domingo, 20 de maio de 2012

Os poemas curtos de Yeats

W. B. Yeats (1865 - 1939), poeta irlandês laureado com o prêmio Nobel de 1923, é considerado difícil. Sua poesia não se abre à primeira vista. A sensação que tenho quando leio Yeats é que estou caminhando do lado de fora de um castelo antigo, dentro do qual sei que encontrarei objetos de valor inestimável.

Por outro lado (talvez o de fora), alguns poemas curtos do velho bardo são de uma beleza imediata e tocante. Eis o mistério. O que mais pode haver ali dentro que poderá nos embriagar? É o caso do poema abaixo.

A drinking song

Wine comes in at the mouth
And love comes in at the eye;
That’s all we shall know for truth
Before we grow old and die.
I lift the glass to my mouth
I look at you, and I sigh.

Este poema, por exemplo, é do livro The green helmet and other poems. Traduzi-lo, apesar do aparente acesso, seria uma profanação. Arrisco, no entanto, uma versão, sem observar de perto a metria, mas com certo ritmo, uma versão capenga e quase literal, só para que alguns leitores do Giba, aqueles que ainda estão aprendendo inglês, possam também apreciar essa beleza.

Se bem que, com essa tradução manca, eu posso prestar um desserviço e afastar de vez o leitor da poesia de Yeats. Mas vamos lá: (“O vinho entra pela boca/ E o amor entra pelo olhar/ É o que teremos da verdade/ Até a velhice e a morte chegar’/ Levanto o copo até a boca/ E suspiro a te mirar).

Levando em conta o poema original, claro, o que temos ali é o amor como embriaguez e como essência da verdade. O que interessa na vida, entre o envelhecimento e a morte, é só isso, o amor, que é o que nos tira da banalidade. O amor, como o vinho, traz a verdade.

Yeats foi além do velho ditado latino “In vino veritas” (a verdade está no vinho) e cravou: a verdade está no amor. Poderíamos vislumbrar ali a ideia de que só é possível amar se se estiver bêbado (o que seria uma pilhéria), mas amor e vinho estão claramente colocados como consumo para que se acesse a verdade. E isso dá pano pra manga.

Tanto é que em outro poema do mesmo livro ele diz: “Love is the crooked thing,/ There is nobody wise enough/ To find out all that is in it.” (O amor é algo evasivo, e ninguém é sábio o bastante para encontrar tudo que se encerra nele). Vamos a mais um poema curto de Yeats, também de The green helmet.

The coming of wisdom with time

Though leaves are many, the root is one;
Through all the lying days of my youth
I swayed my leaves and flowers in the sun;
Now I may wither into the truth.


Eis a árvore como metáfora da vida. Quando o tempo passa, e o vento leva todas as folhas e flores da juventude, já não resta mais nada, apenas o corpo murcho diante da verdade. Este poema está imediatamente após A drinking song. Neste caso, é bem possível que, mais uma vez, a verdade possa ser o amor.

Yeats não fala só de amor, mas quer sempre acessar a verdade por meio da poesia. Em seus poemas mais longos, esse acesso ganha complexidade maior. Não que seus poemas curtos não sejam profundos. O leitor há de convir que um homem feito Yeats não escreveria tão curtos versos para dizer só isso que postei aqui. Há mais, sem dúvida.

Seguem mais alguns poemas, sem tradução. Se o leitor as tiver, traduzidas em algum livro e quiser compartilhar, por favor, pode pôr no comentário, que eu trago para a página.


A friend’s illness

Sickness brought me this
Thought, in that scale of his:
Why should I be dismayed
Though flame had burned the whole
World, as it were a coal,
Now I have seen it weighed
Against a soul?

(Do livro The green helmet and other poems)


A poet to his beloved

I bring you with reverent hands
The books of my numberless dreams;
White woman that passion has worn
As the tide wears the dove-gray sands,
And with heart more old than the horn
That is brimmed from the pale fire of time:
White woman with numberless dreams
I bring you my passionate rhyme.

(Do livro The wind among the reeds)

terça-feira, 8 de maio de 2012

A aventura da diáspora



A discussão sobre a herança africana na literatura brasileira chega tarde a nossa casa, mas finalmente deu um passo importante com a publicação de Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica (UFMG, 2011, 4 volumes), que já está com edição esgotada.

