segunda-feira, 9 de abril de 2018

A estética da demolição de Juliano Pessanha

                                                                                         Foto: Kaique Hector
Juliano Garcia Pessanha: “Alguns psicanalistas, etnólogos, cientistas naturais e filósofos
começam a narrar coisas mais interessantes que os escritores, e de melhor maneira”

Os colegas escritores podem até chamar Juliano Garcia Pessanha de traidor do movimento (não sei se chegam a tanto), por fazer uma literatura que nega a literatura (não faz mais sentido em si; todo mundo está repetindo fórmulas; “quem hoje habita o espaço literário necessariamente já se move no fracasso”), mas não podem acusá-lo de falta de originalidade. 

Pessanha, paulistano de 56 anos, doutor em filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), faz mais que autoficção, moda na contemporaneidade. Ele se entrega totalmente a um tipo de escrita que está colada em seu corpo. 

Quando ele caminha pelas ruas de São Paulo, alguém que conhece sua obra pode dizer “aí vai uma linguagem, carregando uma mensagem que se pretende para muitos, mas que é para poucos". Em seu livro Recusa do não-lugar (Ubu Editora, 2018, 192 páginas), Pessanha nos convida a uma conversa invulgar sobre a existência, um misto de filosofia e literatura, num texto que pode ser chamado de autobiografia filosófico-literária.

Seu livro é catalogado pela editora como “ficção brasileira, filosofia, ensaio e memórias”. É tudo isso mesmo. Está no território da literatura contemporânea, onde nada se define por inteiro, tudo flutua, nada se confirma, tudo se estranha e se questiona.

Dentro e fora

O cerne da questão de Recusa do não-lugar é o conceito de esferologia, de Peter Sloterdijk, e o modo como o filósofo alemão explica a relação do sujeito com o mundo, tendo este sujeito nascido para fora, sem um eu, ou nascido para dentro, constituído de um eu. 

O que vai determinar essa condição de nascido para fora ou para dentro é o primeiro agente de contato do bebê com o mundo, a mãe, e a partir dela os outros seres ao redor, que Pessanha, via Sloterdijk, se recusa a dizer que são objetos nesse primeiro approach, uma vez que um assimila o outro em caráter de cooperação na construção da subjetividade. 

Ou seja, para o bebê, aquilo com o qual se relaciona nesse processo é um outro que também é um eu, numa relação que Sloterdijk chamou de ser-um-no-outro. Essas esferas de relações vão dando liga ao desenvolvimento do sujeito que nasce para dentro. 

Ele vai saindo de uma esfera e entrando noutra maior até ganhar o mundo. Se há calor e companheirismo da mãe, tudo começa a fazer sentido, e a interação com os outros passa a ser de aliança. Mas quem nasce para fora não tem essa cooperação, aliena-se do mundo (torna-se estrangeiro na própria casa). A única coisa que passa a ter é a linguagem no vazio. 

Pessanha diz que nasceu assim, para fora, e afirma que Nietzsche e Heidegger também. Eles escreveram toda sua filosofia convidando para fora quem nasceu para dentro, o que é um equívoco sem igual, diz Pessanha. Com este livro, ele procura trilhar uma nova maneira de olhar para o mundo, sob os auspícios de Sloterdijk, e recusa o lugar que lhe fora reservado ao nascer, o não-lugar.

É um texto denso, mas renovador do pensamento, ou pelo menos um texto que busca a instalação de novos paradigmas estéticos. Pessanha quer pensadores e poetas como leitores. Quer dizer, talvez queira qualquer um disposto a passear pela relva de sua escrita, mas só os familiarizados com o poético e o filosófico são capazes de sentir o cheiro desse raro cultivo.

Nietzsche, o forasteiro

Recusa do não-lugar não tem uma tessitura construída na limpeza narrativa. Veja aonde chegamos. A literatura do século 20 já era considerada misturada demais no confronto com o clássico. Mas Pessanha pega pedaços de sua tese de doutorado, justamente sobre Sloterdijk, e cola junto à narração ficcional, põe pitadas de aforismos livres e relatos psiquiátricos supostamente autobiográficos.

No primeiro capítulo, “O mundo estranhado: esboço de filosofia fisionômica”, Nietzsche é o narrador. O autor quer mostrar o equívoco de se aceitar o estranhamento do mundo quando se nasce para fora, achando que é uma espécie de profeta. JP pegou o pensamento de Nietzsche pelo chifre e o dominou de tal modo, e o levou adiante, que Nietzsche não só reconhece como agradece. 

Para Nietzsche, sua irmã e sua mãe, tanto quanto a universidade cafetinaram sua obra. Mas JP a resgata e a leva além. “Para me compreender é preciso mostrar que se tem sangue”, diz o narrador bigodudo. E JP tem sangue. Afinal, “JP levou o próprio corpo para o campo de batalha.” É irônico ver Nietzsche compondo a biografia de JP. pois de certa forma, o biografado é sempre mais importante que o biógrafo.

Se o primeiro parágrafo ridiculariza Nietzsche, a partir do segundo, a filosofia “séria” (Sloterdijk) entra em campo para falar dos novos conceitos e defender a ideia de que nascer para dentro, e ter amigos, gozar o mundo da tecnoesfera capitalista, trabalhar, pagar as contas, é melhor do que sofrer fora da bolha, comendo o pão que o diabo amassou e se achando um profeta.

O texto de Pessanha, nos elementos ficcionais, é marcado pela paródia, ironia, auto-referência, numa reescritura que retoma de outro modo algo que já foi dito. É um ensinamento do próprio Nietzsche sobre a modernidade. Daí a ironia se acentuar ainda mais, como se o pensador alemão estivesse sendo ferido com a própria arma, uma vez que é modificado, sob a alegação de que está sendo melhorado.

