domingo, 31 de agosto de 2008

AS IMAGENS DE AFRODITE: exposição de uma deusa na história da arte

Vendo as pinturas que representam Afrodite (Vênus, em latim), sentimos a força de uma deusa fascinante, certamente porque é a senhora do amor, e em nosso imaginário, não há nada mais belo. Mas antes de tudo, ela é a deusa da beleza, e não há nada mais apaixonante do que a imagem do belo.

As imagens que se seguem retirei do livro de Wendy Becktt (1930 - ), História da pintura. São cinco quadros que narram a trajetória de Afrodite nas artes visuais, de certa forma. Embora haja mais pinturas da deusa que não entraram nesse livro, essas são as figuras mais representativas, porque cada uma delas capta um momento.

A leitura de Becktt sobre cada peça é um deleite, é de quem entende, é uma aula.

O nascimento de Vênus

A eterna inocência paira, ou chega, em meio à tristeza

Este é o quadro mais célebre dos que representam a deusa: O nascimento de Vênus. Pintado no período da Primeira Renascença por Sandro Botticelli (1444 - 1510), entre 1485 e 1486, mede 175cmx280.

O que vejo nesta pintura é uma eterna inocência, em meio a uma tristeza cuja razão nem sei. Mas Beckett tem muito a dizer sobre as figuras que recebem Vênus saindo do mar, as árvores ao fundo e a concha de onde ela sai.

Da concha e da criação

“Botticelli retrata Vênus ao primeiríssimo sinal de ação, com uma bela e complexa série de flexões e voltas, quando a deusa está para sair da gigantesca concha dourada de vieira. Vênus foi concebida quando o titã Crono castrou o próprio pai, o deus Urano; os genitais cortados caíram no mar e o fertilizaram. Aqui, a bem dizer, não temos Vênus quando nasceu das ondas, mas sim o momento em que, levada pela concha, ela chega a Pafo, em Chipre.”

Zéfiro e Clóris, à esquerda

“Com os membros entrelaçados, Zéfiro e Clóris voam como entidade dual: de faces coradas, Zéfiro (do grego zéphyros, ‘vento oeste’) sopra vigorosamente enquanto a bela Clóris exala o hálito quente que leva Vênus para a terra firme. À volta deles, chovem rosas, que, segundo a lenda, surgiram no nascimento da deusa. Cada rosa tem um coração dourado.”

A ninfa, à direita

“Essa ninfa pode muito bem ser uma das três Horas, as deusas gregas das estações que eram acompanhantes de Vênus. Tanto o seu traje suntuoso quanto a linda capa que ela estende para Vênus são bordados com margaridas vermelhas e brancas, prímulas amarelas e centáureas azuis – todas flores primaveris, apropriadas ao tema do nascimento.”

As árvores

“As árvores são parte de um laranjal em flor (correspondente ao sagrado jardim das Hespérides nos mitos gregos), e cada uma das pequenas florescências brancas recebeu um toque dourado. O ouro é usado por toda a pintura, o que acentua o papel dela como objeto precioso e reverbera a condição divina de Vênus. As folhas, verde-escuras, têm pecíolos e contornos dourados, e os troncos são realçados com linhas diagonais curtas e, também, douradas.”

Para fechar a leitura de O nascimento de Vênus, Beckett vai ao ponto crucial da relação entre amor e alma:

“Em O nascimento de Vênus, esse desejo veemente, essa tristeza obsessivamente intangível, fica ainda mais visível no rosto adorável da deusa, trazida pelos ventos a nossa costa escura, onde vestes suntuosas estão prontas a cobrir-lhe o corpo harmonioso e nu. A pintura afirma que não podemos contemplar o amor despido; somos demasiado fracos, talvez demasiado conspurcados, para suportar a beleza.”

Vênus e Adonis
A deusa suplica, e até Cupido chora de pena

A imagem é clara. Afrodite está desesperada. Ela suplica. Sujeita-se à humilhação por um beijo de Adônis. O nome da pintura da Alta Renascença italiana é Vênus e Adonis, pintada em 1560, por Ticiano (1488 - 1576).

De acordo com a mitologia grega, Adonis é fruto de um incesto. Mirra, sua mãe, era muito bonita e queria rivalizar com Afrodite em beleza.

Mas a deusa, perversa, lançou-lhe um feitiço que a fez se apaixonar pelo próprio pai, Téias, o rei da Síria, que foi seduzido e acabou tendo um caso de amor com a filha.

Ao descobrir a verdade, Téias perseguiu Mirra com a intenção de matá-la. Para protegê-la, os deuses a transformaram em árvore, cuja casca, tempos depois, se abriu para o nascimento de Adonis.

Afrodite ficou admirada com a beleza da criança e, tocada por um profundo sentimento, pegou Adonis e o entregou secretamente a Perséfone que o levou para o Hades, terra dos mortos.

O trato era que depois Perséfone devolveria a criança a Afrodite, o que não aconteceu, porque Perséfone também caiu de amores pela criança.

Para resolver a contenda, Zeus – o deus supremo do Olimpo – decidiu que Adonis ficaria quatro meses com cada uma. Os outros meses, passaria onde quisesse.

Mas, Adonis, já adolescente e cada vez mais belo, ficava os oito meses com Afrodite. É nessa fase de sua vida que Adonis morrerá, e Afrodite sabe disso, diz a ele, mas ele não quer acreditar, jovem que é, e a deusa não pode fazer nada.

Daí a súplica do beijo. Daí a posição de desespero. A pintura capta um momento único em que amor e morte se misturam no olhar suplicante da deusa.

O mito é cheio de fendas que permitem várias interpretações desde o começo. Há duas versões interessantes: a primeira diz que Ártemis, deusa da caça (Diana, em latim), enviou javalis furiosos contra Adonis, durante uma caçada, matando-o, sem que se saiba a razão (mas é bom lembrar que a mãe de Perséfone é Deméter, deusa da fertilidade agrícola, Ceres, em latim); a outra diz que foi Ares, deus da guerra, que matou Adonis por ciúme de Afrodite.

Em todo caso, a pedido da deusa do amor, Zeus transformou Adonis em anêmola, flor da primavera, e onde seu corpo foi estraçalhado criou-se um belo jardim.

Segundo Beckett, “são os tons trêmulos que tornam tão maravilhoso o Ticiano tardio, a beleza tenra e bruxuleante da carne. Vênus mostra-nos as magníficas costas e nádegas, sedutoramente arredondadas, que prometem muito. Adônis é uma contraparte rija e viril à maciez de Vênus. O cabelo arrumado da deusa denota deliberação – não se trata de nenhuma dama desgrenhada em sua alcova. Aliás, os dois dormiram ao ar livre, debaixo de um céu inquietante. Os grandes sabujos, mais sensatos que o dono, percebem algo errado, e mesmo Cupido chora de pena.”

Alegoria com Vênus e Cupido
Pintado em 1545, o quadro faz referência à sífilis

Nesta pintura de 1545, feita por Bronzino (1503 - 1572), sob o título de Alegoria com Vênus e Cupido, a deusa aparece com ar libidinoso, beijando Eros com os lábios entreabertos. Há muitas figuras ao redor, forçando uma rica leitura simbólica. Mas a leitora aqui é sempre Beckett, e ela cita outro especialista para interpretar o quadro:

“Alguns acharam que se tratava de uma alegoria do incesto, inerentemente pervertida. Mas, em 1986, um médico propôs uma explicação muitíssimo plausível, afirmando que a pintura era uma referência à sífilis. A figura atormentada à esquerda é uma ilustração intrincada na qual abundam os sintomas clínicos da doença e um ou dois efeitos colaterais dos tratamentos usados no século XVI. Segundo essa hipótese, o amor ilícito é ajudado pelo Engano, que oferece um favo de mel. Uma criança, que representa os logrados, corre para desfrutar o prazer. O resultado do abraço ignorante é a sífilis. O Tempo expõe a doença puxando o pano de fundo azul, para revelar a Verdade, que se esconde de Vênus e Cupido.”

Vênus, sátiro e Cupido
As curvas de Afrodite, adormecida, nesta pintura despertam o desejo de qualquer um

Assim como Bronzino, Corregio (1489 - 1534) viveu no período maneirista da Renascença italiana. Foi ele quem pintou Vênus, sátiro e Cupido, entre 1524/1525. Neste quadro, Afrodite aparece lânguida e sensual. É o amor entregue ao farniente, ao prazer da lassidão. As curvas de Afrodite, adormecida, nesta pintura despertam o desejo de qualquer um.

No entanto, diz Beckett:

“Vênus, sátiro e Cupido expressa completa languidez sensual, mas há inocência em sua carnalidade, uma sensação de viver antes que o homem fosse expulso do Éden. Cada corpo reflete individual e diferentemente o luar; as proporções estão erradas, mas de um modo sutil que, por isso mesmo, as torna moralmente ainda mais tranqüilizadoras.”

