser levada para a cama pelo senhorzinho, fazendo-o homem e ela sendo transformada em negra de cama, imagem que perdura.

Depois Freyre prolonga, em sua prosa deliciosa, digna de um Nobel de Literatura.

Todo homem (todo brasileiro branco, ou herdeiro da brancura que fez desse brasileiro senhor) traz essa sombra ou essa pinta “do moleque que foi o nosso primeiro companheiro de brinquedo.” Fala sério! Pergunte ao Brás Cubas. Melhor seria dizer: do moleque que foi nosso primeiro brinquedo.

Mas, o mais importante a perceber nesse trecho é o pronome nós. Freyre se inclui no discurso e demonstra que ele fala do branco herdeiro da Casa Grande.

Eu quero é ver quando Zumbi chegar, nénão, Jorge! Queria ter um amigo que voasse.

domingo, 9 de março de 2014

Precisamos de uma classe média negra

Os negros americanos se intelectualizaram rápido. Em 1867, dois anos após a abolição da escravatura, lá, já tinham fundado a primeira universidade exclusivamente para negros, em Washington, a Howard University. Dos EUA vêm grandes nomes que nos ensinam muito sobre valorização e consciência negra, como o antropólogo W. E. B. Du Bois (1868-1963), primeiro negro a se tornar doutor pela Harvard, autor de livros importantes como As Almas da Gente Negra. Marcus Garvey, o jamaicano que fez história nos EUA, também é outro gigante dessa história toda.

Depois disso, e do jazz, e do blues, e da literatura (Elisson, Morrison, Walker), and so on, vieram nomes como Martin Luther King e Malcolm X. Em seguida, após a turbulência e as lutas dos anos 50, 60 e 70, vieram Forest Whitaker e Denzel Washington, Oprah Winfrey, e por fim Barack Obama. O diretor e roteirista negro Steve McQueen e seu filme 12 Anos de Escravidão, que ganhou o Oscar de melhor filme, é mais um exemplo de como os negros americanos conseguiram se organizar e agir (falo do diretor, não da história de Solomon Northup, que também é exemplo de negros intelectualizados no século XIX, que deu origem ao filme, roteirizado por John Ridley.

Agora, esta história (de Solomon) contada por McQueen no cinema nos faz lembrar do quanto estamos longe de uma classe média negra no Brasil, consumidora de símbolos da cultura negra de forma consciente, de grupos maiores de negros intelectuais que possam contar nossa história sem rancor, mas com arte e verdade.

Há muitos entre nós em todos os tempos, como Luiz Gama (1830 – 1882, cuja história é sensacional, também foi vendido por um branco, que era seu próprio pai, e viveu como escravo por uns bons anos, depois estudou Direito, chegou  frequentar a Faculdade do Largo do São Francisco, hoje da USP, mas desistiu por causa do racismo forte lá dentro, advogou na causa abolicionista e libertou mais de 500 escravos), Domingos Caldas Barbosa, Machado de Assis, Lima Barreto, Solano Trindade, Abdias Nascimento, Lázaro Ramos.


Estes e poucos outros (para nosso número) são os figurões que poderiam sustentar nossa classe média de negros (num sentido aqui não só de riqueza material, financeira, mas de riqueza simbólica, que já temos, e da qual não sabemos muito bem como usufruir), mas não conseguimos nos apropriar destes figurões ainda, apoiarmos neles e fazermos deles símbolos e instrumentos de uma classe consciente e produtora. Ainda não. Mas chegaremos lá. O filme Besouro, um bom filme, passou despercebido pelos que mais deveriam abraçá-lo, nós negros. Parabéns, McQueen, mais uma vez! Vocês são realmente demais.