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quarta-feira, 21 de outubro de 2009

A narração do fato – notas para uma teoria do acontecimento


O novo livro de Muniz Sodré, A narração do fato – notas para uma teoria do acontecimento (Vozes, 2009, 288 páginas), foi resenhado por mim no jornal Tribuna do Planalto (acesse aqui). Mas queria falar de outros pontos que não foram ressaltados lá. Um deles é o fato de ser um livro aporético, ou seja, os argumentos, prós e contras, jamais serão suficientes para se chegar a uma conclusão.

Sodré levanta a questão segundo a qual jornalismo é literatura. Ele tem razão e não tem. Eis o princípio do quiproquó. Está correto porque alguns gêneros literários têm técnicas que podem ser aplicadas à linguagem jornalística sem nenhum prejuízo a ambos. Discussão esta que tem adeptos desde o final do século XIX, como Bernard Shaw, citado por Sodré.

A prosa do romance policial e da estética do realismo objetivo, esta, em autores como Ernest Hemingway e Norman Mailer, são partes dos objetos de discussão de Sodré, porque têm a mesma estrutura de linguagem do jornalismo. Além disso, o jornalismo e esses segmentos literários usam a mesma matéria-prima, o fait-divers, que são recortes dos acontecimentos do cotidiano.

Aquilo que os norte-americanos chamam de New Journalism ou, atualmente em The New Yorker, Embedded Journalism, seria a prova cabal de que jornalismo é literatura. Mas Sodré vai adiante e diz que qualquer reportagem é invenção da realidade, reconstrução de um agrupamento de imagens daquilo que aconteceu, filtrado pelas escolhas do jornalista.

Por outro lado, é difícil imaginar que Em busca do tempo perdido tenha alguma coisa a ver com jornalismo, ou que Finnegans Wake esteja sequer próximo de uma linguagem jornalística. Grande sertão: veredas se assemelha a algum tipo relato de jornal?

É e não é

Para resolver esse problema, Sodré recorreu às teorias da narrativa e aplicou o conceito da literatura policial ao do jornalismo. Mas não pôde sair do calabouço. Há gente que, preconceituosamente, segundo o autor, nem considera o gênero policial como literatura. Mas esta discussão revela-se a melhor parte de A narração do fato.

O livro de Sodré é ótimo, mas não como comprovação teórica, que, aliás, nem era o que ele queria, já que o subtítulo diz que são apenas “notas para uma teoria do acontecimento”. Logo, A narração do fato é bom para ser lido sem o compromisso de se embarcar na veracidade da nota, e sim pelo prazer do bom papo que é Sodré.

Segundo ele o jornalismo relata um acontecimento, construído em linguagem que facilita o entendimento do leitor. Essa construção resulta numa narrativa, assim como a literatura. Lembra, inclusive, Alceu Amoroso Lima, segundo o qual o jornalismo é “prosa dos acontecimentos”, e o recentemente falecido, Antonio Olinto, que dizia que jornalismo é “literatura sobre pressão.”

Vejamos, no entanto, dois exemplos utilizados por Sodré que demonstram as escolhas para a costura de seus argumentos.

Primeiro ele cita Maurice Blanchot, que diz que “a narrativa não é o relato do acontecimento, mas o próprio acontecimento, a aproximação desse acontecimento, o lugar onde este é chamado a se produzir, acontecimento ainda por vir e por cujo poder de atração a narrativa pode esperar, também ela, realizar-se.” Com essa teoria, jornalismo e literatura são claramente linguagens opostas, porque aquele relata o acontecimento.

Ele então cita outro teórico, Gerard Genette, segundo o qual: “a narrativa é o enunciado narrativo, o discurso oral ou escrito que assume a relação do acontecimento ou de uma série de acontecimentos.” Com esta, dá para começar uma nova abordagem sobre o que é literatura e o que é jornalismo e fundir uma cosia na outra. Mas tudo não passa de escolhas.

Por fim, se jornalismo é literatura, de duas uma, ou jornalismo é arte, ou literatura não é absolutamente nada, porque não traria nem valor informativo nem teria a construção estética, dentro da qual há todo o seu sentido, coisa que não é da alçada do jornalismo, a não ser quando se trata de crônicas e do chamado jornalismo literário (mais uma aporia, outro quiproquó).

