domingo, 31 de maio de 2009

ABISMO POENTE: rancor e remorso no sol da memória

“um mar latindo no barranco de suas pálpebras, helena, quando o oriente se punha no sol de suas bochechas e era um luto aplacado no assoalho de suas feições, aquele acanhado disfarce que nomeei abismo poente.”
Narrador de Abismo Poente

“Escreve-se para chegar ao nada. O enredo, por exemplo, é uma das coisas menos importantes no romance. É o artifício que o autor usa para prender o leitor, para engabelá-lo enquanto bate sua carteira.”
Autran Dourado



Ninguém lembra uma história inteira começando do dia ou da hora mais recente. É preciso cavar o tempo. E há sempre algo que ficou para trás e que se ligará com o que ainda está por vir. Uma lembrança, portanto, entrecortada de saudade ou não, é um vertiginoso subir e descer do sol no horizonte da memória.

O mais recente livro do escritor mineiro Whisner Fraga nos mostra a dimensão poética desse drama épico que existe em cada um de nós, que faz do homem um guardador de fantasmas, quando os projetos de vida não deram certo.

Abismo poente (Ficções, 2009, 112 páginas) é essa tonalidade suspensa que o leitor pode puxar e transformar num sussurro delirante ou num grito, marcados pelo ritmo da prece, da encenação dramática, massa forjadora de um novo amanhã, da esperança sustentada pelo vão de um mundo em ruínas.

Se considerarmos que a arte da narrativa é o instrumento de fusão entre nossa emoção e a beleza construída pelo autor do texto, Abismo poente está no rol do que existe de melhor da literatura brasileira dos últimos anos.

Whisner Fraga, aos 37 anos, faz parte da novíssima geração de escritores brasileiros, mas já se coloca entre os grandes. Quando digo ‘grandes’, refiro-me a nossos contemporâneos, Milton Hatoum, Wilson Bueno, João Ubaldo Ribeiro, Raimundo Carrero, todos já passados dos 50. Junta-se a outros, próximos de sua idade, um pouco mais velhos, que também se destacam e têm muito mais mídia, como Luiz Ruffato e Miguel Sanches Neto.

Não se trata de comparação de linguagem, do fazer literário, mas do nivelamento da qualidade autoral. Whisner Fraga já demonstrou sua capacidade de olhar para a miséria humana em trabalhos anteriores, sempre com títulos que trazem consigo o germe da beleza do texto, como Coreografia dos danados, A cidade devolvida e As espirais de outubro.

Com Abismo poente, ele demonstra habilidade para falar de uma miséria mais calada na alma, uma memória cheia de angústia, remorso, rancor e culpa. Este livro – que pode ser lido como romance ou contos (em que ambos os gêneros ficam indefinidos) – tem como fio condutor a figura de Helena, o amor de infância do Narrador, paixão que fracassou na formalidade, por ela ter sido prometida a outro, por ela ser de família árabe (libanesa) e não poder decidir seu próprio destino.

A luta para se ver livre desse compromisso firmado pelo pai, Youssef, custou caro a Helena. E ao Narrador também, que, por isso mesmo, lamenta a desgraça em que todos caíram, em que os dois foram forçados a marcar encontros na clandestinidade por sucessivos anos. Nos nove capítulos ou contos, as antenas do autor souberam captar, com sensibilidade, o drama humano, o nervo do sofrimento.

até a devastadora elegia do rumor de seus peitos bicando os enredos da seda, helena, até o arroio dos cabelos recortando a deformada geometria do ar, embebendo com sua volúpia o recato dos ombros, o sol gotejante nas caldas de suas pálpebras, até à ostentosa hierarquia da obediência – danadamente, helena, você foi a caçula e era seu encargo se submeter a todos os irmãos, mesmo a afif, um ano e pouco mais velho. que uso poderia maquinar uma criança de onze anos para semelhante autoridade?

A poesia e o eco

O Narrador é um personagem sombrio e evasivo. Fala muito mais dos outros do que de si mesmo, embora esteja presente em quase todas as cenas. Sabemos que é engenheiro, mas não é um brucutu, é culto, sensível e solitário. Mora sozinho numa chácara, onde encontrou “no álcool um pai.”

Viveu nos arredores da família de Youssef e tem uma idade próxima dos 40 anos, meia idade, portanto, um período da vida em que a crise existencial pode bater à porta e causar um estrago inimaginável. E é mais ou menos o que lhe acontece, ao desencadear as lembranças de Helena e do mundo ao redor em seu apelo.

No decorrer dessa súplica, o hino amargo em louvor a Helena, também vemos os desencontros do Narrador com outros amores e até outras pessoas, como os irmãos de sua amada, Afif, Astun e Wadiha. E é este fio apelativo que puxa as lembranças adjacentes e vem arrastando como forte correnteza os detritos da memória.

Em seu jogo de cena, o Narrador envolve o leitor e tem consciência disso. Ele registra e repete na memória sua súplica. É uma repetição do vivido, portanto, um eco, e ele sabe disso, ele quer que essa dor seja transmitida. “aceito o eco como o instrumento essencial da humanidade.”

Repete o amor malogrado, mas também a covardia e a culpa. Em duas ocasiões, ele testemunha a violência contra mulheres, mas não faz nada, e o resultado é a dor do remorso.

Abismo poente é uma perfeita simetria entre os gêneros prosa, poesia e teatro. Dá para imaginar as caras e bocas do Narrador no palco, ao falar mais das dores do que das flores, que também houve.

Dá para seguir a musicalidade em tom de súplica e as pegadas das frases como se fossem versos soltos, como se o Narrador fosse aedo de si mesmo, e dá para correr o olho, até se perder de vista, na teia formada pela prosa invulgar do autor.

um dilacerante cacarejar tentava colher a respiração da manhã, antes do sol, o calafrio da neblina gemia nos espasmos finais dos sonhos, o alarde da natureza a hipnotizar a ressaca dos músculos, o celulóide das nuvens soluçando entre um cinza persistente e um rubro desmaiado e interesseiro, um louvor de recompensas se espraiando pela frouxidão de um dia de trégua: era sábado.

Esta bela passagem é um exemplo da poeticidade que há no texto de Fraga. O Narrador não se contenta em descrever o dia de sábado amanhecendo, ele quer mais, quer despejar o encanto da palavra para provar que há beleza em meio à desgraça que carrega consigo.

Entre os procedimentos usados nesta técnica de narrar, a metáfora e a metonímia têm um lugar de destaque, como na frase usada para se referir ao sexo de Helena: “espaçoso e incógnito artefato de delícias”, e na aproximação do profano e do sagrado: “avistávamos o orgasmo como um atalho até deus.”

A memória como abismo

Toda a narrativa é um monólogo, recurso que aproxima o texto da linguagem teatral em função do apelo corporal implícito nas frases. A dinâmica desse monólogo se dá também pela captação de todas as esferas da realidade histórica e os matizes da cultura, mesclando com precisão os elementos pops e eruditos, como a inclusão dos nomes de Cid Moreira e David Hume, em diferentes contextos.

Outras cenas entram como pano de fundo: a readaptação das famílias árabes no Brasil, vindas do Líbano e da Síria (mas cujos membros eram chamados de turcos, porque usavam passaporte turco, por razões políticas) e os conflitos religiosos e de fé.

Esse pano de fundo também traz a lembrança do período militar e seu conflito com os movimentos de esquerda, até chegar aos dias de hoje, em que há “mascates com cds piratas” e “casas de massagens se espreguiçando, acordando suas meninas para as aulas nas universidades caça-níqueis, garotos bocejantes infeccionando os cursos de direito, administração, fisioterapia, turismo.”

A fala apelativa de Abismo poente, semelhante ao que se vê na poesia, aproxima o autor do estilo do português António Lobo Antunes. Aproxima, mas o livro de Fraga também apresenta uma voz própria, uma respiração sui generis.

Até mesmo a feitura homogênea da grafia remete o leitor a uma espécie de abismo. Neste caso, o autor mais uma vez busca o recurso poético. Caixa baixa, à la Cummings, do princípio ao fim, criando uma sensação de nivelamento.

A sensação é falsa, pois não há nivelamento. O que há é um abismo recorrente, porque em cada ponto, após o qual esperamos um início de frase com maiúscula, vem a palavra em minúscula. É como se caíssemos de um precipício verbal, algo como caminharmos num trilho onde o próximo passo seria um degrau acima, levantarmos o pé na altura programada, bem mais alto, mas o que temos embaixo é o mesmo chão de sempre.

O título Abismo poente empresta ao livro uma metáfora englobante. Além de se referir à migração libanesa, da dificuldade de readaptação em solo ocidental, onde o sol se põe, há a indubitável queda do ser, o fracasso amoroso, resultado de uma intransigência. Conforme o texto da epígrafe, o abismo é a memória de Helena. É a memória.

sábado, 30 de maio de 2009

PARA ESTUDAR BATAILLE

Bataille: escritor que encarou a arte da palavra como absoluta transgressão dos valores

O francês Georges Bataille influenciou muita gente, direta ou indiretamente. O brasileiro Marcelo Mirisola, por exemplo, é um deles. A violência de O azul do filho morto, de Mirisola, tem muito a ver com a obscenidade do autor de A literatura e o mal e O azul do céu. É um tipo de literatura que vai a fundo na proposta de transgressão.

Para quem se interessa por essa vertente de texto literário e quer estudar Bataille, a edição de História do Olho feita por Cosac Naify traz uma ótima sugestão de leitura. Segue abaixo:

Georges Bataille testemunhou, em vida, o lançamento de três edições da História do olho, todas sob o pseudônimo de Lord Auch. A primeira, publicada por René Bonnel e ilustrada por André Masson, apareceu em 1928; a tiragem clandestina, de 134 exemplares, omitia os nomes do editor e do ilustrador. A segunda, na versão que é objeto desta tradução, embora trouxesse na capa a inscrição ‘Sevilha, 1940’, foi na verdade publicada em 1945 pela editora francesa K, contendo seis gravuras de Hans Bellmer. Fruto de uma revisão do autor que resultou em significativas modificações no texto, essa edição suprimia igualmente as referências ao editor e ao ilustrador nos seus 199 exemplares. Outra impressão clandestina dessa ‘nova versão’, dita então de ‘Burgos, 1941’, foi lançada por Jean-Jacques Pauvert em 1952, com tiragem de 500 exemplares. As duas versões da novela encontram-se no primeiro volume das Obras completas de Georges Bataille, publicadas pela Gallimard com apresentação de Michel Foucault.