Sloterdijk, uma espécie de mãe

O autor dramatiza sua relação com o mundo de modo tocante. Usa a própria experiência da relação conturbada com a mãe, que o internava em clínicas psiquiátricas (pouco importa se é ficção ou realidade, para o autor dá no mesmo), para ilustrar o sofrimento de quem nasce para fora. E explora o pensamento filosófico de Sloterdijk, que agora também é seu, para verificar o outro lado. 

“Todos esses conceitos foram legítima e verdadeiramente plantados em meu próprio ser como sendo meus. (...) Penso que, nesse caso, o plágio está autorizado e podemos considerar tais obras como nossas também, pois a recriamos em nossas leituras”, diz o autor.

Mais do que uma influência sem angústia nenhuma, é o efeito máximo do renascimento no mundo para dentro, em que o sujeito encontra o ambiente de aliança e consegue angariar “todo o mobiliário de uma alma”, ou pelo menos pegar de empréstimo, como um veículo ou uma senha que o permite acessar o espaço interior onde há um eu. Sloterdijk foi a mãe que Pessanha não teve.

Recusa do não-lugar é uma inegável capacidade de síntese, porque o autor põe no texto toda a filosofia de Sloterdijk, dialogando ou confrontando com a massa da tradição filosófica e psicanalítica do século 20.

Neste sentido, não é uma leitura resenhística que vai esgotar a mina funda desse livro. Ele requer seguidas leituras. Quem gosta de literatura, e tem a consciência de que seus paradigmas estão em processo de transição, Recusa do não-lugar poder ser uma luz.


Serviço


Livro: Recusa do Não-Lugar
Autor: Juliano Garcia Pessanha
Editora: Ubu Editora (2018, 192 páginas)
Preço: R$ 42,00


(Gilberto G. Pereira. Originalmente publicado em 8 de abril de 2018, no Jornal Opção, de Goiânia)

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Seis passeios pelo imaginário da cidade

Foto: Gilberto G. Pereira
Parte do Memorial & Museu Nacional do 11 de Setembro, em Nova York; ao fundo, a estação Oculus: 
“Eventos que se enquadram em um tipo específico de alteração instantânea da paisagem.”

Todo leitor de literatura, principalmente aquele de prosa, de um certo modo, é apaixonado pela história das cidades. Alguma coisa se move dentro dele. Algum dispositivo emocional, ou estético, ligado ao espaço, à ambientação, ao ir e vir de personagens dentro da narrativa, estabelece um vínculo íntimo entre o leitor e o lugar da trama.

O contrário também é certo. Arquitetos, geógrafos, sociólogos e historiadores, especialistas em questões urbanas, gostam da literatura porque ela fornece elementos concretos e visionários sobre o espaço citadino. 

Os grandes romances do século 19 e da primeira metade do século 20 fizeram isso. Só depois é que se criou a tendência da cartografia do eu, das paisagens interiores, em que pouco se deixa ver da cidade, embora muitas vezes ela esteja lá, sustentando os passos de um flâneur de almas.

O professor associado do Instituto de Estudos Socioambientais (Iesa), da Universidade Federal de Goiás (UFG), Tadeu Alencar Arrais, escreveu um livro delicioso de se ler, Seis modos de ver a cidade (Cânone Editorial, 2017, 174 páginas), em que traça um panorama visual das urbes e sua história, além de analisar seus aspectos de formação e deformação, construção e modificação dos espaços.

Em Seis modos de ver a cidade, o autor faz observações importantes, que para um leitor leigo interessado nas questões urbanas, querendo entender como nasce e morre uma cidade, é um ensinamento valoroso. E ele faz isso lançando mão de ferramentas como o cinema e a literatura, além de sua base de ofício, as ciências humanas, evidentemente.

Segundo Arrais, o espaço urbano em sua estrutura de fundação e crescimento, da escolha do lugar onde uma comunidade se assenta à malha de serviços e infraestrutura, pode ser lido por meio dos vetores “mapa”, “morfologia”, “ecologia”, “paisagem” e  “cotidiano”. Em cada um deles, uma análise acurada dá conta de uma série de aspectos interessantes.

Outra urbe

Começando pelos mapas, o autor nos convida a entrar na primeira avenida de seu texto evocando Ítalo Calvino, em As cidades invisíveis:

“- Resta uma que você jamais menciona.
Marco Polo abaixou a cabeça.
- Veneza – disse Khan.
Marco sorriu.
- E de que outra cidade imagina que eu estava falando?”

Esse plano geral do escrutínio feito por Arrais dá o tom de mais ou menos como o geógrafo goianiense pensa a cidade. Segundo ele, todas elas têm muitos elementos semelhantes no tocante à sua origem. Nos primórdios, os mapas davam conta desse jogo entre aproximação e distanciamento nas características das grandes urbes do mundo. Todas elas, até hoje, nascem às margens de um bom rio, caudaloso e perene (o Meia Ponte já foi algo parecido).

Os mapas descreviam as cidades antigas tendo seu desenho central encravado em colinas e rodeado de pontes, diz o autor, citando Londres, Paris, Granada e Praga do século XVI. Em torno do espaço urbano, havia o conglomerado de pontos rurais que abasteciam a cidade. “Ao desenharem os mapas, seu autores comunicavam, especialmente, o cotidiano.” 

Eles ainda existem e são muito úteis, como pontua Arrais, embora tenham migrado para a virtualidade da internet, rendendo-se completamente ao poder do Google. “Ainda é possível dizer que os mapas das cidades continuam a despertar uma primeira imagem, uma representação do desejo do viajante”, pondera o professor.

Simbioses

No capítulo sobre a morfologia, em que a análise recai sobre o relevo real do espaço, sua topografia (com sua forma em rios, morros e montanhas, floresta e campos), Arrais traça uma descrição elogiosa da escolha topográfica das cidades brasileiras. “A primeira imagem do Rio de Janeiro é, sem dúvida, topográfica, independentemente de o observador chegar por terra, pelo mar ou pelo ar.”

