quinta-feira, 31 de julho de 2008

A SOLIDÃO DOS OUTROS VI: discurso de García Márquez ao receber o Prêmio Nobel de 1982

No dia 8 de dezembro de 1982, o escritor colombiano Gabriel García Márquez proferiu um pungente discurso na Academia Sueca de Letras, ao receber o Prêmio Nobel de Literatura.

Relevando os dados estatísticos, o texto mantém-se atual, e ainda merece ser lido – como toda a obra do autor – por quem se interessa pelos descaminhos do povo latino. Tomei emprestado o texto em inglês e espanhol do site do Prêmio Nobel para fazer esta tradução, que, espero, o autor não se importe.

A SOLIDÃO DA AMÉRICA LATINA

Antonio Pigafetta, navegador florentino que acompanhou Magalhães na primeira viagem em volta do mundo, escreveu, na ocasião de sua passagem pelas terras do sul de nossa América, um relato minuciosamente apurado, mas que na verdade parece mais um delírio fantasioso.

Nessa viagem, ele diz que viu porcos com umbigos nas ancas, pássaros sem garras cujas fêmeas botavam os ovos nas costas de seus parceiros, e ainda outros, lembrando pelicanos deslinguados, com bicos feito colheres.

Ele disse ter visto uma criatura desengonçada, com cabeça e orelhas de mula, corpo de camelo e pernas de veado, que relinchava como cavalo. Descreveu como o primeiro nativo encontrado na Patagônia se olhou no espelho, e em seguida, o impassível gigante, perdeu a razão, aterrorizado com sua própria imagem.

Este curto e fascinante livro, que já naquela época continha as sementes de nossos atuais romances, é sem dúvida o mais pungente relato da realidade nossa daquele tempo.

Os cronistas das Índias nos deixou outros incontáveis relatos. Eldorado, nossa terra ilusória e tão avidamente procurada, apareceu em numerosos mapas durante anos, deslocando-se de lugar e de forma de acordo com a fantasia dos cartógrafos.

Em sua procura pela fonte da eterna juventude, o mítico Alvar Núñez Cabeza de Vaca explorou o norte do México por oito anos, numa iludida expedição cujos membros devoraram uns aos outros e, dos seiscentos que foram, apenas cinco voltaram.

Um dos muitos mistérios inimagináveis daquela época é o das onze mil mulas, cada uma carregando cinqüenta quilos de ouro, que um dia deixaram Cuzco para pagar o resgate de Atahualpa e nunca chegaram ao seu destino. Depois disso, no tempo das colônias, galinhas vendidas em Cartagena de Índias eram criadas em terrenos de aluviões e em suas moelas eram encontradas pequenas pepitas de ouro.

A cobiça de ouro de nossos fundadores nos perseguiu até recentemente. No fim do último século [XIX], uma missão alemã, indicada para estudar a construção de uma ferrovia inter-oceânica, através do istmo do Panamá, concluiu que o projeto era viável com uma condição: que os trilhos não fossem feitos com aço, que era raro na região, mas com ouro.

Nossa independência da dominação dos espanhóis não nos pôs fora do alcance da loucura. O general Antonio López de Santana, três vezes ditador do México, providenciou um magnífico funeral para a perna direita que ele perdera na chamada Guerra dos Pastéis. O general Gabriel García Moreno governou o Equador por 16 anos como um monarca absoluto; em seu velório, o corpo ficou sentado na cadeira presidencial, vestido com o uniforme completo e decorado com uma camada protetora de medalhas.

O general Maximiliano Hernández Martínez, o déspota teosófico de El Salvador, que teve 30 mil camponeses aniquilados num massacre selvagem, inventou um pêndulo para detectar veneno em sua comida, e mantinha as lâmpadas das ruas envolvidas em papel vermelho para vencer uma epidemia de escarlatina. A estátua do general Francisco Morazán, na praça principal de Tegucigalpa, é na verdade do marechal Ney, comprada num depósito de esculturas de segunda mão em Paris.

Onze anos atrás [1971], o chileno Pablo Neruda, um dos brilhantes poetas de nosso tempo, iluminou este público com suas palavras. Desde então, os europeus de boa vontade – e às vezes aqueles de má vontade também – têm sido arrebatados, com cada vez mais força, pelas novidades fantásticas da América Latina, esse reino sem fronteiras de homens alucinados e mulheres históricas, cuja infinita obstinação se confunde com a lenda.