Entre os títulos mais relevantes da obra batailliana estão alguns ensaios que, com sorte, podem ser encontrados em traduções brasileiras ou portuguesas: A noção de despesa – A parte maldita (Rio de Janeiro: Imago, 1975), O erotismo (São Paulo: Arx, 2004), A experiência interior (São Paulo: Ática, 1992), Teoria da religião (São Paulo: Ática, 1993) e A literatura e o mal (Lisboa: Ulisseia, s/d.). O mesmo vale para textos de ficção como Minha mãe (São Paulo: Brasiliense, 1984), O azul do céu (São Paulo: Brasiliense, 1986) e O padre C. (Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999). Em edição esgotada, há uma outra tradução da História do olho, assinada por Glória Correia Ramos (São Paulo: Escrita, 1981).

A biografia mais completa do escritor é Georges Bataille, La mort à l’oeuvre (Paris: Gallimard, 1992), assinada por Michel Surya. O mesmo biógrafo organizou o volume intitulado Georges Bataille – Une liberte souveraine (Tours: farrago, 2000) que reúne uma série de entrevistas concedidas entre 1948 e 1958. Um perfil mais breve do autor foi traçado por Alain Arnaud e Gisele Excoffon-Lafage em Bataille (Paris: Seuil, 1978), e outro por Sarane Alexandrian em ‘Georges Bataille e o amor negro’, capítulo do livro Os libertadores do amor (Lisboa: Antígona, 1999).

Entre as obras fundamentais sobre o escritor destaca-se um volume da revista Critique intitulado Hommage a Georges Bataille (número 195-196, Agosto-Setembro 1963) que reúne textos de contemporâneos e amigos como Rland Barthes, Maurice Blanchot, Pierre Klossowski, Michel Leiris e André Masson. Um estudo seminal é La Prise de La Concorde (Paris: Gallimard, 1974), assinado por Dennis Hollier, que também organizou o volume Le Collège de Sociologie 1937-1938 (Paris: Gallimard, 1979). Outro trabalho de fôlego, concentrado na análise do romance O azul do céu, é L’indifférence dês ruines de François Marmande (Paris: Parenthèses, 1985). Jean Michel Besnier propõe uma instigante interpretação do pensamento de Bataille nos livros La politique de l’impossible (Paris: La Découverte, 1988) e Éloge de l’irrespect (Paris: Descartes & Cie, 1998). No Brasil, há o ensaio de Eliane Robert Moares, O corpo impossível, que examina o projeto batailliano de ‘decomposição da figura humana’ (São Paulo: Iluminuras/FAPESP, 2002).

O impacto das ideias do autor da História do olho sobre os estudiosos das artes visuais é digno de nota. Algumas reflexões contemporâneas sobre estética têm por base a ‘teoria do informe’ de Bataille, como é o caso de La ressemblance informe ou le gai savoir de Georges Bataille, de Georges Didi-Huberman (Paris: Macula, 1995), ou de Formless – A user’s guide, assinado por Yve-Alain Bois e Rosalind E. Krauss (new York: Zone Books, 1997). Merece a atenção do leitor o décimo número da revista La part de l’oeil (Bruxelas, 1994) que traz um dossiê sobre ‘Bataille e as artes plásticas’.

Entre os estudos voltados exclusivamente à História do olho destaca-se o notável ensaio de Marie-Magdaleine Lessana, publicado em conjunto com uma reedição de luxo da novela: De Borel à Blanchot, une joyeuse chance, Georges Bataille (Paris: Pauvert/ Fayard, 2001). Vale conferir ainda a extensa apresentação de Mario Vargas Llosa, ‘El placer glacial’, à edição espanhola (Barcelona: Tusquets, 1986). Michel Foucault dedicou longas passagens do seu ‘Prefácio à transgressão’ ao exame da metáfora visual na obra de Bataille; o ensaio está recolhido no quarto volume dos Ditos e escritos (Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1999). Susan Sontag analisa a História do olho como um dos textos exemplares da moderna ficção erótica no ensaio ‘A imaginação pornográfica’, incluído no livro A vontade radical (São Paulo: Companhia das Letras, 1987).

quinta-feira, 28 de maio de 2009

UM POEMA DE YEATS

The old men admiring themselves in the water

“I heard the old men say,
‘Everything alters,
And one by one we drop away.’
They had hands like claws, and their knees
Were twisted like the old thorn trees
By the waters.
I heard the old, old men say,
‘All that’s beautiful drifts away
Like the waters.’”


O irlandês William Butler Yeats (1865 - 1939), ganhador do Nobel de Literatura de 1923, é mais difícil do que T. S. Eliot, mas vale o esforço. A alteração das coisas pela passagem do tempo, a vaidade flagrada no espiar dos anos, à medida que o próprio sujeito poético envelhece, são temas contidos nesse pequeno poema.

Tudo que é belo se esvai, escorre como a água. Às vezes nos afastamos tanto do ciclo natural das coisas, que esquecemos que também fazemos parte desse ciclo, desse devir inexorável.

O poema de Yeats nos joga de volta ao rio da certeza, nos põe face a face com a noção do efêmero. Tudo altera, e, um a um, decaímos como gotas de chuva que descem das nuvens para completar seu ciclo.

O sujeito poético ouve os velhos conversarem enquanto se olham no espelho da água, mas ele também sofre a passagem do tempo, sutilmente, e vemos isso pelo eco da palavra old no antepenúltimo verso.

Não há beleza que resista ao tempo, é verdade. Um dia, ela fenece, perde o valor que lhe era atribuído. Tudo altera, inclusive nossa percepção.

terça-feira, 26 de maio de 2009

UMA OPORTUNIDADE PARA ALICE MUNRO

Alice: extasiada e feliz

A escritora canadense Alice Munro (1931 - ) acaba de ganhar o Man Booker International Prize, prêmio realizado de dois em dois anos desde 2005 na Inglaterra.

Seu livro de contos Fugitiva foi publicado no Brasil em 2006. Nunca a li, mas talvez esta seja a oportunidade de conhecer o trabalho dela, que é considerada um dos maiores ícones da literatura atual do Canadá. O que não diz muita coisa, afinal, não se conhece muito sobre a literatura canadense.

O Man Booker International Prize é uma espécie de irmão bem mais moço do famoso Booker Prize, que em 2008 completou quatro décadas de existência. Além de Munro, ganharam o jovem prêmio, pelo conjunto da obra e sua importância no cenário internacional, Ismail Kadaré (2005) e Chinua Achebe (2007).

O prêmio pagou à escritora a quantia de 60 mil libras esterlinas, quase 100 mil dólares.

quarta-feira, 20 de maio de 2009

CATHERINE MILLET: a amante da suruba sem preconceito

Catherine: respeitada no meio das artes, escreveu um blockbuster erótico

A maioria dos frequentadores da FLIP (Festa Literária Internacional de Paraty, de 1 a 5 de julho), entre Marias Rodapés (termo cunhado por Marcelo Mirisola), leitores assíduos e admiradores de celebridades das letras, vai para ver todo mundo. Mas há os que vão para ver um ou dois escritores de sua predileção.

Neste sentido, uns vão por causa de Gay Talese, jornalista e escritor, ex-diretor de redação do New York Times, autor de O reino e o poder e Vida de escritor, que será lançado na Feira, digo, Festa, outros querem assistir a António Lobo Antunes, excelente escritor português.

Outros mais querem ir à FLIP para ver e ouvir Catherine Millet, crítica de arte e diretora de redação da revista Art Press, autora de inúmeros livros sobre arte, mas foi A vida sexual de Catherine M. (ela mesma) que mais fez sucesso. Trata-se de uma mulher da classe média alta parisiense, intelectual respeitada, que teve a coragem de publicar um livro expondo toda sua intimidade de ninfomaníaca.

Nas primeiras páginas de A vida sexual de Catherine M., ela já diz: “Deixei de ser virgem aos 18 anos – que não é especialmente cedo –, mas participei de uma suruba pela primeira vez nas semanas que se seguiram a minha defloração.”

E a partir daí, ninguém segura a mulher. O livro é tão chocante, tão sincero e aberto que me espanto só em relembrar certas cenas. Ela mesma diz que foi “amante da suruba sem preconceito”, e relata cabeludas histórias.

Numa delas, descreve, sempre explicitamente, uma orgia em que ficava de quatro, sendo penetrada, ao mesmo tempo que fazia sexo oral, enquanto duas filas intermináveis de homens iam se desenrolando à sua frente – em que ela só via o balançar de inúmeros testículos – e atrás.

Mas, se engana quem imaginar que Catherine era vulgar na narrativa. Ela tem estilo. Acho que sua maior fonte de inspiração para escrever essas crônicas sexuais foi Georges Bataille.

Não foi a primeira a escrever sobre sua intimidade sexual, é verdade. Antes dela, por exemplo, houve Françoise Sagan, que publicou Bom dia, tristeza. Mas era diferente, não chegava a esse nível de explicitação. Depois dela, vieram as ninfetas Lolita Pille, com Hell - Paris 75016, e Melissa Panarello, com 100 escovadas antes de ir para a cama. Mas nenhuma chega aos pés de Catherine.

Em seus relatos, Catherine demonstra ter ao menos tentado explorar os limites dos atos sexuais, em número de parceiros e em situações. A abordagem mais leve da narrativa é “suruba”. Mas há qualidade em seu texto, que nunca explora questões subjetivas, nem faz sondagem psicológica do sexo. É sempre direta, objetiva.

Nos espaços em que demonstra sua capacidade literária, ela descreve cenas como esta: “Havia verões particularmente agitados, marcados pela circulação incessante de parceiros sexuais, esporadicamente reunidos em pequenas surubas à luz do sol, atrás de um pequeno muro de um jardim acima do mar, ou à noite em idas e vindas entre os numerosos quartos de uma grande casa de veraneio.” É lírico, meio bucólico até.

Catherine era casada na época e continuou casada depois, com o mesmo homem. Recentemente ela publicou outro livro, Jour de souffran, mais subjetivo, descrevendo seu estado d’alma em função das conseqüências de ter um casamento aberto, exposto às intempéries do ciúme.

segunda-feira, 18 de maio de 2009

OS DESTINOS DE ROMEU E JULIETA: entrevista com Fernando Nuno

Nuno: "Shakespeare reciclou os sentimentos humanos"

Em 2005, fiz uma matéria para a revista Superinteressante na seção Surreal: E se Romeu e Julieta não tivessem morrido? É claro que muitos críticos literários fecharam a cara para a questão, alegando que se tratava de personagens, não de pessoas reais.

Mas muitos outros embarcaram na brincadeira, porque sabiam que não haveria nenhum prejuízo à crítica literária, nem à teoria literária, à literatura, à dramaturgia, enfim. Um dos que aceitaram o jogo foi o escritor e tradutor Fernando Nuno.

