domingo, 1 de abril de 2012

O rabo dela

É impressionante como as pessoas mentem. Há quem diga que a mentira faz parte da convivência social, que, se não fosse por ela, os sorrisos seriam impossíveis, as cortes não suplantariam os cortes, e o amor já era.

Mas nem por isso é preciso aguentar os vilões que se dizem bonzinhos, como lobos humildes, apenas para nos arrancarem até a última migalha de pão, mentindo sempre, mentindo de olhos limpos, olhando direto em nossa cara, enquanto a mão leve corre pela lateral dos acontecimentos pegando todos os dígitos possíveis de nossa renda.

Para nos abrir os olhos, só a literatura. “Mentiram-me. Mentiram-me ontem/ e hoje mentem novamente. Mentem/ de corpo e alma, completamente./ E mentem de maneira tão pungente/ que acho que mentem sinceramente.”

Também acho. São réprobos empedernidos que nos passam a lábia, jocosos homens do poder, enviados lá por nós mesmos, nós, vítimas eternas dos prestidigitadores do voto, eles, construtores de fortunas em cima da inesgotável boa fé. Mentirosos de plantão 24 horas por dia.

“Mentem, sobretudo, impune / mente./ Não mentem tristes. Alegremente/ mentem. Mentem tão nacional / mente/ que acham que mentindo história afora/ vão enganar a morte eterna / mente.”

Mentem. Mentem e calam. Mas suas frases
falam. E desfilam de tal modo nuas
que mesmo um cego pode ver
a verdade em trapos pelas ruas


E a mentira assim desfila por essas passarelas do poder, mais do que pela viela pobre dos homens comuns, desfila assim pelas silenciosas noites de conchavos, mais do que por nossas consciências tão empobrecidas, desfila assim pelas leituras impostas e escritas por homens amedrontados, mais do que pelo viés das mentirinhas de amor.

De todos os delitos, a mentira feita sob medida para enganar multidões é a mais vil, a rainha da escuridão, o cabresto coberto de diamante, a mãe da pobreza, dona de um rabo curto, porém ligeiro, um rabo nervoso que se mexe sensorialmente, pelo tilintar dos cobres.

“Mentem como a careca/ mente ao pente,/ mentem como a dentadura mente ao dente,/ mentem como a carroça à besta em frente,/ mentem como a doença/ ao doente,/ mentem clara / mente/ como o espelho transparente.”

E não há mister. O lance deve ser mínimo e rápido. É preciso um vento forte para derrubar todos os galhos que penduram mentiras, escondidas por entre as folhas e a voragem do poder. Varredura firme, e já, antes que a mentira volte a ser a verdade dura, antes que os mentirosos criem novas mentiras, comprem novas armaduras de sorrisos finos, por trás dos quais a mentira age livremente.

Como sempre fizeram. Só a literatura para nos lembrar das armadilhas da mentira. A literatura impressa, o verso falado, a palavra sem pressa, mas urgente, a palavra cunhada no verbo. Só a literatura deveria mentir, mas é a única que ainda fala a verdade.

Como os versos de Affonso Romano de Sant’Anna, que vieram cortando esse texto.

E assim cada qual
mente industrial? mente,
mente partidária? mente,
mente incivil? mente,
mente tropical? mente,
mente incontinente? mente,
mente hereditária? mente,
mente, mente, mente.
E de tanto mentir tão brava / mente
constroem um país
de mentira
diária / mente

(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente na Tribuna do Planalto, coluna Fora de Órbita, 01/04/2012)