Não temos tido sequer um minuto de sossego. Um prometéico presidente, entrincheirado em seu palácio em chamas, morreu lutando contra um exército inteiro, sozinho; e dois suspeitos acidentes de avião, ainda por explicar, abreviaram a vida de um grande presidente e a de um militar democrata que tinha ressuscitado a dignidade de seu povo.

Já ocorreram cinco guerras e dezessete golpes militares; surgiu um diabólico ditador que está realizando em nome de Deus o primeiro etnocídio da América Latina de nosso tempo. Nesse ínterim, 20 milhões de crianças latino-americanas morreram antes de completar um ano de vida – mais do que as que nasceram na Europa desde 1970.

Os desaparecidos pela repressão chegam a quase 220 mil. É como se ninguém soubesse onde foi parar a população inteira de Uppsala. Várias mulheres presas grávidas deram à luz nas prisões argentinas, e ainda ninguém sabe do paradeiro e da identidade de seus filhos, que foram furtivamente adotados ou enviados para orfanatos por ordem das autoridades militares.

Porque tentaram mudar esta situação, quase 200 mil homens e mulheres morreram em todo o continente, e mais de cem mil perderam suas vidas em três pequenos e malfadados países da América Central: Nicarágua, El Salvador e Guatemala. Se fosse nos Estados Unidos, seria o equivalente a um milhão e seiscentos mil mortes violentas em quatro anos.

Um milhão de pessoas abandonaram o Chile, um país com tradição de hospitalidade – ou seja, doze por cento da população. O Uruguai, pequenina nação de dois milhões e meio de habitantes, que se considerava o país mais civilizado do continente, perdeu para o exílio um em cada cinco de seus cidadãos.

Desde 1979, a guerra civil de El Salvador vem produzindo quase um refugiado a cada vinte minutos. O país que se poderia criar com todos os exilados e emigrantes forçados da América Latina teria uma população maior que a da Noruega.

Ouso dizer que é esta desproporcional realidade, e não apenas sua expressão literária, que mereceu a atenção da Academia Sueca de Letras. Uma realidade não de papel, mas que vive dentro de nós e determina cada instante de nossas incontáveis mortes de todos os dias, e que nutre uma fonte de criatividade insaciável, cheia de tristeza e beleza, da qual este errante e nostálgico colombiano não passa de mais um, escolhido pelo acaso.

Poetas e mendigos, músicos e profetas, guerreiros e canalhas, todas as criaturas desta indomável realidade, temos pedido muito pouco da imaginação, porque nosso problema crucial tem sido a falta de meios concretos para tornar nossas vidas mais reais. Este, meus amigos, é o cerne da nossa solidão.

E se estas dificuldades, cuja essência compartilhamos, nos atrasam, é compreensível que os talentos racionais desta parte do mundo, exaltados na contemplação de sua própria cultura, se encontrem sem meios apropriados de nos interpretar.

É simplesmente natural que eles insistam em nos medir com o mesmo bastão que medem a si mesmos, se esquecendo de que as intempéries da vida não são as mesmas para todos, e que a busca pela nossa própria identidade é tão árdua e sangrenta para nós quanto foi para eles.

A interpretação de nossa realidade em cima de padrões que não são os nossos serve apenas para nos tornar ainda mais desconhecidos, ainda menos livres, ainda mais solitários.

A venerável Europa talvez pudesse ser mais perceptiva se tentasse nos ver em seu próprio passado. Se ela recordasse simplesmente que Londres levou 300 anos para construir seu primeiro muro, e mais 300 para ter um bispo; que Roma labutou numa penumbra de incertezas por 20 séculos, até que um rei etrusco a fizesse entrar para a história; e que a pacífica Suíça de hoje, que nos deleita com seus leves queijos e simpáticos relógios, derramou o sangue da Europa como soldados mercenários, no final do século XVI. Mesmo no alto da Renascença, 12 mil lansquenetes pagos pelo exército imperial saqueou e devastou Roma e trespassou oito mil de seus habitantes na espada.

Não quero incorporar as ilusões de Tonio Kröger, cujos sonhos de unir um casto norte a um sul apaixonado foram exaltados aqui, há 53 anos, por Thomas Mann. Mas realmente acredito que aqueles europeus esclarecidos que lutaram, inclusive aqui, por um lar mais justo e humano, poderiam nos ajudar muito melhor se reconsiderassem sua maneira der nos ver.

