domingo, 25 de fevereiro de 2018

Do que falamos quando falamos de amor


Se fôssemos dividir o amor em categorias, talvez encontrássemos apenas duas delas, distinções absolutas como água e vinho: o amor de que se fala e o amor que sente. Neste caso, o vinho, obviamente, é o amor falado, entusiasmado, como se um deus discursasse pelo amante.

A água, que atravessa barreiras antes intransponíveis, capaz de se espalhar e ocupar todos os cantos, que toma a forma do ser amado, é o amor que se sente, ao mesmo tempo transparente em si mesmo, mas sem jamais deixar-se expressar em palavras, porque aí, já seria literatura, o amor de que se fala. O que se sente é inefável, e no máximo, quando quer dizer alguma coisa, fala por gestos.

Cada um sente o amor que pode. E cada um é seu único interlocutor capaz de compreendê-lo como tal. Na literatura, cada um fala do amor de um jeito, da maneira que sua linguagem consegue articular, e os leitores compreendem a seu modo.

O livro de contos “What We Talk About When We Talk About Love” (“Do Que Falamos Quando Falamos de Amor”), do escritor americano Raymond Carver (1938-1988), é um exemplo cabal da forma literária da figura amorosa, mas é ao mesmo tempo o modo mais fecundo e mergulhado no que se poderia pensar sobre o amor sentido.

Essa capacidade de puxar duas frentes sobre os sentimentos humanos, trazendo o abstrato para o mais perto possível do concreto, é que fez de Carver um dos mais lidos e admirados autores de short stories do final do século 20, e que até hoje causa inquietação nos leitores. Faz isso pela simplicidade no modo de dizer e pela complexidade da coisa dita.

Trunfo

“Do Que Falamos Quando Falamos de Amor” intitula um conto e um livro inteiro de Carver, que traz 17 histórias diversas sobre as coisas que ocorrem entre as pessoas no dia a dia. Sua capacidade de armar uma trama banal – dentro da qual fala-se algo de interesse comum, que também parece banal, mas que no fim das contas sustenta a prosa como uma pilastra seria capaz de sustentar uma estrutura inteira – é o trunfo de sua obra.

A mancha verbal do texto, lendo-a em sua totalidade, deixa no leitor a nítida impressão de que o que vale não é o que está escrito, mas o vazio entre as coisas ditas, o espectro silencioso de algo que está além das palavras, como o amor que se sente, cujo sentido é intrínseco e profundo, tecido no interior das células, forjado em cada uma delas ao modo de ser do ser que ama.

Impulso

Seus contos falam da vida cotidiana, das relações familiares em lares destruídos pela violência de algum modo, ou em ambientes estáveis, mas atravessados pela temática dos embates banais. Neste sentido, Carver vê o amor como uma relação de conflito. Quando fala de amor, fala do homem que espanca a mulher, tenta tocar fogo na casa e vai embora, para mais tarde voltar e pedir perdão, como em “A Serious Talk” (“Um Papo Sério”, tradução livre).

No conto “I Could See the Smallest Things” (“Eu Podia Ver as Menores Coisas”), uma mulher supostamente de meia idade deixa o marido na cama dormindo e vai ao quintal altas horas da noite, de camisola. Lá, ela conversa com o vizinho sobre lesmas. Depois volta para a cama e tira a camisola para dormir ao lado do marido. Só isso, mas o que não foi dito – o que ficou por dizer – é uma vida inteira.

É como se dentro da narrativa houvesse uma mensagem dizendo que o amor não está nas palavras. O amor está encarnado nos gestos e na atmosfera dos laços afetivos, não nas palavras. O que você encontra nelas, quando vê algo apaixonante, é literatura.

A história mais importante desta coletânea, a mais expressiva, talvez seja o próprio conto que empresta o título do livro. Como de praxe na construção do autor, traz uma trama simples, mas contundente. Dois casais de amigos estão na casa de um deles (Mel e Terri). A conversa começa numa tarde agradável de sombra e vento fresco.

Estão bebendo. Os diálogos atravessam o ambiente da casa e se cruzam entre falas e movimentos de corpo para encher o copo, bebericar, ou sinalizar com mãos e braços, sorrisos, algum tipo complementar de raciocínio.