Vênus consola o Amor
Sua nudez insiste em desviar meu olhar para a concupiscência

É a pintura mais diáfana desta série, de sutis traços harmoniosos, lembrando ternura. O amor é terno, também. Neste quadro pintado por François Boucher (1703 – 1770) em 1751, longe da Renascença, já no final do Barroco francês, Afrodite é representada na condição de mãe.

Apesar de Afrodite continuar bela, e sua nudez insistir em desviar meu olhar para a concupiscência, o que me encanta na pintura é a relação de carinho entre mãe e filho, apontando um profundo laço de intimidade entre os dois.

Para fechar, fiquemos com as palavras de Beckett, certeiras sempre.

“Vênus consola o Amor flutua deliciosamente na tela com uma deusa nua e três bebês também nus. Todos os quatro guardam uma semelhança sobrenatural com o par de pombas corpulentamente emplumadas que vemos aninhando à beira da água. Aqui, nada é real e nada se pretende real. Mas a sensação de prazer com a beleza ideal é bastante verdadeira e transforma a obra em muito mais que simples trivialidade.”

Leia também:

quinta-feira, 21 de agosto de 2008

BIOGRAFIA MÍNIMA: vida de Giordano Bruno é contada em livro recém-publicado nos Estados Unidos

A jornalista norte-americana Joan Acocella escreveu na edição da The New Yorker desta semana (18 a 25 de agosto) uma bela resenha sobre a biografia de Giordano Bruno, que acaba de sair nos Estados Unidos.

Giordano Bruno: Philosopher/Heretic [Giordano Bruno: filósofo e herege, em tradução literal] foi escrito pela historiadora, especializada em Renascença, Ingrid Rowland. Inédito em português, o livro é a primeira biografia do pensador italiano escrita em inglês, segundo Acocella.

A jornalista começa sua resenha dizendo o seguinte:

“Em 1600, o Campo de Fiori de Roma, hoje uma bela praça rodeada de cafés, era uma das áreas de execução da cidade. Na Quarta-Feira de Cinzas daquele ano, Giordano Bruno, um filósofo e ex-padre acusado de heresia pela Inquisição, foi levado até lá e queimado na fogueira.

A data foi cuidadosamente pensada. Quarta-Feira de Cinzas é o primeiro dia de penitências do Cristianismo. Quanto ao ano, o Papa Clemente VIII escolheu 1600 porque era o Jubileu da Igreja – festividade que seria engrandecida com a execução de um herege importante.

Bruno foi para o Campo de execução montado numa mula, o meio de transporte tradicional dos enviados para a morte. (Também era um meio prático. Após anos em prisões da Inquisição, muitos dos condenados não conseguiam andar) Quando chegou e foi amarrado na fogueira, um crucifixo foi sustentado diante de seu rosto.

De acordo com uma testemunha, ele se virou com raiva. Não conseguia falar; havia sido amordaçado com um cabresto de couro. (Alguns dizem que era uma ponta fina de aço cravada em sua língua) Estava atado a uma estaca, e a fogueira acesa. Quando acabou de ser queimado, seus restos foram jogados no rio Tibre.”


Com essa introdução, digna de uma descrição de romance policial best-seller, Acocella passa a falar de como Rowland pintou Giordano Bruno. Em primeiro lugar, o início. Filho de comerciantes, Bruno nasceu em 1548, na pequena Nola, perto de Nápoles, que na época era a quinta maior cidade do mundo.

A formação

Era um garoto solitário e intelectualizado. Aos 14 anos, a família o mandou para Nápoles, para estudar, e aos 17, entrou para o monastério dominicano San Domenico Maggiore, instituição napolitana responsável pela educação dos filhos da nobreza local. Foi lá que ele entendeu como funciona o mundo da classe dominante, além de ter conhecido o filosofia neoplatônica, que mudaria sua maneira de pensar.

Segundo Rowling, Giordano Bruno tinha três personalidades. A primeira era escolástica, com um rígido sistema de construção lógica. A segunda era um personalidade de exaltação poética platônica. E a terceira, “‘uma sombria inteligência vinda da casa de seus pais e das ruas perigosas de Nápoles”.

Em Nápoles, ele morava numa pensão localizada num “aglomerado de casas de pescadores, costureiras, transportadores, lavadeiras, carpinteiros, açougueiros, ferreiros e vendedores de água, que andavam de pés descalços no agradável clima e viviam basicamente de pães e figos.”

Rowland argumenta que as experiências dessa época ensinaram Giordano Bruno importantes habilidades para a sobrevivência. “Talvez essa experiência também tenha sido a fonte daquilo que mais tarde se tornaria sua idéia dominante sobre o universo: pleno e infinito”, escreve a biógrafa.

São essas idéias as principais causas de sua acusação de herege. É bom lembrar que no Brasil, a única obra do filósofo disponível em português é justamente a que fala do universo: Giordano Bruno: acerca do infinito, do universo e dos mundos (publicado por várias editoras).

Entre outras heresias, ele confirmava a teoria copernicana segunda a qual a Terra girava em torno do Sol e não o contrário, como queria a Igreja. História que todos conhecemos.

Autodenominava-se um homem “irritado, insubordinado e complexo, que não se contenta com nada, teimoso feito um velho de 80 anos, arisco feito um cão que levou mil chicotadas.”

Em vez de chicote, Giordano Bruno sentiria a ira santa e o ardor da fogueira inquisitória. Tudo isso por causa de sua inteligência e agudeza de espírito, aliadas ao comportamento subversivo.

Viagens e decepções

Ele se tornou padre aos 24 anos. Aos 27, recebeu um título equivalente ao doutorado em Teologia. Nessa época, apropriou-se de quadros de arte sacra para decorar seu quarto, e também começou a dizer que Jesus não era totalmente divino, utilizando os argumentos de um padre chamado Ário, do século IV, argumentos que ficaram conhecidos como heresia ariana.

É interessante lembrar aqui que, contemporâneo a Giordano Bruno, havia um moleiro italiano, que pregava algo semelhante aos argumentos de Ário. Era Domenico Scandella, o Menocchio, que também foi queimado em 1600 (leia mais).

Voltando a Bruno, em razão de suas atitudes, foi expulso e excomungado pela Igreja. Aproveitou a oportunidade para viajar durante 15 anos pelas cidades de Genebra, Toulouse, Lyon, Paris, Londres, Oxford, Wittenberge, Praga, Helmstedt, Frankfurt, Zurique, Pádua e Veneza. Nunca permanecendo mais de três anos em cada cidade.

Abro aspas aqui para citar o texto de Acocella, que por sua vez também cita a autora do livro, sobre o que aconteceu com Bruno nessas viagens.

“Em todas as cidades de sua viagem, procurava emprego como professor de filosofia. Em alguns lugares, ele arranjava colocação. Em Paris, deu uma série de 30 conferências sobre Lógica e Metafísica. Em outros lugares, tinha menos sorte.

Em Oxford, quando deu uma aula-teste, o público veio abaixo, rindo de seu sotaque e seu jeito napolitano de falar com as mãos. (Ele passou a odiar os ingleses a partir de então. Eles ‘te olham com o nariz empinado’, dizia, ‘riem de você ... peidam em você com os lábios’).

Às vezes, ele mesmo estragava tudo. Durante sua estada em Genebra, publicou um jornal listando 20 erros que um professor do alto escalão havia cometido numa única conferência. Foi processado por difamação e teve de sair da cidade às pressas.”

Ao deixar Genebra, voltou para a Itália, escolhendo logo Roma. Erro fatal. Foi denunciado por um aluno seu e capturado pela Inquisição.

Subversão e coragem

De acordo com a biógrafa, embora não haja muitos dados sobre seu julgamento, há uma história que ilustra bem a subversão e a coragem de Giordano Bruno até o fim. Afinal, é preciso ter coragem para fazer o que fez.

“Ele disse aos inquisidores que se o Papa viesse pessoalmente se certificar de que suas ações eram definitivamente heréticas, ou se o Espírito Santo dissesse que sim, então ele se retrataria. Caso contrário, não.” Não houve resposta, claro, e o filósofo foi queimado na Fogueira Santa, aos 52 anos.

No final da resenha, Acocella avalia o livro de Rowland dizendo:

“Rowland faz o melhor que pode com o material que possui sobre Giordano Bruno, mas tem em mãos um grande problema, pois sabe-se muito pouco sobre a vida dele. Ela não consegue nos dizer muita coisa sobre sua infância, seus ensinamentos, suas amizades, ou sobre seu caráter moral. E quando tem alguma coisa para dizer, geralmente é um conjunto de dados indisciplinados difíceis de se encaixarem no resto da história.”

Mas, nas últimas linhas, a resenhista faz uma ressalva: “O livro tem uma grande e compensativa virtude. Não importa quem tenha sido Giordano Bruno, ele foi uma mente rebelde e extrema, e Rowland soube mostrar isso muito bem.”

Para quem gosta de histórias medievais/renascentistas, envolvendo inteligência rebelde e inquisição, eis aqui uma dica.