A solidariedade com nossos sonhos não vai nos fazer menos solitários, enquanto isso não for traduzido em atos concretos de apoio legítimo às pessoas que aceitam a ilusão de ter uma vida própria na divisão do mundo.

A América Latina não quer, nem tem qualquer razão para querer, ser massa de manobra sem vontade própria; nem é meramente um pensamento desejoso que sua busca por independência e originalidade deva se tornar uma aspiração do Ocidente. No entanto, a expansão marítima que estreitou essa distância entre nossas Américas e a Europa parece, ao contrário, ter acentuado nosso distanciamento cultural.

Por que a originalidade nos foi agraciada tão prontamente na literatura e tão desconfiadamente nos foi negada em nossas difíceis tentativas de mudanças sociais? Por que pensar que a justiça social perseguida pelos europeus progressistas aos seus próprios países não pode ser um objetivo da América Latina, com métodos diferentes em condições desiguais?

Não: as incomensuráveis violência e dor de nossa história são o resultado de antigas iniqüidades e amarguras caladas, e não uma conspiração tramada a três mil léguas de nossa casa.

Mas muitos líderes e intelectuais europeus têm pensado assim, com a infantilidade de seus antepassados que se esqueceram do proveitoso excesso de sua juventude, como se fosse impossível chegar a outro destino que não o de viver entre a cruz e a espada. Isto, meus amigos, é o tamanho exato de nossa solidão.

Apesar disso, à opressão, aos saque e abandono, respondemos com vida. Nem enchentes nem pragas, nem fome nem cataclismos, nem mesmo as eternas guerras, séculos após séculos, foram capazes de subjugar a persistente vantagem que a vida tem sobre a morte. Uma vantagem que cresce e acelera: todo ano, há 74 milhões de nascimentos a mais do que mortes, número o suficiente de novas vidas para multiplicar, a cada ano, a população de Nova York sete vezes.

A maioria desses nascimentos ocorre em países de menos recursos – incluindo, claro, os da América Latina. Contraditoriamente, os países mais prósperos se realizaram acumulando poderes de destruição, com força o bastante para aniquilar, num total de cem vezes, não apenas todos os seres humanos que já existiram até hoje, mas também todos os seres vivos que um dia respiraram neste planeta infeliz.

Um dia como hoje, meu mestre William Faulkner disse: “Eu me recuso a aceitar o fim da humanidade”. Não seria digno de mim estar num lugar em que ele esteve se eu não tivesse plena consciência de que a tragédia colossal que ele se recusou a reconhecer, 32 anos atrás, é agora, pela primeira vez desde o começo da humanidade, nada além de uma simples possibilidade científica.

Cara a cara com esta realidade horrenda que pode ter parecido uma mera utopia em toda a existência humana, nós, os inventores das fábulas, que acreditamos em qualquer coisa, nos sentimos inclinados a acreditar que ainda não é tarde demais para nos engajarmos na criação da utopia oposta.

Uma nova e avassaladora utopia da vida, onde ninguém será capaz de decidir como os outros morrerão, onde o amor provará que a verdade e a felicidade serão possíveis, e onde as raças condenadas a cem anos de solidão terão, finalmente e para sempre, uma segunda oportunidade sobre a terra.


Agradeço à Academia Sueca de Letras por me distinguir com um prêmio que me põe à altura de muitos dos que me orientaram e enriqueceram meus anos de leitor e de celebrador diário desse delírio sem cura que é o ofício de escrever. Seus nomes e suas obras me aparecem hoje como sombras tutelares, mas também como o compromisso, com frequência agonizante, que se adquire com esta honra. Uma dura honra que neles me pareceu de simples justiça, mas que em mim entendo como mais uma dessas lições que o destino impõe para nos surpreender, e que fazem evidente nossa condição de brinquedo de um acaso indecifrável, cuja única e desoladora recompensa, costumam ser, na maioria das vezes, a incompreensão e o esquecimento.

Por isso é natural que me interrogasse, lá nesse fundo secreto onde costumamos nos espantar com as verdades mais essenciais que assenta nossa identidade, que tem sido o sustento constante de minha obra, como pude chamar a atenção de uma maneira tão comprometedora este tribunal de árbitros tão severos. Confesso sem falsa modéstia que não me é fácil encontrar a razão disso, mas quero crer que tenha sido a mesma que desejei. Quero crer, amigos, que esta seja, mais uma vez, uma homenagem que se rende à poesia. À poesia por cuja virtude o inventário brumoso das naus que o velho Homero enumerou em sua Ilíada é visitado por um vento que as impulsiona para navegar com sua presteza intemporal e alucinada. A poesia que sustenta, nos refinados andaimes dos tercetos de Dante, toda a fábrica densa e colossal da Idade Média. A poesia que com tão milagrosa totalidade resgata nossa América nas Alturas de Machu Pichu de Pablo Neruda, o grande, o maior, e de onde destilam sua tristeza milenar os melhores sonhos sem saída. A poesia, enfim, essa energia secreta da vida cotidiana, que coze os grãos na cozinha, e contagia o amor e replica as imagens nos espelhos.

