segunda-feira, 30 de junho de 2008

SONETO DO AMOR COMO UM RIO: leitura do poema de Vinicius de Moraes

Foto: Gordon Richardson

Este infinito amor de um ano faz
Que é maior do que o tempo e do que tudo
Este amor que é real, e que, contudo
Eu já não cria que existisse mais.

Este amor que surgiu inesperado
E que dentro do drama fez-se em paz
Este amor que é o túmulo onde jaz
Meu corpo para sempre sepultado.

Este amor meu é como um rio; um rio
Noturno, interminável e tardio
A deslizar macio pelo ermo

E que em seu curso sideral me leva
Iluminado de paixão na treva
Para o espaço sem fim de um mar sem termo ...



O título já nos revela muito do poema. Trata-se do amor, tendo o rio como sua principal metáfora. Mas não é um amor qualquer. O sujeito poético deixa isso claro no decurso do soneto. O primeiro verso indica um amor recente, de apenas um ano, mas também infinito, que quer fazer crer que é maior do que o tempo, que está acima de qualquer coisa. As imagens reveladoras de que tipo de amor o poema realmente trata começam na segunda estrofe.

O caráter inesperado do amor lembra o surgimento de algo numa curva, que pode ser a curva de um rio, como será revelado posteriormente, na terceira estrofe. Mas antes do rio, vem uma imagem crucial para a caracterização do amor cantado no poema e para a prova da condensação poética: a metáfora do túmulo.

Se o amor é o túmulo onde jaz o corpo sepultado, há uma inversão significativa do que se entende por amor. Enquanto se costuma dizer que o amor está dentro do corpo, no coração ou na mente, aqui é o corpo que está dentro do amor, e não apenas por um dia ou dois, mas para sempre. O fato de estar sepultado, também é outro indício de que o corpo já não tem vontades. O amor é quem manda, e ele, o corpo, vai para onde for levado.

Este túmulo, que poderia dar uma idéia de inércia, não o faz, porque, após seu surgimento como amor, continua sua jornada lá na frente, agora como um rio, mas não um rio qualquer. Tal como o túmulo, o rio é sombrio, noturno. E aí, o poema se revela com mais força. Sua correlação com o amor carnal, bonde de desejo, se revela em metáforas mais preciosas ainda.

Um rio, pleno de água, corre para algum lugar, quer para outro rio, quer para o mar. Existe, portanto, uma viagem anunciada aí. Esse amor, esse rio de desejo, deságua no mar, como lemos no último verso. É dominado por este mar. Ao voltarmos para o início do poema, vamos ver que este rio, este amor, faz de conta que é maior do que tudo, mas apenas porque ainda, ao surgir de repente, não sabe que cairá no mar, águas indomáveis, metáfora da mulher amada.

Na viagem do poema, ao construir o curso do rio do amor, o sujeito poético dá ênfase, no oitavo verso, ao substantivo ‘corpo’, em detrimento do pronome possessivo ‘meu’. Mas no verso seguinte, por se tratar do amor, o pronome ‘meu’ é enfatizado. Isso significa que o amor é mais dele (sujeito poético) do que o próprio corpo, mais do que isso, o sujeito poético é o próprio amor.

O que existe nele (sujeito poético) é o sentimento; o que é visível e palpável nele é o próprio amor, um amor imenso, mas que perto da mulher amada é mínimo; o que é uma contradição. Como é contraditória a própria idéia do instante, por ser efêmero e eterno ao mesmo tempo, conceito muito utilizado na poesia de Vinicius de Moraes.

A relação do túmulo – metáfora do amor, em que está sepultado o corpo – e do rio – a segunda metáfora do amor – ilumina todo o poema e conclui o soneto de forma comovente. Seu corpo pertence ao amor, nele sepultado; é levado por ele. Para explicar melhor essa relação, recorramos a outra imagem, a do escravo, que não é dono de si, está, portanto, morto para a autoconsciência, está dentro de uma morte branca, que no entanto pode ser revertida.

Mas a morte nem sempre é uma imagem ruim. Os franceses sabem bem disso, e até fazem dela metáfora para o prazer sexual. Eles usam o termo ‘la petite mort’ (a pequena morte) para se referir ao orgasmo.

Vinicius de Moraes também sabia disso. E esta correlação está no Soneto do amor como um rio. O amor é um rio. É ele que carrega o corpo do sujeito poético nesta viagem erótica. Mas seu corpo não é levado pelo rio do desejo de forma brutal, como fazem as águas revoltas dos rios selvagens. Seu corpo é conduzido suavemente, porque este amor é um rio que desliza macio; e aqui, a correlação de ‘mar’ e ‘cio’ reforça o caráter erótico do poema.

Este amor de tão amplo não pode ser visto em sua totalidade. É, portanto, um amor a perder de vista, como um grande rio, escuro, interminável, mas também experiente em sua jornada. Outra recorrência da contradição está presente na última estrofe. O amor parece levitar.

Nesse percurso, leva consigo o sujeito poético. Seu corpo, que, embora esteja dentro desse amor noturno, alusão ao sexo, que é sempre voltado para a privacidade, é iluminado pelo desejo, é amparado pela luz da paixão.

Este amor, embora escuro, claro. Este amor parece que acaba, mas, ao mesmo tempo, parece não acabar jamais. No segundo verso da terceira estrofe, a palavra ‘interminável’ traduz esse sentido. E o último verso fecha o poema carregando o paradoxo, num desfecho de gozo absoluto, com o sujeito poético perpetuando seu triunfo dentro dessa contradição, em que o rio do desejo o leva, pleno de paixão, “para o espaço sem fim de um mar sem termo ...”.

É bom notar que este último verso tem mais sílabas fortes do que os outros, e muito mais letras, caracterizando o prolongamento. Não podemos esquecer também das locuções ‘sem fim’ e ‘sem termo’ e dos substantivos ‘fim’ e ‘termo’ – significando, respectivamente, interminável e finito –, arrematados ambos pelo infinito, representado aqui pela reticência, que também indicam um estado de transe, de espasmo, no encontro de um rio com o mar, na realização plena do desejo.

É visível a construção da imagem principal, o rio como um amor carnal, e de suas variantes, formando um conjunto imagético, carregado de significado, povoado de sentimento estético.

quinta-feira, 26 de junho de 2008

CRUZ E SOUSA E A CRÍTICA LITERÁRIA

Cruz e Sousa é um poeta importante na história da literatura brasileira, mas passa quase incógnito pela crítica. Nascido João da Cruz e Sousa, em 1861, na cidade catarinense de Desterro, que mais tarde se tornaria Florianópolis, tornou-se o maior representante do Simbolismo no Brasil, um movimento poético que teve sua máxima representação na poesia francesa, com Charles Baudelaire, Arthur Rimbaud e Stéphane Mallarmé.

Filho de negros africanos vindos como escravos para o Brasil, Cruz e Sousa foi educado com todo o primor pela família do senhor de seus pais, que mais tarde os alforriaria. Cresceu no ambiente de princípios cristãos, cultivando o espírito com as letras da cultura nórdica.

Leitor de Schopenhauer, Haeckel e da literatura francesa, estudou inglês, francês, alemão e latim, ao mesmo tempo que convivia com seus pais, que traziam consigo os costumes africanos. Após perder seus protetores, o poeta mudou-se para o Rio de janeiro, em 1891.

Era consciente da situação do negro, do racismo, da história de maus tratos contra os escravos e da negação das condições mínimas de sobrevivência à maioria dos negros após a abolição da escravatura.

Para os interessados na obra do poeta catarinense, que ainda não sabem por onde começar, há pelo menos quatro críticos literários indispensáveis a essa introdução, considerando dois períodos distintos: Nestor Vítor (que fora amigo do poeta) e Roger Bastide, na primeira metade do século XX; Alfredo Bosi e Davi Arrigucci Jr., na segunda.

Os dois primeiros lançam luz sobre aspectos gerais e particulares da obra sousiana, mas ainda sob uma ótica que privilegia elementos do determinismo social e biológico.

Para Vítor, Cruz e Sousa era um poeta valoroso, que introduziu o Simbolismo na literatura brasileira com o lançamento de Broquéis (1893). Mas aponta falhas em sua poesia e as atribui ao caráter deficitário da cultura do poeta.

O preconceito racial permeando a crítica

Ao se referir à origem do poeta negro, Vítor define-o como oriundo de uma “raça primitiva, cujo canto rude e tosco, lá no continente onde habita, só figura, como por ironia, em folclores, de caráter científico” (Cruz e Sousa: Coleção Fortuna Crítica 4. Rio de Janeiro; Civilização Brasileira, 1979, p. 136).

A afirmação se aproxima das idéias kantianas sobre a falta de sensibilidade negra. Em Observações sobre o sentimento do belo e do sublime (Papirus, 2000), livro originalmente publicado em 1764, Kant diz que os negros africanos não possuem “nenhum sentimento que se eleve acima do ridículo”, e que são muito vaidosos, “mas à sua própria maneira, e tão matraqueadores, que se deve dispersá-los a pauladas.”

Essas idéias racistas sempre existiram, como podemos atestar, nos dias de hoje, nas afirmações do biólogo James Watson, em entrevista ao jornal britânico The Times, em 16 de outubro de 2007.