Nuno foi muito gentil ao me responder perguntas delirantes sobre os dois personagens imortalizados por Shakespeare, mas que já vinham de outras versões. Em minha biblioteca tenho inclusive uma versão anterior de Romeu e Julieta, do padre italiano Matteo Bandello (1585-1561).

Além de levantar e esclarecer diversas questões, Nuno me disse que o arquétipo de Romeu e Julieta, essa legenda amorosa, vem do mito de Píramo e Tisbe, personagens menores da mitologia grega. Aliás, a peça de Sófocles, Antígona, também tem em seus dois personagens principais, Antígona e Hêmon, a base desse mito.

Nuno é especialista em Shakespeare, tendo traduzido várias peças do dramaturgo de Stratford, adaptando-as para uma linguagem mais palatável aos jovens. Conversei com ele ao telefone várias vezes, mas é o questionário que me respondeu, extenso e valioso, que permanece em riqueza de detalhes.

Sou grato a ele por isso, pela paciência de escrever tão longas explicações e ser tolerante aos meus cochilos de leitura, pois, confesso, na ocasião da matéria, não me dera ao trabalho de ler de novo a peça, pois a tinha na memória, e a primeira pergunta é um misto de desastre e ignorância.

O resultado da entrevista com Nuno é um resumo da peça e uma bela análise. Agora segue o texto para quem tiver fôlego e se interessar pelo assunto.

Se Romeu e Julieta não tivessem morrido ...

Gilberto G. Pereira: Será que eles conseguiriam se casar sem o consentimento dos pais?

Fernando Nuno: Na verdade, Romeu e Julieta se casam, na história de Shakespeare. A peça é dividida em cinco atos, e o casamento acontece bem no meio da trama, no terceiro ato.

Frei Lourenço casa os dois em segredo. A idéia do frade é aproveitar a ligação entre Julieta Capuleto e Romeu Montecchio para promover a conciliação entre as duas famílias inimigas: os dois chegam a passar a chamada “noite de núpcias” juntos. O combinado entre os três é que rei Lourenço vá procurar as duas famílias e falar sobre a paixão repentina entre os dois jovens e a consumação do casamento, sobre a qual não haverá como voltar atrás.

É certo que muito ranger de dentes ainda se fará ouvir, mas a expectativa (ou ilusão) do frade é que, contando com o casamento já realizado, os Capuletos e os Montecchios finalmente acabarão por se entender.

Em suma, eles conseguiram se casar sem o consentimento dos pais. Para isso bastou a boa vontade de um clérigo bem-intencionado que julgou ver no casamento a oportunidade para conciliar inimigos históricos. O problema é que, por uma série de mal-entendidos, a paz só se fez tragicamente, com a morte dos dois amantes (na verdade, já marido e mulher), não com seu casamento.

GGP: Haveria outra saída que não a morte? Como? Qual?

FN: Se formos seguir estritamente o roteiro da peça de William Shakespeare – que, lembremos sempre, é uma ficção baseada numa mescla de fatos reais e de uma história que remonta à mitologia grega –, tudo estava planejado de modo a atingir um final feliz, ou para que as duas famílias amenizassem a rivalidade, sem que os noivos precisassem morrer. Pelo menos era isso que frei Lourenço, Romeu e Julieta acreditavam ser possível.

Os desencontros que se seguiram ao casamento secreto é que ditaram o rumo trágico da história. Para começar, enquanto Julieta, pronta para se casar, espera Romeu no mosteiro, junto a frei Lourenço, ocorre mais uma briga de rua entre Capuletos e Montecchios e seus agregados.

Teobaldo, que é um primo muito querido de Julieta, acaba matando Mercúcio, melhor amigo de Romeu e primo do príncipe Escalo, governante de Verona. Romeu, que passava pelo local justamente nessa hora, a caminho de se casar, tentou apartar a briga, apesar das provocações de Teobaldo – pois nessa hora já era partidário da pacificação entre as famílias, embora os participantes da rixa não conseguissem entender por quê –, mas tudo o que consegue é matar o primo de Julieta. Romeu foge para o mosteiro e se casa com ela. Pela manhã, frei Lourenço providencia a fuga dele para Mântua, uma cidade próxima. Enquanto isso, o frade irá procurar as duas famílias e tentar um acordo, explicando a situação.

No entanto, o pai de Julieta, que é um tipo muito autoritário, muito boca e pouco ouvidos, sem saber que ela já estava casada, já ordenou que a menina se casasse dentro de três dias com um pretendente escolhido por ele, o conde de Páris. A única outra pessoa que sabe que ela já está casada com Romeu é a ama de Julieta. Com medo das reações violentas do velho Capuleto, a ama sugere que ela esqueça Romeu (afinal, ninguém sabe nada mesmo...) e se case com o conde de Páris para agradar ao pai.

Na casa dos Capuletos é preparado um grande banquete, os convidados e os músicos vão chegando, Julieta é vestida para a cerimônia. Isso arruína a ideia de frei Lourenço, que elabora um “plano B”: Julieta deve tomar uma poção de ervas que, sem matá-la, fará que ela pareça estar morta.

O casamento com o conde é suspenso, e Julieta é levada para o jazigo da família. Até aí tudo corre como planejado. O problema começa na segunda parte do plano: frei Lourenço manda um colega avisar o ocorrido a Romeu. A ideia é que ele volte às escondidas para Verona.

Quando Romeu chegar ao cemitério estará na hora de Julieta despertar, e os dois fugirão da cidade para sempre – ou para voltar quando o frade consiga explicar tudo aos pais dos dois.

O que estraga o plano é que Baltasar, o empregado pessoal de Romeu, que não estava a par do plano do frade, acredita como todo o mundo que Julieta está morta e também vai a Mântua, aonde chega antes do enviado do frade. Romeu fica desesperado, compra veneno, vem correndo para o cemitério, vê Julieta (aparentemente) morta e se suicida.

Ela acorda e, ao vê-lo morto, faz a mesma coisa – a tragédia que todos conhecem. Mas sem os imprevistos, os desencontros, não existiria a peça, a obra de arte, não teríamos a genialidade de Shakespeare exposta.

GGP: Pelo que se vê na peça, no que descreve Shakespeare, como a sociedade os aceitaria, mesmo sabendo que as famílias não haviam aprovado aquele amor? Como viveriam?

FN: Realmente, pelo que conhecemos da sociedade da época, seria difícil a convivência social das famílias. E, pela descrição que Shakespeare faz do temperamento do pai de Julieta, um tipo folgazão mas irascível e violento, os dois teriam mesmo que fugir da cidade, de preferência para bem longe. Ainda assim, estavam sujeitos a que o sogro de Romeu mandasse procurá-los e matar a ambos fosse onde fosse para restaurar a honra bélica da família.

Não se pode, por outro lado, negligenciar o papel da Igreja e dos frades da época na pacificação das famílias, que era realmente efetivo. Santa Rita de Cássia, por exemplo, fazia parte de uma família de pessoas – que tanto podiam ser religiosas como leigas – que exerciam profissional o papel de conciliadores de inimigos nessas épocas tão turbulentas (embora talvez não muito mais que hoje) da história da humanidade.

GGP: Que análise factual pode-se fazer a partir da leitura da peça?

FN: Histórias de paixões entre rapaz e moça de famílias inimigas são recorrentes e encontram paralelo em fatos reais. Os nomes das famílias Capuleto e Montecchio já aparecem trezentos anos antes de Shakespeare, na Divina comédia, de Dante Alighieri, quando a guerra civil entre guelfos (partidários do Papa) e gibelinos (adeptos do imperador) provocava verdadeiros massacres na região que vai do sul da Alemanha ao norte da Itália, onde fica Verona.

A história da paixão entre Romeu e Julieta já havia sido contada várias vezes em italiano mesmo antes de Shakespeare, que a leu na adaptação inglesa de uma versão francesa das histórias italianas e resolveu adaptá-la ele próprio.

Algumas versões situavam a ação na cidade de Sena, mais de 200 quilômetros ao sul de Verona. A essa altura, a história do amor proibido já tinha incorporado elementos do mito grego de Píramo e Tisbe, que também são rebentos de famílias rivais e se suicidam depois de um mal-entendido.

Aliás, é curioso que o Bardo, o mais adaptado dos autores, tenho sido também o maior adaptador de todos, muitas vezes reproduzindo até palavra por palavra de trechos escritos por outros autores.

O que faz a diferença, trazendo para Shakespeare os louros de – para muitos – maior autor da história da humanidade, é a maneira como ele exprime os conflitos íntimos dos personagens, a densidade de que os reveste, a forma extremamente realista com que traz à luz as nossas motivações mais torpes ou mais nobres.

GGP: Julieta, que tinha apenas 13 anos de idade, parecia bem madura, até mais madura que Romeu, certo? Era avançada para sua época?

FN: Os estudos históricos confirmam que a infância e a pré-adolescência medievais eram bem menos preservadas que hoje. As crianças eram muito mais expostas ao ambiente e às expressões adultas – principalmente nas classes populares, em que as casas não tinham ambientes propícios, e meninos e meninas não passavam o tempo nas escolas.

As crianças trabalhavam no campo, e os aprendizes dos ofícios começavam as 12 anos de idade, atingindo a maioridade legal aos 16. Na classe social de Julieta era comum o casamento temporão. Meninas de sete anos eram casadas para facilitar a transmissão e a concentração das prosperidades.

Na Inglaterra, uma menina chamada Grace de Salely se casou aos quatro anos com um nobre, enviuvou logo em seguida e se casou novamente aos seis anos, chegando ao terceiro marido com 13. Perto dela, Julieta estaria atrasada... Santa Isabel casou-se aos 12 anos com dom Dinis, o rei português que fundou a Universidade de Coimbra.

A própria Igreja acabou criando leis para proibir o casamento das meninas antes dos 15 anos, mas não resistia à pressão e acabava abrindo inúmeras exceções. Julieta é bem saidinha, e foi criada por uma ama bastante desbocada. Tem também por perto um pai que é um dos maiores faladores de palavrões nas peças de Shakespeare. Em suma, embora houvesse televisão nem cinema, o que acontecia não era muito diferente do que vemos hoje.

GGP: Por que a peça Romeu e Julieta é considerada o marco do amor romântico?

FN: Não à toa é a peça de amor mais representada do mundo. Não por acaso são as obras de Shakespeare as mais lidas depois da Bíblia e as mais representadas. Harold Bloom refere-se ao Bardo como o inventor do humano, colocando essa referência no título mesmo de sua grande obra sobre Shakespeare [Shakespeare: a invenção do humano, publicado no Brasil pela Objetiva].