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

DEU NA FOLHA DE S. PAULO: Livraria Cultura assina acordo com Google

O jornal Folha de S. Paulo desta quarta-feira (20/08) publicou a seguinte notícia:

"A Livraria Cultura se uniu ao Google para disponibilizar um serviço de "degustação on-line" de livros. O usuário poderá acessar o site www.livrariacultura.com.br e ler trechos de obras literárias, por meio da ferramenta batizada de Google Preview. Segundo a livraria, trata-se da primeira loja do mundo a oferecer o mecanismo, que permitirá acessar o conteúdo dos mais de 1 milhão de livros já digitalizados pela ferramenta do Google."

Fui conferir e, por enquanto, a ferramenta não aparece no site da Livraria Cultura. O que vemos é o de costume, ou seja, a livraria disponibiliza o primeiro capítulo de alguns livros para leitura via Adobe Acrobat Reader (baixar aqui, se não tiver), o que já é uma maravilha. Mas é quase às escuras, porque não há um espaço reservado. O leitor só fica sabendo se coincidir de o livro que está pesquisando especificamente estiver disponível. Leia alguns deles:

António Lobo Antunes:

Eu hei-de amar uma pedra

José Saramago:

As pequenas memórias

As intermitências da morte

Khaled Hosseini:

O caçador de pipas

Marcelo Mirisola:

Fátima fez os pés para mostrar na choperia

Mário Vargas Llosa:

A cidade e os cachorros

Pantaleão e as visitadoras

Milton Hatoum:

Cinzas do Norte

Rubem Fonseca:

Mandrake – a Bíblia e a bengala

Philip Roth:

Complô contra a América

Pierre Bayard:

Como falar dos livros que não lemos?

Yasunari Kawabata:

Contos da palma da mão

domingo, 17 de agosto de 2008

O ENSINAMENTO DO MESTRE CONFÚCIO: a literatura em tempos de China

Confúcio nasceu em 551 a.C. e morreu em 479 a.C. Foi filósofo e professor de muitos alunos brilhantes, que ocuparam cargos importantes na China imperial. Dizem que ele foi um reformador social frustrado porque não conseguia convencer nenhum governante a pôr em prática suas idéias.

Por esta razão, dedicou a vida a repassar seus ensinamentos aos alunos, que difundiram tão profundamente seu modo de pensar a vida espiritual e o mundo prático que até hoje orientais e ocidentais lêem o livro que ele nunca escreveu: Os Analectos.

No começo deste livro, há uma pequena história de como Confúcio respondia ao questionamento de seus discípulos. A um deles, o soldado Tzu Lu, ao pretender estudar com o Mestre, mas ainda na dúvida, Confúcio perguntou qual era sua grande paixão. “Minha espada longa”, respondeu.

Confúcio então sugeriu ao soldado que se ele adicionasse cultura a sua habilidade com a espada se tornaria um homem mais superior.

Tzu Lu respondeu: “Nas colinas do sul está o bambu, reto por natureza, mas flexiona por si mesmo. Se o cortamos e usá-lo, ele vai perfurar até a coraça de um rinoceronte. Do que mais precisamos saber?”

O Mestre treplicou: "Sim, mas se você fizer do bambu uma lança, rebarbá-la e afiá-la bem, não vai penetrar mais fundo?”
Diz a história que Tzu Lu entendeu a lição e, prontamente, se submeteu aos ensinamentos do Mestre.

sábado, 16 de agosto de 2008

CRUZ E SOUSA NO CRIVO DO SÍMBOLO: uma leitura rápida de Violões que choram

Definindo o símbolo

O Simbolismo parte da premissa de que “cada poeta tem uma personalidade única.” Segundo Edmund Wilson, em O castelo de Axel, “é tarefa do poeta descobrir, inventar, a linguagem especial que seja a única capaz de exprimir-lhe a personalidade e as percepções (...), lançando mão de símbolos”, defendendo a idéia de que aquilo que é tão especial só pode ser expresso “através de uma sucessão de palavras, de imagens, que servirão para sugeri-lo ao leitor.”

Neste sentido, o Simbolismo foi uma descoberta valiosa para o poeta catarinense Cruz e Sousa (1861-1898). Sugestão e evocação são duas palavras caras à sua criação poética.

Outras características do movimento é aproximação da indefinição musical, em que os versos não se guiam pela lógica formal, mas sim por um mundo oculto, por um senso de mistério (ver Estética Simbolista, 1984).

Desse modo, as palavras não significam nada, apenas sugerem, estabelecem uma correspondência entre o real das coisas e o mundo espiritual do poeta. É por isso que procedimentos como metáfora, descrição e narração são secundários no Simbolismo.

Em seu famoso texto ‘Teoria das correspondências’, Baudelaire cita Swedenborg (intelectual sueco do século XVIII) como o homem que havia ensinado aos simbolistas que tudo, “forma, movimento, número, cor, perfume, no plano espiritual como no plano natural, é significativo, recíproco, conversível, correspondente.” E sob esse mesmo prisma, Jean Moréas diz: “A poesia simbolista procura revestir a idéia de uma forma sensível” (In: Estética Simbolista).

O crivo do símbolo

Com base nesse acervo demonstrativo, podemos olhar para os poemas de Cruz e Sousa e confirmar os procedimentos da poesia simbolista, ou seja, a sugestão de imagens, a evocação, o efeito sonoro e a policromia, em meio ao mistério que costura um texto poético às raias da incompreensão.

No soneto ‘Cárcere das almas’, por exemplo, tateamos uma dor na escuridão da existência, de alguém que pretende se libertar, que quer alcançar a luz, mas, o que encontra são apenas trevas e silêncio.

É claro que esta prisão, este cárcere como símbolo, estabelece uma correspondência entre o plano espiritual e o plano material, e até podemos ouvir o arrastar das correntes na seqüência das inúmeras palavras com sílabas tremeluzentes:

Presa, trevas, grades, mares, estrelas, natureza, grandeza, grilhões, rasga, etéreo, Pureza, prisões, atroz, funéreo, solitários, graves, chaveiro, abrir-vos, portas, mistérios.

Uma seqüência que angustia e traduz o efeito da dor ampliada para o universo. Aqui não há um grito, mas um gemido. O poeta deus, que grita e se revolta, também tem seu momento de excessivo peso sobre os ombros.

De cordas e lágrimas

Finalmente chegamos a ‘Violões que choram’, poema composto de 36 estrofes de quatro versos decassílabos. Nele, há uma profusão de imagens, sons e odores que constroem um corpo poético e realizam uma perfeita sincronia entre todos os sentidos humanos. O poema foi publicado postumamente no livro Faróis, que o poeta havia revisado antes de morrer.

Trata-se de uma composição que faz jus à definição de poesia simbolista dada por E. Reynaud: “O poema simbólico é aquele, que, evocando através do verso formas estéticas, logicamente ligadas entre si na unidade de um núcleo de composição, tem por objeto a realização do belo” (In: Estética Simbolista).

Em ‘Violões que choram’, Cruz e Sousa não só realizou o belo como também criou uma das imagens mais pungentes da dor do negro em decorrência do racismo, da opressão e da exclusão. Foi um grito de dor e de orgulho ao mesmo tempo.

De acordo com Davi Arrigucci Jr., em Faróis encontra-se o melhor da poesia de Cruz e Sousa, “muito mais madura que a dos Broquéis (...) e liberta da sina parnasiana do soneto” (A noite de Cruz e Sousa. In: Outros achados e perdidos). A julgar por este poema, longo e dinâmico, Arrigucci Jr. tem toda razão.

Da mesma forma como não se pode dizer que o barco bêbado de Rimbaud é metáfora do homem, mas apenas um procedimento que evoca as qualidades humanas numa embarcação à deriva que vai experimentando toda sorte de aventuras, os violões de Cruz e Sousa, não sendo metáfora do negro, sugerem o corpo e a alma do negro, e aí tudo faz sentido.

“Ah! Plangentes violões dormentes, mornos,
soluções ao luar, choros ao vento ...
Tristes perfis, os mais vagos contornos,
bocas murmurejantes de lamento.”

É assim que começa o poema, e – embora Cruz e Sousa não seja tão lido como deveria – é nele que estão os versos que mantêm o nome do poeta lembrado pelas novas gerações: “Vozes veladas, veludosas vozes,/ volúpias dos violões, vozes veladas,/ vagam nos velhos vórtices velozes/ dos ventos, vivas, vãs, vulcanizadas.” O violão, como o barco de Rimbaud, também faz sua excursão, e corre pela fauna humana de excluídos, que são seus diletantes.

A estética da exclusão

No final do século XIX, época da composição deste poema, o violão ainda era um instrumento marginalizado. Em 1915, Lima Barreto, outro negro talentoso que viveu à margem da sociedade e retratou bem a exclusão do negro em suas obras, registrou a situação do violão em seu Triste fim de Policarpo Quaresma, cuja história foi ambientada no governo do Marechal Floriano Peixoto, que durou de 1891 a 1894.

No começo do romance, um diálogo entre Policarpo e sua irmã registra a marginalização do violão e de quem o tocava, quando o protagonista anuncia que um certo Ricardo jantaria com eles.