De acordo Watson, Prêmio Nobel de Medicina em 1962, junto com Francis Crick e Maurice Wilkins (pela descoberta da estrutura molecular do DNA), os africanos não alcançam o mesmo nível de inteligência dos ocidentais (brancos).

Ainda no século XIX, o racismo ganhara uma contribuição da teoria do Conde de Gobineau, diplomata francês que viveu no Brasil entre 1869 e 1870, segundo o qual, os negros e índios não tinham capacidade intelectual, nem gosto sofisticado ou tendências mais elevadas.

Mas, apesar do tom racista (talvez ingênuo) em algumas afirmações de Nestor Vítor, isso não o impede de comparar Cruz e Sousa a Rimbaud. Ele consegue fazer tal comparação por meio de um artifício simplificador: o que julga ser da tradição européia é aplaudido no poeta negro.

Já a musicalidade de tom vertiginosa sugerindo êxtase e entusiasmo, Vítor pensa ser evocação de África, “selvagem e torturante candomblé”, ele descreve como coisas demoníacas, “escabrosidades”, como se as religiões africanas tivessem inventado o conceito de demônio.

Em todo caso, Vítor seria o primeiro crítico a levantar a voz em favor de Cruz e Sousa, apontando a qualidade, a originalidade, e até mesmo a superioridade de seus versos face à produção poética daquele tempo.

Uma das razões para sua crítica às vezes soar confusa talvez seja o fato de ele estar muito em cima das linhas teóricas que explicavam o Simbolismo e não ter a argúcia crítica à altura do bardo negro, para captar todas as nuanças da obra sousiana.

É bom lembrar que não tenho a pretensão sequer de chegar à altura do trabalho de Nestor Vítor. Restrinjo-me aqui à qualidade estética da poesia de Cruz e Sousa e à visão de seus críticos. Além disso, possuo as ferramentas que me permitem enxergar a limitação e as virtudes do crítico carioca.

Sociologia e literatura

Já o sociólogo francês Roger Bastide, que veio para o Brasil no final da década de 30 para substituir Claude Levi-Strauss na Universidade de São Paulo (USP), deu – segundo a opinião de todos os críticos literários – a maior contribuição para os estudos da poética de Cruz e Sousa, ao se empenhar na compreensão do negro na literatura brasileira.

No escopo de sua análise, Bastide dizia que, junto com Mallarmé e Stefan George, poeta simbolista alemão, Cruz e Sousa formava a grande tríade harmoniosa do simbolismo. Rimbaud e Verlaine, portanto, estariam em um patamar abaixo.

Segundo o sociólogo, a diferença entre o poeta negro brasileiro e o mestre francês é que a poesia daquele era pautada pela experiência simbólica, enquanto que a deste era criada pela visão platônica, ficando no terreno da pesquisa técnica, da busca da perfeição pela palavra certa.

A experiência foi um fator fundamental para Cruz e Sousa, de fato. E Bastide acerta em sua análise até certo ponto. Ele parte do princípio de que a luta forja os valores. Para que haja uma arte de reivindicação racial, é preciso que haja barreiras, como o preconceito de cor, e foi esta a condição dada a Cruz e Sousa.

Mas Bastide também quer fazer crer que a busca da poesia de matizes nórdicos, como o Simbolismo, é uma tentativa de Cruz e Sousa se embranquecer, usando a estética simbolista como “um meio de classificação racial” (Cruz e Sousa, 1979), como se um negro não fosse naturalmente estético, nem estivesse à altura das ambições simbolistas sem uma ambição pessoal de se tornar (talvez até simbolicamente) branco.

E diz mais: “Por um curioso artifício, é no momento em que acredita ter mais do que franqueado a linha de cor que encontra a África” (Idem). Que artifício seria esse, Bastide nem se esforça para dizer. Mesmo porque, ainda que quisesse, não o encontraria, porque não existe.

Cruz e Sousa não encontra a África por intermédio da poesia branca, termo este, aliás, bastante duvidoso. Ele é consciente de sua origem desde o princípio, conforme fica demonstrado em sua obra. A África sempre esteve lá.

O fato de obstáculos raciais provocarem em um negro uma reação de cunho artístico, levando-o a fazer poesia, não significa que ele vá fazer poesia para se tornar branco, fugindo do problema. Significa apenas que ele sente necessidade de exprimir sua dor, seu descontentamento, seu protesto, e até mesmo, por que não?, suas vantagens e desvantagens de ser negro.

O protesto, a dor e a manifestação entusiástica, que pode sugerir não apenas o transe das religiões africanas, mas também o frenesi dionisíaco, a evocação de Dionísio, o deus grego do êxtase e do entusiasmo, são características muito presentes na obra de Cruz e Sousa.

Neste caso, Bastide também vê na poesia do catarinense esses procedimentos, aos quais ele dá o nome de “gemido”, “grito de uma raça oprimida” e “grito magnífico de orgulho”. Denominação esta que não combina com o desejo do poeta de se tornar branco por meio da poesia, apresentando, portanto, outra contradição.

A nova crítica

Nos últimos anos, os críticos Alfredo Bosi e Davi Arrigucci Jr. também escreveram sobre Cruz e Sousa, fazendo uma releitura crítica de sua poesia. Eles dão outra dimensão aos estudos da obra do poeta negro.

Isso porque estão muito mais distantes no tempo tanto de Cruz e Sousa quanto do sociólogo francês e de Nestor Vítor. Eles têm outros parâmetros de comparação, mais distanciamento estético e histórico; possuem outras ferramentas de análise.

Segundo Arrigucci Jr. (A noite de Cruz e Sousa. In: Outros Achados e Perdidos. São Paulo; Companhia das Letras, 1999), hoje, a explicação crítica de Bastide para a adesão de Cruz e Sousa a uma ‘poesia essencialmente nórdica’, “nos parece pouco convincente”, principalmente por se tratar de “uma leitura prejudicada pelo reducionismo sociológico.”

Pode-se ver a distância entre a crítica de Bastide e a de Arrigucci Jr., por exemplo, quando analisam a noite na poética do bardo catarinense. Para Bastide, ela apresenta dois aspectos: por um lado é “muito doce, muito boa”, e é a noite dos simbolistas; por outro, é “feiticeira, satânica, povoada de terrores e fantasmas”, que é a noite africana.

Já Arrigucci Jr. procura explorar as possibilidades de sugestão da palavra ‘noite’ pelo viés da indeterminação de significados que a poesia simbolista requer, em que o espaço se torna oco, permeável e pouco táctil.

Em seu longo ensaio sobre o tema, quando relaciona o olhar, o vazio e o escuro, ele conclui: “Tanto as formas alvas quanto a noite de Cruz e Sousa se arriscam a preencher esse mesmo vazio, o indizível da experiência simbólica, o oco do olho, às vezes só silêncio.”

Bosi, por sua vez, em seu ensaio ‘Poesia versus racismo’ (In: Literatura e Resistência. São Paulo; Companhia das Letras, 2002.), analisa o poema em prosa ‘Emparedado’, presente no livro Evocações (publicado logo após a morte do poeta, em 1898) para mostrar como Cruz e Sousa construiu sua poesia em meio ao discurso racista da época e à negação de seu talento.

Como reflexo das idéias que circulavam no período, Bosi cita o livro do médico e antropólogo maranhense Nina Rodrigues, Os africanos no Brasil, em que o autor retira o negro da condição de mercadoria para colocá-lo como objeto de estudo científico, mas, mantendo as afirmações racistas, segundo as quais o negro é um ignorante por natureza que merece ser estudado.

O último grito de Cruz e Sousa

Ao desenhar esse cenário de racismo com ramificações na sociedade e nos meios acadêmicos, Bosi diz que Cruz e Sousa tinha aguda consciência da situação. E por esta razão, o poeta sabia que só havia dois caminhos a seguir: “E ele os percorreu intrepidamente”, diz o crítico. O primeiro caminho era “o da sua libertação pessoal enquanto negro injustiçado que protesta contra a ‘ditadora ciência d’hipóteses.’”

O segundo caminho percorrido pelo poeta foi o de “profeta incompreendido”, que é a figura do gênio, muito valorizada entre os românticos. Desse modo, o poeta se associava aos “valores de liberdade e resistência”.

E foi dentro desse escopo, que Cruz e Sousa “reagiu dramaticamente à opressão dos prejuízos pseudocientíficos.” Marcado pelo tom de protesto e auto-avaliação, ‘Emparedado’ foi o último texto do último livro que o poeta preparou, mas que não chegou a publicar.

Levando em conta os termos utilizados pela crítica, ‘Emparedado’ foi, portanto, o último grito de Cruz e Sousa.

segunda-feira, 23 de junho de 2008

A SOLIDÃO DOS OUTROS III: Lições de abismo



O que pode sentir um sujeito condenado à morte? O que pensa sobre a vida, sabendo que dela não lhe resta muito tempo, não podendo esconder de si mesmo esse mal, essa fatalidade abissal que sugará o fio de luz que o faz existir?

Um homem condenado à morte pressuponha-se um criminoso, esperando da cadeia que sua sentença seja finalizada. Mas não é só isso, sabemos. É também qualquer um cujo médico já lhe disse “seu tempo é curto”.

“Seu tempo é curto”, foi mais ou menos o que disse o médico de José Maria, personagem do livro de Gustavo Corção (1896 – 1978), Lições de abismo, escrito na década de 50 do século passado, na efervescência do existencialismo.

