sábado, 23 de março de 2013

Ulisses (greguices)


Sou como Ulisses. Minha Troia é o trabalho, o espaço entre ônibus (o mar turbulento com todos os ícones da perdição e do cansaço) e deveres. Dentro da redação, os elementos do contrário, do tripalium. É a guerra diária (em surdina?).

Mas não fui eu o fatídico inventor do cavalo, nem o selei, nem o presenteei, tampouco fui eu quem mandou matar o menino (histórias cruzadas). Sou um Ulisses diferente, menos solerte, menos forte, menos sábio e corajoso. Não tenho a proteção da belíssima, sapientíssima, celestíssima e justa Atená. Mas também sou menos cruel.

Minha Ítaca, minha casa e os livros, minha família (e há inclusive uma Penélope [Telêmaco]), minha Ítaca, quisera ser de Homero, apenas, mas são tantas Ítacas. Mister não fugir. Sou como Ulisses, mas diferente dos gregos (será!).

Chico Buarque cantou as mulheres de Atenas. Mas há outras, as de Troia. Helena não era de Troia. Mas Hécuba era de Troia. Cassandra era de Troia. Andrômica (Virgem Nossa Senhora), mulher de Heitor, “o maior dos guerreiros troianos”, era de Troia.

Ulisses itaquense, goianiense, mato-grossense, tocantinense, maranhense, francisquense, natividense, penelopense, ellense, paranaense, sãopaulense, essense, ulissense. Pura literatura. Troia (trabalho). Ítaca (livros em páginas). “Todo homem necessita de um lugar para voltar”. No risco iluminado de meu destino (ou seria escuridão?), não há um coro que chore por mim.

sexta-feira, 22 de março de 2013

Insensatez e posteridade


“Hamlet não é uma obra-prima, é uma tragédia desorganizada que não consegue harmonizar fontes diversas. Por essa razão, tornou-se enigmática e todo mundo continua a se interrogar a seu respeito. Hamlet não é uma obra-prima por suas qualidades literárias; é porque ela resiste a nossas interpretações que se tornou uma obra-prima. Às vezes basta pronunciar palavras insensatas para se passar à posteridade.” Umberto Eco

É bom lembrar que Eco disse isso numa conversa com Jean-Claude Carrière, que está na página 136 de Não contem com o fim do livro. Eco é um piadista de mão cheia. A gente morre de rir (ou seria de ira?) com ele. Eu gosto disso. Acho extremamente saudável esse tipo de aviso. Como quando Gustave Flaubert escreveu: “Que homem teria sido Balzac, se soubesse escrever!”

Ou: “O que há de mais mal construído do que tantas coisas de Rabelais, Cervantes, Molière e Hugo? Mas que murros súbitos! Quanto poder numa só palavra! Quanto a nós, é preciso empilhar pedra sobre pedra para construir nossa pirâmide que não chega a um centésimo das deles, que são feitas de um bloco só.”

Esses caras sabem muito mais do que eu (digo sabem porque para mim estão vivos. Tento dialogar com eles) e por isso, tudo que dizem eu aproveito para alguma coisa de importante. Ainda que seja para negá-los, como no caso da observação de Flaubert (tudo publicado em Cartas exemplares): “Como seríamos sábios, se se conhecessem bem somente cinco ou seis livros.” Pela construção da frase, fica claro que nem ele seguiu essa máxima. Portanto, fica apenas como lembrete de geladeira. Passemos adiante, junto com aquela observação de Rilke em Cartas a um jovem poeta.

quarta-feira, 20 de março de 2013

Linguee lança novos buscadores


O portal de dicionários Linguee lançou hoje um serviço de busca que contém uma disposição rara na internet, a de Português-Francês e Francês-Português. Só por isso já vale o link. Mas acho que o acervo de vocabulário e suas chaves de tradução podem melhorar.

Exemplo é o verbo “foutre” = 'fazer', 'dar', no sentido popular, de um jeito desbocado, como em “je te fous un coup de poing” (Te dou um soco [d’Olim Marote, Ática]), mas também quer dizer 'foder', 'esporrar', e é neste sentido que Rubem Fonseca intitula a primeira parte de seu romance Buffo & Spallanzani, Foutre ton encrier (foda, ou encha de porra teu tinteiro), citando Gustave Flaubert.

Não entro no mérito da discussão sobre o romance porque é mais complexo. No caso da tradução do verbo no dicionário Português-Francês Linguee, este também é pudico, como quase todos os dicionários, o que é ruim para quem quer aprender uma língua sem restrições de vocabulário. Em todo caso, reitero a dica. Linguee pode somar aos nossos esforços de aprendermos cada vez mais.

terça-feira, 19 de março de 2013

Estilo Tardio, de Edward Said, uma dica de leitura



O escritor árabe Edward Said nasceu em Jerusalém, em 1935, e faleceu em 2003, em Nova York, onde morava e lecionava na Universidade de Columbia. Ficou conhecido mundialmente com o livro Orientalismo, que mostra como a imagem do Oriente, principalmente do universo islâmico, foi construída pelo Ocidente.