“Um homem de idade, com posição, respeitável, como você é, andar metido com esse seresteiro (...), não é bonito!”, diz a irmã. “Mas você está muito enganada, mana. É preconceito supor-se que todo homem que toca violão é um desclassificado”, retruca o Major Quaresma.

São justamente os desclassificados que aparecem como os diletantes do violão no poema de Cruz e Sousa: “Ébrios antigos, vagabundos velhos,/ torvos despojos da miséria humana,/ (...) malditos, réus e suicidas”.

Mas é um corpo só, a perfazer o caminho chorando, soluçando, em meio à beleza, oscilando na tristeza de se saber belo, porém nulo, ignorado, desprezado.

Eis aqui um grito nivelado pelo humano, um hino à dor marcado pelos traços do homem segregado, como “ilhas de degredo atroz”.

A exemplo de ‘Violões que choram’, a maioria dos poemas de Faróis reflete o espaço noturno, como se os versos servissem para jogar luz no caminho do leitor. E ‘Violões’ esbanja luz.

O poema todo é um campo luminoso, que traz consigo a “lua cheia”, as “estrelas mágicas” e um rastro de cores e sons que preenchem toda a noite. É um poema sinestésico, em que o poeta grita com o corpo todo, como um violão que chora, que grita luz.

O poema


Violões que choram

“Ah! Plangentes violões dormentes, mornos,
soluções ao luar, choros ao vento ...
Tristes perfis, os mais vagos contornos,
bocas murmurejantes de lamento.

Noites de além, remotas, que eu recordo,
noites da solidão, noites remotas
que nos azuis da Fantasia bordo,
vou constelando de visões ignotas.

Sutis palpitações à luz da lua,
anseio dos momentos mais saudosos,
quando lá choram na deserta rua
as cordas vivas dos violões chorosos.

Quando os sons dos violões vão soluçando,
quando os sons dos violões nas cordas gemem,
e vão dilacerando e deliciando,
rasgando as almas que nas sombras tremem.

Harmonias que pungem, que laceram,
dedos nervosos e ágeis que percorrem
cordas e um mundo de dolências geram,
gemidos, prantos, que no espaço morrem ...

E sons soturnos, suspiradas mágoas,
mágoas amargas e melancolias,
no sussurro monótono das águas,
noturnamente, entre ramagens frias.

Vozes veladas, veludosas vozes
volúpias dos violões, vozes veladas,
vagam nos velhos vórtices velozes
dos ventos, vivas, vãs, vulcanizadas.

Tudo nas cordas dos violões ecoa
e vibra e se contorce no ar, convulso ...
Tudo na noite, tudo clama e voa
sob a febril agitação de um pulso.

Que esses violões nevoentos e tristonhos
são ilhas de degredo atroz, funéreo,
para onde vão, fatigadas do sonho,
almas que se abismaram no mistério.

Sons perdidos, nostálgicos, secretos,
finas, diluídas, vaporosas brumas,
longo desolamento dos inquietos
navios a vagar à flor de espumas.

Oh! Languidez, languidez infinita,
nebulosas de sons e de queixumes,
vibrado coração de ânsia esquisita
e de gritos felinos de ciúmes!

Que encantos acres nos vadios rotos
quando em toscos violões, por lentas horas,
vibram, com a graça virgem dos garotos,
um concerto de lágrimas sonoras!

Quando uma voz, em trêmulos, incerta,
palpitando no espaço, ondula, ondeia,
e o canto sobe para a flor deserta
soturna e singular da lua cheia.

Quando as estrelas mágicas florescem,
e no silêncio astral da Imensidade
por lagos encantados adormecem
as pálidas ninféias da Saudade!

Como me embala toda essa pungência,
essas lacerações como me embalam,
como abrem asas brancas de clemência
as harmonias dos violões que falam!

Que graça ideal, amargamente triste,
nos lânguidos bordões plangendo passa ...
Quanta melancolia de anjo existe
nas visões melodiosas dessa graça.

Que céu, que inferno, que profundo inferno,
que outros, que azuis, que lágrimas, que risos,
quanto magoado sentimento eterno
nesses ritmos trêmulos e indecisos ...

Que anelos sexuais de monjas belas
nas ciliciadas carnes tentadoras,
vagando no recôndito das celas,
por entre as ânsias dilaceradoras ...

Quanta plebéia castidade obscura
vegetando e morrendo sobre a lama,
proliferando sobre a lama impura,
como em perpétuos turbilhões de chama.

Que procissão sinistra de caveiras,
de espectros, pelas sombras mortas, mudas ...
Que montanhas de dor, que cordilheiras
de agonias aspérrimas e agudas.

Véus neblinosos, longos véus de viúvas
enclausuradas nos ferais desterros,
errando aos sóis, aos vendavais e às chuvas,
sob abóbadas lúgubres de enterros;

velhinhas quedas e velhinhos quedos,
cegas, cegos, velhinhas e velhinhos,
sepulcros vivos de senis segredos,
eternamente a caminhar sozinhos;

e na expressão de quem se vai sorrindo,
com as mãos bem juntas e com os pés bem juntos
e um lenço preto o queixo comprimindo,
passam todos os lívidos defuntos ...

E como que há histéricos espasmos
na mão que esses violões agita, largos ...
E o som sombrio é feito de sarcasmos
e de sonambulismos e letargos.

Fantasmas de galés de anos profundos
na prisão celular atormentados,
sentindo nos violões os velhos mundos
da lembrança fiel de áureos passados;

meigos perfis de tísicos dolentes
que eu vi dentre os violões errar gemendo,
prostituídos de outrora, nas serpentes
dos vícios infernais desfalecendo;

tipos intonsos, esgrouviados, tortos,
das luas tardas sob o beijo níveo,
para os enterros dos seus sonhos mortos
nas queixas dos violões buscando alívio;

corpos frágeis, quebrados, doloridos,
frouxos, dormentes, adormidos, langues
na degenerecênscia dos vencidos
de toda a geração, todos os sangues;

marinheiros que o mar tornou mais fortes,
como que feitos de um poder extremo
para vencer a convulsão das mortes,
dos tempos o temporal supremo;

veteranos de todas as campanhas,
enrugados por fundas cicatrizes,
procuram nos violões horas estranhas,
vagos aromas, cândidos, felizes.

Ébrios antigos, vagabundos velhos,
torvos despojos da miséria humana,
têm nos violões secretos Evangelhos,
toda a Bíblia fatal da dor insana.

Enxovalhados, tábidos palhaços
de carapuças, máscaras e gestos
lentos e lassos, lúbricos, devassos,
lembrando a florescência dos incestos;

todas as ironias suspirantes
que ondulam no ridículo das vidas,
caricaturas tétricas e errantes
dos malditos,dos réus, dos suicidas;

toda essa labiríntica nevrose
das virgens nos românticos enleios;
os ocasos do Amor, toda a clorose
que ocultamente lhes lacera os seios;

toda a mórbida música plebéia
de requebros de faunos e ondas lascivas;
a langue, mole e morna melopéia
das valsas alanceadas, convulsivas;

tudo isso, num grotesco desconforme,
em ais de dor, em contorsões de açoites,
revive nos violões, acorda e dorme

através do luar das meias noites!”

Neste blog, leia também:

CRUZ E SOUSA E A CRÍTICA LITERÁRIA

O CRISTO DE BRONZE: uma leitura do soneto de Cruz e Sousa

sexta-feira, 15 de agosto de 2008

VIAGEM À RODA DO MEU QUARTO: livro que influenciou Machado de Assis



“Que viaje à roda do seu quarto quem está à beira dos Alpes, de inverno, em Turim, que é quase tão frio como São Petersburgo – entende-se. Mas com este clima, com este ar que Deus nos deu, onde a laranjeira cresce na horta, e o mato é de murta, o próprio Xavier de Maistre, que aqui escrevesse, ao menos ia até o quintal”.

A declaração em tom de ironia e chiste é do poeta português Almeida Garret (1799 – 1854) no livro de prosa Viagem na minha terra, publicado em 1846. Ele riu de Xavier de Maistre (1763 - 1852), autor de Viagem à roda de meu quarto, mas sabia que o escritor francês era melhor e mais influente que ele. Pelo menos deveria saber.

Com seu pequeno romance, Maistre influenciou muita gente boa, como Machado de Assis, cujo Brás Cubas faz questão de pagar a dívida, em nome de seu criador, citando o mestre francês na apresentação de Memórias Póstumas, onde aparece também Laurence Sterne (1713-1842).

Para quem ainda não leu e não quer seguir o conselho de Pierre Bayard, eis uma boa dica. A Estação Liberdade acaba de lançar a segunda edição do livro de Maistre, não trazendo nada de novo, mas tirando da lista de esgotados um belo romance.

Viagem à roda de meu quarto é gostoso de ler. O narrador mantém sempre um riso por trás das letras. Trata-se de um gênero romanesco chamado por Northrop Frye de sátira menipéia, na qual também se encaixam Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado, e A vida e as opiniões do cavalheiro Tristam Shandy, de Sterne.

Xavier de Maistre era filho de uma família nobre de origem francesa, que vivia em Savóia, região que mais tarde foi anexada à França. Era o irmão mais jovem de Joseph de Maistre (1754 – 1821), diplomata e influente pensador da época, que gostava de escrever livros polêmicos, segundo dizem.