Em cada linha que escrevo, trato sempre, com maior ou menor acerto, de invocar os espíritos esquivos da poesia, e trato de deixar em cada palavra o testemunho de minha devoção a suas virtudes de adivinhação, e a sua permanente vitória contra os surdos poderes da morte. O prêmio que acabo de receber, entendo-o, com toda a humildade, como a consoladora revelação de que minha tentativa não foi em vão. É por isso que convido a todos vocês a brindar por aquilo que um grande poeta de nossas Américas, Luis Cardoza y Aragón, definiu como a única prova concreta da existência do homem: a poesia.
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Leia mais sobre García Márquez neste Blog:

terça-feira, 29 de julho de 2008

O CAVALEIRO DA TRISTÍSSIMA FIGURA: o velho Batman em São Paulo

“Para mim, envelhecer é aceitar a espera da morte como o ponto extremo de um processo contínuo”
Kenzaburo Oee (1935 - )

Detalhe de prédios da região da Consolação, em pleno coração de São Paulo, a cidade mais desvairada do mundo

No centro de São Paulo, onde moro, um homem se instala, tão velho e cheio de histórias quanto as paredes dos edifícios dessa cidade sólida. Sua principal parada é a Avenida Consolação. É de lá que ele ouve os rumores do caos e observa a paisagem cinzenta da cidade mais desvairada do mundo, com seus prédios envelhecidos e tristes, abrigando uma região que se bifurca: uma elite, pouco mais a oeste (Higienópolis) e um conglomerado decadente de bairros.

É nesse cenário que ambienta a história dele, o velho morcego, saído de Gotham City para morar (ou seria morrer?) aqui, em Sampa, ou melhor, na Boca do Lixo, dividindo espaço com travestis, putas, viciados, traficantes, gente de bem, assassinos em potencial, assassinos foragidos, por foragir, estudantes, profissionais liberais, artistas, bebuns, cafetões, cafetinas, aventureiros, boêmios de toda sorte, homens de toda cor, famílias bem amarradas e outras nem tanto, policiais nojentos, policiais pretensiosamente honestos, policiais da polícia, policiais dos bandidos, mendigos e outros seres que povoam a região, muitas vezes sem saber por que ou como vieram parar aqui.

Não saber por que veio, nem como veio, parece ser a sorte do Cavaleiro da tristíssima figura, personagem do livro homônimo de Jorge Miguel Marinho, um livro para bons leitores, interessante nesses dias de exposição da figura do Batman em sua origem. Neste caso, o foco é seu fim.

O velho morcego se esconde num desses prédios desencantados à margem da Consolação. Perambula à noite por tudo quanto é beco e escuridão, mas ninguém o reconhece, e sua solidão cresce a cada dia.

Tudo desfila diante dele. Tudo ele vê passar, como pássaros fugazes no entardecer. O que permanece é a lembrança eterna a cada olhar de contemplação nesse quadro melancólico.

Como se sabe, foi Dom Quixote o cavaleiro da triste figura, o homem desvairado que lutou contra moinhos de vento, mas com sustentação convicta de que combatia monstros terríveis.

Agora Batman é um desses combatentes. Em sua cidade natal, o velho morcego, em pleno vigor, vencia o mal, mas aqui, já decrépito, sexualidade revelada, não passa de uma figura deprimente se debatendo para sobreviver. Igual a todos que aqui moram, morrem, vivem, choram e riem, na esperança de colorir seu pedacinho de mundo, revelado em rápidas tomadas aéreas para cenas de novela e propaganda política.

A Praça da República nem sempre foi medonha, nem sempre se chamou República. Já foi local distante da elite, depois se tornou seu reduto, depois se tornou praça boêmia, depois se tornou lixo, e hoje, esforço para uma revitalização. Um esforço que traduz com mais vigor nosso dom para o quixotesco.