A escrita jornalística é literatura. Pois bem. O telejornalismo é o quê? Cinema? O radiojornalismo, seria o quê? Radionovela? O próprio Sodré faz um texto que dança entre a afirmação e a comparação. Se jornalismo é literatura não se pode dizer que a linguagem de um aproxima da do outro. Tem de afirmar: a linguagem de um é a linguagem do outro. Mas não é.

Gênero próximo

Volto a lembrar: o livro de Sodré é ótimo como um bom papo. Ele, por exemplo, discorre apaixonadamente sobre o valor do romance policial. Cita uma série de autores do gênero que formam o cânone ignorado pela crítica acadêmica: Elmore Leonard, Raymond Chandler, Michael Connely, Georges Simenon, Léo Malet, Dennis Lehane, George Pelecanos, James Lee Burke, James Ellroy, Andrea Camilleri, entre outros mais famosos, como Edgar Allan Poe e Conan Doyle.

Assim, lemos com atenção sua defesa:

São muitos os críticos ‘sérios’, nacionais e estrangeiros, em épocas diferentes, que se debruçaram sobre a narrativa policial, quando não para simplesmente rebaixá-la como subliteratura, ao menos para apontar-lhe os pecados para com a forma, que poderia levar o texto romanesco a ser reconhecido como literatura ‘plena’, isto é, como obra ajustada ao cânone literário. Alguns, particularmente snobs, podem mesmo aventurar-se a ofensas paradoxais, a exemplo do filósofo e cientista alemão Hermann Keyserling, notório por suas frases de efeito, para quem Georges Simenon não passaria de ‘um imbecil de gênio’. O tom dessas críticas costuma oscilar entre a pura expressão do gosto estético pessoal e a mera descrição de um repertório de histórias e autores, como se fosse este um objeto sociológico ou um fato social atravessado pela narratividade.

Mas para comprar jornalismo e literatura, fico com Cony, que, numa palestra foi lapidar:

É necessário apelar para Aristóteles: a definição se faz pelo gênero próximo e pela diferença última. Exemplo: o homem é um animal racional. O gênero próximo é o animal; a diferença última é o racional. Aplicando a mesma definição ao jornalismo e à literatura, teríamos de encontrar a diferença última entre as duas expressões da comunicação humana.

O gênero próximo é o mesmo: o universo das letras. A diferença última é o tempo. Daí que a palavra crônica é segmento comum da literatura e do jornalismo. O jornalismo condiciona o espaço da letra ao tempo do tempo. O jornalismo distingue-se da literatura por ser uma expressão datada. (Folha de S. Paulo, Ilustrada, 29 de abril de 2005)

terça-feira, 3 de março de 2009

O PRAZER DE LER JORNAL – DA ACTA DIURNA AO BLOG

“Agora abra o seu jornal. Ele é um telescópio voltado para o futuro, um retrovisor assestado para o passado e um espelho para o momento que corre.”
Walter Galvani



O jornalista e escritor gaúcho Walter Galvani é um mestre da palavra. Grande conhecedor dos caminhos do bom texto, tem vários livros publicados, entre romances, história, comunicação e crítica literária. No ano passado, lançou O prazer de ler jornal: da Acta Diurna ao blog (Unisinos, 2008), um perfil histórico e editorial do jornalismo impresso e sua vertente online.

Tenho a sensação de que Galvani é pouco conhecido fora do meio acadêmico e jornalístico. Mesmo aí, haverá uns desavisados que ainda não ouviram sequer falar deste senhor de 75 anos, nascido em Canoas, autor de Anacoluto do princípio ao fim e Crônica: o voo da palavra, para ficar na esfera de alcance nacional, que é o livro.

Para quem quiser conhecê-lo, eis aqui uma boa dica. O prazer de ler jornal é uma crônica do jornalismo atual. Galvani manipula os fios históricos para mostrar que, embora tenha se multifacetado, o jornalismo ainda mantém, no jornal impresso, o prazer da leitura.