Mas a razão de Joseph ser citado aqui é que Xavier tinha um grande respeito pelo irmão, que pagou a primeira edição de Viagem à roda do meu quarto, publicado em 1794.

Reza a lenda que Maistre escreveu o livro todo numa cela, em Turim (daí a ironia de Garret), preso em conseqüência de um duelo. Tinha formação militar, tendo chegado às altas patentes, e, pelo visto, era um brigão.

Trechos:

“Nas longas noites de inverno, é algumas vezes agradável e sempre prudente nela nos recostar-mos indolentemente, longe do fragor das assembléias numerosas. — Uma boa lareira, livros, penas; quantos recursos contra o tédio! E que prazer, também, esquecer os livros e as penas para atiçar o fogo, entregando-se a alguma doce meditação, ou compondo umas rimas para alegrar os amigos! As horas então deslizam sobre nós, e caem em silêncio na eternidade, sem nos fazer sentir a sua triste passagem.”

...

“Percebi, por diversas observações, que o homem é composto de uma alma e de uma besta. — Estes dois seres são absolutamente distintos, mas de tal modo estão encaixados um no outro, ou um sobre o outro, que é preciso que a alma tenha uma certa superioridade sobre a besta para estar em condição de distinguir-se.”


OBS: Sobre esta passagem, devo dizer que muitas vezes o homem deixa escapar sua alma e a besta toma conta de todo o seu ser.

...

“Não, o meu amigo não entrou no nada; qualquer que seja a barreira que nos separe, hei de tornar a vê-lo. Não é num silogismo que eu fundo a minha esperança — o vôo de um inseto que atravessa os ares basta para me persuadir; e muitas vezes o aspecto do campo, o perfume dos ares, e não sei que encanto derramado em torno de mim, elevam de tal modo os meus pensamentos que uma prova invencível da imortalidade entra com violência na minha alma e a ocupa inteira.”

...

“Éramos felizes pelos nossos erros — e agora: Ah! Já não é nada disso! Fomos obrigados a ler, como os outros, no coração humano; e a verdade, caindo no meio de nós como uma bomba, destruiu para sempre o palácio encantado da ilusão.”

segunda-feira, 11 de agosto de 2008

CONTOS ERÓTICOS: a literatura se despe aos poucos


O grande contista mineiro, Luiz Vilela, lançou agora em 2008 um extraordinário livro de contos eróticos. O autor sempre trabalhou a temática do erotismo em sua obra, mas em Contos Eróticos (Editora Leitura, 143 p., compre aqui) concentram-se 20 histórias de puro deleite, elogiando Eros.

Na literatura, a forma de narrar ou expor um conteúdo também se coloca como erotismo. O texto literário é uma insinuação, cujo corpo se apresenta na obliqüidade e na ambigüidade. E neste caso, por se tratar de contos eróticos, eles vêm como strippers.

A maestria de Vilela em contar um conto, já conhecida de todos, autor premiado, está presente neste segmento, que é visto sempre de esguelha, justamente por ser difícil tratá-lo sem cair na vulgaridade.

Mas aqui, o que se vê é uma literatura de fino trato, cuja prosa se revela aos poucos, se insinuando, até que se mostra por completo, pondo-se nua diante do leitor, sem ser explícita, sem ser vulgar, repito. No despir do texto, há sempre uma surpresa, um espanto.

Os contos desnudam vários aspectos da sexualidade, como o desejo, o íntimo da personagem numa sondagem libidinosa. Às vezes, a narrativa revela situações de sensualidade. Às vezes, é o diálogo que cria uma tensão voluptuosa.

Chamo a atenção para duas variações e uma fixação. A ambientação dos contos varia, situando-se em escolas (a maioria deles), seio familiar, bar, igreja, entre outros espaços. Essas explorações trazem à tona justamente os lugares usuais de onde os desejos são despertados.

Outra variação é a da temática: o homoerotismo, feminino e masculino, a puberdade, o desejo reprimido, a brutalidade do desejo, a morte, o voyeurismo e os delicados desvios de conduta, como a zoofilia erótica, praticada por adolescentes masculinos em sua iniciação sexual, comportamento típico dos garotos da zona rural (tema tratado em apenas um conto, que prima pela comicidade do desfecho).

Já a fixação é absolutamente certeira do ponto de vista conceitual. Trata-se da presença da criança e do adolescente na maioria dos contos.

É bom lembrar que o autor não explora a pornografia, nem advoga pela pedofilia. O fato é que o despertar do desejo, a curiosidade – a introdução à sexualidade – está nessa fase da vida, o que, muitas vezes, desperta o desejo em si e nos outros, tanto no que diz respeito aos desvios quanto no tocante ao processo de amadurecimento.

O erotismo provoca o desejo, trabalha o desejo, evoca o desejo. A palavra vem de Eros, o deus do amor, um deus-menino que traz em sua aljava um turbilhão de flechas que ele usa em suas peraltices para acertar mortais e fazê-los sofrer a febre do amor.

O conceito do amor em Eros é marcado pela irresponsabilidade e também pela jovialidade, pela imaturidade, portanto. É onde o desejo pulula e a sensualidade está sempre à flor da pele.

Em Contos Eróticos, Luiz Vilela soube trabalhar bem tanto as sensações táteis do desejo quanto suas insinuações, o desejo reprimido pelas convenções sociais, que, diga-se de passagem, são necessárias, para que não mergulhemos, nem afoguemos os outros, na animalidade egoísta do sexo absoluto.

Trechos:

Triste

“Aconteceu num segundo: ela debruçou-se sobre a carteira, ele olhou para trás – e então passou a mão nos seios dela, que recuou bruscamente, gritando ‘descarado! descarado!’

Não sabia direito o que acontecera depois; sentira o rosto pegando fogo, como no dia em que bebera escondido a pinga do avô, tudo foi ficando cinzento e sumindo: a voz de Dona Yara sumiu, a carteira sumiu, a classe sumiu.”


...

A moça

“Desceu o zíper atrás, puxou as mangas do vestido e observou-o deslizar suavemente por sobre os seios; depois acabou de empurrá-lo até o chão. Observou-se ainda um instante, as tetas aparecendo fora do minúsculo soutien. Tirou-o, e o seios ficaram livres e soltos, em toda a sua exuberância e beleza. Com mais um gesto, ela acabou de ficar nua.

E então, no espelho, naquele corpo de mulher, jovem e belo, duas mãos pousaram sobre os seios, envolvendo-os acariciantes – mas não eram as suas mãos, eram as mãos de outra mulher, mãos macias e quentes e que sabiam acariciar como nenhumas outras. E agora desciam pelas suas ancas, rodeavam as coxas e iam lentamente subindo até a carne ardente e úmida. E já não eram somente as mãos, era também a boca maravilhosa, que percorria todo o seu corpo numa alucinante viagem.

O marido saiu do banheiro. Ela estava de penhoar, debruçada à janela, olhando a cidade iluminada, e então voltou-se:

― Bem, eu estive pensando ... Vamos ficar no Rio mesmo.”

Serviços
Título: Contos eróticos
Autor: Luiz Vilela
Editora: Leitura
Preço: R$ 24,90 (compre)

Leia também:

sábado, 9 de agosto de 2008

BIOGRAFIA MÍNIMA: São Paulo – uma esfinge esfomeada

Vista aérea da Praça da Sé e sua Catedral, próximo ao marco zero da cidade

São Paulo nasceu como uma cidadezinha ordinária na segunda metade do século XVI, mais precisamente no dia 24 de janeiro de 1554, como todos sabemos. Continuou ordinária por muito tempo, pelo menos até o final de século XIX.

A partir de então, com o advento da ferrovia que saía do Porto de Santos e ia até Campinas, passando naturalmente por dentro da futura metrópole, e com a migração de italianos, alemães e outros povos no boom da cultura cafeeira, a cidade foi tomando corpo.

Segundo Roberto Pompeu de Toledo, jornalista que escreveu A capital da solidão, “‘um autor calculou que [São Paulo] tinha, no final do século XVI, 1.500 habitantes e 190 casas’”.

O primeiro censo de âmbito nacional, de 1872, mostrava que São Paulo possuía 31 mil habitantes. Menor que a população de oito cidades, entre elas Cuiabá, com 36 mil. Já no censo de 1890, a capital paulista contava com uma população de 65 mil pessoas.

E aí começa a ampliação vertiginosa: em 1893, já eram 130 mil habitantes, em três anos um crescimento de 100%. Se contarmos só os moradores do município e não da Grande São Paulo, em 2003 eram dez milhões e 500 mil pessoas, ou seja, um aumento de 7.700% em 110 anos. Hoje são 10,9 milhões de pessoas morando aqui.

O cemitério da Vila Formosa, um dos maiores da América Latina, já fez quase dois milhões de enterros. Cerca de 200 corpos são sepultados diariamente na cidade.