A Avenida Ipiranga, cujo cruzamento com a São João já não causa mais coisa alguma no coração de ninguém, a não ser medo, que não deixa de ser algo cardíaco, possui – um pouco mais acima da famosa esquina – três prédios de inestimável valor histórico e cultural: O Copan, o Edifício Itália e o prédio do antigo Hotel Hilton, que ainda espera um desfecho para seu destino. São ícones de um passado quase perdido.

Batman triste e velho em sua última narração, anunciando o fim, numa região sem glamour, a não ser aquele fabricado por saudosistas e reformistas, e por aqueles que aqui resistem, abraçados a uma vaidade perdida, numa luta quixotesca para refazer seu mundo.

Só os cavaleiros da tristíssima figura ainda debatem, em respiração ofegante de velhos guerreiros. Nesta região, a Virada Cultural vem e passa, deixando um rastro de lixo e som, que lança sempre uma esperança, mas depois some. Depois volta, depois some. Depois volta, depois some.

E o velho Centro definha, com beleza e tristeza, esperança e fé, mas sem juventude e sem poder desaparecer de vez. O cavaleiro da tristíssima figura não tem mais força para a revolta, nem para trazer de volta o encantamento.

sábado, 26 de julho de 2008

VINICIUS DE MORAES ESTÁ VOLTANDO

Prestes a completar cem anos do nascimento de Vinicius de Moraes, as editoras começam a se organizar para faturar uma graninha com a obra do poeta carioca, nascido em 1913 e morto em 1980. Mas o público também sai ganhando com isso, porque é um trabalho que merece ser revisitado mesmo.

Em 2004, o poeta Eucanãa Ferraz já tinha reorganizado o livro da Editora Nova Aguilar que traz a poesia completa e parte da prosa de Vinicius de Moraes, em 4ª edição, com a fortuna crítica ampliada.

De acordo com o Caderno Ilustrada, do jornal Folha de S. Paulo deste sábado (26/07), a Companhia das Letras vai lançar agora no dia 28 de julho três livros do poeta em edições semelhantes às originais, acrescidas de posfácios inéditos dos organizadores e textos críticos de arquivos.

As publicações são O Caminho para a Distância, seu primeiro livro (1933), Poemas, Sonetos e Baladas (1946) e Antologia Poética (1949), a este somado o poema 'Pátria Minha', de 1949. Até 2011, está previsto para serem lançados 15 livros ligados ao poeta carioca pela Companhia das Letras.

Essa revisitação, em grande parte, é devida ao esforço de Eucanaã Ferraz, sem dúvida, que – além de organizar e lançar nova luz à Poesia completa e prosa – em 2006 escreveu Folha Explica Vinicius de Moraes, uma ótima introdução para quem quer entender e ler melhor a obra poética de um autor que ficou marcado por rótulos como pop star, amigo, amante e ídolo, qualidades que ele também tinha, não se pode negar.

Desconfie da comodidade

Vinicius de Moraes é um grande poeta, muito maior do que se convencionou a julgá-lo. Esse poeta maltratado pela crítica só porque escreveu versos de amor demais, como se o amor fosse doença mal curada e que na poesia se inoculasse como veneno, a tuberculose do verso.

Mas Vinicius de Moraes não escreveu só o amor, falou de tudo, como faz um poeta moderno, da vida rasteira à complexidade contemporânea, como bomba atômica, a vida operária, depois de sair do abraço do sublime.

Segundo Ferraz, em Folha Explica Vinicius de Moraes, a palavra deste poeta exige percepção aguda e demorada, porque ela “instala um necessário processo de singularização das coisas, do tempo, do espaço, dos afetos.”

Se não houver esta busca, que deve ser estendida a qualquer boa poesia, diga-se de passagem, “corremos o risco de fruir apenas o que na paisagem nos parece confortável, sem atentar para o que ali é estranhamento, novidade, construção”, diz Ferraz.

É assim que devemos ler Vinicius de Moraes. Afinal, só para recorrer a Ferraz mais uma vez, “toda leitura exige que se desconfie da comodidade.”

Poema inédito sobre Carlos Drummond de Andrade

O estudo de Ferraz sobre a obra de Vinicius de Moraes não pára por aí. A Folha de S. Paulo (26/07) também traz uma reportagem falando de Poesia Esparsa, que traz poemas avulsos do poeta carioca, cujo lançamento está previsto para novembro deste ano, com organização de Ferraz.