Homem de muitas amizades e respeitado no meio da alta cultura, costumava brincar que era o último intelectual judeu, porque seguia as pegadas da filosofia de Theodor Adorno, pensador judeu da renomada Escola de Frankfurt. Foi deste que ele pescou o termo ‘estilo tardio’ para criar o conceito trabalhado no livro, que sai agora, postumamente.

Em Estilo tardio (Companhia das Letras, 2009), Said fala dos escritos de grandes autores quando estes estão se aproximando da morte e querem lutar, intimamente, para que o fim da vida não signifique o fim da obra que forjaram. Os textos, alguns inacabados, foram organizados pela viúva do autor, Miriam Said, e analisam poemas do grego Konstantinos Kaváfis, composições de Beethoven, o romance O Leopardo, de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, entre outros.

Até textos de Adorno entram na análise deste livro leve, de exercício intelectual, mas escrito num estilo que também pode ser traduzido como tardio, não só pela incompletude de alguns artigos, mas pela consciência do autor de que também estava no fim da vida.

domingo, 10 de março de 2013

Marco Feliciano, um ícone do autoengano e da aversão



Marco Feliciano (foto - PSC-SP), presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, acusa seus críticos de serem membros da sociedade da desinformação. Já ele mais parece fazer parte de uma sociedade sabedora, e bem informada, de um tipo medieval de intolerância e má fé.

Veste-se de cristão, e com estas vestes se sente no direito de excluir o outro, por ser negro, homossexual, indígena, por não comungar a mesma fé (que aliás ele distorce, usando e abusando de uma duvidosa homilética), por cultivar culturas de matrizes diferentes das suas, por cantar melodias e usar elementos ritualísticos no exercício da fé diferentes dos seus.

É preconceituoso, xenófobo, homofóbico, tacanho, desagregador, megalomaníaco em cima de circo de pulga, ignorante, desconhecedor de mil ramos da linguagem e das nuanças afetivas que servem de liga para a vida em sociedade, um sujeito mesquinho e tapado capaz de dizer nonsenses como este: “Até a palavra homossexual deveria ser abolida do dicionário, já que se nasce homem ou mulher”. É um tipo raro de imbecil que consegue ecoar bobagens voltaicas numa única sentença: “Índio nasce índio, não tem como mudar; negro nasce negro, não tem como mudar, mas quem nasce homossexual pode mudar.”

Ele usa uma espécie de filosofia do desencontro, religião do desgaste para que ele, o pastor, ele, o líder de espíritos mesquinhos ou pouco desenvolvidos, se sobressaia, crie um curral próprio. O homem moderno não precisa disso, não deveria precisar. Mas ele ainda encontra seu gado, suas ovelhas, um rebanho desinformado que cai na sua ladainha.

Marco Feliciano é a infeliz vítima de um autoengano, que quando se sente acuado, como está agora, usa de velhos clichês para se defender, como: "Não sou homofóbico, estou sendo mal interpretado. Peço apenas uma chance. Não fiz mal a ninguém e, se alguém acha que fiz, que me perdoe o mal-entendido."

Está sendo mal interpretado, não. Mal interpreta os códigos humanos. Ou pior, conduz seus guiados a mal interpretarem os códigos humanos, a acharem que há um mundo verdadeiro, que é uniforme e simétrico. Sente-se no direito de ofender o outro, de expurgá-lo, usando a ferramenta democrática da liberdade de expressão, com a falsa premissa de que se temos a liberdade de nos exprimir, então podemos falar qualquer bobagem, podemos falar disparates como “a aids é o câncer gay”.

E quando é contestado pelos ofendidos, se autodenomina uma vítima. A religião parece estar em crise, o que explicaria por que tanta gente de boa fé se deixa levar por sujeitinhos repugnantes como este senhor. Mas, sempre foi assim. O que muda são os tempos.

Para falar só de nosso quintal, a Igreja Católica já cometeu tanta barbaridade em nome de Deus, e agora parece ser a vez do protestantismo, mesmo nós estando em outros tempos. Ou talvez, por não ter a mesma longevidade daquela, este ainda não alcançou suas Cruzadas, seu direito maldito de matar, de criar uma inquisição em cada esquina. Uma lástima. Um cristão que lê a Bíblia, e sabe tirar de lá o alimento da alma e do respeito, não merece isso.