As personalidades ilustres da cultura de São Paulo até o fim do século XIX eram meio que acidentais. Padre Anchieta, no seu início; Álvares de Azevedo, que nasceu aqui, depois foi para o Rio, e só voltou para fazer a faculdade de direito e morrer, aos 20 anos de idade.

Castro Alves, o baiano que sentia “o borbulhar dos gênios”, transferiu seu curso de Direito para São Paulo e também figurava entre essas personalidades. De igual modo, fazia parte do grupo Luiz Gama, o negro abolicionista, advogado, poeta e jornalista baiano, que, segundo Raul Pompéia, outro ilustre, “‘havia para ele como que um trono em minha alma’”.

Depois, os ilustres já não eram tão acidentais assim. Em 1922, vieram os agitadores da Semana de Arte Moderna, Mário de Andrade, Graça Aranha, Paulo Prado, um dos que patrocinaram o movimento, e Oswald de Andrade, singular sujeito, criador do Manifesto Antropofágico, que pregava a idéia ímpar de consumir o então projeto de metrópole. Segundo ele, São Paulo era uma cidade feita para ser comida. Era preciso degustá-la.

Tudo isso aconteceu nas décadas de 20 e 30 do século XX. Mas hoje, num fenômeno de inversão escandaloso e obsceno, é São Paulo, a cidade-esfinge, quem devora muita gente, e para tanto basta não decifrar seu enigma, diariamente.

Hoje, com vida própria, sobrecarregada de energia, sentimento, arte, pulsação, solidão, desespero e morte, São Paulo é um monstro que se alimenta de homens. É também a bela que embala os sonhos e fomenta os desejos dos que se mantêm vivos, dos que ainda vivem.

Até hoje, ela é a capital da solidão. Mas essa solitude saiu das ruas e entrou nas pessoas mesmo; está agora alojada na alma, e para espantá-la é preciso ir para as baladas, ou tomar um chopinho em qualquer boteco.


Embora seja melhor ir aos barzinhos da Vila Madalena, onde, certa vez um sujeito me disse: “é o único lugar com vida noturna em São Paulo”. Ou seja, o resto é mesmo solidão, esquecimento, trânsito, morte e aporrinhamento. E a arte? E a arte? É tudo isso. Que maravilha! “E il naufragar m’è dolce in questo mare.”

quinta-feira, 7 de agosto de 2008

A SOLIDÃO DOS OUTROS VII: Fale com ela

Detalhe de cena de Fale com ela, Benigno e Marco com Alicia e Lydia no hospital

Solidão é não se sentir amado, por mais que se tenha amor para dar. Essa premissa está implícita no filme de Pedro Almodóvar, Fale com ela, que fez muito sucesso em 2002. É um filme carregado de paixão nos contornos das relações humanas, na busca de um sentimento perdido.

No fulcro da película giram quatro personagens principais: Benigno (Javier Câmara), Alicia (Leonora Watling), Lydia (Rosario Flores) e Marco (Dario Grandineti, que recentemente fez um filme brasileiro, junto com Helena Ranaldi, Bodas de papel).

Benigno é enfermeiro. Sem pai. Depois de perder a mãe, passou a morar sozinho. Conhece Alicia enquanto ela tem aulas de balé. Quando Alicia sofre um acidente de carro e entra em coma, ele a acompanha dias e noites no hospital, falando com ela.

Marco é jornalista e encontra Lydia pela primeira vez a propósito de uma entrevista que ele quer fazer com ela sobre a fragilidade feminina. Os dois se tornam amantes, mas pouco tempo depois, ela, que é toureira, sofre um acidente na arena. É atropelada por um touro de meia tonelada e entra em coma para meses depois morrer.

No hospital, Benigno e Marco se conhecem e travam uma amizade que marca toda a trama do filme, cujo desfecho coloca os dois homens em planos diferentes e aproxima Marco de Alicia, tecendo uma dramática e lírica relação de encontros e desencontros.

A beleza de Fale com ela está no fato de abordar o amor como resposta à vida e a solidão como ausência da reciprocidade amorosa.

O personagem Benigno é profundo porque sente e deixa transparecer a necessidade da presença do outro para viver. É com o intuito de reanimar Alicia que ele a toca, fala com ela, conta-lhe histórias, e a ama, na esperança de tirá-la do coma e trazê-la de volta à realidade plena das coisas, chegando a cometer o crime de engravidá-la no leito do hospital, inconsciente.

Benigno despejava todo o seu amor no corpo inerte de Alicia, que foi beneficiada com isso, uma vez que não morreu graças a esses cuidados e, certamente, em função também da gravidez. A produção hormonal e a modificação fisiológica de seu corpo a salvaram da morte.

Enquanto isso, Benigno permanecia só. Para continuar vivendo, para não sucumbir diante da solidão, fingia uma reciprocidade do amor que dedicava a Alicia.

É quase impossível sobreviver sem a presença do outro, ainda que esta presença seja apenas um sussurro, um acariciamento no íntimo da consciência adormecida. Eis mais uma premissa do filme.

Fale com ela dá margens a uma interpretação simbólica muito rica. A vida não faz sentido sem o amor. E o amor representado ali é puramente cristão, o amor solidário. É como se estivéssemos ouvindo Cristo falar “amai-vos uns aos outros como eu vos tenho amado”. Benigno é o próprio Cristo, o nome já insinua uma bondade cristã quase religiosa.

Benigno ama Alicia. Mas, trata-se de um amor acima do interesse carnal, apesar do ato sexual. É que ele é profundo e sabe que sem esse sentimento a vida é impossível de ser vivida em profundidade. Alicia morreria – como Lydia – sem a atenção que recebera.

Precisamos do outro para viver. Precisamos do amor do outro, do carinho, da palavra, da presença. É como se disséssemos: tua presença é que me faz viver. Necessito da tua imagem para aperfeiçoar a minha.

Como Cristo, Benigno morreu na solidão dos mártires, na prisão, aonde foi parar por ter engravidado Alicia em coma. O que fizera caracteriza um crime, de fato, mas conceitualmente, a salvar uma vida, sua atitude fora um sacrifício.

Ele se sacrificou. Morreu para salvar uma vida, no mero exercício do amor, e por isso morreu na solidão, se matou, nas grades do desespero calmo de não ter com quem falar, na falta de um amor maior.

A conotação religiosa não é pequena. Almodóvar não falaria da fé, de milagres, em vão. Talvez quisesse dizer que o amor faz milagres, e fez, no caso de Benigno com Alicia. Talvez dissesse que para viver é preciso amar. Como afirma o filósofo francês Vladimir Jankélévitch: “para amar é preciso ser, mas para ser, é preciso antes de tudo amar, pois quem não ama é um simples fantasma.”

Nesse caso, somos quase todos fantasmas. Nossa existência é um fantoche, mais do que isso, um vazio reprodutor da solidão. “Quero falar da solidão”, disse Benigno a Marco, no momento que por certo já não agüentava mais o peso de estar só.

No caso da morte de Benigno, o carrasco não é uma pessoa, mas toda uma cultura preconceituosa, desconfiada e de sentimentos superficiais.

Essa relação do silêncio, por meio da solidão, com a necessidade da palavra, da presença de espírito, é trágica. Há uma ruptura, aliás, várias. O filme é cheio de fendas que fazem nascer uma outra “realidade” a cada momento, como no atropelamento de Alicia, no acidente de Lydia e na gravidez de Alicia em coma.

A vida está entre o silêncio de ainda não se ter nascido e a morte, o retorno ao silêncio absoluto. É uma ruptura, e, portanto, uma tragédia. E o amor, representando a vida, também é uma tragédia. Não o amor em si, mas o fim dele. Marco lembra-se disso, e cita Tom Jobim, dizendo que o fim de todo amor é trágico.

O filme de Almodóvar afirma a relação do cineasta com a cultura brasileira. Além da citação de Jobim, vemos Caetano Veloso surgir numa cena de flashback que elogia a delicadeza e a sensibilidade masculinas.

Nesta cena, Caetano canta Cucurrucucu Paloma, um clássico do cancioneiro mexicano, em ritmo mais lento. Quando o brasileiro termina de cantar, Marco, que chorava durante o show, diz a Lydia: “Este Caetano me há puesto los pelos de punta.”

É verdade que o filme faz um elogio ao amor masculino, mas no fundo o que permanece mesmo é o caráter essencial do sentimento amoroso, ou a mensagem de que somente na condição de ser amante e ser amado é que estamos completos. Sem essa reciprocidade, corremos o risco de mergulharmos no mar profundo de uma solidão irrevogável, a morte em vida.

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

O lirismo e o sarcasmo - Biografia Mínima de Martin Seymour-Smith

Seymour-Smith, comparado a Samuel Johnson por Anthony Burgess

Um homem tenso, febril, raivoso feito um touro, cabisbaixo, feio, antiquado, barbudo e tagarela incontrolável, que raramente deixa alguém ter a palavra.

É assim que Martin Seymour-Smith se autodescrevia, segundo a jornalista Sarah Lyall, no obituário do escritor para o jornal norte-americano The New York Times, em julho de 1998.