Neste livro será publicado o poema inédito ‘Retrato de Carlos Drummond de Andrade’. A reportagem, escrita pelo jornalista Eduardo Simões, também fala da amizade entre Moraes e Drummond.

Leia trecho:

“O carioca bon vivant e o mineiro tímido e introvertido nutriam uma admiração mútua baseada, em parte, na discrepância entre suas personalidades. Numa crônica de 1940, Vinicius puxou a sardinha para sua brasa boêmia e, referindo-se a Drummond, escreveu:

‘Depois de uns chopes, a máscara do poeta esgarça-se num riso silencioso, que lhe vem de uma paisagem casta e longínqua na alma, e sua cabeça baixa se levanta, suas mãos mortas se reencarnam, e ele tamborila na mesa uma alegria rápida e extraordinária.’

Já Drummond, que dizia admirar Vinicius justamente ‘pelo jeito tão diferente’ do seu, declarou, em entrevista a Zuenir Ventura, na revista ‘Veja’ (1980), que ‘invejava o conceito que o Vinicius teve de vida, de independência de espírito, de falta de compromissos com as convenções sociais’. O poeta disse ainda que Vinicius "fazia o que queria e sempre com aquela doçura, com aquela capacidade de encantar que fazia com que as donas-de-casa mais severas o adorassem’.”

Leia mais sobre Vinicius de Moraes neste blog:

RETRATO DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

O jornal Folha de S. Paulo publicou neste sábado (26/07) o poema inédito de Vinicius de Moraes sobre Carlos Drummond de Andrade, descoberto pelo também poeta e pesquisador da obra de Moraes, Eucanaã Ferraz. O poema será incluído no livro Poesia Esparsa, previsto para ser lançado em novembro deste ano.

Retrato de Carlos Drummond de Andrade
De Vinicius de Moraes

“Duas da manhã: abro uma gaveta
Com um gesto sem finalidade
E dou com o retrato do poeta
Carlos Drummond de Andrade.
Seus olhos nem por um segundo
Piscam; o poeta me encara
E eu vejo pela sua cara
Que ele devia estar sofrendo
Dentro daquela gaveta há muito.
Tiro-o, depois com mão amiga
Limpo-o da poeira que lhe embaça
Os óculos e suja-lhe a camisa
E o poeta como que acha graça.
Procuro um lugar para instalá-lo
Na minha pequena sala fria
Essa sala tão sem poesia
Onde me reencontro todo dia
E onde me sento e onde me calo.”

sexta-feira, 25 de julho de 2008

GORE VIDAL NA AUTOBIOGRAFIA DE PAUL BOWLES

Gore Vidal (1925 - ) não está entre os maiores ficcionistas norte-americanos. Está, no máximo, entre os medianos. Mas é uma figura notável e polêmica, principalmente por contestar a política internacional de seu país, dando-lhe a condição de ser admirado pela periferia.

Devia ser um menino levado. Mesmo depois de crescidinho dava uma de mischievous child. A prova está numa passagem da autobiografia de Paul Bowles (1910 – 1999), outro norte-americano, escritor de ficção e compositor de música para o teatro e cinema.

Bowles publicou sua autobiografia Tantos Caminhos em 1972. É uma história de vida como tantas outras de homens de letras, principalmente daqueles de descendência nórdica, judeus ou protestantes: pai violento, mãe sensível ou submissa, família conturbada, cuja maior contribuição é a de empurrar o filho para o mundo imaginativo.

Mas o que interessa aqui é a passagem em que Bowles narra o episódio da molecagem de Vidal.

“Enquanto eu compunha a música de Summer and Smoke, em Nova York, Gore Vidal aparecia quase diariamente na hora do almoço, e saíamos para comer. Gore tinha feito uma brincadeira com Tennessee Williams e Truman Capote e me contou a história em dialeto, por assim dizer. Ligou para Tennessee e, sendo um imitador estupendo, fez-se passar por Truman. Depois, com risadinha e tudo, induziu Tennessee a tecer comentários desairosos sobre os livros de Gore. Mexericaram um pouco e desligaram. Dias depois Gore encontrou Tennessee e fez alusões inequívocas a alguns de seus comentários. Tennessee pensou que Truman fora correndo relatar maliciosamente a conversa a Gore. Assim, ficou aborrecido com Truman, o que era o objetivo da trama.”