Organizada pelos professores e pesquisadores Eduardo de Assis Duarte e Maria Nazareth Soares Fonseca, a coleção procura recuperar os autores negros, contextualizá-los ao longo da história de nossa literatura e colocá-los na sua devida importância. No quarto volume, há o esboço de uma ensaística crítica em que alguns intelectuais e pesquisadores negros procuram teorizar essa produção.

Ainda no quarto volume, outra preocupação é a de mostrar como os afrodescendentes brasileiros são retratados na literatura, de que modo são retratados e o quanto o são, além de revelar o baixo número de escritores negros no país, principalmente romancistas.

O primeiro volume, subintitulado Precursores, traz 31 autores que atuaram entre os séculos XVIII e XX, começando com Domingos Caldas Barbosa, reconhecido artista, poeta e músico, que sabia latim e viveu em Lisboa gozando de relativa fama e prestígio, e finalizando com Carlos de Assumpção, nascido em 1927, considerado um mestre da poesia de protesto no Brasil.

Exemplo de como Assumpção pensava o conflito racial e expressava isso poeticamente são os versos de seu poema Alma branca.

Isso é discriminação
Deixe disso meu irmão
Mesmo quando me elogia
Você mostra é prevenção
Pare com isso por favor
Quem já viu a alma algum dia
Pra saber se ela tem cor?


Entre esses dois nomes, o primeiro volume vem repleto de autores importantes de nossa literatura, como Cruz e Sousa, Gonçalves Dias, Luiz Gama, Machado de Assis, João do Rio, José do Patrocínio, Lima Barreto, Solando Trindade, Abdias Nascimento e Carolina Maria de Jesus.

Esta última (que nasceu em 1914, em Sacramento, Minas Gerais, e faleceu em 1977, em Parelheiros, Grande São Paulo), com apenas dois anos de estudos formais, trabalhando como empregada doméstica e catadora de papel, mantinha um diário que depois virou o livro Quarto de despejo, cuja qualidade literária a colocou na roda dos grandes escritores do começo da segunda metade do século passado.

Negação

O perfil de cada autor apresentado nos três primeiros volumes foi escrito por estudiosos profundamente engajados neste campo de pesquisa, como Marisa Lajolo, que escreveu sobre Gonçalves Dias, Marli Fantini (Machado de Assis), Vera Casa Nova, que falou sobre Domício Proença Filho, no segundo volume, e Elisângela Aparecida Lopes, sobre Júlio Emílio Braz, no terceiro volume.

Se no primeiro volume, é possível reconhecermos algumas figuras que já se cristalizaram na história de nossa produção literária, a partir do segundo, subintitulado Consolidação, junto com o terceiro, Contemporaneidade, muitos nomes de autores ainda vivos (dos 69 analisados nesses dois livros) permanecem anônimos para nós mesmos, nós afrodescendentes.

Ainda que se mantenha algum interesse sobre essa produção que diz respeito à identidade negra, o silêncio em torno desses autores é uma prova cabal do quanto os meios de comunicação negligenciam, ignoram esse lado, que é parte legítima e constitutiva da própria cultura brasileira.

A exceção de Oswaldo de Camargo – poeta, jornalista, autor de um livro importante do gênero histórico, chamado O negro escrito –, Joel Rufino dos Santos, Martinho da Vila, Muniz Sodré, Nei Lopes, Cuti, Paulo Lins, Cidinha da Silva e outros poucos nomes, os outros só são ouvidos num grupo cada vez mais restrito, porque o espaço na imprensa tradicional lhes é fechado.

Os romancistas que se identificam como afrodescendentes, criadores de personagens que trazem a marca do negro e da sua relação com a sociedade brasileira, sempre conflituosa e muitas vezes negadora do espaço e da identidade negra, esses ainda são poucos mesmo.

Mas, apesar da negação do espaço, Literatura e afrodescendência no Brasil nos mostra um grande avanço dos autores negros, no campo da poesia e de outras artes. Abdias Nascimento, que está na coletânea de autores, aparece no quarto volume, como intelectual e líder da consciência negra, para falar dessa realidade.

Produto intelectual
Falecido em 24 de maio de 2011, aos 97 anos de idade, Nascimento havia concedido a entrevista para os organizadores do livro em 2005. Nonagenário, mas sempre consciente, combatente e lúcido, ele disse nessa entrevista que os negros no Brasil, os afrodescendentes de modo geral, estamos produzindo mais e procurando ganhar esse chão negado.

“A juventude afro-brasileira está levando muito a sério a questão estética, a criatividade; ela produz ensaio, faz teatro etc. Então a gente vê que não está paralisada essa criatividade, está deslanchada e cada vez mais consciente. O mapa da criatividade da literatura afro-brasileira já está conquistando o seu espaço”, diz Nascimento.