Tanto barulho não é por nada. Não poderemos dizer que o resto é silêncio, mas William Shakespeare como que reciclou os sentimentos humanos. Tomou as motivações íntimas que jaziam, ignoradas ou dissimuladas, na psique e as trouxe à luz – antecipando Freud em alguns séculos, como dizem alguns especialistas. E fez isso com complacência, com cumplicidade por todos nós, sem olhar do alto, sem maldade ou desdém, deixando entrever sempre que as falhas que apontava são de todos nós, mas dele inclusive.

E as boas qualidades também. Revelou-nos com arte muito do que de mais humano existe dentro de nós, como ele passamos a ter mais consciência de nós e das diferenças de conteúdo entre as pessoas, e a essa revelação Bloom se refere como “invenção” do ser humano contemporâneo.

A frase final de Romeu e Julieta, “Pois nunca houve história mais triste do que esta de Julieta e de seu amado Romeu”, parece banal dita fora do contexto, mas torna-se divina quando surge como fecho de todas as outras que acabamos de ouvir ou ler antes dessa.

É uma frase que, isolada, pode ser ouvida sem emoção como outra qualquer, mas já vi bastante gente chorar quando a lê depois que a morte dos dois recém-casados acaba de promover a “melancólica paz” entre as famílias inimigas e como fecho das explicações de frei Lourenço.

GGP: Qual a importância de Romeu e Julieta como modelo de personagens na história da literatura universal?

FN: Tão imensa que já existia antes de Shakespeare. São até hoje um lugar-comum na literatura, desde a mitologia grega ou até desde antes. E não só na literatura: a música, o cinema, a dança, todas as artes os tomam como modelo alguma vez.

Ainda há pouco vimos um filme sobre o amor de jovens que fazem parte de torcidas de times de futebol rivais [O casamento de Romeu e Julieta (2005), do brasileiro Bruno Barreto], o tema é sempre retomado.

GGP: Por que Shakespeare não fez uma comédia de Romeu e Julieta? Não daria?

FN: Não lembro agora se foi Bloom quem disse que faltou pouco para Shakespeare fazer dessa obra uma comédia. Os elementos trágicos estão concentrados na sequência final, o que dá o tom da peça, mas por várias vezes os elementos cômicos predominam.

A ama de Julieta é um personagem hilariante. Mercúcio, que fala sem parar, é um gozador inveterado – diz-se que Shakespeare declarou que teve de matá-lo para que ele não “matasse” a peça, transformando-a definitivamente em comédia. O pai de Julieta também faz rir muito com seus impropérios, e o próprio frei Lourenço chega a ser um “sábio” um tanto atrapalhado como o Mérlim de Walt Disney em A espada era a lei.

Shakespeare era especialista em comédias, tinha faro para o sucesso de público, sabia que muitos atores agradavam mais à heterogênea plateia (as peças eram tanto encenadas na Corte quanto diante da patuleia e tinham de agradar a ambos os públicos) quando faziam rir do que quando faziam chorar.

Assim, tanto em Romeu e Julieta como em Hamlet ou Macbeth, por exemplo, com frequência as cenas mais trágicas são contrabalançadas por outras absolutamente hilariantes.

Em Romeu e Julieta, por exemplo, assim que a noiva aparece morta (pelo menos é essa a aparência da menina) na manhã do casamento com o conde Páris, a ridícula cena do luto do pai e da ama é seguida por outra mais engraçada ainda, dos músicos preocupados com o fato de que o rango prometido para o almoço pode não mais sair, uma vez que não vai haver mais casamento.

Numa outra obra, Sonho de uma noite de verão, uma comédia, Shakespeare conta outra vez essa mesma história do mal-entendimento que conduz ao suicídio dos recém-casados, mas de uma forma absolutamente hilariante. Só que ali o Bardo a apresenta na versão da mitologia, em que Romeu e Julieta são Píramo e Tisbe. Contudo, em Romeu e Julieta a forma de terminar – lembremos que “nunca houve história mais triste do que esta” – impede que Romeu e Julieta se encerre como comédia, apesar das várias oscilações ao longo do texto.

GGP: Até que ponto esta peça pode ser lida num viés político, de relação de forças na estrutura medieval?

FN: Lembremos que Shakespeare escreveu na Inglaterra, na Renascença. Assim, embora suas histórias fossem ambientadas na Grécia e na Roma antigas, ou na península italiana medieval – como Romeu e Julieta –, o tratamento que dava aos personagens era o seu próprio meio.

Assim, as situações localizadas no interior da Itália ganhavam elementos tipicamente ingleses, nos modos de dizer, no vestuário, na ambientação histórica e geográfica.

Era comum, por exemplo, numa peça passada na Grécia antiga, o Bardo fazer referência a acontecimentos da Inglaterra de quase 2 mil anos depois. Porém, como o ser humano é basicamente igual em qualquer parte, esses anacronismos não prejudicam os conteúdos.

Em Romeu e Julieta, no entanto, Shakespeare parece estar bem informado das realidades políticas italianas nos séculos anteriores a ele. A península se dividia em pequenos países rivais. Verona aparece como estado independente na peça – o que torna verossímil a existência de famílias poderosas e inimigas dilacerando a cidade, a despeito das tentativas do príncipe governante de manter a paz e a unidade.

A cidade que mais sofreu com as divisões internas entre famílias que apoiavam um ou outro dos partidos era Florença: como na Verona de Romeu e Julieta, eram comuns os crimes para vingar um assassínio anterior, sem saber quem tinha começado a mortandade.

A Igreja exerce papel político de importância no trato com os reis das grandes nações, a par de seu próprio poder temporal na região da península diretamente governada por ela. Numa cidade menor como Verona, porém, mais ao norte de Roma e fora do território papal, esse papel depende muito da personalidade e da atuação dos religiosos locais.

Aqui ela [a peça Romeu e Julieta] está representada por frei Lourenço, que se limita às funções religiosas, mas apesar do papel político reduzido busca oportunidades para promover a paz.

GGP: Na adaptação para uma linguagem mais arejada que você fez de Romeu e Julieta, há alguma situação que não existe no original?

FN: mantive todas as cenas, todas as falas. Não acrescentei nem tirei. A atualização dos textos de Shakespeare que faço se processa no terreno da linguagem. Leio e releio cada frase do original e procuro reescrevê-la como ela poderia ser dita com a maior fluência possível na nossa língua, hoje.

A intenção é fazer que o leitor brasileiro de hoje possa ler Shakespeare e compreendê-lo com a mesma fluência que as plateias de há 400 anos sentiam ao assistir às peças dele. Sem notas de rodapé.

Por outro lado, também me deleito com as traduções tradicionais, quando fiéis ao texto, cheias de notas, em que sentimos Shakespeare colocado sobre um altar ou um pedestal – coisa que ele, iconoclasta e preocupado com a comunicação imediata, talvez não apreciasse muito.

Mas gosto também de me aproximar dele dessa forma, é outra sensação. Para quem apreciar a leitura literal, o melhor mesmo é ir direto ao original inglês – o ideal seria estar lá, há 400 anos, assistindo às representações originais.

GGP: Uma vez você disse e demonstrou que muitos dos ditados que usamos hoje foi Shakespeare quem criou. Há em Romeu e Julieta alguma coisa desse tipo?

FN: William Shakespeare foi o grande frasista, tanto ao criar quanto ao se apropriar – pois hoje os estudiosos indicam que algumas das frases marcantes atribuídas a ele já eram ditados populares mais antigos. Mas as sentenças melhores, mais impressivas (e expressivas), tipo “Ser ou não ser ...”, são as criadas pelo Bardo.

Romeu e Julieta não é pródiga em frases famosas, mas contém algumas preciosidades, como a ideia de que “amor é transgressão” ou as brilhantes constatações de que “duas pessoas sabem guardar um segredo quando a primeira não o conta à segunda.”

E a ideia de que uma rosa é uma rosa, não importando o seu nome, que dá título ao romance O nome da rosa, de Umberto Eco, é desta forma reapresentada por Shakespeare quando Julieta diz a Romeu: “É só o seu nome que é meu inimigo, não é você! Você é você, não é Montecchio. O que significa ‘Montecchio’? Não é ‘mão’, ‘pé’, nem ‘braço’ ou ‘rosto’ (...). O que importa é a pessoa, o nome tanto faz. Afinal de contas, o que é um nome? O que nós chamamos de ‘rosa’ vai continuar a ter o mesmo aroma, mesmo se mudarmos o seu nome” (sigo o texto da versão atualizada por mim). Provavelmente há muito mais ditados conhecidos em Romeu e Julieta, eu é que não estou lembrando agora nesta entrevista.

GGP: Tenho aqui uma lista de possibilidades do que poderia acontecer se os dois não se matassem. Você pode comentar as seguintes possibilidades?

a) Romeu e Julieta velhinhos e juntos?

FN: Até poderia ser, mas pouco provável. Juntos até a morte de um dos dois, é possível, mas velhinhos são muito. As pessoas morriam mais cedo por motivo de saúde; além disso, a região estava conflagrada e Romeu podia acabar morto num conflito.

Tanto podia ser assassinado por alguém a mando dos Capuletos como na guerra entre guelfos e gibelinos; também poderia acabar em alguma cruzada, em terra árabe ou na Europa mesmo, levando Julieta com ele (muitas mulheres iam para as Cruzadas), pensando em fugir dos conflitos mais próximos.

b) Romeu assassinado pela família de Julieta?

FN: Muito provável. Ele, mesmo não querendo, acabou por matar o sobrinho querido do irado pai da noiva. Podia fugir como planejado, mas provavelmente mandariam alguém atrás dele.

c) Julieta jogada na sarjeta, depois de ser abandonada por Romeu?

FN: Romeu é muito volúvel. Ainda não contei que é só no final do primeiro ato, depois de muitas páginas, que ele encontra Julieta. Até ali, estava perdidamente apaixonado por uma tal de Rosalina: para gáudio do sempre gozador Mercúcio, dizia que era capaz de morrer por ela e que nunca mais iria gostar de outra mulher.

Foi só surgir Julieta para continuar a dizer exatamente as mesmas coisas, só que em relação à nova paixão, e concluir que não entendia como tinha podido amar Rosalina até então. É possível que a história se repetisse no futuro... Se bem que Rosalina rejeitara Romeu, ao passo que Julieta havia sido bem mais receptiva logo de cara.

d) As famílias do casal juntando forças políticas?

FN: Houve casos em que inimigos se tornaram aliados, e até poderia ocorrer, mas devido a mudanças na política – não como consequência do casamento secreto entre os jovens rebentos das duas famílias.