“A topografia turística”, continua Arrais, “representada pelo Corcovado, pela Pedra da Gávea, pela Pedra do Arpoador e pelo Pão de Açúcar, oferece aos visitantes de hoje ângulos diversos da cidade.” 

As vilas montadas no ciclo do ouro no Brasil, que dariam origem às primeiras cidades do interior do país, também são olhadas com interesse pelo geógrafo. Segundo ele, a escolha topográfica de Ouro Preto, em Minas Gerais, e Pirenópolis, em Goiás, por exemplo, passava pela questão da presença desse metal.

Dependia de uma simbiose entre geologia, relevo e água. “Naquele período, enquadravam-se perfeitamente nesse enredo morfológico que sempre despertou a ambição de desbravadores”, diz o autor. O charme dessas cidades, continua ele, “não se resume, apenas, às edificações coloniais geminadas e às ruas curvas, mas, sobretudo, ao fato de serem vigiadas por serras.” 

Arrais não toca no assunto, mas por vezes, a história se encarrega de mudar o ponto de vista do que é estrategicamente aceito em matéria de morfologia. A cidade de Goiás é uma dessas vítimas da história. Cercada por serras, foi rejeitada pelo pensamento urbanista moderno em nome de outra topografia, e aí Goiânia nasceu.

Numa intenção prosopopeica, o autor diz que as grandes cidades, de modo geral, certamente à exceção daquelas que foram fundadas (e nem cresceram) sob a égide da exploração do ouro no Brasil (por procurarem lugares entre serras), “assim como os grandes rios, tentam evitar as montanhas, preferindo as planícies, onde podem se espalhar.” 

Olhar a cidade pela sua morfologia é observar à distância, de um modo que estimule a imaginação, diz o professor. “A imagem morfológica permite especular sobre os limites de expansão do sítio urbano, as formas de circulação interna e o sistema de integração.”

Transformações

Dobrando a esquina dos vetores geográficos, quando o autor fala de técnica, ele se refere à produtividade e ao desenvolvimento, ao progresso no espaço urbano. O modo de organização social das cidades vai mudando à medida que entram no cenário das relações as novas técnicas. 

Na Idade Média, diz Arrais, “ferreiros, pedreiros, curtidores, carpinteiros, tipógrafos, tecelões, sem esquecer dos ourives e dos alfaiates ou mesmo dos açougueiros, formavam classes de prestígio na cidade.”

Depois, as oficinas e ateliês perderam espaço para as fábricas, embora não tenham sido substituídos por estas. O interessante é que, desde a Revolução Industrial, as máquinas vêm atravessando a vida humana e ocupando espaços cada vez mais fulcrais na sociedade. 

As máquinas “mudaram a forma e a velocidade das pessoas de consumir, produzir e se locomover”, comenta o autor. Segundo Arrais, as redes técnicas, como as instalações de energia, comunicação, dutos de água, esgoto e gás, entranharam em nosso cotidiano “como artérias acomodadas entre os músculos e ossos do corpo humano.”

E justamente por essa capacidade de oferecer benefícios e confortos à vida do cidadão moderno, essas redes técnicas acabam afastando-o da compreensão do mecanismo de seu funcionamento, criando o que o autor chama de “alienação técnica”.  “Todos os dias, quando acordamos, acionamos essas redes sem sequer imaginar como foram produzidas ou como funcionam”, avalia. 

Mas, como num laboratório de soro antiofídico, o mesmo elemento oferece dois lados antagônicos. “A cidade passa a ser esse lugar privilegiado, tanto para a alienação quanto para a emancipação.” E como isso ocorre? “A técnica é utilizada para ambos os propósitos. A própria inflação dos objetos técnicos e das redes reforça essa dialética entre alienação e emancipação, exigindo esforço contínuo de adaptação.”

Muitos ficam para atrás, é verdade, tanto no que diz respeito ao consumo, quanto na questão da oferta e procura de mão de obra. As inovações, no entanto, parecem vir puxando uma fileira de retardatários. “A relação (expertise e uso) é resultado direto da forma como a técnica organiza o cotidiano e interfere nas atividades de produção, consumo, lazer e comunicação”, diz Arrais.

Seis modos de ver a cidade é uma ferramenta que nos ajuda a pensar o espaço urbano, quer com seu volume de informação e articulação argumentativa, quer com o estímulo ao diálogo, à busca de novos exemplos do que foi dito e de novos paradigmas que não foram abordados. 

Exemplo de progresso técnico, a que o autor não se referiu, mas que faz todo sentido neste debate, foi a invenção do elevador moderno, por Elisha Otis, em 1853, em Nova York (Arrais cita os futuristas Os Jetsons e o elevador como conditio sine qua non da modernidade, como o meio de transporte “sem o qual, não seria possível ampliar a densidade urbana”, mas não faz referência ao fato de ter tornado Nova York a cidade que é, técnica e topograficamente). 

Essa invenção revolucionou o pensamento da engenharia civil, da arquitetura e do urbanismo, primeiro em Manhattan, depois em muitas cidades no mundo inteiro, com a vertigem dos arranha-céus. 

Antes do elevador, não era prudente erguer prédios com mais de quatro andares. Depois do elevador, Manhattan verticalizou de tal forma que se transformou num “teatro de atrações”, para utilizar aqui uma expressão de Adrián Gorelik, no prefácio ao livro de Rem Koolhaas, Nova York delirante.

Esse progresso técnico possibilitado pelo elevador, e pela riqueza do capitalismo americano, fez surgir as Torres Gêmeas, que em 2001, foi posta abaixo pelo fanatismo anti-Ocidente e anti-modernidade dos extremistas islâmicos, liderados por Osama bin Laden. Pilotos suicidas tomaram dois aviões de carreira em pleno ar, cheio de passageiros, e os chocaram contra as torres.


