quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Trecho do livro de Nelson Motta sobre Glauber Rocha



A Folha de S. Paulo trouxe hoje um trecho da biografia de Glauber Rocha recentemente lançada por Nelson Motta, sobre a infância e a juventude do cineasta baiano, A primavera do dragão – a juventude de Glauber Rocha (Objetiva, 2011, 368 páginas, R$56,90).

Dono de uma escrita refinada, nem importa muito se seu livro é profundo ou não. Importa, isso, sim, o relâmpago verbal pelo qual se podem ver certos traços da personalidade de Glauber. Um dia virá a biografia definitiva.


TRECHO

Glauber estudava na sala com Bananeira e Guerrinha, quando Lucinha entrou silenciosamente, sem ser notada. (...) quando acendeu a luz, deu um grito: "Glauber, meu filho! Corre! Um ladrão!"

Um negro alto e forte, ofuscado pela claridade súbita, pilhava o armário do quarto.

O ladrão, assustado, colocou a mão numa faca que levava na cintura.

Com cuidado e gestos lentos, Glauber passou o braço sobre os ombros da mãe e a tranquilizou, dizendo alto o suficiente para que o ladrão ouvisse: "Calma, mãe, este homem não é um ladrão: ele está é com fome."

"Não estou com fome porra nenhuma! Eu sou é ladrão!", reagiu o negro, surpreso e ameaçador, apontando a faca (...)

"Ô, meu filho", disse Glauber em tom paternal, "é claro que você não é um criminoso, você é um cara jovem, bonito, cheio de vida, as mulheres devem gostar muito de você. Vamos resolver logo isso. Venha cá". E se encaminhou para a cozinha com Lucinha e os amigos, fazendo um sinal para que o ladrão o seguisse.

[...]
Enquanto Caetano se vestia apressado no quarto, Necy abriu a porta e Glauber entrou esbravejando. Assustado, Caetano ouviu-os conversando na cozinha, e Necy tranquilizando o irmão ciumento: não estava traindo seu marido, era só um amigo bicha de Salvador.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

A arquitetura do sensível: História das lágrimas



“De uma maneira ou de outra, chora-se sempre um pouco com as palavras e imagens do seu tempo.” Esta sentença da historiadora francesa Anne Vincent-Buffault, em seu livro História das lágrimas: séculos XVIII e XIX (Paz e Terra, 1988, 316 páginas, tradução de Luiz Marques e Martha Gambini), parece dizer o óbvio, mas, a rigor, faz o recorte de um tipo de reação humana que sempre houve na história, cujos espaços e causas, no entanto, mudam-se de era em era.

Hoje em dia, um homem chorando diante da TV é vergonhoso para ele, é constrangedor para todos que estejam presentes. Mas num estádio de futebol é permitido chorar desavergonhadamente. Quando o time do coração cai para a segunda divisão, então, as lágrimas podem vir em rios, que são aceitas e até comovem.

Uma das cenas mais emocionantes, neste caso, foi ver a torcida corintiana cantar e chorar, no final de 2007, quando o Corinthians não sustentou o peso do campeonato brasileiro da primeira divisão e caiu, para reerguer-se no final de 2008. Torcedores, homens e mulheres, choravam e cantavam numa cena de cortar o coração, se não se levarem em conta aqui a rivalidade e a mesquinharia.

Ulisses chora

Também na Grécia antiga as lágrimas rolavam solto até mesmo entre os homens. De vez em quando surgia um sentimento de pudor entre eles por serem pegos chorando, mas ninguém se privava da emoção por causa disso. Pelo menos foi o que a literatura nos deixou como legado da sentimentalidade grega. Em Odisseia, Ulisses chora a saudade de casa, chora as lembranças de Penélope, que por sua vez debulha-se em lágrimas à espera do marido.

Os companheiros de Ulisses, juntos, também choram. Na passagem do herói aqueu pelo Hades, ao reconhecer velhos amigos já mortos, ele se acaba em lágrimas. A hipérbole aqui é um recurso da retórica das lágrimas, mas não foi criada em nosso tempo. Homero já sabia unir muito bem o doce sentimento do choro com a selvageria do alto mar. Em Odisseia, a metáfora que liga o mar com as lágrimas de Ulisses é visível e grandiosa.

Após o fim da guerra de Troia, Ulisses começa a voltar para casa, na ilha de Ítaca, onde Penélope, o filho Telêmaco e o cachorro Argos esperam pelo retorno do herói. Ele demorou vinte anos para regressar. Durante todo esse tempo vagou perdido, e em muitas ocasiões encontrou-se prisioneiro, sempre por vingança de Poseidon, porque Ulisses havia cegado o único olho do Ciclope Polifemo, filho do deus dos Mares.