Essa luta pelo espaço, no campo da arte e da cidadania, é legítima. Segundo Nascimento não há receita fácil, nem caminho sem pedras. O que se tem de fazer é mostrar aos outros que estamos acordados.

Perguntado sobre a importância da publicação de Literatura e afrodescendência no Brasil, Abdias Nascimento foi claro e sucinto: “só lamento que esse projeto esteja chegando tão tarde.” Segundo ele, é o tipo de ação que ajuda na conquista desse espaço que falta aos afrodescendentes, e não perde a oportunidade de dizer que não só a imprensa, mas também a universidade ignora a identidade negra como tal.

“Essa ideia é a oportunidade de mostrarmos o negro sujeito de sua própria criação literária, publicando urgentemente a produção intelectual desse segmento da sociedade. (...) Tenho feito acusações públicas terríveis à universidade brasileira exatamente pela posição que ocupa. Ela tem uma tradição eurocêntrica que vai se consolidando e funciona como o grande instrumento do racismo”, diz Nascimento, absolutamente consciente do que está dizendo.

Sua fala, nessa entrevista, no entanto, é para ressaltar a importância desse trabalho de esforço acadêmico, junto à Universidade Federal de Minas Gerais, uma das instituições públicas que mais tem investido em pesquisas sobre a identidade afro-brasileira. E arremata: “A África compõe e constrói a identidade brasileira desde a sua essência.”

Representação

Se a África compõe a identidade brasileira, essa identidade se esconde quando se trata da representação dela nas páginas dos livros. Uma pesquisa feita pela professora da Universidade de Brasília (UnB), Regina Dalcastagnè, publicada neste livro, mostra a realidade dessa representação.

Ela analisou quase 400 romances brasileiros, em dois períodos de nossa história recente. Foram 258 romances publicados entre 1990 e 2004 pelas editoras Companhia das Letras, Rocco e Record, e 130 romances de autores também brasileiros publicados entre 1965 e 1979 pelas Civilização Brasileira e José Olympio.

Com essas duas análises, a pesquisadora chegou a uma série de dados sobre a produção e a representação social por meio da literatura. Segundo ela, 80% dos personagens desse período são brancos, “proporção que aumenta quando se isolam protagonistas ou narradores.” E acrescenta: “Isso sugere uma outra ausência, desta vez temática, em nossa literatura: o racismo.”

No corpo de romances publicados entre 1990 e 2004, apenas 7,9% dos personagens são negros. Quando a análise passa para cor e posição dos personagens, o disparate é bem maior, com 84,5% de protagonistas brancos e 5,8%, negros. Se se trata de narradores, o índice desce mais um pouco no escopo dos negros. Somente 2,7% dos narradores são negros, contra 86,9% de brancos.

Se, de modo geral, 80% dos personagens são brancos, e apenas 7,9% são negros, quando se trata da cor dos próprios romancistas, a realidade se afunda mais no disparate. Dos 165 autores analisados do período entre 1990 e 2004, 93,9% deles são brancos, e os não brancos, “como categoria coletiva, ficaram em meros 2,4%.” Segundo a pesquisadora, 3,6% não tiveram a cor identificada.

É claro que o estudo de Regina vai além dessas tipologias e analisa também a relação entre realidade e ficção, a questão estética, social, que junto com os dados de amostragem compõem o quadro que mostra a situação do negro no Brasil como representação.

Literatura e afrodescendência no Brasil é uma coletânea imprescindível para o país começar a se ver como unidade cultural. Se a publicação está esgotada, outra urgência é a de uma segunda edição dessa obra importante para todos nós.

(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente na Tribuna do Planalto)

quinta-feira, 3 de maio de 2012

Deu na Folha de S. Paulo: Livro relata mortes e incinerações na ditadura militar

A matéria abaixo não é assinada, mas foi publicada na Folha de S. Paulo de hoje. Quando a gente recorre à imaginação para preencher as lacunas dos fatos sobre a violência da ditadura militar, não alcança o grau de atrocidade do que é relatado aqui, mas nem por isso parece ser devaneio. O sujeito incinerava corpos numa usina de açúcar. A vida sempre dá um jeito de superar a literatura.