No meio da conversa, Mel começa a falar de amor por alguma razão. Quem está narrando é o outro amigo, Nick (marido da Laura). Terri entra no assunto e diz que seu ex-marido batia nela enquanto dizia que a amava. Mel diz que aquilo não é amor. Terri insiste que do jeito dele (do ex-marido) aquilo é amor, sim.

Veja como Terri defende o sentimento que impulsiona a violência do ex. E de certo modo, em um jogo contraditório de retórica, Terri está defendendo a tese de que só quem ama pode falar de seu próprio amor, e ninguém saberá se é verdadeiro ou não, porque quando ouve, cada um interpreta como quiser.

Claro-escuro

Mel, por sua vez, fala sobre o amor que teve pela ex-mulher também, mas diz que depois a esqueceu e agora ama Terri. E aí entra a sagacidade do autor por meio de Mel, que apresenta um tipo de amor que é ao mesmo tempo físico, porque pode morrer dentro da gente, e ao mesmo tempo abstrato, porque pode permanecer na memória.

Mel defende a ideia de um amor físico que harmoniza, que não cria nem crise nem conflito, e que busca o outro pelo interesse que tem em vê-lo do lado, em senti-lo com as mãos, com os olhos, com o corpo inteiro. Ele cita o caso de um casal de velhinhos vítima de um acidente de carro. No hospital, o velho não consegue ver a velha, e sofre por isso.

Tudo que o velho queria era ver a velha, mesmo de longe, para se sentir bem. “O tipo de amor de que estou falando é. O tipo de amor de que estou falando, você não tenta matar as pessoas”, diz Mel, numa sintaxe própria do cotidiano, linguagem que Carver usa como quem respira. Eis a ambiguidade instalada: amor que não machuca, amor que machuca.

Faz 30 anos que Carver morreu, e 80 que havia nascido. No espaço das cinco décadas que viveu, superou uma trajetória miserável em meio ao álcool, do pai e dele mesmo, para experimentar a glória nos últimos anos de vida.

Ler seus contos ainda é como catar gravetos numa floresta espessa de grandes árvores no fim da tarde. É uma sensação estranha no cômputo da leitura. Do que falamos quando falamos de amor? Falamos de tudo e de nada. Quando o sol estava se pondo, Mel e Terri saíram para jantar com o casal amigo, e a vida seguiu seu rumo, ampla em seu claro-escuro.

(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente em 25 de fevereiro de 2018, no Jornal Opção, de Goiânia)

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terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

Boliviano traça cartografia humana e geográfica dos afetos


O livro tem vários méritos, e um deles é o de criar uma trama avessa a sentimentalismos, 
mas que por dentro a vida pulsa pelos afetos bons e maus, e o leitor sente a dor daquilo tudo

A literatura possibilita o vislumbre dos espaços possíveis e imagináveis. A literatura é o lugar das narrativas por excelência, quaisquer que sejam. É gostoso atravessar ambientes e tempos na companhia de pessoas e bichos, ou coisas, ou sentimentos alegorizados na veia da prosa literária, em narrativas clássicas ou criadas pela surpreendente nova geração, dona de uma escritura enxuta como a do boliviano Rodrigo Hasbún.

Em seu romance Os afetos (Intrínseca, 2016, 128 páginas, tradução de José Geraldo Couto), o leitor é convidado a mergulhar numa viagem estética muito contemporânea, ligada ao eu e a um tipo de distopia que atravessa tudo que existe.

Primeiro, o romance nos chama a atenção para o fato de que sempre que mudamos, mudamos para fugir de algo que nos afeta. Essa mudança se dá por diversos motivos, seja pela saudade de alguém que está em outro lugar, seja pelo fato de o lugar de onde somos já não ser mais o mesmo. A afecção nos faz fugir ou nos força a abandonar nosso lar e ir atrás do sonho de encontrar um lugar melhor, que nos toque de maneira mais positiva.

A ideia de mudança (geográfica e sentimentalmente falando), portanto, está muito mais conectada com fatores emocionais, com os impulsos da vida, do que com fatores racionais. Mesmo quando o motivo diz respeito à política, o que nos afeta é o duto emocional de quem toma as decisões ou as consequências daquilo que fizemos por razões que a própria razão às vezes desconhece ou nega.

Os afetos narra o drama humano de indivíduos a partir de uma família de alemães que se muda de Munique para La Paz, na Bolívia, na década de 1950. O romance se divide em duas partes. A primeira trata da vida realocada, da readaptação da família em terreno estrangeiro, mas do ponto de vista dos indivíduos, tendo como pano de fundo a busca de lugares, quaisquer que sejam, geográficos ou da alma.