É uma imagem caricaturesca de si mesmo, mas revela seu senso de humor. Inteligente, extremamente culto, polêmico e dono de um texto deliciosamente sarcástico, lírico e certeiro, Seymour-Smith lia muito bem em 20 línguas, entre elas, o português.

No Brasil, é conhecido como o autor de Os cem livros que mais influenciaram a humanidade, o único traduzido para o português, uma espécie de compêndio literário que vale pelo estilo e pelas explicações bem argumentadas e vastas, que às vezes devastam.

Entre seus livros mais conhecidos está The new guide to the modern world literature (O novo guia da literatura do mundo moderno), um catatau de 1400 páginas comentando, com muita propriedade, todas as literaturas do mundo.

Também são muito lidos Who’s who in twentieth century literature (Quem é quem na literatura do século XX) e as biografias Robert Graves: his life and work, Thomas Hardy – a biography e Rudyard Kipling – a biography.

O escritor britânico Anthony Burgess (1917 - 1993), autor de Laranja mecânica, o comparava a Samuel Johnson (1709 - 1784), um dos maiores críticos literários da história, justamente pelo largo campo de interesse e o destemor apaixonado de seus julgamentos.

Ele não tinha receio de expressar sua opinião. Em The new guide, diz que o argentino Jorge Luis Borges era um homem supremamente inteligente e original na prosa, mas que sua poesia era inadequada, na melhor das hipóteses, um pastiche menor.

Sobre o colombiano Gabriel García Márquez, diz que o poder de sua escrita vem de sua pálida inocência e que “García Márquez é engraçado, mas nunca gaiato. Pode não ser o maior escritor sul-americano da modernidade, mas ninguém é mais cômico do que ele.” Eis aí uma frase ambígua.

Ainda em The new guide, diz que T. S. Eliot (1888 - 1965), como crítico literário, é grande, mas é um poeta menor. E em Os cem livros que mais influenciaram a humanidade, ele pinta Eliot como “anti-semita e secretamente um fascista, cujos versos não são muito mais do que uma antologia e amálgama do talento de outros homens.”

Filho de uma poeta e um bibliotecário, Seymour-Smith nasceu em 24 de abril de 1928, em Londres. Garoto prodígio, aos 14 anos de idade procurou Robert Graves, que já estava com 47 anos, para discutir as implicações do poema The Legs, que o tocava profundamente.

O poema de Graves começa apontando para uma determinada estrada, que abarca todas as direções, cujo tráfego é feito de pernas, só pernas, sem o resto do corpo, que andam sem parar. O poema imprime um ritmo de longa caminhada, passo a passo, com a determinação de quem vai com a cabeça erguida, mas, na verdade, sem pensar, já que não há cabeça, conforme o trecho abaixo (para ler o poema todo, clique aqui).

“There was this road,
And it led up-hill,
And it led down-hill,
And round and in and out.

And the traffic was legs,
Legs from the knees down,
Coming and going,
Never pausing.

(…)”


De acordo com Robert Nye, no jornal londrino The Independent, também por ocasião da morte do escritor, Seymour-Smith se sentiu tocado pelo poema porque fala “do mérito de se fazer o próprio caminho e resistir a qualquer pressão para se acomodar.” Segundo Nye, este também foi o tipo de conduta que Seymour-Smith soube executar por toda a sua vida, apesar dos altos e baixos. Mas o poema pode dizer também da falta de sensibilidade para se olhar ao redor, e talvez esteja aí as inúmeras discussões entre Graves e Seymour-Smith.

Pela ocasião do encontro, travou-se ali uma amizade que durou até o fim da vida do autor de The Legs, que morreu aos cem anos, em 1985. O entendimento entre os dois era tão bem alinhado que, após se graduar com louvor em Oxford, Seymour-Smith acabou se tornando tutor dos filhos de Graves.

Por sua vez, Graves via em Seymour-Smith um igual, um parceiro poético à sua altura, que compartilhava com ele a paixão por mitologia, magia e a natureza da linguagem. Foi em razão disso que Seymour-Smith ajudou Graves na pesquisa para o livro de teoria do mito poético, A deusa branca, de 1948.

Além de crítico literário, polemista e biógrafo, Seymour-Smith também era poeta e editor. De acordo com um texto biográfico publicado na Wikipedia, ele começou como um dos mais promissores poetas britânicos do Pós-Guerra. Mas não chegou a ser reconhecido por isso.

Entre seus livros de poesia, o mais celebrado, segundo os críticos, foi Reminiscences of Norma, cujos 13 poemas falam do amor sexual em todas as tonalidades de arrebatamento e dor. Em 2005, foram publicados seus Poemas Escolhidos.

Ao todo, escreveu mais de 40 livros e, em meio a sua produção de crítica, biografias e poemas, há um estranho no ninho, seu livro sobre astrologia, The New Astrologer.

Seymour-Smith morreu no dia 1º de julho de 1998, em sua casa, no condado de East Sussex, Inglaterra. Era casado e pai de duas filhas, Charlotte e Miranda. Sua mulher, Janet, faleceu dois meses depois da morte de seu companheiro de quase cinco décadas.

Segundo Nye, Janet era uma espécie de parceira intelectual de Seymour-Smith, e muito da pesquisa para The new guide to the modern world literature deve-se a ela.

Nye também diz que Seymour-Smith trabalhava duro (geralmente por pouco dinheiro), mais do que qualquer outro escritor de sua geração, e a poesia, incluindo escrever e ler poemas, era a essência de seu lar.

No Brasil, dificilmente alguém se interessará em traduzi-lo e publicá-lo. Tudo que será lido dele em português, provavelmente, continuará sendo Os cem livros que mais influenciaram a humanidade. Mas é o suficiente para sentirmos a presença de um espírito extraordinário.

terça-feira, 5 de agosto de 2008

AS REMINISCÊNCIAS DO TRÁGICO: dois livros de Arthur Schnitzler

Novela de Schnitzler em que também nos defrontamos com o elemento do trágico

Arthur Schnitzler, médico e escritor vienense, nasceu em 1862. Escreveu seu primeiro livro (A canção de amor da bailarina) aos 18 anos e aprendeu a andar de bicicleta aos 31. Casou-se aos 41. Publicou sua obra-prima (Aurora) aos 64 e morreu aos 69.

Contemporâneo de Freud, era tão admirado quanto o pai da Psicanálise, senão mais. Seus livros, entre romances, contos e peças de teatro, fizeram muito sucesso em sua época. Freud chegou a escrever para Schnitzler dizendo que não lia seus livros porque lidavam, de maneira diferente, com o mesmo material de sua psicanálise.

Schnitzler era um craque na construção clássica do trágico. Mas hoje seu trabalho mais famoso não é uma tragédia, é Breve Romance de Sonho (1925), de especulação psicológica e sondagem surreal, que deu origem ao filme de Stanley Kubrick, De olhos bem fechados.

Fazer o quê? Não se podem ganhar todas as batalhas. O que importa mesmo é vencer a guerra. Esta Schnitzler venceu. Ah, sim, venceu. Seu teatro até hoje é encenado. Seus contos de amor e de morte ainda são lidos com atenção. Seu valor estético prevalece na contemporaneidade desses primeiros anos de um longo século.

Schnitzler retomava a temática clássica, mas em outra roupagem. Fazia o trágico numa linha nova, em que a burguesia vienense sofria as conseqüências de uma causa errante. Neste sentido, Aurora é um de seus romances mais interessantes.

Em Aurora, um jovem boêmio, perde tudo no pôquer e tem de pagar ao ganhador, caso contrário morrerá. Entra em desespero e recorre ao melhor amigo para pedir empréstimo. Mas este também não tem o dinheiro e recorre ao jogo para ganhar o valor devido.

Ele ganha. Mas não consegue parar, e joga mais, e ganha mais. Só que depois perde. E perde tudo. E se desespera também. Não sabe o que fazer. Não agüenta a pressão da idéia de ter que pagar uma fortuna inteira e se mata.

Eis o trágico. A história é isso, ou tudo isso. Numa lavrada, Schnitzler joga toda a concepção trágica do mundo em nossa consciência. Na tragédia, quem morre ou sofre sanções não é exatamente o culpado, é o inocente, e por isso é trágico. Em Senhorita Else, pequena obra-prima, também nos defrontamos com esse elemento.

Else, de 14 anos, se vê às voltas de uma tarefa sórdida e alheia, incumbida por seus pais. Eles estavam devendo uma pequena fortuna e tinham de pedir dinheiro emprestado. O que fizeram? Recorreram à Else, ordenando-lhe que fosse a um senhor muito rico solicitar o empréstimo, porque já sabiam que o velhote estava de olho na menina.

Ela foi, pediu o dinheiro, e o tal senhor disse que só emprestaria se ela, Else, ficasse nua para ele. A garota se viu numa sinuca de bico, e teve uma idéia, a de ficar nua num baile, na frente de todo mundo.

Se era para se vender e mostrar seu corpo nu, que fosse para todos verem e não apenas um velho escroto. Seu esforço para acompanhar a tamanha exigência pedófila, numa sociedade burguesa do começo do século XX, hipócrita, contraditória, tal como ainda o é, foi além de seus limites e Else cai morta no ato da execução.