Texto e pretexto

A ação terrorista modificou a paisagem de Nova York. Esta parte da história é mencionada no livro de Arrais. Segundo ele, aqueles eventos de 11 de setembro de 2001 “se enquadram em um tipo específico de alteração instantânea da paisagem.” 

Os ataques terroristas daquela manhã, continua o geógrafo, “colocaram abaixo dois ícones da engenharia urbana erigidos na década de 1970. As Torres Gêmeas, singulares em tantos filmes de Hollywood, foram reduzidas a escombros, em meio ao fogo, à poeira e aos muitos corpos [mais de 3 mil]. No mesmo local, agora, encontra-se o memorial Tribute in Light (sic), cujas colunas verticais de luz insinuam-se para o céu.”

No livro de Arrais, texto e pretexto vão se criando numa simbiose semântica, em que o autor às vezes descreve o elemento temático, como morfologia, por exemplo, mas vai além da descrição (pretexto) para falar de políticas públicas ou teses urbanísticas (texto).

Às vezes, parte de questões de urbanismo, de políticas públicas (pretexto) para mostrar a complexidade da paisagem urbana e de como ela muda (texto), como no exemplo do ataque às Torres Gêmeas. Assim tão definido, uma coisa vai imbricando na outra, de modo que o tecido discursivo fica mais consistente, e sempre conciso, sempre objetivo, sem derramar palavras desnecessárias. Vê-se um pensamento sóbrio no espectro da narrativa proposta pelo autor.

Ainda sobre a paisagem, Arrais diz que um dos aspectos modernos das cidades, em termos paisagísticos, é o turismo. “A modernidade oferece uma nova experiência de cidade. Uma nova rua, um novo caminho iluminado. A própria paisagem transforma-se em objeto de consumo. A ‘cidade luz’ drena os olhares e os sonhos de consumo tanto quanto a ‘cidade maravilhosa’.”

Espetáculo e história

O último vetor geográfico criado por Arrais nos joga numa espécie de corredor do hábito urbano, o cotidiano. Arrais nos dá uma aula sobre como o cotidiano treina nosso olhar sobre a cidade e nos prende a um modo muito particular de vê-la. Por isso mesmo, a visão do morador e a do turista são tão diferentes. 

Certos elementos se tornam invisíveis ao morador, e ao turista saltam aos olhos. A história do cemitério Saints-Innocents, no centro de Paris, “localizado nas proximidades do Les Halles, na margem direita do rio Senna”, é um exemplo disso. Superlotado de corpos enterrados ali por centenas de anos em catacumbas, no século 19, foi necessária a remoção dos corpos. 

Os operários faziam isso durante a noite, acompanhados de sacerdotes e de um séquito de turistas que pagavam para assistir ao show fúnebre. “A paisagem urbana é história, mas também espetáculo para um cotidiano cada vez mais programado”, diz Arrais, que enfileira citações de escritores como Honoré de Balzac (que está na capa do livro em litogravura), Charles Baudelaire, Émile Zola, Victor Hugo, Charles Dickens etc.

Seis modos de ver a cidade é instrutivo, ilustrativo e fruitivo, com um projeto gráfico muito bem feito, e um design que agrada aos olhos do leitor. Enquanto vai construindo seu texto sobre a cidade, como conceito, e descrevendo os elementos espaciais, como fenômenos urbanos, Arrais também vai deixando esse rastro de erudição interessante, porque também é uma espécie de lastro intelectual que ele construiu.

Quando era adolescente, trabalhava na construção civil. Não diz o que fazia. Talvez fosse servente de pedreiro ou contínuo de uma empresa de engenharia. No intervalo do almoço, tinha acesso ao prédio de 14 andares que estava sendo construído.

Do alto do edifício, via Goiânia em movimento e admirava a cidade onde nasceu em 1973. A ideia principal de escrever o livro surgiu ao ver o filme Metrópolis, de Fritz Lang, de 1927. Mas os substratos vieram de leituras, do estudo da geografia e da memória do garoto olhando para a cidade e tentando entender sua engrenagem. “A cidade era aquilo. Mistura de tijolos, argamassas, aço, cobre, alumínio, azulejos, tubulações e muita gente se ocupando em preencher os espaços daquele esqueleto.”

Hoje, Arrais é doutor em Geografia pela Universidade Federal Fluminense (Niterói-RJ) e professor da UFG. Locomoveu-se pelas espessas lâminas da estratificação social. Dono de uma narrativa sóbria e culta, buscou na memória elementos que edificam sua escrita. Arrematou seu ensaio com o retorno dessa memória. É formidável ver esse tipo de vitória. Ao falar de Londres, Nova York, Rio de Janeiro, Cairo, estava falando de Goiânia.


Serviço

Livro: Seis Modos de Ver a Cidade
Autor: Tadeu Alencar Arrais
Editora: Cânone Editorial (2017, 174 páginas)
Preço: R$ 35,00

(Gilberto G. Pereira. Originalmente publicado em 8 de abril de 2018, no Jornal Opção, de Goiânia)

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sábado, 7 de abril de 2018

As 150 melhores frases de Marcel Proust, do romance Em busca do tempo perdido

Fachada do Grande Hotel, em Cabourg, cidade francesa que Proust transfigurou como Balbec no romance Em busca do tempo perdido

O romance Em busca do tempo perdido, do escritor francês Marcel Proust (1871-1922), tem sete volumes e 2.800 páginas. É tão longo que o centenário de sua publicação começou em 2013 e só vai terminar em 2027, quando o último volume fará cem anos da primeira edição póstuma, de 1927.

No Brasil, o romance-rio de Proust foi publicado pela primeira vez entre os anos 1940 e 1950, pela Editora Globo, de Porto Alegre, com traduções da Mário Quintana (os quatro primeiros volumes), Manuel Bandeira (quinto), Carlos Drummond de Andrade (sexto, um das raras traduções do poeta mineiro) e Lúcia Miguel Pereira (sétimo).