Aos 50 anos de idade, o narrador-personagem, há dez, abandonado pela mulher e pelo filho, descobre que tem câncer no sangue e que sua vida não dura mais do que seis meses. É a última carta. É o deparar-se com algo muito íntimo e singular. A morte é alguma coisa pessoal e intransferível. Nesse momento, o sujeito percebe que seu caminho é solitário, e se vê só, diante do abismo.

José Maria, descobrindo-se um ser-para-a-morte-próxima, começa a escrever um diário, comentando suas experiências, relacionando fatos, meditando, escarafunchando, tentando, enfim, manter-se vivo por alguma razão. Nessas elucubrações, ele acaba relatando o conflito da alma diante da morte, chegando mesmo a compor uma espécie de ode à morte, um hino à solidão.

É um livro deveras lindo. É tocante o esforço do personagem para chegar a lugar nenhum. O romance de Corção é carregado de imagens maravilhosas. Uma delas encontra-se no começo, quando fala sobre o esforço, por dias a fio, às vezes meses, às vezes anos, para se compor uma bela sonata, com sofrimentos, tentativas malogradas, sono perdido, e no final, faz-se uma obra que dura 30 minutos. Mas 30 minutos que encantam. E ele pergunta: “não será a própria vida uma longa e desarrumada atividade dos bastidores para uma fugaz apoteose?”.

A resposta para tal pergunta depende, claro, do humor de cada um, e da experiência de vida que se teve. Em todo caso, quem consegue fazer da vida pelo menos uma sonata, conquanto bela, deve dar-se por satisfeito. Na maioria das vezes, mesmo vivendo muito, tudo que se consegue construir é uma discoteca de polcas mal feitas.

Ao passo que vai morrendo, José Maria lamenta não ter finalizado seus projetos. Tantos planos, tanta coisa que não fez, o livro que não escreveu, o combate que não combateu. Mergulha no lamento, repassa o existencialismo e a metafísica.

No auge de sua solidão, ele recorda seus tempos de criança, quando lia Júlio Verne. E é neste, num de seus livros, que José Maria vai buscar inspiração para refletir sobre sua condição de ser-que-despenca-para-a-morte. Ele cita Viagem ao centro da Terra, em que o comandante professor Lindenbrock, “antes de descer às profundezas, ensinava a galgar as alturas, e a esses salutares exercícios dava o nome de ‘Lições de Abismo’”.

Em crise, José Maria indaga: “E a mim, quem me dará as lições de abismo? Eu também vou fazer uma viagem ao centro da Terra, embora menos interessante que a do sábio hamburguês. Minha penetração na crosta do planeta se deterá a dois metros de fundo, nessa superficialíssima camada sem nenhum interesse geológico ou paleontológico”.

As lições consistiam em aulas sobre as estrelas, que também são abismos para o alto. E dizia o narrador: “Foi sempre assim: o homem, quando quer saber onde pisa, olha para o céu; quando quer regular seus movimentos, procura o imóvel”. De fato, as estrelas sempre foram o norte da humanidade, de coordenadas geográficas a espirituais. Que solidão!

José Maria olha para o alto e vê estrelas, e indaga sobre elas, numa atitude vã, como ele mesmo reconhece: “pra que tantos astros?”. Ou seja, o abismo está acima e abaixo de nós, e ainda dentro de nós, na elevação do espírito e no reconhecimento de nossa insignificância na imensidão desses espaços infinitos.

E José Maria se dá conta de sua condição ínfima: “verme colado a um grão, serei um microscópico monstro de acaso”. O mesmo sentimento de Pascal, consciente de nossa pequenez, e que dizia: “o silêncio eterno desses espaços infinitos me apavora”.

E assim a caravana passa. Através dos dias, José Maria alivia seu câncer escrevendo, remoendo as imagens na memória, tentando compreender as lições de abismo. É, acima de tudo, um bravo. Escreve quase todos os dias, desde pouco tempo depois de descobrir que tinha câncer.

Escreve para matar o tempo, para esperar. As palavras são sua cama, de onde ele espera a morte inevitável, e espera só, porque os outros são transeuntes. Como ele mesmo diz, o doente se mantém na espera, enquanto os outros passam.

O que José Maria escreve, em suma, são solilóquios. Solilóquios da solidão e da morte. Sua última lição vale toda a cavalgada. É uma espécie de sonata, composta ao longo de sua agonia.

Ele então diz: “a descoberta do eu (...) se completa nos abismos da subjetividade”, e há algo de Nietzsche nessa frase. Ou seja, a solidão às vezes é necessária, principalmente quando em vida, e não ao pé da morte, porque aí já é redundância.

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sexta-feira, 20 de junho de 2008

COMO EU SE FIZ POR SI MESMO: a grande jornada

“O que é escrever senão uma tentativa vã, desesperada, de exorcizar os demônios e arrancar deles um sentido?” Jamil Snege

“Conversar sobre literatura é bem mais agradável do que fazer literatura – especialmente para vagabundos que nem eu.” Jamil Snege

Foto: Travessa dos Editores

A literatura como arte nos oferece vários pontos de significados, porque é polissêmica, e nesse sentido é também veículo das diversas possibilidades do humano.

Digo isso para falar de um dos livros mais interessantes da literatura brasileira da década de 1990: Como eu se fiz por si mesmo (Travessa dos Editores, 1994), romance autobiográfico do curitibano, descendente de libaneses e italianos, Jamil Snege, que nasceu em 1939 e morreu – de câncer – em 2003.

Ao ler essa narrativa confessional, ambientada em sua maior parte na capital paranaense, o que percebemos é que ainda dá para chorar dentro do riso.

Snege não diferencia vida real e ficção nessa história, e é o que dá um sabor especial, porque nunca se sabe quando está fazendo blague ou dizendo a verdade. Cita nomes reais, fala de situações verdadeiras e imprime no texto o que há de melhor e de pior de si e dos outros.

Não foi o primeiro a fazer isso, mas aqui o que importa é a verve do escritor, sua peculiaridade, a literariedade de si mesmo. Para entrar no universo literário de Snege, o leitor precisa vestir as roupas dadas pelo próprio autor e se tornar leitor incauto, arguto, desfrutável, conspícuo, leitor maldoso, náufrago, lascivo leitor.

É necessário tudo isso para embeber-se nas filigranas de imagem e som, tatear os sentidos da vida com os cheiros e sabores particulares que vêm da prosa de Snege, uma prosa que costura infância, adolescência e vida adulta.

É, portanto, um romance de formação, de memórias e de deleite subversivo. Enquanto a tradição manda evocar os deuses da ‘decência’, ou as musas de plantão, para se criar uma obra sublime, nosso herói evoca nada menos do que Shiva, deus da criação caótica.

“Enquanto o logos é a solidão e a lei, Shiva é anárquico e gregário. Por onde o deus dança, uma horda de delinqüentes – os ganas – o acompanha ruidosamente”, lembra o autor.


O rastro da memória

Se a infância é a fonte do homem, a memória sem dúvida são os fios que ligam esse período quase perdido ao adulto. Snege usa as imagens de seu tempo de criança para construir a complexidade do homem feito. E o faz muito bem.

Seus atos mais memoráveis de garoto são as incontáveis partidas de futebol num campinho reles onde se encontrava com os amigos, e em outros campos mais sofisticados, como os dos padres, para onde iam às escondidas, vivendo o perigo de serem descobertos, como o foram tantas vezes.

Essa plena liberdade da infância foi se perdendo ao longo dos anos e tecendo na alma do nosso escritor um misto de sarcasmo e delícia no desfrute da vida, ao passo que ele mesmo narra a miséria e a grandeza do homem.

Mas há também a delícia do impossível, que são aquelas lembranças que surgem em nós como pinças querendo puxar de volta o concreto daquilo que um dia foi, mas que não volta jamais, e só agora é que damos conta da doçura que havia ali.

“Meu avô ficou cego – e era eu, aos quatro anos, quem o guiava em suas fuga de casa. (...) Aos setenta e tantos anos, forte e enfezado, prendê-lo em casa era tarefa difícil. Principalmente quando eu estava por perto, longe da vigilância das mulheres. Aproximava-me do seu banquinho, ninguém olhando, e tocava-lhe o ombro.

– Nono ...

O velho, de um salto, punha-se de pé. Oferecia-me sua mão ossuda e sussurrava:

– Andiamo, piccinino. Andiamo via.

E saíamos os dois, pelas ruas de terra, tropeçando nos sulcos endurecidos que as rodas abriam quando chovia. (...) A aventura terminava algum tempo depois, a família toda mobilizada numa caçada feroz. Aí então o velho Isidoro impunha suas condições: retornar como viera, pela mão do neto, o séqüito de captores no mínimo a dez passos atrás. Eu jamais deveria volver a cabeça. Ele exigia: desconhecêssemos solenemente aqueles que seguiam nossos calcanhares.

O nono morreu logo depois. Embora passasse a vaguear por outras paragens, talvez até pelos campos macios e perfumados do paraíso, eu ainda o imaginei, anos a fio, escondido atrás do portão, o bote armado para o convite irresistível:

– Andiamo via, piccinino. Andiamo via, subito.”


A miséria e a grandeza do homem

Snege está na linha de autores geniais como Campos de Carvalho (1916-1998), escritor mineiro que escreveu O púlcaro búlgaro, A vaca de nariz sutil e, entre outros poucos, mas pungentes livros, A lua vem da Ásia, uma das mais belas histórias de devaneio, loucura e lucidez.