Um exemplo de choro e abandono de Ulisses é quando ele está na ilha de Ogígia, prisioneiro da bela Calipso. Em suas andanças de mensageiro, Hermes chegou a se deparar com a ninfa, mas não viu o herói, “sentado na praia, no mesmo lugar onde, todos os dias, as lágrimas, os suspiros e as aflições lhe dilaceravam o ânimo, contemplando, choroso, o incansável mar.”

Muitos historiadores, e até filósofos, se debruçam anos a fio sobre as pegadas do riso, do medo, do amor, mas raro é encontrar alguém que queira falar das lágrimas. Tão abundantes e, talvez por isso mesmo, tão ignoradas como aspecto social. Foi exatamente por esta razão, para resgatar o significado do choro e das lágrimas que Anne foi aos registros dos séculos XVIII e XIX.

Seu objetivo era demonstrar como nasceu a sentimentalidade ocidental, cujo legado herdamos na contemporaneidade, com modificações profundas, é verdade, mas com a raiz, segundo ela, ainda desse tempo. Ela faz algo semelhante ao que fez o suíço Denis de Rougemont, guardadas as devidas proporções, com o livro História do amor no Ocidente.

Origem burguesa

Em História das lágrimas, a autora vai buscar principalmente nos romances, mas em outras fontes também, a cultura do choro. “Foi lendo romances do século XVIII, onde os personagens masculinos choram com uma volúpia inequívoca, que, de meu lado, encontrei essa surpreendente questão das lágrimas”, diz ela.

Inspirando-se em reflexões sutis sobre o assunto em outros intelectuais e pesquisadores como Roland Barthes, “em que sociedades, em que tempos chorou-se? Desde quando os homens (e não as mulheres) não choram mais? Por que a um certo momento a sensibilidade tornou-se pieguice?” e Norbert Elias, “no século XVII os homens podiam chorar em público; hoje isso tornou-se mais difícil e raro. Somente as mulheres conservam esse direito. Ainda por quanto tempo?”, Anne vai cavando a literatura, as cartas e os diários dos séculos XVIII e XIX e desmontando a origem burguesa das lágrimas.

É claro que o recorte que ela faz é da história das mentalidades, mesmo que para isso vá atrás da recriação do real por meio da arte. Aliás, a arte tem sempre um papel preponderante nas questões do comportamento, principalmente quando se trata da emoção. É seu campo genuíno. O crítico literário Haroldo Bloom chega a dizer que Shakespeare inventou a concepção moderna do humano, com toda a carga de sentimento e reflexão que traz.

Em todo caso, se levarmos em conta a pesquisa de Anne Vincent-Buffault, em relação aos homens, sempre, porque as mulheres mantiveram o direito de chorar, o que agora é reservado à intimidade e, no máximo, ao escuro espaço do cinema e às situações limites do futebol, era público no século XVIII.

Ali, as lágrimas começaram a brotar da situação forjada por uma nova atitude social, da ascensão burguesa, da criação de uma nova estética, em que homens choravam no teatro e saíam dos espetáculos com lencinhos enxugando as lágrimas. Só na segunda metade do século XIX, diz a autora, é que “a lágrima rara torna-se ascendente da sensibilidade masculina.”

Estoicos

Por se deter na pesquisa desses dois séculos, a autora não responde por que houve uma ruptura das lágrimas entre os gregos antigos e seus herdeiros da civilização ocidental, a ponto dessa cultura das lágrimas ter renascido apenas no ambiente da Revolução Industrial e culminar no espaço da Revolução Francesa, onde cabeças rolavam todos os dias e os sentimentos ficaram mesmo à flor da pele.

Não foi por falta de conhecimento, claro. Anne cita Ulisses e reconhece o exemplo dos heróis gregos que “mesmo soluçando jamais perdiam a capacidade de agir com coragem.” A impressão que se tem é que a sensibilidade grega, e sua propensão ao choro, sofreu grande baixa com a influência do estoicismo, filosofia criada por Zenão de Cício, em 300 a.C., um pouco depois da existência de Sócrates. Os estoicos pregavam o domínio das paixões, nada de emoções exacerbadas, que indicavam fraqueza moral.

História das lágrimas é tão peculiar, por falar de algo estranhamente contraditório, ao mesmo tempo revelador de emoções e signo do ridículo, mas é também um livro essencial para pesquisadores da história da arte, por exemplo. É mais do que isso. No entanto, sua razão de ser publicado justifica-se com este fato, o de trazer à tona a dica de como se forja a sensibilidade.

As lágrimas de sensibilidade, diz a autora, “encontram-se no cume da hierarquia dos signos de prazer que o corpo exprime. Desta forma, o artista que se dedica ao gênero lacrimejante deve não somente ser sensível, mas também possuir um profundo conhecimento do coração humano para ser capaz de provocá-las.”

(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente na Tribuna do Planalto)