No final da peça, as duas famílias tornaram-se amigas – ou melhor, deixaram de lado a inimizade – devido à tragédia, mas nada indica que tenham abandonado suas posições políticas; ou seja, podem ter se tornado “inimigos cordiais”, com a morte de Romeu e Julieta.

Se bem que, como Shakespeare nada diz sobre opções políticas na peça, talvez a inimizade estivesse baseada apenas nas vinganças sucessivas de um assassínio primordial, em que ninguém mais sabia quem tinha matado quem primeiro, e nesse caso a rixa estaria encerrada realmente no fim da peça.

Mas é óbvio que por trás havia uma rivalidade pelo poder local. Mercúcio, melhor amigo de Romeu Montecchio, era primo do príncipe Escalo, que não pertencia a nenhuma das duas famílias e procurava punir os desmandos das duas igualmente.

e) Outras possibilidades?

FN: Estamos laborando sobre uma obra de ficção – apesar do fato real, o amor proibido, que está em seu cerne. Portanto, tudo o que supusemos aqui é exercício de ficção.

A manterem-se vivos os dois:

Julieta poderá ser abandonada por Romeu quando surja outra que desperte nele os mesmos sentimentos, mas também poderá ser ela a abandoná-lo. Na altura da peça ela tem 13 anos, mas não é nenhuma criança, soube muito bem corresponder ao jogo da conquista quando Romeu se aproximou dela. Além disso, tem o “mau exemplo” da ama, pessoa que pelo menos nas palavras relativiza bastante a moral.

Já disse que Romeu pode ir para as Cruzadas. Pode ir com ou sem Julieta. Já fez correr o sangue do inimigo quando matou Teobaldo. Passada a fase dos remorsos, pode se tornar um importante líder militar. Vários exercícios de continuação da história são possíveis neste caso.

Romeu pode morrer à mão de um inimigo e Julieta entrar para m convento. Aliado a outros amigos de Mercúcio e aos parentes de Escalo, Romeu volta à cidade, de onde expulsa o pai de Julieta e toda a família Capuleto. Julieta fica ressentida com Romeu, que promove negociações e anistia os inimigos. Escalo não tem herdeiros e Romeu é aclamado novo governante de Verona. Final feliz.

sexta-feira, 15 de maio de 2009

CONVERSAS COM CORTÁZAR: anotações acerca do entendimento literário

Cortázar: “Os verdadeiros escritores são como
caracóis – carregamos a nossa casa nas costas”

Em 1978, o jornalista uruguaio Ernesto González Bermejo publicou um livro chamado Conversas com Cortázar, resultado de uma série de entrevistas com o escritor argentino Julio Cortázar (1914 – 1984). Em 2002, o livro foi publicado no Brasil pela Zohar, com tradução de Luiz Carlos Cabral e prefácio de Eric Nepomuceno.

Nestas conversas, Cortázar, autor que se consagrou no gênero conto, fala de sua criação literária, da narrativa fantástica, da condição de escritor e de uma infinidade de assuntos ligados à literatura, principalmente ao conto, que, segundo ele, é um gênero cujo acabamento deve ser tão perfeito quanto uma esfera, sem arestas, sem relevos.

“Um conto pode revelar uma situação e ter um enredo interessante, mas para mim isso não basta”, diz Cortázar. Em sua concepção, a esfera tem que ser fechada. “Não estou dizendo que eu negue a qualidade de contos admiráveis, dos quais gosto muito – alguns de Katherine Mansfield, por exemplo – só porque eles não atendem à minha noção de conto. Simplesmente, eu não os teria escrito da mesma maneira.”

Aqui o escritor argentino esclarece perfeitamente sua maneira de olhar para a técnica de escrever. Este conceito, aliás, pode se juntar a outro, comentado pelo autor no livro Obra crítica 2, no qual ele diz que o bom conto precisa vencer o leitor por nocaute, enquanto o romance sempre ganha por pontos.

O escritor é um caracol

Ao escolher a França como sua morada, aos 37 anos, em 1951, Cortázar foi muito criticado pelos seus compatriotas, que o acusaram de escritor estrangeiro, alegando que, com a escolha, ele se tornara no mínimo um autor franco-argentino.

A esta acusação, o autor de O jogo da amarelinha respondia ser uma injustiça, uma vez que, apesar de morar na França, ou por isso mesmo, sua obra era uma experiência positiva para a literatura argentina, pois escrevia em castelhano e com foco direto na América Latina.

Além disso, Cortázar acreditava que o escritor não tem de se preocupar com o lugar onde está, porque onde quer que ele esteja, sempre terá o que necessita para escrever, ou seja, sua bagagem interior.

“Os verdadeiros escritores são como caracóis – carregamos a nossa casa nas costas”, diz Cortázar, sem deixar nenhuma dúvida de que, além de ser, se sentia um verdadeiro escritor.

Trechos:

Literatura = brincadeira, jogo, felicidade e amor

Creio que a literatura serve como uma das muitas possibilidades do homem de realizar-se como homo ludens. E, em última instância, como homem feliz. A literatura é uma das possibilidades da felicidade humana.

Segundo Cortázar, o romance é um conceito de retórica, algo que nos moldes originais já não existe. É, segundo ele, um baú, “a possibilidade de expressar uma multiplicidade de conteúdos com uma liberdade enorme. (...). É um instrumento preciso nas mãos do criador, que dá a ele infinitas possibilidades.”

Minha noção de brincadeira – demonstrada exaustivamente ao longo de tudo o que fiz – é séria e profunda. Eu acho que a brincadeira é uma atividade essencial do ser humano. Confundir brincadeira com frivolidade é uma primeira distração.

A literatura é para mim uma atividade lúdica, lúdica naquele sentido que eu dou ao jogo, à brincadeira, (e ainda) uma atividade erótica, uma forma de amor.

quinta-feira, 14 de maio de 2009

ESTADO VEGETATIVO: um romance policial com pegada filosófica


O segundo livro do paulista Tiago Novaes, Estado vegetativo (Callis, 2007, 260 páginas), mesmo apresentando altos e baixos, é recomendável, principalmente porque, além de criar efeitos inteligentes, tem um estilo agradável.

Trata-se de um romance policial, que às vezes descamba para uma interminável apreciação do gênero, metacrítica, mas que traz grande qualidade na proposta estética e no conteúdo inusitado, incluindo Novaes (30 anos) entre os talentosos escritores dessa novíssima geração.

Narrado em primeira pessoa pelo detetive Guedes, que, em resumo, conta como e o que aconteceu na investigação que fazia sobre uma série de assassinatos de escritores de romance policial, Estado vegetativo também faz uma leitura da cidade de São Paulo.

O livro é dividido em três partes. A primeira tem uma pegada filosófica, é intelectualizada e cheia de aforismos, em meio a retalhos de mil citações. É a mais cativante, porque parece mais ágil e com um cálculo acertado do efeito que prende o leitor.

Mas não é só isso. Guedes diz narrar sua história de um leito de hospital, em coma. “Do leito do hospital, onde vegeto. Será que se me enfiarem numa máquina de lavar, eu vou perceber alguma coisa?”

Será que escuto um grito no ouvido? Se algum tarado me violar, sentirei dor? Se uma gueixa me massagear, se um padre me excomungar, se meus defuntos antepassados me puxarem os pés, se derrubarem um cofre na minha cabeça, se cantarem a nona de Beethoven, se uma namorada de infância empapar meu pijama de lágrimas e preces – se tudo isso junto estiver ocorrendo do lado de fora, do meu lado, dentro do quarto, poderei reagir? Serei ainda este objeto quase inanimado, este corpo horizontalmente trágico?

Ou seja, sua narrativa não é um registro, é uma divagação no plano da consciência, cujo contato com o leitor sugere um mistério insolúvel, já que a linguagem, neste caso, está levitando em outra dimensão, encontra-se apenas na cabeça de um homem completamente incomunicável.

Escrutínio da consciência

É mais um fio que se desprende do pavio joyciano. A diferença aqui é que, enquanto o fluxo de consciência de Joyce se dá a partir do registro da palavra, presumindo um narrador que escreve linha por linha, o detetive Guedes elabora tudo em mente isolada das demais, sem nunca estabelecer uma ligação física.

É algo semelhante ao que acontece com o personagem de Jorge Luis Borges, em O milagre secreto, segundo lembra Manuel da Costa Pinto, que escreveu a orelha do livro. “Tiago Novaes recria em chave policialesca – e borgeana – essa eternidade em que a narrativa é ‘a única coisa que restou.’”

Esse jogo labiríntico, em que o autor (Novaes) brinca com a linguagem, é interessante. O leitor tem diante de seus olhos um vaivém entre a narração do fato policial e as ruminações vegetativas do homem preso a um leito de hospital, completamente imóvel, existindo apenas pelo fio da consciência trabalhando.

Neste caso, Novaes, que é psicanalista, se vale muito de seu saber de investigador da alma humana para construir os atributos intelectuais e a agudeza de espírito criativo – e as neuroses que nascem do estado vegetativo – de seu personagem principal.

Se por um lado, o leitor pode seguir as pegadas do romance policial, se deixando levar pelas pistas falsas para recuperar o sentido da trama logo adiante, seguindo os fatos concretos da narrativa, os diálogos, os nomes de ruas e lugares, por outro, o leitor pode se enveredar pela filosofia da linguagem.

A casa do ser

Guedes é um detetive que investiga não só os homens, mas também a alma, a sua própria. É um detetive que cita Heidegger, e é nesta proposta, que mistura especulação filosófica e literatura ensaística, em que se insere o fulcro da narrativa. Segundo o filósofo alemão, a linguagem é a casa do ser, mas quem mora nela é o homem, e os guardiões dessa casa são filósofos e poetas.

Ser e homem são duas coisas distintas. De acordo com este conceito heideggeriano, o ser não está na linguagem, está atrás dela, num plano metafísico, como um deus. O homem é que está na linguagem.

Mas, no caso de Guedes, em coma, o homem praticamente não existe. É como se o ser voltasse à casa após despejar seu inquilino. E aí, tudo é possível. Tudo que ele diz é fruto de sua imaginação, sai de um exercício de linguagem. É nesse exercício que o leitor tem de estar atento para não se perder, pois o romance é um amálgama de coisas mostradas à meia luz.

Investigação e a leitura de São Paulo

Como sempre o leitor, desconfiado, segue as palavras do narrador. Auxiliado por Gregório, um misterioso garoto de 19 anos, que lê à exaustão a literatura policial, Guedes a princípio trabalha com investigação de casos conjugais até aparecer uma mulher chamada Veronica Drake que o contrata para solucionar a morte de um colega, e logo depois o detetive se vê às voltas de um assassinato em série.