Campos de Carvalho está voltando à tona, graças às montagens teatrais baseadas em suas novelas. Já Snege nunca fez questão que seus livros fossem publicados por editoras importantes ou divulgados pela grande imprensa. Mesmo assim é conhecido por quem acompanha de perto a cena literária brasileira.

Em Como eu se fiz por si mesmo, Snege traça os caminhos tortuosos da vida e desenha com sarcasmo e ironia o espírito da sociedade curitibana dos anos 70, provinciana, conservadora, preconceituosa e fechada. O que não difere muito dos dias de hoje.

Como personagem principal, Snege, que era graduado em Sociologia Política pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná e publicitário de profissão, se coloca na condição de outsider, social e intelectualmente, mas talvez seja esse o caráter mais ficcional de seu livro.

Se por um lado, é feito o retrato da miséria do homem, como ser incompleto e cheio de defeitos, fracassos e arrogância, por outro, a grandeza de espírito do autor se mistura com a do próprio personagem, principalmente em relação às várias amizades descritas no livro, de nomes conhecidos hoje em dia, como Roberto Requião (atual governador do Paraná) Cristóvão Tezza, Wilson Bueno, Fábio Campana, Domingos Pellegrini, Alice Ruiz, Valêncio Xavier, Roberto Gomes, Sylvio Back, Dalton Trevisan, entre outros, que freqüentavam sua vida.

O autor tinha um grande apreço pela literatura, mas trata o caso com a mesma ironia de sempre, comparando-a aos seus casos de amor, que eram abandonados ao meio, fragmentados, figuras obliteradas pela força maior da existência, a de não se apegar a qualquer sentimentalismo.

“Minha vida sentimental sempre caminhou passo a passo com minha vida literária. Sou capaz de estabelecer uma íntima relação entre minhas mulheres e meus livros. Felizmente fui muito mais profícuo na primeira das atividades, o que me salvou de uma existência letrada e infeliz.”

Em outra passagem, sua verve autodestrutiva tenta se equilibrar, na contramão e no sarcasmo habitual, com um ideal de vida, para ele, saudável.

“O êxtase ou a queda? Ambos. Menos a felicidade. Esta entedia. É pobre e engorda. Embota. Escapar da felicidade talvez seja o supremo dan na arte de viver. Tenho tentado não ser feliz e às vezes consigo. Paz de espírito, serenidade, dinheiro no banco, amor – isso mata qualquer um. Antes, o conflito. A Sarna para se coçar.”

Se vida e literatura se igualam em Como eu se fiz por si mesmo, nada deve ser levado a sério e, ao mesmo tempo, tudo tem de ser considerado. Toda a narrativa pode ser o que poderia ter acontecido, mas também pode ser a inverossimilhança da vida real, em que o próprio Snege engana a si mesmo.

Em todo caso, o que interessa é o teor dessa crônica deliciosa, engraçada, sofrida, mas bem-humorada sempre. Como eu se fiz por si mesmo é sobre a vida, que para Snege se resumia em duas coisas: literatura e amizade.

Trechos:

“(...) Pra todos vocês, vivos ou mortos, desaparecidos ou desgarrados, pra vocês todos, seus pulhas, dedico a bosta deste livro.”

“Bebuns, boêmios, jogadores – todos os pobres-diabos que andavam com passos tortos pela vida eram instados a permanecer longe de mim. Tudo em vão, infelizmente. Mais eles se afastavam, mais eu reclamava sua companhia. Sempre tive orgulho de preencher dois terços de minhas amizades com pessoas de baixa cotação na bolsa da vida. Os piores alunos do colégio jogavam no meu time; a putinha mais desencontrada ganhava a minha mais inspirada carta de amor; o mais doido dos doidos era alvo de toda a minha lucidez. Amei os fracos, os combalidos, os inviáveis, essas aves de penas rotas às quais o vôo se nega. Amei os trôpegos, aqueles cuja insânia acende uma auréola violácea sobre suas pobres cabeças. Amei o que a natureza fez torto e a sociedade entortou mais ainda.”

“A morte de meu pai deixou-me com um pé bailando no abismo. Ela existe, concluí. Vem devagar ou bruscamente, vem com reiterados avisos ou sem aviso algum. Mas não falha. Ilógica, imponderável, essa branca senhora se insinua, abrange, abarca. Brande suas navalhas. Abrevia. O corpo que nos abandona é seu bastidor tecido, seu risco bordado – sempre igual. Fio de vida finalmente tramado. Arremate final.”



Obra de Jamil Snege:

Tempo sujo (1968)
A mulher aranha (1972)
Ficção onívora (1978)
As confissões de Jean-Jacques Rousseau (1982)
Para uma sociologia das práticas simbólicas (1985)
Senhor (1989)
O jardim, a tempestade (1989)
Como eu se fiz por si mesmo (1994)
[Veja texto http://leiturasdogiba.blogspot.com/2008/02/como-eu-se-fiz-por-si-mesmo-o.html)
Viver é prejudicial à saúde (1998)
Os verões da grande leitoa branca (2000)
Como tornar-se invisível em Curitiba (2000)

quinta-feira, 19 de junho de 2008

DOIS FIOS QUE TECEM UMA MALHA INTEIRA

Esquete 1

A internet é o quarto escuro da consciência humana, mas lá, para cada clique, uma pequena luz se acende diante de alguém. E é aí que transparece sua maravilha. Ao haver luz, o universo virtual torna-se a grande cidade, sua metáfora por excelência (o paradoxo existe e é inevitável).

Esquete 2

A metáfora é um dos recursos da arte, e a cidade é seu refúgio. É para as cidades grandes que vão os grandes poetas, por exemplo, os literatos todos, o artista de modo geral. Para Paris foi Rimbaud. Para Belo Horizonte, Drummond e Rosa. Para Londres foi Shakespeare.

Esquete 3

Teria sido por isso que o historiador e crítico italiano Giulio Carlo Argan (1909 – 1992) escreveu História da arte como história da cidade? Neste caso, ele fala do espaço criado pelas artes visuais e a arquiteura que recriam a cidade. No coração do criador há uma multidão.

Esquete 4
Mas literatura também é arte, as vias de passagem da tensão. Literatura e cidade. Dois fios que tecem uma malha inteira de desejos. No contrafluxo de imagens e entendimento, a internet também é sua metáfora, a mais bela tradução da cidade que há em todo homem moderno.

segunda-feira, 16 de junho de 2008

ESCRITORES JAPONESES PUBLICADOS NO BRASIL

A comunidade japonesa no Brasil comemora os 100 anos da chegada do navio Kasato-Maru, que aportou em Santos, em 18 de junho de 1908, trazendo a primeira grande leva de imigrantes japoneses para o país.

Na imprensa, vemos uma enxurrada de eventos e várias dicas ligadas à cultura japonesa. Mas, como sempre, a literatura se apresenta timidamente, com raríssimas reportagens sobre escritores do país do sol nascente.

Para suprir a carência de informações, este blog oferece aos seus visitantes uma lista de autores – e seus respectivos livros – que estão sendo ou que já foram publicados aqui.

Muitas edições estão esgotadas, mas ainda assim podem ser encontradas em sebos, em sua maioria. Neste caso, a sugestão é que a busca seja feita pelo site Estante Virtual, que reúne mais de mil sebos e vendedores de livros autônomos do país inteiro.

A pesquisa foi feita com cruzamento de dados para reunir todos os autores japoneses traduzidos para o português do Brasil. Mesmo assim, não é descartada, em última hipótese, a possibilidade de alguém ter ficado de fora, já que a ferramenta de apuração foi basicamente a internet. Mas é pouco provável que isso tenha excluído algum escritor relevante (embora a lista não faça ranking), pela óbvia força gravitacional da web.

Em todo caso, se alguém tiver mais nomes de autores japoneses publicados no Brasil (não estão incluídas aqui traduções para o português de Portugal), por favor, faça a indicação. O jornal O Estado de S. Paulo publicou uma matéria sobre escritores japoneses, no dia 16 de Março de 2008, que também foi importante para esta lista.

Englobando tanto autores de prosa quanto de poesia e ensaios, a lista não traz distinção, a não ser aquela encontrada nos próprios títulos. Mas houve a preocupação de indicar o gênero feminino com [F] no fim da citação das poucas autoras traduzidas.

Sobre isso, e apesar de não estar na lista, vale citar aqui a grande autora de The tale of Genji, Murasaki Shikibu (978? - 1026?), conhecida também como Lady Murasaki, do Período Heian (entre 800 e 1185). Ela viveu numa época em que, segundo Martin Seymour-Smith (The New Guide to the Modern World Literature), havia muitas escritoras, quase todas de famílias aristocráticas.

Segundo Seymour-Smith, The tale of Genji (traduzido apenas para o português de Portugal, O romance de Genji - 2007) “é muitas vezes considerado o primeiro grande romance da história da literatura, e certamente um dos mais belos de todos os tempos.” E Harold Bloom coloca Lady Murasaki entre os cem maiores gênios da linguagem, em seu livro Gênio - os 100 autores mais criativos da história da literatura.

OBS: O texto foi publicado no longínquo 2008, e não teve atualização na lista.

Boa leitura!

Ashihei Hino (1907 - 1960): Guerra e soldado - diário de um combatente japonês (Revista dos Tribunais, 1941 – esgotado).