É desta tradução que saem as frases a seguir. Nem todo grande romance é tão analítico quanto este de Proust, com essa capacidade de ser descarnado e distribuir pílulas de alta voltagem de observações filosóficas.

Os irmãos Karamázov, de Dostoiévski, e Ulysses, de James Joyce – o primeiro tendo sido fonte inspiradora do segundo e da obra proustiana – e não apresentam essa capacidade. São rios profundos tanto quanto Em busca, mas é difícil retirar deles frases marcantes aos borbotões. 

Há mais do que 150 frases interessantes. Mas estas já estão de bom tamanho. São tantas e tão variadas, que podemos encontrar pílulas como esta sobre a amizade: 

“Cada um de nossos amigos tem os seus defeitos e, para continuar a estimá-lo, cumpre que nos esforçamos por nos consolar desses defeitos, pensando em seu talento, em sua bondade, ou em seu afeto (...). Por infelicidade, a nossa complacente obstinação em não ver o defeito do amigo sempre se vê superada pela obstinação sua em mostrá-lo.”

Ou algo como esta frase sobre comportamento: “Logo que deixou de ser louco, tornou-se idiota. Há males de que não se deve buscar a cura porque só eles nos protegem contra males mais graves.”

Dividi as frases em pílulas sobre o amor, artes e literatura e frases gerais. Nesta última seção é que estão a maior parte delas. 

OBS: Se alguém quiser replicar as frases, só peço o devido crédito. Por favor, não faça como um certo blog que copiou as frases de Grande sertão: veredas deste blog (texto 1 texto 2), editou de modo bonitinho, mas não deu ao Leituras do Giba o devido crédito. Embora fique claro que foi copiado daqui. (Gilberto G. Pereira)


22 frases sobre amor

“Por mais tranquilos que nos julguemos quando amamos, o amor está sempre em equilíbrio instável dentro do nosso coração.”

“O amor mais exclusivo por uma pessoa é sempre o amor de outra coisa.”

“O amor nos induz não somente aos maiores sacrifícios por seu objeto como também, algumas vezes, ao de nosso próprio desejo.”

“Nós só conhecemos as paixões dos outros, e o que chegamos a saber das nossas apenas são eles que no-lo vão dizer.”

“Não se ama a ninguém mais quando se ama.”

“Tanto como um retiro, uma doença, ou uma conversação religiosa, uma prolongada ligação de amor nos traz imagens novas em substituição às antigas.”

“O sossego é coisa que não pode haver no amor, pois o que se obtém é sempre um novo ponto de partida para desejar ainda mais.”

“Há no amor um sofrimento permanente, que a alegria neutraliza, torna virtual, adia, mas que pode a cada momento tornar-se o que desde muito seria, se não tivéssemos alcançado o nosso desejo: atroz.”

“Quando se ama, tamanho é o amor, que não cabe em nós: irradia para a pessoa amada, onde topa com uma superfície que lhe corta a passagem e o faz voltar para o ponto de partida; e essa ternura que nos devolve o choque, ternura que é nossa, é o que chamamos o sentimento do outro, e mais nos agrada o nosso amor quando vem do que quando vai, porque não notamos que procede de nós mesmos.”

“A imagem de nossa amada, ainda que a julguemos antiga e autêntica, foi muitas vezes retocada por nós.”

“O amor não é talvez mais do que a propagação daqueles redemoinhos que, depois de uma emoção, perturbam a alma.”

“A posse do que se ama é uma alegria ainda maior do que o amor.”

“O ciúme nada mais é muitas vezes do que uma inquieta necessidade de tirania aplicada às coisas do amor.”

“O sofrimento do amor cessa por instantes, mas para recomeçar de modo diferente.”

“Não amamos senão o que não possuímos inteiramente.”

“Sabemos que cada assassino em particular imagina, por todas as precauções tomadas, que jamais será preso, e o mesmo se passa com os mentirosos, mais especialmente com as mulheres que amamos.”

“Só se ama aquilo em que se requesta alguma coisa de inacessível, só se ama o que não se possui.”

“O amor é o espaço e o tempo tornados sensíveis ao coração.”

“Toda mulher sente que, se for grande o seu poder sobre um homem, o único meio de ir-se embora é fugir. Fugitiva por ser rainha, eis aí.”

“Desejamos ser compreendidos porque desejamos ser amados, e desejamos ser amados porque amamos.”

“O amor não é eterno porque as lembranças não permanecem sempre verdadeiras e porque a vida se faz à custa de perpétua renovação das células.”

“Mentimos para proteger nosso prazer ou nossa honra, se por acaso a divulgação do prazer é contrária à honra. Mentimos durante a vida toda, e sobretudo, e talvez somente, àqueles que nos amam.”


43 frases sobre literatura e arte

“Todo o engenho do primeiro romancista consistiu em compreender que, sendo a imagem o único elemento essencial na estrutura de nossas emoções, a simplificação que consiste em suprimir pura e simplesmente as personagens reais seria um aperfeiçoamento decisivo.”

“O achado do romancista consistiu na ideia de substituir essas partes impenetráveis à alma por uma quantidade igual de partes imateriais, isto é, que nossa alma pode assimilar.”

“Somos muito lentos em reconhecer na fisionomia particular de um novo escritor o modelo que traz o nome de ‘grande talento’ em nosso museu das ideias gerais.”

“As obras escritas para a posteridade, só a posteridade as deveria ler.”

“O motivo de que uma obra genial rara vez conquiste a admiração imediata é que o seu autor é extraordinário e poucas pessoas com ele se parecem.”