Livro relata mortes e incinerações na ditadura militar

DE SÃO PAULO
DO RIO


Em livro lançado ontem, o ex-delegado capixaba Cláudio Guerra, 71, afirma ter participado da morte de ao menos 12 guerrilheiros e incinerado os corpos de outros dez desaparecidos políticos na ditadura militar (1964-85).

O depoimento está em "Memórias de uma Guerra Suja" (Topbooks), dos jornalistas Marcelo Netto e Rogério Medeiros. Guerra diz ter decidido confessar os crimes após se tornar pastor evangélico. Ele também promete depor à Comissão da Verdade.

Segundo o relato do ex-policial, os 10 corpos teriam sido queimados no forno de uma usina de açúcar pertencente à família do ex-governador do Estado do Rio Heli Ribeiro Gomes.

"Fui responsável por levar dez corpos de presos políticos para lá, todos mortos pela tortura", afirma.

Ele cita entre essas vítimas David Capistrano, João Batista Rita, Joaquim Pires Cerveira, João Massena Mello, José Roman e Luiz Ignácio Maranhão Filho, do PCB (Partido Comunista Brasileiro).

Completam a lista: Ana Rosa Kucinski e Wilson Silva, da ALN (Ação Libertadora Nacional); Joaquim Pires Cerveira, da FLN (Frente de Libertação Nacional); Eduardo Collier Filho e Fernando Augusto Santa Cruz Oliveira, da APML (Ação Popular Marxista-Leninista).

O paradeiro desses desaparecidos políticos nunca foi informado às famílias.

Filha do ex-governador do Heli Ribeiro Gomes, Maria Cecília Ribeiro Gomes, 55, reagiu com indignação. "Estou estarrecida. Isso é uma acusação maluca, sem cabimento. Uma loucura da cabeça desse homem", diz ela, que acaba de deixar o cargo de secretária de Trabalho de Campos.

"Trabalhavam mais de três mil funcionários na usina. Como alguém poderia levar corpos para lá, fazer uma barbaridade dessas, e ninguém ver?"

Entre os guerrilheiros que Guerra diz ter executado pessoalmente estão Nestor Veras, do PCB, e Manoel Aleixo da Silva, do PCR (Partido Comunista Revolucionário).

O livro relata a existência de três cemitérios clandestinos em São Paulo, Belo Horizonte e Petrópolis (RJ).

Guerra afirma ter participado também de atentados para tentar retardar a redemocratização do país, entre eles o do Riocentro, em 1981.

O livro vincula os autores desse atentado à morte do jornalista Alexandre Von Baumgarten, em 1982.

O ex-policial ainda diz que a morte do delegado Sérgio Paranhos Fleury, um dos chefes da repressão, teria sido tramada pelo Cenimar (Centro de Informações da Marinha). A versão oficial é de morte acidental no mar.

O livro identifica Guerra como agente do Dops (Departamento de Ordem Política e Social). O ex-delegado cumpriu pena de sete anos pela morte de um bicheiro no Espírito Santo, crime que ele nega. Há contra ele também acusação de participação em grupo de extermínio nos anos 80.

A presidente do grupo Tortura Nunca Mais no Rio, Vitória Garbois, disse que recebeu o livro com "perplexidade". "Essa pessoa nunca apareceu nas listas de agentes da repressão." Ela defendeu que os relatos sejam investigados.

A ministra Maria do Rosário (Direitos Humanos) disse que a Comissão da Verdade deve analisar "esse e todos os demais relatos" do período.


Lista de Guerra / Corpos de desaparecidos que ele diz terem sido incinerados

João Batista Rita
Desaparecido em 13.jan.1974
Organização: M3G (Marighella, Marx, Mao e Guevara)

Joaquim Pires Cerveira
Desaparecido em 13.jan.1974
Organização: FLN (Frente de Libertação Nacional)

Ana Rosa Kucinski Silva
Desaparecida em 22.abr.1974
Organização: ALN (Ação Libertadora Nacional)

Wilson Silva
Desaparecido em 22.abr.1974
Organização: ALN

David Capistrano da Costa
Desaparecido em 16.mar.1974
Organização: PCB (Partido Comunista Brasileiro)

José Roman
Desaparecido em 16.mar.1974
Organização: PCB

João Massena Melo
Desaparecido em 03.abr.1974
Organização: PCB

Luiz Ignácio Maranhão Filho
Desaparecido em 3.abr.1974
Organização: PCB

Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira
Desaparecido em 23.fev.1974
Organização: APML (Ação Popular Marxista Leninista)

Eduardo Collier Filho
Desaparecido em 23.fev.1974
Organização: APML