Banana Yoshimoto (1964 - ): Kitchen (Nova Fronteira, 1988). [F]

Eiji Yoshikawa (1892 - 1962): Musashi V. 1 e 2 (Estação Liberdade, 1999).

Haruki Murakami (1949 - ): Caçando carneiros (Estação Liberdade, 2001); Kafka a beira-mar (Objetiva, 2008); Dance, dance, dance (Estação Liberdade, 2005); Minha querida sputnik (Objetiva, 2003 – esgotado); Norwegian wood (Objetiva, 2005 – esgotado).

Hiroyuki Itsuki (1932 - ): Tariki – aceitando o desespero e descobrindo a paz [sobre o budismo] (Bertrand Brasil, 2004).

Jun Eto (1933 - 1999): Uma nação renascida – breve história do Japão do pós-guerra (Consulado Geral do Japão, 1976 – esgotado).

Junichiro Tanizaki (1886 – 1965): As irmãs Makioka (Estação Liberdade, 2005); Diário de um velho louco (Estação Liberdade, 2002); Em louvor da sombra (Companhia das Letras, 2007); Há quem prefira urtigas (Companhia das Letras, 2003); Voragem (Companhia das Letras, 2001); Amor insensato (Companhia das Letras, 2004); A chave (Companhia das Letras, 2000 – esgotado); Naomi (Brasiliense, 1986 – esgotado).

Junnosuke Yoshiyuki (1924 - 1994): O quarto escuro (Brasiliense, 1988 – esgotado).

Kakuzo Okakura (1913 - ): O livro do chá (Ediouro – esgotado, com nova edição prevista para 2008).

Kazuo Ishiguro (1954 - ): Não me abandone jamais (Companhia das Letras, 2005); Quando éramos órfãos (Companhia das Letras, 2000); Resíduos do dia (Companhia das Letras, 2003, e Rocco, 1990, como Os vestígios do dia – esgotado); Um artista do mundo flutuante (Rocco – esgotado); O desconsolado (Rocco, 1996 – esgotado).

Kenzaburo Oe (1935 - ): Uma questão pessoal (Companhia das Letras, 2003); Jovens de um novo tempo, despertai! (Companhia das Letras, 2006); Contos (USP, 1995 – esgotado); A Captura (Luna, 1995 – esgotado); O Grito Silencioso (Abril Cultural, 1986 e Francisco Alves, 1983 – ambos esgotados).

Kobo Abe (1924 - 1993): Mulher das dunas (Aliança Cultural Brasil Japão – esgotado).

Massao Daigo (? - ?): A mata das ilusões (Aliança Cultural Brasil-Japão, 1997).

Masuji Ibuse (1898-1963): Chuva negra (Marco Zero, 1988 – esgotado, mas terá nova edição pela Estação Liberdade).

Matsuo Basho (1644 – 1694): Trilha estreita ao confim (Iluminuras, 1997) [este mesmo livro foi publicado em 1983 sob o título Sendas de Oku, pela Roswitha Kempf Editores]; Basho palhas de arroz (Massao Ohno, 1994 - esgotado).

Miyazawa Kenji (1896-1933): Viagem noturna no trem da Via Láctea (Globo, 2008 – classificado como infanto-juvenil).

Morio Kita (1927 - ), Um hospício no Japão, V. 1 e 2 (Marco Zero, 1990).

Nagai Kafu (1879 - 1959): Crônica da estação das chuvas (lançamento previsto para 2008).

Osamu Dazai (1909 – 1948): Pôr do sol (Civilização Brasileira/Massao Ohno, 1974 – esgotado).

Otohiko Kaga (1929 - ): O vento leste (lançamento previsto para 2008).

Ryu Murakami (1952 - ): Miso soup (Companhia das Letras, 2005); Azul quase transparente (Brasiliense, 1986 – esgotado).

Ryunosuke Akutagawa (1892 – 1927): Contos fantásticos (Z, 2003); Rashomon e outras histórias (Paulicéia – esgotado); Kappa e o levante imaginário (Estação Liberdade, 2010).

Sawako Ariyoshi (1931 - 1984): O canto da Terra - antologia (Fundação Japão/Movimento, 1994 – esgotado). [F]

Seicho Matsumoto (1909 - 1992): Dois pontos e uma reta (Clube do Livro, 1970 – esgotado); Por uma vida mais bela [religião] (Seicho-no-iê, 1997 – esgotado).

Shusaku Endo (1923 - 1996): Rio profundo (Mercuryo – esgotado); O silêncio (Civilização Brasileira – esgotado); O samurai (Nórdica, 1980 – esgotado); Admirável idiota (Civilização Brasileira, 1979 – esgotado); Escândalo (Rocco, 1988 – esgotado); Mar e veneno (Civilização Brasileira – esgotado).

Soseki Natsume (1867-1916): Eu sou um gato (Estação Liberdade, 2008).

Takuboku Ishikawa (1885 - 1912): Tankas (Massao Ohno, 1991 – esgotado).

Tatsuzo Ishikawa (1905-1985): Sobo – uma saga da imigração japonesa (Ateliê Editorial, 2008).

Yasunari Kawabata (1899-1972): Beleza e tristeza (Globo, 1988 e 2004); A casa das belas adormecidas (Estação Liberdade, 2004); Contos da palma da mão (Estação Liberdade, 2008); Kyoto (Estação Liberdade, 2006); O mestre de go (Estação Liberdade, 2011); Mil tsurus (Estação Liberdade, 2006); O país das neves (Estação Liberdade, 2004); Nuvens de Pássaros Brancos (Nova Fronteira, 1956 e 1968, e Opera Mundi, 1973 – esgotado).

Yasushi Inoue (1907-1991): A espingarda de caça (Brasiliense – esgotado, mas terá nova edição, prevista para 2008, com o título Fuzil de caça).

Yosano Akiko (1878-1942): Descabelados (UNB, 2007). [F]

Yukio Mishima (1925 - 1970): Confissões de uma máscara (Companhia das Letras, 2004); Cores proibidas (Companhia das Letras, 2002); Neve de primavera – Mar da fertilidade V. 1 (Brasiliense, 1986 – esgotado); Cavalo selvagem – Mar da fertilidade V. 2 (Brasiliense, 1987 – esgotado); Templo da aurora V.3 (Brasiliense, 1988); A queda do anjo – Mar da fertilidade V. 4 (Brasiliense – esgotado); O Hagakure (Rocco, 1987 – esgotado); Mar inquieto (Companhia das Letras, 2002 – esgotado); O marinheiro que perdeu as graças do mar (Rocco, 1986 - esgotado); Sede de mar (Presença, 1989 - esgotado); O Templo do Pavilhão Dourado (Rocco, 1988 - esgotado).

Fontes:

Além de arquivos pessoais, as seguintes fontes foram consultadas:

Japan-Guide

Livraria Cultura

Estante Virtual

O Estado de S. Paulo

The New Guide to the Modern World Literature, de Martin Seymour-Smith (3ª ed.).

sábado, 14 de junho de 2008

A SOLIDÃO DOS OUTROS II: o homem que inventou a solidão

García Márquez, prêmio Nobel de Literatura de 1982

Quando me deparei pela primeira vez com o livro de Paul Auster, O inventor da solidão, tomei um susto. Não sabia que alguém havia surrupiado a patente do velho Gabo, o homem que de fato, em meu imaginário, arquitetou a solidão.

Foi Gabriel García Márquez que nos mostrou a orfandade da América Latina e aquilo que é só, que é lastimavelmente esquecido, escanteado. Tudo isso está em seus livros mais expressivos, como Cem anos de solidão, Ninguém Escreve ao coronel, Crônica de uma morte anunciada e O amor nos tempos do cólera, o mais delicioso caso de amor, abandono, solidão e reencontro.

García Márquez tem hoje 81 anos de idade, e certamente não está só. Vive rodeado de amigos, no México, onde mora desde tempos já esquecidos. Pode até estar no fim da vida, mas continua escrevendo. O que não morrerá, no entanto, nem ficará olvidado nos recônditos escuros das bibliotecas ou dos sebos é sua obra. Pelo menos por um tempo mais inestimável que o tempo dos outros.

Filho de Gabriel Eligio García e Luisa Santiaga García Márquez, Gabriel José García Márquez nasceu numa cidadezinha chamada Aracataca, Colômbia, em 6 de março de 1927 (as fichas técnicas de seus livros dizem 1928), um ano antes da revolta entre os plantadores de banana, que foi repreendida à bala, numa matança histórica para os moradores da região e para o país, descrita em Cem anos de solidão.

O fato é que depois daquela chacina, tudo mudou para a cidade. A companhia exploradora do lugar foi embora e com ela o progresso. “A única coisa certa era que levaram tudo: o dinheiro, as brisas de dezembro, a faca de cortar pão, o trovão das três da tarde, o aroma dos jasmins, o amor. Só ficaram as amendoeiras empoeiradas, as ruas reverberantes, as casas de madeira e tetos de zinco enferrujado com suas pessoas taciturnas, devastadas pelas lembranças”, diz o escritor em suas memórias, provando ser mesmo o autor da solitude e do exagero.

Em Crônica de uma morte anunciada, ele conta a história de Santiago Nasar, baseada na tragédia real de Cayetano Gentile, amigo da família do escritor, morto a facadas, em janeiro de 1952, na porta de casa, sem poder entrar. A mãe do rapaz havia trancado a porta, achando que o filho já estivesse no quarto dele.

