O novo livro de Muniz Sodré, A narração do fato – notas para uma teoria do acontecimento (Vozes, 2009, 288 páginas), foi resenhado por mim no jornal Tribuna do Planalto (acesse aqui). Mas queria falar de outros pontos que não foram ressaltados lá. Um deles é o fato de ser um livro aporético, ou seja, os argumentos, prós e contras, jamais serão suficientes para se chegar a uma conclusão.
Sodré levanta a questão segundo a qual jornalismo é literatura. Ele tem razão e não tem. Eis o princípio do quiproquó. Está correto porque alguns gêneros literários têm técnicas que podem ser aplicadas à linguagem jornalística sem nenhum prejuízo a ambos. Discussão esta que tem adeptos desde o final do século XIX, como Bernard Shaw, citado por Sodré.
A prosa do romance policial e da estética do realismo objetivo, esta, em autores como Ernest Hemingway e Norman Mailer, são partes dos objetos de discussão de Sodré, porque têm a mesma estrutura de linguagem do jornalismo. Além disso, o jornalismo e esses segmentos literários usam a mesma matéria-prima, o fait-divers, que são recortes dos acontecimentos do cotidiano.
Aquilo que os norte-americanos chamam de New Journalism ou, atualmente em The New Yorker, Embedded Journalism, seria a prova cabal de que jornalismo é literatura. Mas Sodré vai adiante e diz que qualquer reportagem é invenção da realidade, reconstrução de um agrupamento de imagens daquilo que aconteceu, filtrado pelas escolhas do jornalista.
Por outro lado, é difícil imaginar que Em busca do tempo perdido tenha alguma coisa a ver com jornalismo, ou que Finnegans Wake esteja sequer próximo de uma linguagem jornalística. Grande sertão: veredas se assemelha a algum tipo relato de jornal?
É e não é
Para resolver esse problema, Sodré recorreu às teorias da narrativa e aplicou o conceito da literatura policial ao do jornalismo. Mas não pôde sair do calabouço. Há gente que, preconceituosamente, segundo o autor, nem considera o gênero policial como literatura. Mas esta discussão revela-se a melhor parte de A narração do fato.
O livro de Sodré é ótimo, mas não como comprovação teórica, que, aliás, nem era o que ele queria, já que o subtítulo diz que são apenas “notas para uma teoria do acontecimento”. Logo, A narração do fato é bom para ser lido sem o compromisso de se embarcar na veracidade da nota, e sim pelo prazer do bom papo que é Sodré.
Segundo ele o jornalismo relata um acontecimento, construído em linguagem que facilita o entendimento do leitor. Essa construção resulta numa narrativa, assim como a literatura. Lembra, inclusive, Alceu Amoroso Lima, segundo o qual o jornalismo é “prosa dos acontecimentos”, e o recentemente falecido, Antonio Olinto, que dizia que jornalismo é “literatura sobre pressão.”
Vejamos, no entanto, dois exemplos utilizados por Sodré que demonstram as escolhas para a costura de seus argumentos.
Primeiro ele cita Maurice Blanchot, que diz que “a narrativa não é o relato do acontecimento, mas o próprio acontecimento, a aproximação desse acontecimento, o lugar onde este é chamado a se produzir, acontecimento ainda por vir e por cujo poder de atração a narrativa pode esperar, também ela, realizar-se.” Com essa teoria, jornalismo e literatura são claramente linguagens opostas, porque aquele relata o acontecimento.
Ele então cita outro teórico, Gerard Genette, segundo o qual: “a narrativa é o enunciado narrativo, o discurso oral ou escrito que assume a relação do acontecimento ou de uma série de acontecimentos.” Com esta, dá para começar uma nova abordagem sobre o que é literatura e o que é jornalismo e fundir uma cosia na outra. Mas tudo não passa de escolhas.
Por fim, se jornalismo é literatura, de duas uma, ou jornalismo é arte, ou literatura não é absolutamente nada, porque não traria nem valor informativo nem teria a construção estética, dentro da qual há todo o seu sentido, coisa que não é da alçada do jornalismo, a não ser quando se trata de crônicas e do chamado jornalismo literário (mais uma aporia, outro quiproquó).
A escrita jornalística é literatura. Pois bem. O telejornalismo é o quê? Cinema? O radiojornalismo, seria o quê? Radionovela? O próprio Sodré faz um texto que dança entre a afirmação e a comparação. Se jornalismo é literatura não se pode dizer que a linguagem de um aproxima da do outro. Tem de afirmar: a linguagem de um é a linguagem do outro. Mas não é.
Gênero próximo
Volto a lembrar: o livro de Sodré é ótimo como um bom papo. Ele, por exemplo, discorre apaixonadamente sobre o valor do romance policial. Cita uma série de autores do gênero que formam o cânone ignorado pela crítica acadêmica: Elmore Leonard, Raymond Chandler, Michael Connely, Georges Simenon, Léo Malet, Dennis Lehane, George Pelecanos, James Lee Burke, James Ellroy, Andrea Camilleri, entre outros mais famosos, como Edgar Allan Poe e Conan Doyle.
Assim, lemos com atenção sua defesa:
“São muitos os críticos ‘sérios’, nacionais e estrangeiros, em épocas diferentes, que se debruçaram sobre a narrativa policial, quando não para simplesmente rebaixá-la como subliteratura, ao menos para apontar-lhe os pecados para com a forma, que poderia levar o texto romanesco a ser reconhecido como literatura ‘plena’, isto é, como obra ajustada ao cânone literário. Alguns, particularmente snobs, podem mesmo aventurar-se a ofensas paradoxais, a exemplo do filósofo e cientista alemão Hermann Keyserling, notório por suas frases de efeito, para quem Georges Simenon não passaria de ‘um imbecil de gênio’. O tom dessas críticas costuma oscilar entre a pura expressão do gosto estético pessoal e a mera descrição de um repertório de histórias e autores, como se fosse este um objeto sociológico ou um fato social atravessado pela narratividade.”
Mas para comprar jornalismo e literatura, fico com Cony, que, numa palestra foi lapidar:
“É necessário apelar para Aristóteles: a definição se faz pelo gênero próximo e pela diferença última. Exemplo: o homem é um animal racional. O gênero próximo é o animal; a diferença última é o racional. Aplicando a mesma definição ao jornalismo e à literatura, teríamos de encontrar a diferença última entre as duas expressões da comunicação humana.
“O gênero próximo é o mesmo: o universo das letras. A diferença última é o tempo. Daí que a palavra crônica é segmento comum da literatura e do jornalismo. O jornalismo condiciona o espaço da letra ao tempo do tempo. O jornalismo distingue-se da literatura por ser uma expressão datada.” (Folha de S. Paulo, Ilustrada, 29 de abril de 2005)