“Os que produzem obras geniais não são aqueles que vivem no meio mais delicado, que têm a conversação mais brilhante, a cultura mais extensa, mas os que tiveram o poder, deixando subitamente de viver para si mesmos, de tornar a sua personalidade igual a um espelho, de tal modo que a sua vida aí se reflete, por mais medíocre que aliás pudesse ser mundanamente e até, em certo sentido, intelectualmente falando, pois o gênio consiste no poder refletor e não na qualidade intrínseca do espetáculo refletido.” 

“O hábito forma tanto o estilo do escritor como o caráter do homem.” 

“Tanto a pena como o desejo, o querem não é analisar-se, mas satisfazer-se.”

“A beleza não é senão uma série de hipóteses, e a fealdade a reduz.”

“O valor intelectual nada tem a ver com a adesão a determinada fórmula estética.”

“A fotografia ganha um pouco de dignidade que lhe falta quando deixa de ser reprodução da realidade e nos mostra coisas que não existem mais.”

“Quando o escritor se acha no estado de espírito do que ‘observa’ está em nível muito inferior ao estado de espírito do que cria.”

“Talvez algumas obras-primas tenham sido compostas entre bocejos.”

“Os dados reais da vida não têm valor para o artista, são unicamente um ensejo para manifestar seu gênio.”

“A beleza pode ser a mais nobre das criaturas.”

“O artista não é mais que uma janela que dá para uma obra-prima.”

“A verdadeira beleza é tão peculiar, tão nova que não a reconhecemos como beleza.”

“Tudo o que conhecemos de grande nos vem dos nervosos. Foram eles e não outros que fundaram as religiões e compuseram as obras-primas.”

“Para chegarem a ser assim reconhecidos, o pintor original, o artista original procedem à maneira dos oculistas. O tratamento pela sua pintura, pela sua prosa, nem sempre é agradável. Findo o tratamento, o clínico nos diz: ‘agora olhe.’ E eis que o mundo (que não foi criado uma só vez, mas tantas vezes quantas surgiu um artista original) nos aparece inteiramente diverso do antigo, mas perfeitamente claro.”

“Toda invenção de que jamais se cogitou excita o espírito, mesmo das pessoas que não saibam aproveitá-la.”

“Cada vez que alguém olha as coisas de maneira nova, quatro quartos das pessoas não enxergam nada do que ele lhes está mostrando. São precisos pelo menos quarenta anos para que cheguem a distinguir.”

“A música ajudava-me a descer em mim mesmo, a descobrir em mim coisas novas.”

“Não é apenas a arte que põe encanto e mistério nas coisas mais insignificantes; esse mesmo poder de relacioná-las intimamente conosco é reservado também à dor.”

“Certos romances são como grandes lutos momentâneos, abolem o hábito e põem-nos novamente em contato com a realidade da vida.”

“Talvez as obras-primas mais extraordinárias de nossa época tenham saído não dos concursos universitários de uma educação modelar e acadêmica, no estilo de Broglie, mas do contato com as ‘pesagens’ e com os grandes bares.”

“A leitura nos permite descobrir o valor da vida.”

“O livro de caracteres figurados, não traçados por nós, é nosso único livro.”

“A impressão é para o escritor o mesmo que a experimentação para o sábio, com a diferença de ser neste anterior e naquele posterior trabalho da inteligência.” 

“Só vem de nós o que tiramos da obscuridade reinante em nosso íntimo, o que os outros não conhecem. E como a arte recompõe exatamente a vida, em torno dessas verdades dentro de nós atingidas flutua uma atmosfera de poesia, a doçura de um mistério que não é senão a penumbra que atravessamos.”

“Não somos de modo algum livres diante da obra de arte, que não a fazemos como queremos, mas que, sendo preexistente, compete-nos, porque é necessária e oculta e porque o faríamos se se tratasse de uma lei da natureza, descobri-la.”

“A verdadeira arte prescinde de manifestos e se realiza em silêncio.” 

“Alguns queriam fazer do romance uma espécie de desfile cinematográfico das coisas. Concepção absurda. Nada se afasta mais daquilo que de fato percebemos do que a visão cinematográfica.”

“A literatura que se limita a ‘descrever as coisas’, a fornecer-lhes um esquema das linhas e superfície, é, a despeito de suas pretensões realistas, a mais fora da realidade, pois corta bruscamente toda comunicação de nosso eu presente com o passado, do qual as coisas guardavam a essência, e com o futuro, onde nos convidam a gozá-lo de novo.”

“Como teria qualquer valor a literatura descritiva, se a realidade se oculta sob pequenas coisas que enumera (a grandeza no ruído distante de um aeroplano, na linha do campanário de Saint-Hilaire, o passado no sabor de uma Madeleine etc.) e por si mesmas nada significam, se não se souber desentranhar o que encerram?”

“A grandeza da verdadeira arte, da que Norpois tacharia de jogo de diletante, consiste ao contrário em captar, fixar, revelar-nos a realidade longe da qual vivemos, da qual nos afastamos cada vez mais à medida que aumentam a espessura e a impermeabilidade das noções convencionais que se lhe substituem, essa realidade que corremos o risco de morrer sem conhecer, e é apenas a nossa vida, a verdadeira vida.”

“Só pela arte podemos sair de nós mesmos, saber o que vê outrem de seu universo que não é o nosso.”

“Graças à arte, em vez de contemplar um só mundo, o nosso, vemo-lo multiplicar-se.”

“Esse trabalho do artista, de buscar sob a matéria, sob a experiência, sob as palavras, algo diferente, é exatamente o inverso do que, a todo instante, quando vivemos alheados de nós, realizam por sua vez o amor-próprio, a paixão, a inteligência e o hábito.”

“Esta arte, tão complicada, é justamente a única viva. Só ela exprime para os outros e a nós mesmos mostra a nossa própria vida.”

“E compreendi que a matéria da obra literária era, afinal, minha vida passada.”