Serviço

Título: Tantos Caminhos
Autor: Paul Bowles
Editora: Martins Fontes, 1994, 460 páginas
Gênero: Autobiografia
Preço: R$ 47,00

quinta-feira, 24 de julho de 2008

ESPEJOS. UNA HISTORIA CASI UNIVERSAL: o novo livro de Eduardo Galeano

Eduardo Galeano (1940 - ):

O livro que o escritor uruguaio Eduardo Galeano lançou em abril, Espejos. Una historia casi universal, tem trechos publicados no jornal Le Monde Diplomatique Brasil.

Ainda inédito em português, o livro traz um mosaico de textos sobre “arte, desigualdade, feminismo, mídia, impérios e resistências.” Os trechos, traduzidos para o português pelo Le Monde, foram “cedidos e escolhidos pelo próprio autor”, segundo o periódico.

Leia alguns deles:

Fundação da beleza

Estão ali, pintadas nas paredes e nos tetos das cavernas.

Estas figuras, bisões, alces, ursos, cavalos, águias, mulheres, homens, não têm idade. Nasceram há milhares e milhares de anos, mas nascem de novo a cada vez que alguém as olha.

Como eles conseguiram, nossos remotos avós, pintar de maneira tão delicada? Como eles conseguiram, esses brutos que de mão limpa lutavam contra as feras, criar figuras tão cheias de graça? Como eles conseguiram desenhar essas linhas voadoras que escapam da rocha e se vão para o ar? Como eles conseguiram …?

Ou seriam elas?”

...

Fundação literária do cão

Argos foi o nome de um gigante de cem olhos e de uma cidade grega há quatro mil anos.

Também se chamava Argos o único que reconheceu Odisseu, quando chegou, disfarçado, a Ítaca.

Homero nos contou que Odisseu regressou, ao final de muita guerra e muito mar, e se aproximou de sua casa fazendo-se passar por um mendigo enfermiço e andrajoso.

Ninguém se deu conta de que ele era ele.

Ninguém, salvo um amigo que não sabia mais latir, nem podia caminhar, nem sequer se mover. Argos jazia, às portas de um galpão, abandonado, crivado pelos carrapatos, esperando a morte.

Quando viu, ou talvez farejou, que aquele mendigo se aproximava, levantou a cabeça e abanou o rabo.”

...

Fundação da linguagem

Em 1870, ao final de uma guerra de cinco anos, o Paraguai foi aniquilado em nome da liberdade de comércio.

Nas ruínas do Paraguai, sobreviveu o primeiro: entre tanta morte, sobreviveu o nascimento.

Sobreviveu a língua original, a língua guarani, e com ela a certeza de que a palavra é sagrada.

A mais antiga das tradições conta que nesta terra cantou a cigarra carmim e cantou o gafanhoto verde e cantou a perdiz e então cantou o cedro: da alma do cedro ressoou o canto que na língua guarani chamou os primeiros paraguaios.

Eles não existiam.

Nasceram da palavra que os nomeou.”


Leia também:

Entrevista com Eduardo Galeano, no site da Carta Maior.

OBS: Para quem gosta da literatura de Galeano, o livro já saiu em português, pela L&PM.

Serviço

Título: Espelho - uma história quase universal
Autor: Eduardo Galeano
Editora: L&PM, 2008, 376 páginas
Preço: R$ 42,00

quarta-feira, 23 de julho de 2008

BILLY RAY CYRUS, DAVID LYNCH, CHITÃOZINHO E XORORÓ E HANNAH MONTANA

Veja como esse negócio de cultura contemporânea se entrelaça em todos os níveis e mundos. Não sei se há algum adolescente entre as dez pessoas que acessam esse blog, mas, se houver, a pergunta também lhe interessa.

O que Billy Ray Cyrus, David Lynch, Chitãozinho e Xororó e Hannah Montana têm em comum? Simples. A participação de um no trabalho do outro, em forma de teia e genética.

Ray Cyrus é um cantor de country norte-americano que fez muito sucesso na década de 90 com a música She’s not crying anymore, cuja versão foi cantada por Chitãozinho e Xororó, com a participação do próprio Ray Cyrus, fazendo sua parte em inglês, e que também foi um grande hit.

Em 2001, David Lynch lançou seu intricado Cidade dos sonhos. Quando fui ver o filme, revi Billy Ray Cyrus dando uma de ator, no papel de cowboy. Imaginei que ele estivesse se aventurando pelo cinema, mas, qual quê. Recentemente, assisti a um episódio do tão afamado seriado teen Hannah Montana e me deparei com Cyrus fazendo o papel de pai de Hannah.