Estado vegetativo é um romance cheio de humor e ironia, nem sempre explícito, muitas vezes saem tacitamente pelos poros das frases. Na primeira parte, Guedes é mais engraçado e está sempre em situações cômicas. “Talvez a única coisa que ainda leve a sério neste mundo seja um bom prato.” Gordo, pesa 180 quilos e chega a 200, quando em coma. Ainda não é sombrio como se tornará nas duas partes seguintes.

No entrecorte de diálogos introspectivos, entre outras intersecções, há uma visível homenagem à velha São Paulo. Guedes mora no Brás. Mas seu escritório fica próximo à Praça da Sé, talvez na Paranapiacaba, rua imortalizada na literatura por um conto de João Antônio.

Nessa narrativa, há um traçado geográfico que abarca os monumentos arquitetônicos e paisagísticos do centro expandido da capital paulista, por onde Guedes flana, avenida Paulista, vale do Anhangabaú, viaduto do Chá, calçadão da Ipiranga, Copan (o enorme prédio em forma de S), Nove de Julho, rua Paim.

Entre os nomes fictícios de estabelecimentos, aparece a real Livraria da Vila, onde os escritores assassinados se encontravam para fazer lançamentos. A verdade é que, no romance, o nome da Livraria da Vila aparece mais do que o do Itaú em novela das oito.

Mas tirando esse indício de marketing na trama e o diálogo sobre literatura policial, que às vezes soa didático e juvenil, Estado vegetativo agrada, principalmente porque o leitor entra em contanto com a escrita de um autor de fina inteligência.

segunda-feira, 11 de maio de 2009

DIA DOS MORTOS: São Paulo e o tecido gasto das relações humanas



A literatura pode, sim, contribuir para a autocrítica e a reflexão social, sem nenhum prejuízo à sua qualidade estética. Um exemplo é o primeiro livro de Marcelo Ferroni (35 anos), membro dessa novíssima geração de escritores brasileiros, uma safra que promete revelar grandes autores.

Em Dia dos Mortos (Editora Globo, 2004, 150 páginas), vemos por meio de nove contos o esgotamento dos nervos e do afeto da sociedade urbana contemporânea. À exceção de uma delas, todas as histórias são ambientadas em São Paulo, mas a cidade poderia ser o Rio de Janeiro, Recife, Porto Alegre, não importa. O que o autor consegue imprimir é quase que universal: relacionamentos frustrados, tentativas malogradas de encontrar o outro, e muito, mas, muito ódio à diferença.

No primeiro conto, intitulado, Os últimos dias de Pompeia, o Narrador-personagem é um rapaz, oriundo da classe média, preconceituoso e individualista, que percorre as ruas da Zona Oeste paulistana, como a Turiassu e a Caraíbas, para ir jantar com a namorada Giselle em algum restaurante de Perdizes (bairro próximo ao de Pompeia, aludido no título, que também faz uma referência à cidade romana varrida do mapa pela erupção do Vesúvio, em 79 d.C.).

Enquanto dirige, o que ele sabe fazer é resmungar e proferir xingamentos contra negros e nordestinos, sentindo-se incomodado pelo trânsito infernal da cidade, no momento em que acaba um jogo do Palmeiras, no Parque Antártica.

“Nem devia ter me enfiado em noite de jogo. Na minha frente, um Gol com os faróis queimados saiu de ré pela pizzaria quando viu a negrada deixando o estádio”, narra o personagem, que se utiliza de um vasto vocabulário para destilar seu preconceito. Concatena frases como: “Uma turba de maloqueiros passa por nós, espero que não risquem meu carro”; Ou, “olha só aquele negrinho, parece que escapou da Febém.”

Mas não é só nesse conto que lemos frases, quase de ordem, que saem redondas do coração dos personagens. Nem a intolerância parte apenas da classe média. Em Mulher de Cubatão; menina lagarto, a narrativa está em terceira pessoa, mas a situação é semelhante. Um rapaz negro e pobre mantém um caso com sua colega de trabalho, branca, gorda e também pobre. Ou seja, duas figuras-alvo do preconceito.

Neste caso, porém, ela se sente superior, por ser branca, e, com meio sorriso nos lábios, chama seu amante de “meu neguinho subnutrido (...), meu cafezinho com leite (...), meu pardinho, meu docinho de coco queimado”, e o rapaz, embora não gostando, suporta os pseudocarinhos.

Entre os dois aparece o nome de outra moça, branca, rica e bem educada, estagiária da empresa. E aí, a amante não aguenta o desaforo. Chama o rapaz de brocha. Ele também não suporta o insulto e dá-lhe uma porrada de derrubar camelo. A relação acaba ali.

E assim desfila um exército de situações e pessoas raivosas, no desenho de uma cidade onde há conflitos intermináveis, com relações interrompidas pela metade, com o preconceito à flor da pele, contra qualquer minoria sociológica, sejam negros, nordestinos, gordos, pobres, gays, mas, principalmente contra negros.

O fio tênue do equilíbrio

Esse desprezo por qualquer tipo de minoria, presente nos contos de Ferroni, revela uma situação muito próxima de qualquer leitor que mora em São Paulo ou em outra grande cidade. É um dos méritos de Dia dos Mortos.

Quem nunca viu ou ouviu alguém assim, carregado até a tampa de palavrões xenófobos, racistas, desrespeitosos, intolerantes? Quiçá o próprio leitor já não tenha contribuído com sua cota vergonhosa de preconceito? Quem sabe o próprio autor deste blog, mesmo sendo minoria também, e sentindo uma profunda comoção pelas minorias?

Além desses recortes do cotidiano da metrópole – uma cidade viva, pulsante, em que sobressai um cenário de desencanto e tentativas fracassadas, uma cidade em que o fio tênue do equilíbrio está sempre prestes a se partir –, outra qualidade do livro é o cuidado à palavra, a palavra burilada, em frases bem construídas, chegando a criar uma esfera ressonante.

Dia dos Mortos também se diferencia de outras narrativas pela ausência de protagonistas mocinhos, ou que pelo menos cause no leitor certa simpatia. Essa é uma forte característica do livro. Tampouco há anti-heróis.

A tensão é construída exatamente nas ações dos antagonistas, que comandam a teia central de todos os contos. Os personagens principais não demonstram capacidade verdadeira de afeto ou compreensão. São capazes apenas de destilar veneno contra o outro e reclamar da sorte.

Dignos de nota

Dois contos se sobressaem. Um deles é o já referido Os últimos dias de Pompeia, em que o Narrador-personagem desfere ferozes golpes verbais contra as pessoas e a cidade, chegando a dizer: “Não me esqueço do que meu avô disse uma vez: por ele, soltava uma bomba de nêutrons em São Paulo. Eu topo dizimar todo mundo para andar de carro em paz.”

Mas esse narrador, ao mostrar o mal maior da capital paulista, o ponto fraco dos nervos paulistanos, fazendo da cidade um encontro de repulsas, ele mesmo não vale muita coisa, ele mesmo, no íntimo da sua consciência, sabe que é desprezível.

Sua namorada o larga no restaurante e, na sua frente, começa um novo relacionamento. Tudo que ele consegue fazer é ir embora, disfarçando a humilhação, covardemente. Não bateu, não enfrentou ninguém, não por ser um gentleman, mas por absoluta pusilanimidade.

Sua malha de neurônios faz de seus sentimentos e de seus pensamentos uma cidade venenosa, passível de aniquilação. E por isso ele diz a si mesmo: “Talvez eu deva engolir uma bomba de nêutrons.” A cidade está dentro dele.

Outro conto digno de nota é Angélica e irmãs, ambientado fora de São Paulo, numa cidadezinha interiorana chamada Montes Altos (imaginária, já que a real se chama Monte Alto), emplacando o conflito entre rapaz do interior e rapaz da metrópole.

A melhor abertura de narrativa está ali, num conto que pode ser considerado policial. “Se Murilo Toneleiro morrer nas tardes quentes desse mês de novembro, aposto que algum parente sabe-tudo, misterioso, dirá com as sobrancelhas arqueadas que era até possível notar, pelos olhos tristes do rapaz, que o seu destino trágico estava definido.” É assim que começa.

O narrador parte de um crime cometido, uma situação dada, para contar como ela se desenrolou. O conflito continua sendo entre duas pessoas, mas entra aí outra variante, a que existe entre interioranos e metropolitanos.

Quem vem para a cidade grande é tratado com desdém. Quem vai para o interior é tratado com desconfiança. Neste caso, o embate nasce entre os dois, por causa de uma mulher, e o resultado é a violência, sem que Murilo Toneleiro saiba de alguma coisa.

Lapsos

Marcelo Ferroni, nascido em São Paulo, em 1974, é jornalista, tendo boa experiência nas redações da grande imprensa, como a Folha de S. Paulo. Mas também já trabalhou com a edição de livros, na Editora Globo, a casa que publicou Dia dos mortos, quando ele tinha 30 anos de idade.

Foi justamente por causa de seu livro, aprovado imediatamente pela editora, que ele foi chamado para trabalhar lá. Hoje está na Rádio CBN e divide seu amor à literatura pelo jornalismo esportivo, inclusive narrando partidas de futebol. Talvez por isso, ainda não tenha aparecido com outra publicação.

Dia dos Mortos, que também é título de um conto, é seu primeiro livro, mas já tem uma narrativa invulgar, sem dúvida. Embora não escape de certos defeitos, como trazer alguns estereótipos, chavões, para identificar pobres.

Um dos personagens, por exemplo, ouve um “jato d’água no copo de requeijão.” Isso não dá mais para iconizar, representar nada, desde que surgiram no mercado as lojas de 1,99. Copo de requeijão virou eco de clichê.

O último conto, As dores da princesa, também nos deixa a impressão de que foi escrito às pressas para completar o número de histórias, apesar do elogio de Moacyr Scliar, que é quem assina a orelha do livro.

Mas, no fim das contas, por tudo que foi dito, é um livro com muitas qualidades. É para todos, principalmente para quem quer refletir sobre os sentimentos raivosos que cada vez mais tomam conta das pessoas nas grandes cidades.

sábado, 9 de maio de 2009

OS LIVROS DE WILL SELF NO BRASIL

Philippe Matsas/Agence Opale/ Divulgação
Will Self, escritor britânico em alta no mercado editorial desde Cock and Bull

Para o leitor que está se formando, que quer procurar livros, conhecer melhor um autor, é bom vasculhar livrarias, sebos e consultar amigos, conversar sobre literatura até a última gota. Ler jornais, blogs e sites sobre livros também é importante, mas de vez em quando os colegas jornalistas nos deixam a ver metade do navio.