“(O literato) quando escreve, não há um só gesto de suas personagens, um tique, um modo de falar que não lhe sejam ditados à inspiração pela memória; não há um só nome de personagem inventada sob o qual não possa colocar sessenta nomes de pessoas reais, das quais um pousou para os trejeitos, outra para o monóculo, esta para a cólera, aquela para o movimento imponente do braço etc.”

“Não é certo que, para a elaboração literária, não sejam a imaginação e a sensibilidade qualidade mais ou menos equivalentes, que a segunda não possa sem maior dano substituir-se à primeira, como em pessoas cujo estômago é incapaz de digerir, e o intestino lhe faz as vezes. Um homem dotado de sensibilidade poderia, ainda que não tivesse imaginação, escrever romances admiráveis. O sofrimento que outros lhe causassem, seus esforços para evitá-lo, os conflitos que daí lhe resultariam com pessoas cruéis, tudo isso, interpretado pela inteligência, forneceria matéria para um livro, não apenas belo como se fosse imaginado, inventado, mas também, até para o próprio autor, quando feliz e livre, tão estranho, tão surpreendente, tão acidental como um capricho fortuito da fantasia.”

“O escritor, se quiser alcançar o volume, a consistência, a generalidade, a realidade literária, precisa de vários seres para um só sentimento, porque se a arte é longa e breve a vida, pode-se também dizer, ao contrário, que, se é curta a inspiração, muito mais longos não são os sentimentos a exprimir.”


85 frases gerais

“Nossa personalidade social é uma criação do pensamento alheio.”

“Tentamos achar nas coisas, que por isso nos são preciosas, o reflexo que nossa alma projetou sobre elas, e desiludimo-nos ao verificar que as coisas parecem desprovidas, na natureza, do encanto que deviam, em nosso pensamento, à vizinhança de certas ideias.”

“Os fatos não penetram no mundo em que vivem nossas crenças (...), e uma avalanche de desgraças ou doenças que se sucedam ininterruptamente em uma família não a fará duvidar da bondade de seu Deus ou da competência de seu médico.”

“As mesmas emoções não se produzem simultaneamente, em uma ordem preestabelecida, em todos os homens.”

“Da mesma forma que não é a um homem inteligente que outro homem inteligente terá medo de parecer tolo, não é da parte de um grão-senhor que um elegante receará não ver reconhecida sua elegância, mas da parte de um rústico.”

“Só há duas classes de criaturas: as magnânimas e as outras.”

“Habito a muitos milhares de metros acima dos pântanos onde grulham e gralham essas misérias.”

“Saber nem sempre permite evitar.” 

“A realidade é, pois, alguma coisa que não tem nenhuma relação com as possibilidades.”

“Todas as coisas da vida que uma vez existiram tendem a recriar-se.” 

“Tão múltiplos são os interesses de nossa vida que não é raro que, numa mesma circunstância, os marcos de uma felicidade que ainda não existe estejam pousados ao lado da agravação de um mal de que sofremos.”

“Felicidade, essa folha arrancada de um outro capítulo.”

“Mesmo sob um simples ponto de vista realista, as terras que desejamos ocupam a cada momento muito mais espaço em nossa vida verdadeira do que a terra onde efetivamente nos achamos.”

“Um observador que só vê as coisas de fora, não vê nada.”

“Os lugares que conhecemos não pertencem tampouco ao mundo do espaço, onde os situamos para maior facilidade. (...) As casas, os caminhos, as avenidas, infelizmente são fugitivos, como os anos.”

“Semelhante aos calidoscópios que giram de tempos em tempos, a sociedade coloca sucessivamente de modo diverso elementos que supunham imutáveis e compõe uma nova figura.” 

“As belezas que mais cedo se descobrem são também as que mais depressa nos cansam.”

“Cada qual considera claras as ideias que estão no mesmo grau de confusão que as suas.”

“Ninguém inventa tudo o que diz, principalmente quando nos comportamos como personagens sociais.”

“Nossa memória não nos apresenta habitualmente as recordações na ordem cronológica.”

“O soldado está convencido de que tem diante de si um espaço de tempo infinitamente adiável antes que o matem; o ladrão, antes que o prendam; o homem, em geral, antes que o arrebate a morte.”

“Só se pode suportar a ausência considerando que há de ser curta.”

“Tornamo-nos morais quando somos infelizes.”

“A coisa nenhuma é dado permanecer e durar, nem sequer à dor.”

“A maior parte da nossa memória está fora de nós, numa viração de chuva, num cheiro de quarto fechado ou no cheiro de uma primeira labareda. (...) Fora de nós? Em nós, para melhor dizer, mas oculta a nossos próprios olhares (...). Graças tão-somente a esse olvido é que podemos de tempos em tempos reencontrar o ser que fomos.”

“A tranquilidade é coisa desconhecida, pois estamos sempre cercados de monstros e deuses.”

“A adolescência é a única época em que se aprende alguma coisa.”

“Cada um de nossos amigos tem os seus defeitos e, para continuar a estimá-lo, cumpre que nos esforçamos por nos consolar desses defeitos, pensando em seu talento, em sua bondade, ou em seu afeto (...). Por infelicidade, a nossa complacente obstinação em não ver o defeito do amigo sempre se vê superada pela obstinação sua em mostrá-lo.”

“Pelo menos por prudência nunca deveria a gente falar de si mesmo, pois é esse um tema em que seguramente a nossa visão e a alheia não coincidem nunca.”

“A maior das tolices é considerar censuráveis ou ridículas as coisas que não sentimos.” 

“Graças ao egocentrismo, qualquer ser humano vê o universo estendido a seus pés, e a si mesmo.” 

“Não há homem, por sábio que seja, que em alguma época da sua mocidade não tenha levado uma vida ou não haja pronunciado umas palavras que não lhe agrade recordar e que quisesse ver anuladas.”

“A sabedoria é uma maneira de ver as coisas.”