A fonte

De acordo com Galvani, nos dias de hoje, as notícias negativas crescem como erva daninha e matam pela raiz a possibilidade do texto agradável. Ainda assim, diz ele, o jornalismo diário impresso, acompanhado de sua versão online, oferece um pequeno espaço para quem busca o prazer de ler.

“Ler ou não ler, demorar-se na visitação, ir além do primeiro clique, ou buscar as edições em papel, tudo depende de uma decisão que passa pelo sentimento do prazer”, comenta o autor.

O jornal já foi um meio privilegiado de reportar a notícia. Hoje, ele compete com os blogs, os celulares, os twitters (meio que não foi citado pelo autor por ser recente demais), o youtube, a TV, o sistema wiki, como a Wikipédia, e outros.

Apesar de todos esses concorrentes, o jornal continua “lutando pela sua permanência” como “o grande difusor de notícias.” É aí que entra a tese de Galvani: como fazer com que o jornal continue com o status de veículo importante?

Um passo atrás, dois à frente

Não dá para competir com os novos meios usando as mesmas armas, ou seja, dando espaço cada vez mais aos fatos menores e sensacionalistas, “a notícia pueril do acidente na esquina ou o que seria hoje o corriqueiro crime no tiroteio entre bandidos ou nas balas perdidas que punem a violência e a falta de civilização”, diz o autor.

Há as exceções, e Galvani cita várias delas que dão ao leitor a oportunidade de descobrir esse prazer que deveria estar no centro do jornalismo. Ele argumenta que o jornal tem de prender o leitor pela leitura edificante, que oferece um prazer duradouro, voltando-se aos moldes dos grandes jornais do século XIX, fazendo “chegar ao leitor a opinião crítica, política, filosófica, ideológica.”

Para tanto, seria necessária uma nova leva de jornalistas gabaritados, com sólida formação cultural, capaz de ler melhor os fatos, ler a alma da nação e as condutas de cada setor da sociedade, para que, aí, sim, fosse capaz de oferecer ao leitor algo prazeroso de ler.

Jornalistas bem formados são capazes de desenvolver pautas geradoras de textos que penetram mais o coração do leitor. Neste caso, os concorrentes, principalmente os blogs, passariam a ser aliados, como inesgotáveis fontes de boas pautas.

Segundo ele, outra linha muito própria dessa fonte do prazer da leitura é a crônica, esportiva ou não. “A crônica é um espaço privilegiado. É talvez o local onde mais acentuadamente se produz o ‘prazer de ler jornal’”, diz.

E assim Galvani vai tecendo seus argumentos, que beiram sempre a utopia, é verdade, mas com clareza de ideias. Ao longo de suas pinceladas argumentativas, o autor vai, paralelamente, relembrando a história do jornal e seus principais desafios.

Ele lembra, por exemplo, que a primeira manifestação do que se pode chamar de jornal é a Acta Diurna, criada no ano 131 a.C. pelos romanos, oficializada por Júlio César, em 59 d.C.

Os cidadãos romanos (os que sabiam ler, diga-se de passagem) se aglomeravam diante do Senado para saber das últimas boas novas, resumidas numa grande pedra, “desde uma vitória esportiva a uma conquista guerreira ou ao falecimento de alguém importante.”

Jornalismo X literatura

Um dos desafios do jornalismo, hoje, se encontra no campo da cultura: sua conturbada relação com a literatura. O namoro existe há séculos. Muitos dos romances de escritores do nível de Dostoievski, Balzac e Machado de Assis, por exemplo, nasceram dessa relação. Mas, atualmente, a literatura anda em baixa nos jornais. Galvani se ressente.

Para nos atermos a um fato próximo aos nossos dias, que nem foi possível ser comentado no livro de Galvani, temos o exemplo do Washington Post, tradicional jornal norte-americano, que cortou a circulação de seu caderno literário.

Desde 15 de fevereiro, o Book World não existe mais, segundo informação da Folha de S. Paulo, de 1º de março, no Caderno Mais! A alegação é a crise. Talvez mais a crise do modelo de civilização do que a econômica, que assola os Estados Unidos atualmente.