A Folha de S. Paulo deste sábado (09/05) trouxe uma matéria sobre Will Self, um prestigiado escritor e jornalista britânico da atualidade, com texto de Raquel Cozer (leia). Um belo texto, por sinal, a propósito do romance de Self, O livro de Dave (Alfaguara), que acaba de ser lançado em português. Mas na hora de contar a bibliografia do escritor no Brasil, ela esqueceu dois títulos.

Raquel só se refere aos livros de Self publicados aqui pela Alfaguara, Como vivem os mortos e Os grandes símios. Não menciona Minha idéia de diversão e Cock & Bull: Histórias de Phadas & Phodas, pela Geração Editorial.

Este último foi traduzido em 1994, por Hamilton dos Santos, lendário jornalista que trabalhou por muito tempo no Estado de S. Paulo e hoje é diretor de Desenvolvimento de Pessoal da Editora Abril. Mas em 2002, a Geração relançou o livro com novo título, Cock & Bull: Histórias para boi dormir.

quinta-feira, 7 de maio de 2009

CRUZ E SOUSA – O NEGRO BRANCO: a introspecção de Leminski



O poeta curitibano Paulo Leminski escreveu uma das melhores introduções de livros que já li. O seu pequenino e delicioso Cruz e Sousa – o negro branco começa assim:

‘O Setor de Pessoal da Estrada de Ferro Central do Brasil vem, por meio desta, denunciar à Diretoria desta Empresa, que foi encontrado em poder de João da Cruz e Sousa, negro, natural de Sta. Catarina, um poema de sua lavra, com o seguinte teor:

Tu és o louco da imortal loucura.
O louco da loucura mais suprema,
A terra é sempre a tua negra algema,
Prende-te nela a extrema Desventura.

Mas essa mesma algema de amargura,
Mas essa mesma Desventura extrema
Faz que tu’alma suplicando gema
E rebente em estrelas de ternura.

Tu és o Poeta, o grande Assinalado
Que povoas o mundo despovoado,
De belezas eternas, pouco a pouco.

Na Natureza prodigiosa e rica
Toda a audácia dos nervos justifica
Os teus espasmos imortais de louco!



Pedem-se providências’.

Este livro é uma providência.

De ironia e anagramas

O livro de Leminski é uma providência contra a parvoíce. É claro que o que se pedia, pedia-se não por causa da falta do que fazer do poeta, a ponto de escrever um poema na hora do trabalho. Era pelo tema, o teor da poesia. Um negro fazendo versos sobre a loucura deveria ser um perigo iminente na cabecinha dos burocratas de coração de aço.

Cruz e Sousa – o negro branco só tem uma edição, que é de 1983 (Brasiliense, coleção Encanto Radical), mas em 2003 teve uma reimpressão. São 13 capítulos distribuídos em 80 páginas, em que o autor, brincando com as palavras, cria um perfil do poeta negro catarinense.

No primeiro parágrafo, já temos uma dimensão do que encontraremos no livreto, em que o autor define a vida de Cruz e Sousa como um oxímoro, figura de retórica que exprime a ironia.

É irônico, por exemplo, o fato de ser o poeta catarinense negro retinto, nascido num período escravagista, receber a melhor educação que se podia ter no Brasil da época e dominar a arte poética branca, dos franceses, alemães, ingleses, cantando sua condição de negro. Além disso, enquanto sobrevivia na miséria, sob o olhar atravessado dos outros, cultivava o espírito nas alturas.

Outra ironia Leminski demonstra sem denominá-la como tal: “Não deixa de haver muito mistério no fenômeno de serem negros, oriundos da raça-mão-de-obra, o maior prosador da literatura brasileira, Machado de Assis, e, sob certos aspectos, nosso mais fundo e intenso poeta.”

É irônica essa realidade, em se tratando de um país cuja sociedade – ignorantes e letrados – finge, em sua maioria, não haver racismo e, principalmente a elite, trata a questão como o mais sincero dos cínicos.

Para Leminski, Cruz e Sousa, com sua dolorida experiência de vida, e a genialidade sensível, poderia ter criado o blues, se tivesse nascido nos Estados Unidos, junto àquela tradição. No Brasil, só pôde fazer uso da palavra “para construir a expressão da sua pena”.

Veja como Leminski lapida num só vocábulo (pena) pelo menos três significados que se encaixam perfeitamente na alma e na vida de Cruz e Sousa: instrumento usado para escrever seus versos; condenação (e aí pode significar condenado à poesia, ao racismo, à exclusão); aflição, dor, agente da tristeza sentida pelo poeta.

O mais interessante desse livrinho, no entanto, está no ensinamento de Leminski de como ler Cruz e Sousa. Segundo ele, “a figura prevalente, na poesia de Cruz e Sousa, não é a aliteração, nem a harmonia imitativa, onomatopeia dos sentimentos, nem a ecolalia, mas o anagrama.”

O anagrama é a palavra dentro da palavra. Conforme explica Leminski, Cruz e Sousa compunha “vendo, na luz de uma palavra, a outra luz de outra palavra.” E nos dá dois exemplos significativos:


Rio de esquecimento tenebroso,
Amargamente frio,
Amargamente sepulcral, lutuoso,
Amargamente rio!

[Esquecimento]


Alma sem rumo, a modorrar de sono,
Mole, túrbida, lassa ...
Monotonias lúbricas de um mono
Dançando numa praça ...

[Tédio]


No primeiro caso, “quem vai poder dizer se este ‘rio’ é o aquático substantivo ou a primeira pessoa do presente do indicativo do verbo rir?”, pergunta Leminski, para depois completar: “As palavras naufragaram dentro das palavras (naugrafaram), passando por esse rio, que corre por dentro da palavra F-rio.”

No segundo caso, também vemos o mesmo procedimento, com a ‘raça’ dançando na P-raça.

É uma leitura semiótica, sem dúvida, de quem vê a poesia como detentora de uma gramática sígnica. Os principais influentes dessa corrente de leitores semióticos da poesia, no Brasil, são os irmãos Haroldo e Augusto de Campos, junto com Décio Pignatari e seguidores, principalmente os oriundos da PUC de São Paulo e do Rio, pelo menos. O que não é demérito. É qualidade.

Leminski fazia parte dessa turma. Claro que nem sua poesia nem a sousiana oferecem apenas essa face de leitura. Mas, para quem gosta de ambos, seguindo essas pegadas, poderá receber na mente uma explosão de sentidos.

Ler é reler
No final do livro, vemos ainda uma fusão Leminski e Sousa, na fiel tradição antropofágica, em que o poeta curitibano mostra saber que eu, o leitor, aprovaria seu livreto feito para quem começa na poesia. Mas não podemos nos esquecer de que a poesia é sempre um recomeço.

“Perfeição só existe na integração/dissolução do sujeito no objeto”, ensina Leminski.


Na tradução do eu no outro.
É por isso que você gostou tanto deste livro.
Você, agora, sabe. Você, eu sou Cruz e Sousa.

quarta-feira, 6 de maio de 2009

CARLOS FUENTES CANCELA PARTICIPAÇÃO NA FLIP

A Folha de S. Paulo desta quarta-feira (06/05) deu a seguinte nota:

"O escritor mexicano Carlos Fuentes cancelou sua vinda à Festa Literária Internacional de Paraty, que acontece entre 1º e 5 de julho, na cidade do litoral fluminense. Segundo a assessoria de imprensa do evento, o autor de livros como "A Região Mais Transparente", "Em 68" e "A Cadeira da Águia" desistiu de sua viagem ao Brasil por problemas de saúde."

terça-feira, 5 de maio de 2009

EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO: o efeito madalena



Os sete volumes de Em busca do tempo perdido, pela Globo, ou os três, pela Ediouro, são pouco lidos, mas o efeito que a bolacha madalena causa na memória do narrador, Marcel, todo leitor conhece.

O biscoito ficou tão famoso por causa do livro, que até hoje vários turistas se dão ao trabalho de ir a Illiers – cidade que foi modelo para a Combray do romance (hoje, chama-se Illiers-Combray) – para comer uma madalena na padaria.

A quem ainda não leu ou quer reler, segue abaixo o famoso trecho do livro de Marcel Proust, tal como está publicado, num só parágrafo, longo, centopeico, mas belo.


Muitos anos fazia que, de Combray, tudo quanto não fosse o teatro e o drama do meu deitar não mais existia para mim, quando, por um dia de inverno, ao voltar para casa, vendo minha mãe que eu tinha frio, ofereceu-me chá, coisa que era contra meus hábitos. A princípio recusei, mas, não sei por que, terminei aceitando. Ela mandou buscar um desses bolinhos pequenos e cheios chamados madalenas e que parecem moldados na valva estriada de uma concha de São Tiago. Em breve, maquinalmente, acabrunhado com aquele triste dia e a perspectiva de mais um dia tão sombrio como o primeiro, levei aos lábios uma colherada de chá onde deixara amolecer um pedaço de madalena. Mas no mesmo instante em que aquele gole, de envolta com as migalhas do bolo, tocou meu paladar, estremeci, atento ao que se passava de extraordinário em mim. Invadira-me um prazer delicioso, isolado, sem noção de sua causa. Esse prazer logo me tornara indiferente às vicissitudes da vida, inofensivos seus desastres, ilusórios sua brevidade, tal como o faz o amor, enchendo-me de uma preciosa essência: ou, antes, essa essência não estava em mim, era eu mesmo. Cessava de me sentir medíocre, contingente, mortal. De onde me teria vindo aquela poderosa alegria? Senti que estava ligada ao gosto do chá e do bolo, mas que o ultrapassava infinitamente e não devia ser da mesma natureza. De onde vinha? Que significava? Onde apreendê-la? Bebo um segundo gole que me traz um pouco menos que o segundo. É tempo de parar, parece que está diminuindo a virtude da bebida. É claro que a verdade que procuro não está nela, mas em mim. A bebida a despertou, mas não a conhece, e só o que pode fazer é repetir indefinidamente, cada vez com menos força, esse mesmo testemunho que não sei interpretar e que quero tornar a solicitar-lhe daqui a um instante e encontrar intato a minha disposição, para um esclarecimento decisivo. Deponho a taça e volto-me para meu espírito. É a ele que compete achar a verdade. Mas como? Grave incerteza, todas as vezes em que o espírito se sente ultrapassado por si mesmo, quando ele, o explorador, é ao mesmo tempo o país obscuro a explorar e onde todo o seu equipamento de nada lhe servirá. Explorar? Não apenas explorar: criar. Está diante de qualquer coisa que ainda não existe e a que só ele pode dar realidade e fazer entrar em sua luz.