Na ficção de García Márquez, a solidão de Nasar é avassaladora. Todos sabem de sua morte, todos comentam seu infortúnio, enquanto ele caminha rumo ao túmulo, sem tomar conhecimento de nada, sozinho em sua doce ilusão de estar vivo.

É tanta solitude e são tantas tramas que só mesmo lendo para se averiguar o mar de Gabriel. Em O amor nos tempos do cólera, de 1985, ele mescla sua própria história sentimental com a de seus pais e outras variantes para dar à luz o conturbado amor entre Florentino Ariza e Fermina Darza.

A solidão nasce nas entranhas de Ariza. Ele debate durante 50 anos para conseguir, finalmente, o privilégio de viver com a amada, mulher dona de seu coração desde sua juventude primeira, desde a adolescência dela e dos 18 anos dele.

Entre uma espera e outra, Florentino Ariza exercita seu amor com outras mulheres, aventurando por todos os tipos de solidão, sem ter a atenção da mulher que ama, alcançando apenas os espaços cavernosos de amores clandestinos, tangenciando a solidão dos outros, ludibriando a si mesmo a falta de sua amada, que se confortava nos braços de um marido ‘impostor’.

Parte dessa história diz respeito à vida do pai de Gabo, em dois momentos: quando Ariza se vê impedido de namorar Darza pelo pai dela e trama mil esquemas para se encontrar com a moça, e quando Ariza mergulha no mundo de mulheres soltas, tentando compensar a falta de seu amor maior.

Na verdade, o senhor Eligio andou cometendo inúmeros delitos amorosos. Em suas memórias, García Márquez comenta sobre o pai: “numa época tive uma certa tentação por seus hábitos de caçador furtivo, mas a vida me ensinou que é a forma mais árida da solidão, e senti uma grande compaixão por ele”.

Em todos esses livros, e ainda em outros de García Márquez, aparecem, em contorno, os traços da desolação e do esquecimento, perpetuados no coração da América Latina, até hoje.

É por isso que, ainda que se prove o contrário, o autor de O general em seu labirinto e Do amor e outros demônios foi quem inventou, para mim, a solidão.

quinta-feira, 12 de junho de 2008

O AMOR EM PALAVRAS: a reverberação do discurso amoroso

“O amor é primo da morte
E da morte vencedor
Por mais que o matem (e matam)
A cada instante de amor”
Carlos Drummond de Andrade


No Dia dos Namorados, este blog também quer falar de amor. Deixemos as brigas, os desentendimentos, as relações promíscuas, as sem-relações, os foras, os micos, as vendas para os sites de fofocas e de mercado de capital.

Falemos da mais fictícia das paixões, sem demérito, no labirinto do discurso amoroso. O amor é cheio de malabarismo, como se a gente mesmo fosse do circo, como se todos que amam se compenetrassem no abismo cômico da arena circense.

O Amor nos faz rir: de contentamento, de histeria, de gozo, de saudades marcadas pelas lembranças de instantes sublimes na alma de quem ama.

Ele rompe na reta infinita do tempo. Amor e tempo. Eis um raio de clarão, uma centelha tantas vezes insignificante e piegas e outras tantas objeto de maior desejo, o que mais se pede e se deseja no mundo.

Ao incitar o amante ao discurso, o amor revela apenas o que todos já sabem de seu caráter; de sua condição fora do ser amado: literatura, o ramo da bifurcação mais apreciado, mais apaixonante, mas que não passa de tautologia, redundância amorosa, ainda assim, rica e profunda. “Eu te amo”, todos dizem.

Seguidamente, repete-se esse discurso para todos. Mas o amor, em seu caráter literário, é mesmo profundo, porque podemos expressar em palavras, que são tantas, o que muitas vezes deixamos de viver em sentimentos, que podem ser poucos – Casanova embevecido.

Quando um deseja o outro, o que menos quer é deixá-lo, ainda que seja por um segundo. Quer dizer mil coisas à pessoa amada – Sherazade enamorada – e por isso sente uma espécie de tempestade permanente de palavras replenas de sentimentalidade. Só mesmo motivados pela separação podemos sentir as reverberações que o amor causa em nós. Até aí é literatura.

Apenas, e somente apenas, quando há um revestimento de grandeza inefável, aparece o amor em si, infinito e soberano. Tão denso e cortante que podemos não suportá-lo (mas ele é tão raro nas pessoas!). “Não suporto aquela mulher”, que nunca vi antes, digo eu. Mas posso estar querendo dizer que ela mexe com meus inefáveis sentimentos, e por isso não tenho motivos para abrir meu coração a ela. Ela seria cruel demais, avassaladora demais, infinitamente grandiosa para mim. “Não a suporto porque a amo demais.”

O amor é assim: carga solitária que procura no outro um alívio em comum. Inefabilidades. Só vivendo para sentir e não dizer, porque o amor de que se sente é indizível. Só podemos tangenciar sua verdade. Somente o ser amante pode entrar no círculo de seu próprio amor.

segunda-feira, 9 de junho de 2008

CHINUA ACHEBE EM THE NEW YORKER: uma apreciação da literatura africana

Achebe foi um dos primeiros a pôr na literatura a África sem estereótipos

A revista The New Yorker de 9 de maio deste ano publicou uma grande reportagem sobre o escritor nigeriano Chinua Achebe. Em se tratando de literatura africana, não podemos esperar que no Brasil algo dessa magnitude aconteça (exceto pela magnífica edição especial da Entrelivros Nº 6, revista esta que deixou de ser publicada).

Quem já sequer leu sobre Achebe aqui? O que sabemos de literatura africana circunscreve aos autores em língua portuguesa, como Pepetela, José Eduardo Agualusa, Mia Couto, Luandino Vieira, mais recentemente, o jovem Ondjaki, e alguns em inglês, como J. M. Coetzee. E temos de agradecer aos deuses por tanto.

O propósito da reportagem de The New Yoker, que agora é acesso livre no site da revista, é a celebração dos 50 anos de um livro que marcou a ascensão dos escritores africanos: O mundo se despedaça (Things Fall Apart, com tradução da editora Ática de 1983), que ganha edição comemorativa, em inglês, claro.

Publicado pela primeira vez em 1958, O mundo se despedaça mostrou aos africanos que eles mesmos podem ser vistos na literatura sem os estereótipos criados pelos escritores europeus.

Foi pelo caminho aberto por Achebe, por exemplo, que outro nigeriano, seu contemporâneo, se descobriu e chegou a ganhar o Nobel de Literatura, Wole Soiynka, em 1986. Outros africanos também ganharam o Nobel (até hoje, o prêmio literário mais importante, apesar da pecha de prêmio político), Claude Simon e Albert Camus (ganharam pela França, embora tenham nascido, respectivamente, em Madagascar e Argélia), Nadine Gordimer, J. M. Coetzee (pela África do Sul), que são brancos, e Naguib Mahfouz, que é árabe.

A única publicação (esgotada, inclusive) de Achebe no Brasil é O Mundo se despedaça. Em Portugal também foi publicado A flecha de deus. O resto é escuridão sobre um autor tão importante para quem se interessa por literatura da África profunda, a fonte primeira da história da humanidade.

Achebe nasceu em 1930 na região de Igbo, que se denominou República da Biafra ao tentar se tornar independente pela guerra de 1967. Nessa época, Achebe foi militante da causa dos Igbo. O resultado do conflito foram milhões de mortos, e em 1970 a região foi reintegrada à Nigéria.

Ao analisar a vida e a obra de Achebe, a reportagem nos dá uma noção exata da realidade da produção literária africana, do que foi ontem do que é hoje e de como seus autores se movimentam nesse cenário para tentar imprimir, a seu modo, a realidade e a arte africanas, pouco conhecidas pelo resto mundo.

Trechos:

“Autoritarismo político não é uma coisa hipotética na Nigéria, que, tendo alcançado sua independência em 1960, enfrentou um longo período de insurgência. Em 1967, após dois golpes que desencadearam um violento genocídio contra os Igbo, estes declaram independência da Argélia como República da Biafra.

O próprio Achebe se tornou alvo da violência: seu romance A man of the people [Um homem do povo, tradução literal], uma sátira política, previu o golpe de maneira tão profética que muitos acreditaram que ele fazia parte do complô.

Ele então se dedicou totalmente à causa biafrense. Parou de escrever ficção por um tempo e passou a escrever poesia, ‘algo curto, intenso, mais ligado ao meu estado de espírito’, dizia.”

......................