“Modificamos incansavelmente a nossa morada em derredor de nós.”

“O que está longe nos pode ser mais conhecido do que o que se acha próximo.”

“Sentimos num mundo, pensamos e nomeamos num outro mundo, podemos estabelecer uma concordância entre ambos, mas não preencher o intervalo.”

“Cada um é homem de sua ideia; há muito menos ideias que homens, de modo que todos os homens de uma mesma ideia são iguais.”

“Todo olhar habitual é uma necromancia e cada olhar que se ama é o espelho do passado.”

“Há momentos em que se tem necessidade de sair de si mesmo, de aceitar a hospitalidade das almas dos outros.”

“Cada qual vê mais bonito o que vê à distância, o que vê nos outros.”

“Logo que deixou de ser louco, tornou-se idiota. Há males de que não se deve buscar a cura porque só eles nos protegem contra males mais graves.”

“Há uma coisa tão ruidosa como a dor: o prazer.”

“A medicina, na falta de curar, ocupa-se em trocar o sentido dos verbos e dos pronomes.”

“A verdade é mais uma corrente que parte do que nos dizem e que nós captamos, por invisível que seja, do que a coisa mesma que nos disseram.”

“Cada classe social tem a sua patologia.”

“A realidade nunca é mais do que uma isca lançada a um desconhecido em cujo caminho não podemos ir muito longe.”

“O ciumento não hesita em formar ele mesmo suspeitas atrozes a propósito de fatos inocentes, com a condição de se negar à evidência diante da primeira prova que lhe trazem.”

“O ciúme é outrossim um demônio que não pode ser exorcizado e volta sempre para se encarnar em nova forma.”

“Lembramo-nos da verdade porque ela tem um nome, tem raízes antigas, mas uma mentira improvisada se esquece depressa.”

“A memória, em vez de um exemplar em duplicatas, sempre presente aos nossos olhos, dos diversos acontecimentos de nossa vida, é antes um abismo donde por um momento uma similitude nos permite sacar, ressuscitadas, reminiscências extintas; mas há mil pequeninos fatos que não caíram nessa virtualidade da memória, e que escaparão para sempre à nossa verificação.” 

“A natureza parece quase incapaz de produzir doenças que não sejam curtas. Mas a medicina encarrega-se da arte de prolongá-las.”

“Dizemos morte para simplificar, mas são tantas as mortes quantas as pessoas.”

“Agir é coisa diferente de falar, mesmo com eloquência, e de pensar mesmo com engenho.”

“A realidade é a mais hábil das inimigas.”

“Nossa memória é uma espécie de farmácia de laboratório de química, onde ao acaso se põe a mão ora sobre um calmante, ora sobre um veneno perigoso.”

“É espantoso como o ciúme, que passa o tempo engendrando pequenas suposições falsas, tem pouca imaginação quando se trata de descobrir a verdade.”

“Deixemos as mulheres bonitas aos homens sem imaginação.”

“Nunca sabemos o que se esconde em nossa alma.”

“O interesse e o medo de morrer governam o mundo.”

“Para o ciúme não há passado nem futuro, o que ele imagina é sempre o presente.”

“Saudade é um amplificador do desejo.”

“Em nós, de cada ideia, como de uma encruzilhada na floresta, partem tantas estradas diferentes.” 

“Cada dia antigo permanece depositado em nós, como numa imensa biblioteca onde há livros mais antigos, certo exemplar que sem dúvida ninguém consultará nunca.”

“Assim como há uma geometria no espaço, há uma psicologia no tempo.”

“A mentira é essencial à humanidade. Ela desempenha entre nós um papel tão grande, talvez, quanto o da procura do prazer, e, de resto, é comandada por essa procura.”

“A morte age do mesmo modo que a ausência.”

“A pretensão é vizinha da tolice.”

“A vitória pertence, como dizem os japoneses, a quem resiste um quarto de hora mais.”

“Espantoso é o público, que só julga os homens e as coisas da guerra pelos jornais, estar convencido de que julga por si mesmo.”

“É a cadeia de todas as impressões inexatas, onde nada resta do que realmente sentimos, que constitui para nós nosso pensamento, nossa vida, a realidade.”

“Um livro é um vasto cemitério onde na maioria dos túmulos já não se leem as inscrições apagadas.”

“Lá onde a vida empareda, a inteligência abre uma brecha.”

“Tudo reside no espírito.”

“O Tempo ordinariamente invisível que, para deixar de sê-lo, vive à cata de corpos.”

“A vida se nos afigura então uma lanterna mágica a mostrar, nos diversos atos, a criancinha tornando-se adolescente, amadurecendo, curvando-se para a sepultura.”

“A beleza das imagens se situa por detrás das coisas, a das ideias na frente.”

“A velhice é algo de humano.”

“A memória dura nos indivíduos menos do que a vida.”

“Embora sabendo que os anos passam, que a mocidade se transforma em velhice, que aluem as fortunas e os tronos mais sólidos, que é efêmera a glória, nosso modo de tomar conhecimento e, por assim dizer, de gravar a chapa desse universo movediço, levado pelo Tempo, é, ao contrário, estático.”

“Um nome, eis tudo quanto nos fica de um ser, não só depois de morto, mas em vida.”

“Certos defeitos prendem-se menos a tal ou qual indivíduo do que a determinada fase da existência, considerada do ponto de vista social.”

“Mesmo com dons equivalentes de memória, duas pessoas não retêm os mesmos fatos.”

“É aliás fora de dúvida que a guerra não é estratégica, mas antes patológica.”

“Não marcam as mesmas horas os relógios interiores distribuídos aos homens.”

“Eu tinha certeza de que meu cérebro constituía uma rica zona de mineração, com jazidas preciosas, extensas e várias. (...) Com minha morte, não desapareceria só o mineiro conhecedor exclusivo dos minérios, mas também as próprias minas.”

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