A segunda parte dá continuidade ao drama humano, mas tem como pano de fundo o confronto político da ditadura com a guerrilha. A trama toda se constrói por um feixe de relatos (alternando as vozes de personagens diferentes) que a vão compondo e revelando novos detalhes da vida da família, quatro mulheres e um homem: a mãe, Aurélia, submissa e apaixonada, três filhas e o pai, Hans.

Seco e aventureiro, Hans é um cinegrafista que viajava o mundo em expedições arqueológicas, atrás de cidades míticas, como Paitití, e de lugares distantes e inacessíveis como Nanga Parbat ou o fundo do mar, para filmar documentários.

Abordagem histórica

Os afetos são os sentimentos recordados pelas irmãs Trixi, Heidi e Monika, e por um dos conhecidos, Reinhardt, também de descendência alemã. Há, por fim, o recorte dramático da afecção da guerrilha na vida da família (ou a afecção da ditadura de René Barrientos sobre o país inteiro, que afetaria Monika, entrando para a guerrilha e se afastando dos parentes).

A ditadura militar na Bolívia durou de 1964 a 1982. Logo, o romance parte de uma dada situação pré-ditadura e avança no tempo até que os destinos dos personagens se choquem com o destino da nação boliviana.

A história narrada em Os afetos é de certa forma a história da colônia alemã na Bolívia, e de certa forma, a história de dominação da elite branca sobre os nativos e mestiços da Bolívia (e do Novo Mundo, numa escala metafórica maior).

Tanto é que em toda a trama, os nativos aparecem muito pouco, fora do núcleo da família protagonista. Aparecem apenas em suas parcas relações com pessoas brancas que constituem 5% dos 11 milhões de bolivianos.

Pelas beiradas, pelos contornos das margens, a história da Bolívia vai se desenhando também. A abordagem histórica e política fica mais forte na segunda parte do romance, criando uma espécie de eco das vozes individuais que incorporam as do corpo social, da guerrilha, das minas etc.

Os olhos do autor estão voltados para a história da América Latina, mas de maneira macro. O olhar não é suficientemente microscópico a ponto de enxergar os detalhes da base, os microdramas do povo e as minúcias dos costumes. Faz isso só en passant, como quando uma das narradoras diz que a empregada aprendeu a fazer comida alemã porque ninguém se adaptou à cozinha local.

Jogo de cena

O romance de Hasbún tem vários méritos, e um deles é o de criar uma trama avessa a sentimentalismos, mas que por dentro a vida pulsa pelos afetos bons e maus, e o leitor sente a dor daquilo tudo. Em sua secura estrutural, não há recursos pirotécnicos, nem prolongamentos descritivos.

O que há é uma economia de gestos verbais, uma contenção nas palavras formadoras do parágrafo, e ao mesmo tempo uma criatividade lexical que sustenta a riqueza do texto. Não se trata de neologismos, nem de invenções à Rosa ou Joyce. Trata-se, isso, sim, de uma precisão narrativa, que vai recortando os quadros da memória e empurrando para frente o jogo de cena, como se uma tela imensa com as imagens criadas pela narração fosse acompanhando nosso olhar, enquanto acompanhamos a passagem do tempo.

Neste sentido, a narrativa traz uma linguagem cinematográfica, mas não à maneira de roteiros, é uma literatura muito bem feita, uma literatura dos novos tempos que já traz engendrada em si mesma a decupacão emprestada do cinema. Umberto Eco, mesmo na tumba, talvez se revire e diga que esse tipo de procedimento já estava em “Ilíada”, que não é prerrogativa do cinema.

Por exemplo, sobre a mãe das meninas, Aurélia, vemo-la numa cena em que ela arranjou um emprego, depois sabemos que Hans, seu marido, o amor de sua vida, razão pela qual ela foi para a Bolívia, voltou para Alemanha para morar com uma moça mais jovem. Em seguida, sabemos que Aurélia ficou doente.

Sabemos disso em trechos curtos, em espaços de uma linha, em capítulos diferentes, enquanto outros fios vão sendo cerzidos, até que mais na frente lemos: “No princípio dos anos sessenta minha mãe já estava morta havia uns dois anos, de um câncer que na fase final causou-lhe tanta dor que em mais de uma ocasião ela pediu por favor para morrer.”