A narrativa de Senhoria Else é em primeira pessoa. Nada de extraordinário não fosse o fato de ser narrado no momento exato do acontecimento. A consciência trabalhando, Else externando vontades e repulsas num estágio de consciência pura.

Em A Náusea, de Sartre, isso também acontece, mas não em tempo real. Sucede apenas em registro no diário de Antoine de Roquentin. Neste sentido, Senhorita Else é um marco na narrativa em primeira pessoa, sem dúvida.

Talvez, Memórias do Subsolo, de Dostoievski, seja o precursor desse fluxo de consciência. Mas ainda assim, não alcança a pequena obra de Schnitzler.

Em obras como Aurora e Senhorita Else podemos perceber a eficácia da arte. A literatura não é só um passa-tempo inócuo. É o exercício da consciência em que a reta de nossa vida tangencia o que foi a vida do outro – ciclo realizado – por meio de sua criação.

“Viver é perigoso”, diz Riobaldo, personagem de ficção de Guimarães Rosa. Esse perigo também percebemos no encontro da vida com a arte, no centro da estética, permeando os sentidos.

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

DEU NA FOLHA DE S. PAULO: Vinicius de Moraes é tema de debate e aula-show

O jornal Folha de S. Paulo desta segunda-feira (04/08) publicou a seguinte notícia:

"A cantora Paula Morelenbaum, o músico José Miguel Wisnik e o violonista e articulista da Folha Arthur Nestrovski dão hoje, às 20h, uma aula-show na Casa de Cultura Laura Alvim (av. Vieira Souto, 176, RJ, tel. 0/xx/ 21/2287-2285; grátis; livre). Em São Paulo, a apresentação será amanhã, às 21h, no Sesc Pompéia (r. Clélia, 93, tel. 0/ xx/11/3871-7700; R$ 6 a R$ 12; livre). Na quarta-feira, às 20h, um debate reúne Wisnik, Eucanaã Ferraz, Antonio Cicero e Antonio Carlos Secchin no auditório do Sesc Pompéia."

domingo, 3 de agosto de 2008

PROVÉRBIOS CHINESES: frases de sabedoria milenar



Os provérbios chineses – muitos deles ensinamentos retirados do Tao Te King (Tao Te Ching), atribuído ao sábio Lao-Tse (Lao-Tsu) – têm uma estrutura simples, que às vezes até passam por banalidades e redundâncias. Mas, se repararmos bem, sempre encontraremos ali uma fonte inesgotável de sabedoria.

Recentemente reencontrei um livrinho que está comigo há exatos 20 anos. É uma coletânea de frases da sabedoria chinesa selecionada, traduzida do chinês e organizada pela norte-americana Ellen Kei Hua, traduzida para o português por Paulo Mendes Campos, sob o título Meditações do Kung-Fu e Sabedoria Chinesa Proverbial.

O termo 'kung-fu' aqui não se restringe à luta marcial chinesa, chamada pelos próprios chineses de Wushu. O kung-fu abrange um conjunto de normas do espírito segundo as quais o homem, para ter equilíbrio entre corpo e mente, precisa construir dentro de si mesmo o tempo da habilidade e da perfeição.

Neste pequeno livro de 126 páginas, as palavras permanecem como mantras para a meditação e a reflexão. Servem também como companheiras em passeios e momentos de nada fazer. É certo que os autores de livros de auto-ajuda retiram desta sabedoria estruturas que dão a base de seus conselhos.

Acho que os próprios chineses já não levam muito em conta sua sabedoria milenar, principalmente depois da conquista maoísta. O que não é de se espantar. A China, em sua história, sempre apresentou ciclos de abertura e fechamento político, refletindo também na abertura e no fechamento do espírito.

Exemplo disso foi a total queima de livros ordenada pelo Imperador Huang Ti, ainda no século III a.C, só deixando fora da fogueira, também por ordem sua, o I-Ching. Ele queria ser o primeiro a se registrar na história como estadista. Mas isso é outro assunto. Vamos às frases, que oferecem certa marcação poética:


I
“Um homem violento morrerá de morte violenta. Esta será a essência do ensinamento.”


II
“Quem conhece os outros é sábio. Quem conhece a si mesmo é iluminado.”

III
“Realiza, mas não te engrandeças com o resultado.
Realiza, mas não te envaideças do resultado.
Realiza os teus objetivos, mas não pela violência.
Depois da força chega a perda do poder.”


IV
“Para atingir o alvo da paz perfeita,
esvazia-te de todas as coisas.
Tudo na natureza se coloca diante dos teus olhos.
As dez mil coisas crescem e florescem
e depois regressam à Fonte,
reassumindo a paz perfeita.
É este o caminho da Natureza:
o caminho da Natureza é imutável.

Iluminado é aquele que aprendeu bem isto.
E quem o aprendeu será tolerante;
e, por ser tolerante, conseqüentemente é justo.

Por seres justo, terás um espírito aberto.
Com um espírito aberto, terás um coração aberto.
De coração aberto, procederás com virtude.
De espírito aberto e coração aberto, e com atos virtuosos,
alcançarás o divino.

No divino, serás Uno com o Tao.
Ser Uno com o Tao é ser eterno.
O corpo morrerá
mas o Tao jamais passará.”


V
“Mora perto da terra.
Medita fundo no teu coração.
Trata os outros com gentileza e bondade.
Fala a verdade.
Trabalha com competência.
Calcula com cuidado as tuas ações.

Onde luta não houver,
censura não haverá.”


VI
“Conhecer os outros é sabedoria.
Conhecer a si mesmo é iluminação.

Quem sobrepuja os outros é forte.
Quem sobrepuja a si mesmo é poderoso.

Quem sabe que possui o suficiente, é rico.
Quem fica onde está, perdura.

A perseverança é um atributo da vontade.
Morrer sem ser destruído
é ser eternamente presente.”


VII
“Seguir errado e não mudar de caminho
é definitivamente, por definição, seguir errado.”


VIII
“Abismo entre abismo, à frente, atrás.
Com tal perigo, melhor parar e esperar,
ou cairás lá dentro.
Não faças uma coisa dessas.”


IX
“Aqueles chamados ‘grandes glórias
do mundo’ acontecem num piscar
de olho, e somem.”


X
“Música de alma pode ser ouvida pelo Universo.”

XI
“Que diferença pode haver entre
a chamada vida longa e a chamada vida curta?
Afinal não passa de um momento na
infinitude do tempo.”


XII
“Sonhei que eu era uma borboleta,
a esvoaçar aqui e ali.
Agia somente como borboleta,
Sem ter consciência
de ser um indivíduo.
Depois, dei comigo acordado
outra vez no meu corpo.
Era eu uma pessoa
a sonhar que era uma borboleta?
Ou sou uma borboleta
a sonhar que sou uma pessoa?

Existe uma diferença
entre uma borboleta e uma pessoa.
A transição é chamada
metamorfose das coisas materiais.”


XIII
Vento alto não dura a manhã toda.
Nem chuva repentina dura o dia todo.
Céu e Terra não estão preparados
para fazer coisas que durem para sempre.
Assim, como é possível para o homem?”


XIV
“Conserva os teus poderes.
Sê como o expansivo oceano,
que absorve em quietude
os rios dos sentidos.

Ansiedades esgotam a paz interior:
através delas
águas vitais são desperdiçadas
no solo estéril
das coisas materiais.

Desejo desacertado
é o maior inimigo da felicidade.”


XV
“O homem superior
quando fica só
não sente medo.

Se tem de renunciar ao mundo,
pouco importa.”


XVI
“Se algo existe que não estudaste,
ou se o estudaste, és incapaz de fazê-lo,
não adianta maior polimento;

se há uma pergunta que não fizeste
ou à qual não foste capaz
de dar uma resposta,
não consideres isto uma questão fechada;

se não meditaste sobre um problema,
ou, se ao meditá-lo,
não achaste uma solução,
não julgues que o caso esteja encerrado;

se tentaste fazer uma distinção,
mas não a fizeste com clareza,
não te inundes de satisfação;

se existe um princípio
que não conseguiste
colocar em prática,
não te afrouxes.

Se alguém chega lá com uma tentativa,
tenta dez vezes.
Se outro triunfa com cem tentativas,
tenta mil vezes.

Procedendo desta forma,
mesmo quem for um pouco lento
encontrará a Luz;
mesmo um fraco encontrará energia.”


XVII
“Se a gente não começa
com uma atitude certa,
pouca esperança existe
de dar certo no fim.”


XVIII
“No resplendor do pôr-do-sol,
o homem, ou canta e rende graças,
ou clama e lamenta
a aproximação da velhice.”


XIX
“Podes ocultar algo dos homens:
nada ocultarás dos espíritos.

Se algo existir do qual não queres
que ninguém nada saiba a respeito,
não o faças.

Homem idiota morre de morte idiota.”


XX
“Relembrar é para aqueles
que se esqueceram.

Sabedoria vale mais
que armas de guerra.

Para cada um que sabe, há um que está sabendo mais.”