“A ‘situação no mundo’, 50 anos após a publicação de O mundo se despedaça, não alterou como gostaríamos. Como Binyavanga Wainaina – editor fundador da revista literária keninana Kwani? – demonstrou num artigo satírico chamado How to Write About Africa [Como escrever sobre a África, em tradução literal], os estereótipos racistas ainda prevalecem: ‘Nunca ponha uma fotografia de um africano bem-ajustado na capa de seu livro, ou dentro dele, a menos que este africano tenha ganhado o Prêmo Nobel ... Certifique-se de que você esteja mostrando como os africanos têm música e ritmo no fundo da alma e comem coisas que nenhum outro humano comeria.’
Mas o poder do legado de Achebe não dá para ser apagado. Adichie [Chimamanda Ngozi Adichie, escritora nigeriana, autora do romance sobre a guerra da Biafra Half of a Yellow Sun, que ganhou o prêmio britânico Orange Prize, em 2007] lembra que descobriu a obra de Achebe aos dez anos de idade. Até então, disse ela, ‘eu não imaginava que era possível para as pessoas como eu estar nos livros.’”

quinta-feira, 5 de junho de 2008

FERNANDO SEGOLIN E A AULA TANGENCIAL: Lobo Antunes, Pessoa e Fellini

A tangência é a reta riscando a superfície do círculo, sem atingir seu interior, mas o suficiente para ligar um conteúdo a outro, nos ensina a matemática. A vida contingente de um círculo, por meio do qual passa uma reta, pode implicar referência em outro círculo de vida pelo qual tangencia essa mesma reta.

Com essa imagem, temos a representação daquilo que é uma aula de Fernando Segolin. Mestre na arte de ensinar literatura, Segolin é o trigo no joio da didática literária.

Especialista em Fernando Pessoa, professor do departamento de Pós-Graduação da PUC de São Paulo, ele é um raro corpo de saber que faz da literatura, de modo geral, e da poesia, em particular, sua raison d’etre.

Prefere dar aulas, mas já publicou dois livros: Personagem e anti-personagem e Fernando Pessoa – poesia, transgressão e utopia, fruto de sua tese de doutorado sobre o poeta dos heterônimos. Ambos estão esgotados.

Para Segolin, ensinar literatura é demonstrar quão viva deve ser a palavra, formando um complexo de tensão em que há toda a carga sensorial e sensual da própria vida. “Ou a literatura é esse corpo vibrante e apaixonado, ou ela não serve pra nada”, diz ele em uma de suas aulas.

Foi também em uma de suas aulas que, ao falar de António Lobo Antunes e, de quebra, Fernando Pessoa, Segolin me deu a chave para penetrar o reino imagético do cinema de Federico Fellini. Eis a tangência.

A vida capturada


"Nem história, nem intrigas, quero a vida"

Ele usa a obra de Lobo Antunes para falar do significado da literatura de modo geral, da literatura como arte. Segundo Segolin, os romances de Lobo Antunes não têm saída declarada, definida, seus personagens são labirínticos.

A história, a trama do romance, não interessa para Lobo Antunes. “O que eu quero é colocar a vida inteira entre as capas de um livro. Não quero história, não quero intrigas, eu quero a vida”, seria a afirmação categórica do romancista.

Para Segolin, esta afirmação é o resumo do objetivo do fazer literário de Lobo Antunes, cujos princípios são sustentados pela herança do heterônimo de Fernando Pessoa, Alberto Caeiro, segundo o qual, a única poesia possível seria aquela que brota do corpo, de forma espontânea e natural, captando o mundo só por meio dos sentidos, sem o uso das palavras (o que configura a utopia).

Dentro dessa premissa, a literatura quer a vida de imediato, ou seja, o que marca a literatura é a utopia da não mediação. A literatura sonha em acabar com todas as mediações, diz Segolin. As mediações são o que nos aliena, sejam linguagens, teorias, sonhos, experiências de todo tipo (a utopia em sua plenitude).

A linguagem do impossível

Segundo Segolin, a literatura quer superar as mediações, e é um sonho utópico marcadamente erótico. “O erotismo em todos nós aspira a ausência de todas as telas. O verdadeiro erotismo é aquele que promove a integração do eu com o seu outro, sem nenhum intervalo”, ensaia o professor.

Segolin continua: “Criar é eliminar mediações, é transformar aquilo que já se conhece em algo novo. A utopia existe porque somos seres inevitavelmente mediáticos. Operar com a palavra é buscar nela uma palavra que ainda não é, que ainda não há. Todo gesto criativo é a instauração de algum ser, é, portanto, transgressão.”

E diz mais: “A literatura é a linguagem do impossível num mundo pretendidamente de certezas.” Segundo ele, a vida nunca se deixa captar completamente, pelo menos pela linguagem. Eis a utopia, a contradição da literatura. Retomando Lobo Antunes e Pessoa, Segolin arremata: “A vida nas capas do livro só é possível se ela aparecer inteira, sem nenhuma máscara.”

A humanidade como nuvens

É aí que entra o cinema de Fellini. “Não quero história, não quero intrigas, eu quero a vida”. Eis a frase lapidar, que pode se aplicar em vários filmes do gênio italiano.

Em A Doce Vida, é como se Fellini quisesse sempre captar o momento, e esse momento escapasse sempre, deixando apenas rastros da vida. O que a câmara de Fellini capta e projeta na tela é uma atmosfera que insufla leveza em nossa alma e nos faz flutuar.

A câmara de Fellini capta e projeta na tela uma
atmosfera que insufla leveza em nossa alma

Essa mesma sensação pode ser vista também em A Cidade das Mulheres, Fellini 8 ½ e Amarcord. Está menos presente em Noites de Cabíria, porque o lirismo aqui é mais unívoco, algo do tipo que se concentra na imagem do personagem de Cabíria, no sonho dela, na ingenuidade, ou na fé que tem nas pessoas. É um filme lindo, mas é mais pé no chão, como também o é A estrada da vida.

Ao conversar com um amigo cinéfilo, falamos justamente dessa tentativa felliniana de captar a vida. Fellini chegou a dizer que seus filmes não eram para ser entendidos, e sim sentidos. A gente só consegue mesmo sentir.

A tangência com a aula de Segolin me faz sentir melhor os filmes de Fellini, sem dúvida. São mesmo sensações da vida. Mas toda vez que tento explicar esse sentimento, a maior sensação que tenho é a de que Fellini via a humanidade como nuvens.

terça-feira, 3 de junho de 2008

A CRÔNICA E SUA POETICIDADE: um mini-estudo

Para que vieste
Na minha janela
Meter o nariz?
Se foi por um verso
Não sou mais poeta
Ando tão feliz!
Se é para uma prosa
Não sou Anchieta
Nem venho de Assis.

Deixa-te de histórias
Some-te daqui!
Vinicius de Moraes, A um passarinho

A crônica tal como se conhece hoje é um fenômeno literário moderno, isto é, começou a ser praticada após o surgimento da imprensa, publicada em jornais e destinada ao um público específico de seu respectivo veículo. (SÁ, 2001, p. 7).

Por ser publicada em jornal, seu texto é trabalhado num espaço limitado, o que leva o autor a buscar uma economia nas palavras e a exercitar uma condensação semelhante ao que se faz no conto, algo muito próximo da poesia.

Essa poeticidade que aproxima a crônica da poesia não se explica apenas pela condensação, mas principalmente pela nova concepção do criar poético que os poetas adotaram na modernidade, utilizando como material a banalidade da vida, as coisas corriqueiras, os elementos retirados do cotidiano.

Na conduta clássica, por exemplo, era impossível um poeta fazer versos como os da epígrafe, A um passarinho, de Vinicius de Moraes, e ser levado a sério. O que seria considerado de mau gosto, a lírica moderna transformou em conteúdo primoroso para se elaborar uma poesia carregada de ironia, humor e dramaticidade. De igual modo, a crônica apresenta esses elementos com muita competência.

Segundo Afrânio Coutinho, a palavra ‘crônica’ apareceu no meio literário como registro de fatos em ordem cronológica, daí sua origem etimológica (‘khronos’ = tempo).

“Foi o feitio que assumiu a historiografia particularmente na Idade Média e no Renascimento, em todas as partes da Europa, a princípio em latim e depois nas diversas línguas vulgares, inclusive o português, em que deu verdadeiras obras-primas.” (COUTINHO, 1978, p. 80)

É nesse sentido que Pero Vaz de Caminha é considerado o primeiro cronista em língua portuguesa, ao escrever uma carta ao rei D. Manuel, relatando o que Cabral e seus homens encontraram nas terras que haviam descoberto, a saber, o Brasil.

A Bagagem do Viajante

A crônica de hoje é um gênero literário de grande complexidade, cuja proximidade com a linguagem jornalística é apenas aparente, por usar um vocabulário entre o coloquial e o erudito. O que não é demérito. Como já foi dito, a poesia moderna também faz isso.

Segundo Coutinho, não importa à crônica o assunto – embora ela prefira os fatos corriqueiros –, mas sim o jeito de falar desse assunto, o estilo do autor. O que interessa ao cronista é “a finura e argúcia na apreciação, a graça na análise de fatos miúdos e sem importância” (1978, p. 81).


É com essa graça e com a argúcia de um fino observador, por exemplo, que o escritor português José Saramago escreve suas crônicas. Para demonstrar a poeticidade da crônica, vamos usar o texto de Saramago, Elogio da couve portuguesa, retirado de A Bagagem do Viajante.

O livro traz uma série de crônicas que apresentam o universo de condensador do autor, em que o lirismo está presente de forma acentuada, porque reduzido no espaço, na economia de palavras que é a característica das narrativas curtas, ou breves.

Em Elogio da couve portuguesa, Saramago fala de uma couve portuguesa que fora plantada na Austrália e chegava a uma altura de 2,4 metros quando foi anunciada. Ele então pega essa imagem e a costura numa série de comparações patrióticas, como as conquistas ultramares dos séculos XV e XVI. A crônica começa assim: “A notícia correu o país inteiro, provocando o frémito das grandes ocasiões patrióticas” (2006, p. 47).