O que fica explícito nas luzes que se apagam sobre o destino de Aurélia, apesar da dor do câncer, é que o imenso amor que ela sentia pelo marido, que a fez mudar de país, foi uma afecção maior que a doença que a matou na solidão.

O rastro emocional de Hans abandonando Aurélia e indo para a Alemanha leva o leitor às pegadas de sua volta, casado com a outra, e se instalando numa fazenda sintomaticamente batizada de Dolorosa. Tudo vai se construindo em poucas linhas numa superposição de figuras, e tudo vai se desnudando em ruínas.

Neste sentido, a narrativa de Os afetos é uma distopia, traço característico de quase todas os romances do século 21, feitos pela nova geração. Esta é emblemática porque metaforiza os lugares não atingidos, como Paitití ou certa região da alma de Monika, e lugares desfeitos, como os sonhos, os ideais  e até a família, a região dos afetos familiares, o amor de pai, o amor de marido e de mulher, ou a falta deles, o amor fraterno.

Entre as muitas particularidades de chaves que Os afetos oferece está a experiência sensível da identidade na diáspora, ou a afirmação interior do homem desenraizado, cuja única tábua de salvação é o próprio eu, sentimento típico da pós-modernidade.

O romance fala das identidades fendidas pela migração, pela sensação dolorida do parto da identidade plural. Dói ser diferente num mundo de iguais, mas dói mais ainda o processo de multiplicação das células identitárias quando se está assimilando outra cultura, outra língua, e ao mesmo tempo não se quer, não se pode perder a cultura e a língua de origem.

As sociedades modernas são todas assim. E a literatura contemporânea está expressando isso agora. Talvez esteja aí a necessidade do eu na literatura, a narração em primeira pessoa. Talvez isso não seja apenas narcisismo, mas também uma vontade de se posicionar no mundo e expor as chagas existenciais da mudança que afetam a história do indivíduo.

A sociedade contemporânea foi, e vem sendo, convencida de que a individualidade é a única garantia da existência (talvez nem isso). Mas a identidade pressupõe células de origem divididas entre um pai e uma mãe, logo um agrupamento de gente, um irmão, ou um primo, uma comunidade, uma língua em comum. A identidade pressupõe compartilhar duas origens, ao menos, às vezes, duas, três línguas. Assimilar tudo isso às vezes dói. Ser tudo isso afeta.

Pós-memória

A contemporaneidade empurrou o eu e a individualidade para a superfície das narrativas, todo tipo de narrativa, e por isso as análises viraram o foco para os afetos. As tramas do afeto falam de traumas. Elas estão alojadas no que se convencionou a chamar de pós-memória, segundo o filósofo Vladimir Safatle.

A pós-memória lida com traumas históricos a partir de um segundo ponto de vista, escrito por autores que não viveram de fato o período do trauma. É exatamente o que corre com o romance de Hasbún, que tem 36 anos, tendo nascido em 1981, em Cochabamba.

A literatura latino-americana, que na segunda metade do século 20 produziu deuses do romance do novo mundo, como Garcia Márquez, Vargas Llosa e por fim Bolaño (reconhecido postumamente), agora promete renovação com uma safra talentosa. Hasbún é um desses talentos.

A revista britânica Granta é a que mais valoriza essas almas novas provedoras de uma linguagem vigorosa, demonstrando que o romance vai muito bem de saúde, obrigado. Brasileiros como João Paulo Cuenca, Carol Bensimon e Julián Fuks, entre outros, estão nessa lista valorizada pela publicação, em sua versão em espanhol que cata nomes promissores em língua portuguesa também.

Jornalista, escritor e roteirista, Rodrigo Hasbún é sem dúvida um dos talentos da nova geração de escritores em língua espanhola. Fez faculdade na Bolívia, mas depois ganhou o mundo. Morou no Chile, na Espanha, nos EUA, onde fez doutorado na Universidade de Cornell, na mítica cidadezinha de Ithaca, no Estado de Nova York, e agora vive na cidade de Toronto, no Canadá.

O livro que lançou Hasbún para o mundo foi El lugar del cuerpo, de 2007, que o fez ser incluído no grupo dos 22 melhores escritores em língua espanhola abaixo dos 35 anos, em 2010, pela Granta.