Galvani revive um argumento que já rola há um bom tempo na boca dos mais experientes, como um misto de saudosismo e utopia, o que não é demérito. A utopia nem sempre é demérito. Ele cita o livro da jornalista Cláudia Nina, Literatura nos jornais, para dizer que estes estão substituindo as resenhas de análise da literatura por “releases promocionais.”

O prazer e o número

No contexto do prazer de ler jornal, podemos incluir o prazer de ler um livro, que, aliás, segundo Galvani, é muito semelhante ao primeiro. Ambos têm de ‘pegar o leitor pelo pescoço e não soltá-lo até o final’, para lembrar aqui uma frase da escritora chilena Isabel Allende, citada no livro de Galvani.

Embora as argumentações de Galvani sejam pertinentes, receio que a tradição oral da sociedade brasileira tenha mais peso na falta do prazer de ler jornal do que a carência de bons textos. Se houvesse leitor, imagino, haveria a preocupação para este fim.

Abro aqui um parêntese para dizer que o número de leitores no Brasil sempre foi muito reduzido. Quando se trata de jornal, as estatísticas apontam uma leve inclinação para cima, mas nada que faça vencer um concurso de devoradores de notícias.

É verdade que essa constatação pode ser um quiproquó, na linha da questão “quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha?”. Será que se houvesse mais textos nos moldes dos reivindicados por Galvani, haveria mais leitores?

Para se ter uma ideia, o jornal mais lido do país, a Folha de S. Paulo, tem uma tiragem em torno de 400 mil exemplares no final de semana. Trinta vezes menor do que a tiragem do jornal japonês Yomiuri, que é de 14 milhões de exemplares diários.

Parece mentira, mas é esse o dado da Associação Mundial de Jornais (WAN), de 2003. E ainda temos de considerar que o Japão tem uma população menor do que a brasileira, com 127 milhões de habitantes, segundo dados de 2001, publicados no Portal Japão.

Há mais. Os outros quatro principais jornais do país do Sol Nascente também têm tiragens diárias altas. O do Asahi Shimbun é de 12,3 milhões, o Mainichi Shimbun imprime 5,6 milhões exemplares todos os dias (para fazer aqui um trocadilho invisível), além de 4,7 milhões do Nihon Keizai Shimbun e 4,5 milhões do Chunichi Shimbun.

Os maiores jornais do Ocidente ficam a léguas de distância desses números. Ainda segundo a WAN, o USA Today tem uma tiragem de 2,6 milhões de exemplares por dia, o Wall Street Journal, 1,8 milhão e o New York Times, 1,6 milhão.

Ou seja, o índice de analfabetismo, portanto, cairia por terra como argumento. A razão talvez esteja mesmo na questão da tradição de leitura e na importância dada a isso.

Só vale o prazer

Números a parte, para fechar, O prazer de ler jornal vale pela leitura fluente, pela aula de história do jornalismo, pela posição clara do autor, vale pela formação e informação, principalmente para a enxurrada de alunos de comunicação que todo ano se gradua no Brasil.

Mas também vale por uma questão fundamental. O ótimo texto de Galvani nos premia com frases muito boas. Essa particularidade pode ser vista ao longo do livro, como a que diz: “A vida está difícil, comprimida entre o ódio e o rochedo, entre a impotência e a aparente onipotência do mal”, se referindo à insistente cobertura que a mídia faz da violência de toda sorte.

Ele também diz: “Onde há eletricidade, há globalização”, sobre o fato de não mais haver isolamento, em tese, uma vez que é possível assistir a TV ou falar ao telefone em quase todo o país, informando-se sobre tudo que acontece em quase todo o mundo.

O livro de Galvani não tem a pretensão de grande manual e, por isso mesmo, consegue alcançar o objetivo de ajudar o leitor a encontrar o caminho do prazer de ler jornal. Como ele mesmo diz: “Só vale o prazer, mesmo que, por vezes, dolorido.”

Serviço:

O livro de Galvani pode ser comprado na Livraria Cultura, clique no título.

Título: O prazer de ler jornal: da Acta Diurna ao blog
Autor: Walter Galvani
Editora: Unisinos, 2008, 140 páginas
Gênero: Comunicação/Jornalismo
Preço: R$ 20,00