(Em busca do tempo perdido: No caminho de Swann. Editora Globo, Tradução de Mário Quintana)

domingo, 3 de maio de 2009

HISTÓRIA DO OLHO: desejo e alienação

“A linguagem erótica de Sade não tem outra conotação que a de seu século, ela é uma escritura; a de Bataille é conotada pelo próprio ser de Bataille, ela é um estilo; entre as duas, algo de novo nasceu, que transforma toda experiência em linguagem extraviada e que é a literatura.”
Roland Barthes


Georges Bataille, autor de livros importantes como O erotismo e A literatura e o mal, viveu toda a sua infância sob uma forte perturbação psicológica, com o pai louco e a mãe também perdendo a sanidade. Na casa dos vinte anos, após ter testemunhado a desordem mental dos pais e se recordar sempre de imagens que, aos seus olhos de criança, eram obscenas (ver trecho do livro no final), ele procurou um psicanalista.

O resultado da análise, que durou apenas um ano, foi História do olho, um livro erótico surreal que prima pelo valor fantasioso, surgindo de reminiscências verdadeiras, e pela alta elaboração técnica. O Narrador relata sua experiência sexual, a partir dos 15 anos, com Simone, menina da mesma idade.

Os dois vivem diversas histórias de devassidão, com entrega total ao desejo desenfreado, ao imperativo categórico do sexo. Nessa relação, qualquer movimento do corpo provoca tesão. Qualquer evento é ensejo para a manipulação do corpo e a provocação do prazer.

Nessa aventura do desejo – em que os dois atropelam uma moça, enlouquecem outra, assistem a uma tourada em que o chifre do touro vasa o olho do toureiro, seduzem e fazem orgia com um padre até a morte deste e depois arrancam-lhe um olho –, os adolescentes em erupção experimentam uma grande obsessão pela imagem do ânus, chamado pelo vocábulo mais escandaloso, cu, colocando-o no centro da rotação metafórica.

Simone brinca de quebrar um ovo com o ânus, senta nua num prato cheio de leite, e o Narrador, continuamente, não deixa esquecer essa parte anatômica, que é lambida, bolinada, adorada, regada de sêmen, urina, água, outros líquidos, e às vezes até sangue (com boa dose de sado-masoquismo). E assim, ele põe às claras o caráter obsceno da narrativa.

Há choque e escândalo, sim, mas apenas no plano da confissão. Todas as cenas são realizadas à meia luz, em lugares absconsos, no meio da noite, ou na casa de Simone, ou no manicômio, numa igreja, no camarote de um show de tourada. As testemunhas, geralmente, são os que participam das ações, como ativos ou passivos. O voyeurismo é deles.

Em História do olho, as metáforas giram em torno da imagem trazida no título, cuja conotação maior, claro, é erótica. A rotação alterna entre dois grupos metafóricos, interligados pela relação olho/lágrima: olho, cu, ovo, testículos, prato e sol; lágrima, leite, chuva, mar, urina, esperma (profusão de sêmen) e Via Láctea (dentro da qual há o globo terrestre, em similaridade com íris e esclera). E várias outras que se juntam e acumulam no desejo satisfeito.

A história é do olho

Publicado originalmente em 1928, sob o pseudônimo de Lord Auch, com tiragem clandestina de 134 exemplares, História do olho, que é o primeiro livro de Bataille, teve várias edições nas décadas seguintes. Ganhou admiradores fervorosos e escandalizou meio mundo também. Entre os leitores entusiasmados estão Roland Barthes e Julio Cortázar.

Em 2003, a editora brasileira Cosac Naify publicou A história do olho com tradução e um ótimo prefácio da professora – especialista em literatura francesa, estudiosa de Marquês de Sade – Eliane Robert Moraes, além de colocar junto três ensaios, de Barthes (A metáfora do olho), Cortázar (Ciclismo em Grignan) e Michel Leiris (Nos tempos de Lord Auch).

É uma bela edição, que esclarece de todos os ângulos as sombras que, por ventura, o leitor possa ter. Barthes, por exemplo, nos chama atenção para o fato de o livro ter como personagem principal não o Narrador, mas o próprio olho, caracterizado justamente pela sequência metafórica que vai transferindo a imagem do olho de objeto em objeto, de situação em situação.

Alienação e crime

Essa escrita de Bataille é profundamente marcada pela psicanálise. Sua história trata de um abismo sensual, em que a obscenidade toma conta dos dois adolescentes e daqueles que se relacionam com eles, levados por uma irresistível pulsão de morte.

As cenas partem de uma realidade presumida, mas se desenvolvem como se fossem sonhos. Num passeio de bicicleta pela madrugada, por exemplo, Simone pedala nua e se contorce no selim até gozar, e no momento do gozo seu corpo é lançado ao chão, sendo todo arranhado pelos cascalhos.

O desejo é realizado sempre, mas também cada atitude está ligada a um crime, um delito e à ameaça de morte, que às vezes acontece. Por causa disso, e pelo fato de ter ambientação noturna, aspectos sombrios, em sua maior parte, e algumas paisagens ensolaradas, Leiris o considerou um romance ao mesmo tempo erótico e noir.

O Narrador descreve Simone da seguinte forma:

É alta e bonita; nada tem de angustiado no olhar ou na voz. Mas é tão ávida por qualquer coisa que perturbe os sentidos, que o menor apelo confere ao seu rosto uma expressão que evoca o sangue, o pavor súbito, o crime, tudo o que arruína definitivamente a beatitude e a consciência tranquila.

É uma transgressão. O que eles querem é chocar, é ultrapassar qualquer limite moral. Mas se levarmos em conta o caráter autobiográfico do texto, também vemos aí a tentativa de vencer uma obsessão, procurando esgotar, superar, todos os traços do desejo mórbido.

Nessa tentativa, nessa relação entre desejo realizado e crime, não há sinal de culpa. O que existe é uma espécie de alienação. Para os dois adolescentes, os outros não existem, a não ser como objeto.

Desde o momento em que se conhecem, suas relações se estabelecem na esfera do corpo. Todas as cenas levam ao imperativo do desejo. O desejo comanda. Trata-se de uma alienação (do eu literário) no sentido de a relação afastar-se, cada vez mais, do espírito e do fator psicológico, e se concentrar no corpo.

Eliane Robert Moraes intitula de Olho sem rosto o seu prefácio. Neste caso, podemos ir adiante e dizer que ‘sem rosto’ também caracteriza a negação da face, ou seja, não há cabeça, não há comando cerebral. Os sentidos estão diretamente interligados para o fim erótico, para atender, exclusivamente, aos caprichos do desejo.

Trechos:

O princípio e o fim de História do olho têm uma ligação interessante, porque entre os últimos capítulos, na verdade, após o desfecho da história, quando os personagens já saíram de cena, há um capítulo chamado Reminiscências, no qual o Narrador explica parte da natureza de sua história, ligando-a a elementos autobiográficos.

Não explica tudo, claro, porque há uma forte intervenção criativa, mas esclarece muito. Seguem abaixo um trecho do início da história e outro do capítulo Reminiscências.

O olho de gato

Fui criado sozinho e, até onde me lembro, vivia angustiado pelas coisas do sexo. Tinha quase dezesseis anos quando encontrei uma garota da minha idade, Simone, na praia x. Nossas famílias descobriram um parentesco longínquo e nossas relações logo se precipitaram. Três dias depois do nosso primeiro encontro, Simone e eu estávamos a sós em sua casa de campo. Ela vestia um avental preto e usava uma gola engomada. Comecei a me dar conta de que ela partilhava a minha angústia, bem mais forte naquele dia em que ela parecia estar nua sob o avental.

Suas meias de seda preta subiam acima do joelho. Eu ainda não tinha conseguido vê-la até o cu (esse nome, que eu sempre empregava com Simone, era para mim o mais belo entre os nomes do sexo). Imaginava apenas que, levantando o avental, contemplaria a sua bunda pelada.

Havia no corredor um prato de leite para o gato.

― Os pratos foram feitos para a gente sentar – disse Simone. ― Quer apostar que eu me sento no prato?

― Duvido que você se atreva – respondi, ofegante.

Fazia calor. Simone colocou o prato num banquinho, instalou-se à minha frente e, sem desviar dos meus olhos, sentou-se e mergulhou a bunda no leite. Por um momento fiquei imóvel, tremendo, o sangue subindo à cabeça, enquanto ela olhava meu pau se erguer na calça. Deitei-me a seus pés. Ela não se mexia; pela primeira vez, vi sua ‘carne rosa e negra’ banhada em leite branco. Permanecemos imóveis por muito tempo, ambos ruborizados.

De repente, ela se levantou: o leite escorreu por suas coxas até as meias. Enxugou-se com um lenço, por cima da minha cabeça, com um pé no banquinho. Eu esfregava o pau, me remexendo no assoalho. Gozamos no mesmo instante, sem nos tocarmos. Porém, quando sua mãe retornou, sentando-me numa poltrona baixa, aproveitei um momento em que a menina se aninhou nos braços maternos: sem ser visto, levantei o avental e enfiei a mão por entre suas coxas quentes.

Voltei para casa correndo, louco para bater uma punheta de novo. No dia seguinte, amanheci de olheiras. Simone me olhou de frente, escondeu a cabeça contra o meu ombro e disse: ‘Não quero mais que você bata punheta sem mim.’



Reminiscências

Nasci de um pai sifilítico (tabético). Ficou cego (já o era ao me conceber) e, quando eu tinha uns dois ou três anos, a mesma doença o tornou paralítico. Em menino, adorava aquele pai. Ora, a paralisia e a cegueira tinham, entre outras coisas, estas consequências: ele não podia, como nós, urinar no banheiro; urinava em sua poltrona, tinha um recipiente para esse fim. Mijava na minha frente, debaixo de um cobertor que ele, sendo cego, não conseguia arrumar. O mais constrangedor, aliás, era o modo como me olhava. Não vendo nada, sua pupila, na noite, perdia-se no alto, sob a pálpebra: esse movimento acontecia geralmente no momento de urinar. Ele tinha uns olhos grandes, muito abertos, num rosto magro, em forma de bico de águia. Normalmente, quando urinava, seus olhos ficavam quase brancos; ganhavam então uma expressão fugidia; tinham por único objeto um mundo que só ele podia ver e cuja visão provocava um riso ausente. Assim, é a imagem desses olhos brancos que eu associo à dos ovos; quando, no decorrer da narrativa, falo do olho ou dos ovos, a urina geralmente aparece.