Cronógrafos

Os afetos é seu segundo romance. Outra virtude de sua narrativa são o verso e o reverso das paisagens, alternando vozes. Há também uma mistura de focos, incluindo uma passagem liricamente afetada, narrada em segunda pessoa, que é a voz de Monika, como se o personagem estivesse afetado por algum tipo de alienação, ou buscando um afastamento proposital do eu, para não enlouquecer dentro do mundo que escolheu para viver.

Há uma grande rede subterrânea de sentimentos, dutos de contatos. Trixi teve o dia mais feliz da sua vida num Natal que passou só com a mãe em La Paz, quando fumou pela primeira vez aos 12 anos, cigarro oferecido pela mãe, que por sua vez havia se iniciado no vício com a mãe às margens do Lago Chiemsee, na Alemanha.

Quando a mãe morreu, Trixi fumava para matar a saudade. A metáfora dos maus afetos se mistura com a  dos bons. Ao fumar, Trixi não só matava a saudade, mas talvez a si mesma, aos pouquinhos. Como o cigarro, a saudade também é um afeto.

A sensação de estranheza é uma afecção, como a passagem do tempo, por exemplo, quando a sentimos atravessar nosso corpo pelas marcas externas e nossa alma pelas marcas internas. A narrativa de Hasbún explora esse recurso. Certas passagens são cronógrafos, como datas e idades que sequenciam a prosa. Por exemplo, citar o ano 1955, e lá na frente observar “os anos sessenta foram estranhos desde o início.” O tempo passa e afeta o espaço.

Num momento de afirmação do feminismo, um romance escrito por um homem com vozes femininas em quase sua totalidade, narrando o estrago que um homem faz na vida afetiva de uma família inteira, é simbólico de muita coisa. “Logo que regressou de uma longa estada na Europa, meses depois que enterramos mamãe, papai comprou terras perto de Concepción.” Simples assim, seco assim, o trecho dá conta de uma dor rolando no tempo.

Ícones do ocaso

A história da morte de Che Guevara está embutida num capítulo  que abre a segunda parte do romance. Ela se encaixa na ideia de distopia e na de metáfora de um tipo de afeto ideológico, distópico sempre, à medida que a morte de Che afetou o imaginário do mundo inteiro, tornando assim uma espécie de ícone do ocaso ideológico de esquerda.

Além disso, há outra coisa por trás da trama armada por Hasbún, a vida imensa e arejada da juventude que vai se estreitando nos laços dos compromissos da maturidade, como casamento e emprego, compromissos de engajamento e roteiros prévios a se seguirem, a separação e o enfrentamento das responsabilidades solitariamente.

Ao longo do romance, o leitor vai percebendo uma espécie de ruína, como se a vida inteira fosse uma distopia, porque nunca se chega ao lugar que se quer chegar. E o lugar aonde se chega, sem querer, não  é o melhor dos mundos. A vida respira nos entrelugares, nas brechas do drama cotidiano, como no cigarro que Trixi fuma desde os 12 anos, ou no amor dos primeiros anos de Heidi, no amor de Monika pelo guerrilheiro, entre uma luta e outra, entre uma fuga e outra, até que a morte chega.

A vida imensa e arejada da juventude vai se estreitando na busca arqueológica de cidades que nunca serão encontradas, no exercício utópico da guerrilha, da luta de classes, na procura do amor.

Nenhum lugar escapa à distopia, nem mesmo o terreno da memória, que também é um elemento de afeto. “Não é certo que a memória seja um lugar seguro. Nela também as coisas se desfiguram e se perdem. Nela também terminamos nos afastando das pessoas que mais amamos”, diz Trixi em algum momento.

Os afetos é uma obra de ficção com um fundo histórico, e o leitor pode lê-la como tal. Mas por tratar de um romance de pós-memória, quando se lê a observação feita pelo autor logo após o sumário, o leitor no mínimo dá uma dimensão maior à dor e ao desolamento construídos com acuidade.

A trama é feita em cima dos personagens reais da família Ertl, cujo pai, Hans, mudou-se da Alemanha para a Bolívia em função de ter sido cinegrafista a serviço do Nazismo. Eis aí mais um afeto na conta do drama narrado por Hasbún, um autor que promete ajudar a preencher o vazio deixado pelos deuses do século passado.

(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente em 18 de fevereiro de 2018, no Jornal Opção, de Goiânia) 

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