Após dizer do que se trata, o cronista observa que a couve cresceu em condições adversas, em meio a cangurus e ameaçada por tribos primitivas. E assim ele cria uma situação de humor e ironia, ao lembrar as adversidades com que seus antepassados viajaram e colonizaram a América, a África e a Ásia.

A ironia fica por conta de os portugueses de hoje não serem mais potência, e ainda assim o autor comparar a couve com as grandes conquistas.

O humor também vai por esse caminho, ou seja, as conquistas que antes eram feitas por homens corajosos, destemidos, que enfrentavam o mar bravio, guerreiros perigosíssimos, chuvas torrenciais, agora é feita por um único homem e sua couve, que enfrentou cangurus, clima adverso e tribos perigosas.

Mais do que isso, a couve foi além, conquistou o solo da Austrália, lugar aonde os bravos portugueses nem sonharam em chegar.

Saramago é mais corrosivo ainda, ao lembrar de Camões, o poeta que cantou os feitos heróicos de seus antepassados. Ele coloca num paralelo a situação de Camões e a sua própria, sugerindo – mais uma vez o humor e a ironia – que coube a ele, Saramago, cantar o heroísmo do homem (já um senhor, de poucas forças) e a planta.

Se por um lado, ele pega um fato banal, do cotidiano mais rasteiro, a notícia longínqua de uma couve portuguesa que cresceu demais em solo estrangeiro, por outro ele eleva essa planta a patamares incomensuráveis, comparando-a com as conquistas dos maiores portugueses da história. A couve, ao subir tanto, ultrapassa as aspirações de um Portugal já murcho, que não tem muita significância na Comunidade Européia.

Mas a altura da couve também atinge o cronista. É irônico o fato de uma couve crescer tanto a ponto de ter mais estatura do que o autor. Quem está mais alto vê melhor. A couve, portanto, venceu o romancista português, porque, além de ser mais alta que ele, vê mais longe, conquistou terras longínquas, até mesmo mais distantes do que aquelas colonizadas pelos heróis do passado.

Resta apenas a Saramago ser poeta e registrar os feitos do vegetal e seu dono. Mas, como ele não se sente melhor do que Camões, se encolhe e admite a derrota, numa bela finalização:

“Propunha-me eu fazer o elogio da couve portuguesa e vai-se a ver saiu isto: uma dor no coração, uma sensação de ser folha migada, uma dura e pesada tristeza” (idem, p. 48).

A prosa também mergulha no poético

A poeticidade desse texto está na junção de três imagens fundamentais, que surgem como metáforas e comparações: a da couve, a dos navegadores e a de Camões. As duas últimas são grandiosas na história; a primeira é de um cotidiano que beira ao ínfimo, mas que aqui se faz grande.

Os fios das imagens trabalhadas no texto são ligados à imagem do próprio cronista, numa comparação que o vence, no propósito da crônica, mas não na análise, na leitura. Neste caso, o autor demonstra sua grande qualidade.

Para Coutinho, “a crônica é na essência uma forma de arte, arte da palavra, a que se liga forte dose de lirismo” (1978, p. 83). Esse lirismo está presente no texto analisado, revelando a poeticidade da forma.

Do mesmo modo, a poesia moderna também trabalha o cotidiano, se deixando ficar mais próxima do leitor, sem, no entanto, perder sua capacidade de condensação e sugestão.

Embora poesia e crônica tenham se aproximado, principalmente levando em conta os cronistas competentes, isso não significa dizer que foi a poesia moderna que deu subsídios para as narrativas curtas apresentarem um conteúdo poético, condensado.

Segundo Walter Benjamin, pensador alemão das primeiras décadas do século XX, essa característica de condensar o fato narrado, elaborando movimentos e cortes de modo a ser contado com beleza e precisão, sempre existiu nos textos curtos, é uma propriedade dele, como narrativa.

Os caminhos cruzados entre prosa e poesia

Uma das fontes da narrativa breve é o acúmulo de saber, segundo Benjamin. Mas ao narrar, e sabendo muito, o narrador evita explicações. Ele apenas sugere. “Metade da arte narrativa está em evitar explicações”, ensina o pensador alemão (BENJAMIN, 1996, p. 203). É desse modo que o narrador alcança a precisão da crônica ou do conto e expande a capacidade do texto de fazer alusões, sugerir significados.

É assim que, sugerindo nas entrelinhas, “o episódio narrado atinge uma amplitude que não existe na informação” (Idem, p. 203). E é aí também que aprendemos que, embora seja publicada em jornais e esteja, portanto, ligada, pelo menos aparentemente, à linguagem jornalística, a crônica não é jornalismo e sim literatura, é arte, e de um gênero próximo à poesia.

Se em seus romances, já é possível ver as voltas de sua sabedoria, nas crônicas, Saramago demonstra o quão aguçada ela é. É como em alguns momentos da poesia de Carlos Drummond de Andrade, que também era cronista, e cuja obra é apreciada por Saramago.

Drummond era um “poeta com olhos de cronista e um cronista com traços de poeta”, segundo Flora Süssekind (2002, p. 282). O mesmo pode-se falar de Saramago, um romancista e cronista que traz o olhar perscrutador do poeta, que, aliás, ele também é.


BIBLIOGRAFIA:

BENJAMIN, Walter. O narrador – considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Obras Escolhidas I – Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo; Brasiliense, 1996

COUTINHO, Afrânio. Gêneros ensaísticos. In: Notas de Teoria Literária. Rio de Janeiro; Civilização Brasileira, 2ª ed., 1978

FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da Lírica Moderna. São Paulo; Duas Cidades, 1978

MORAES, Vinicius de. A um passarinho. In: Poesia Completa e Prosa – Volume Único, p. 201. Rio de Janeiro; Nova Aguilar, 1986

PIGLIA, Ricardo. Formas Breves. São Paulo; Companhia das Letras, 2004

SÁ, Jorge de. A Crônica. São Paulo; Ática, 6ª ed., 2001

SARAMAGO, José. Elogio da couve Portuguesa. In: A Bagagem do Viajante. São Paulo; Companhia das Letras, 2006
SÜSSEKIND, Flora. Um poeta invade a crônica. In: Papéis Colados. Rio de Janeiro; UFRJ, 2ª ed., 2002

domingo, 1 de junho de 2008

A SOLIDÃO DOS OUTROS I: Uma tangente na alma do próximo


“É impossível penetrar a solidão de alguém”, diz o escritor norte-americano Paul Auster, no começo de seu livro A invenção da solidão (ou O inventor da solidão, conforme a editora). O que não se consegue, ou não se pode fazer na vida real, faz-se na arte. E sendo arte a literatura, Auster a utiliza para escarafunchar a solidão que lhe é mais cara, a de seu pai.

O escritor fala desse deslocamento de alma de uma forma bem característica em suas obras. Ele escreve tudo transformando realidade em ficção e ficção em realidade. Nesse livro em particular, o autor entrelaça histórias de sua família com narrações da bíblia e fatos inventados.

Auster atrela a idéia de solidão ao sentimento judaico; fala de Jonas, personagem bíblico que foi engolido por uma baleia, ficando muitos dias no ventre do cetáceo (a solidão mor), fala de Anne Frank, menina judia que escreveu um diário enquanto se escondia dos nazistas e depois morreu, aos quinze anos, no campo de concentração.

Contudo, o que ele quer mesmo é penetrar a solidão vista no pai muito nitidamente, mas que Paul não podia alcançá-la para compreendê-la. Escreve também para exorcizar essa imagem angustiante que tinha do velho. Mas, será mesmo seu pai? Enfim.

O livro se divide em três partes. A primeira descreve o pai pelo que não disse, pelo que não fez, por sua ausência, mudez e solitude. Não dá para saber até que ponto é verdadeiro o que escreve, nem isso interessa, uma vez que o que importa aqui é a arquitetura da solidão.

De acordo com o escritor, seu pai – filho de imigrantes judeus na América do começo do século XX – era um homem marcado pelo estigma de solitário. Tudo que fazia era voltado para seus próprios interesses. Não dava atenção para a família, não dava atenção para ninguém.

Para o filho, era raro um momento de distração junto com o senhor Auster; Por outro lado, Paul revela a humanidade escondida de seu pai, e tenta explicar o motivo pelo qual o velho Auster fazia de tudo para ser invisível.

Todo mundo tem um motivo para ser alegre, ou triste, ou desencanado, ou louco, ou cheio de amigos, ou completamente só. E neste caso, mesmo que haja gente ao redor, ainda que trabalhe na 25 de Março, em São Paulo, o sujeito solitário é o mesmo.

O pai de Paul tinha um motivo muito especial, segundo o escritor, para se afundar na solidão. Já adulto, ele descobriu que o velho Auster, quando criança, ficara órfão paterno. Sua mãe matara seu pai – o avô do escritor – dando-lhe um tiro no peito. O moleque crescera com a morbidez na alma.

Se não se pode penetrar a solidão do outro, pode-se fazer ao menos um esforço para tangenciar esse círculo. Pode-se, tal como uma reta, riscar a linha do diâmetro dessa solitude.

Ao escrever, Paul quis fazer isso. Revelou o passado de seu genitor por meio de cartas, documentos e entrevistas com familiares. Tentou refazer a imagem que ele mesmo tinha do próprio pai, um homem distante e negligente, para torná-lo mais compreensível, nos limites de sua humanidade.