Refiz minha idéia sobre o cantor country e passei a ter a certeza de que ele está nesse meio com mais propriedade. Mais recentemente ainda, descobri que a menina que faz a Hannah Montana se chama Miley Cyrus e é filha de Billy Ray. Tudo isso é cultura inútil, não nego. Nessa história toda, a única nova é dizer que Miley Cyrus cresceu, está bonita e abandonou Montana.

terça-feira, 22 de julho de 2008

O VALOR DA TEORIA

Você é daqueles que não vêem nenhum benefício da teoria frente a prática, como se pensar sobre o fazer não fosse proveitoso para o próprio ato da feitura?

Pensamento é ação, como diz Heidegger. Ou seja, pensar é desdobrar algo até a plenitude de sua essência. É nesse desdobrar que se encontra o ato, que é aquilo que permanece.

Senão, vejamos:

“Quem, lendo um poema de Drummond, um livro de Tolstoi ou um tratado de Hegel, acha que está se afastando da vida, não começou ainda a viver. Sem pensamento, a vida não é verde: é cinzenta. A vida do pensamento é uma parte integrante da verdadeira vida.” Sérgio Paulo Rouanet

“A hostilidade para com a teoria geralmente significa uma oposição às teorias de outras pessoas, além de um esquecimento da teoria que se tem.” Terry Eagleton

segunda-feira, 21 de julho de 2008

O QUEIJO E OS VERMES: o blog do Menocchio – uma homenagem a Domenico Scandella

Toda publicação, qualquer que seja ela, tem o objetivo de alcançar o outro, numa atitude que podemos chamar de necessidade de comunicação, de tornar comum o que se pensa e o que se sabe.

Sempre foi assim. Do primeiro balbuciar à babel dos tempos atuais. O homem não é um animal dado à solidão. Ele quer partilhar dores e alegrias, e por isso vai em busca do outro.

No entanto, a maior carência no mundo moderno é a de ouvidos. Na vida real, vozes há muitas. Alguém para ouvir, quase não há. Daí a proliferação dos blogs. Essa necessidade que se tem de escrever na internet nasce do mesmo impulso que o homem possui de conquistar o espaço sideral.

É a tentativa de escancarar a angústia da existência, e a angústia da existência é a mesma que leva alguns a quererem mandar e outros a obedecer (outros – poucos - mandam sem querer, e há mais tantos – muitos – que obedecem forçadamente).

Nessa dança de poder e servidão, há repressões e revoltas que precisam de desabafo de toda ordem, coletivo e individual, de corpo e de alma.

É aqui que entra uma história do século XVI, contada por Carlo Guinzburg em seu ótimo O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição.

Menocchio na Fogueira Santa

Em O queijo e os vermes, Ginzburg fala de Domenico Scandella, apelidado de Menocchio, um sujeito singular que foi queimado na fogueira por ser diferente e querer dizer ao outro o que pensava sobre Deus e a criação do universo.

Menocchio viveu num tempo em que se encontrava luz apenas na Labareda Santa. Autodidata, era moleiro (moía grãos) e morava numa pequena aldeia, Montereale, nos arredores de Udinese, na Itália (que ainda não era Itália). Casado, cuidava bem da família, mas tinha um defeito: falava demais (aos ouvidos da Igreja).

Ele costumava dizer que o universo se formou de uma podridão. À semelhança do queijo, que é feito de leite coalhado (apodrecido) e fermentado por um monte de vermezinhos, o mundo também teve seus vermes, e o maior e mais inteligente deles era Deus.

Os cristãos não gostaram muito de verem seu Criador ser comparado a um micróbio (que não deveria ser tão micro assim, pois se tratava do maior e mais esperto, mas em todo caso, essa imagem sugeria o substrato underground da camada zoológica) e resolveram denunciar às autoridades competentes as proezas de Menocchio.

Não deu outra. Ele foi preso, forçado a se retratar, e solto. Mas depois de livre continuou com suas idéias.

Segundo Ginzburg, Menocchio não queria pregar nada. Sua intenção não era fundar nenhuma religião, queria apenas conversar com as pessoas a respeito do que ele achava do mundo, de uma nova cosmogonia, e imaginava mesmo que estava certo, mas não se importava se as pessoas pensavam diferente dele.

Ele só queria falar. “Se vocês me levarem ao Papa ou ao príncipe, eles se surpreenderão com o que tenho a dizer”, comentava o moleiro. Ao insistir nessa cosmogonia caótica, acabou sendo queimado, em 1600, mesmo ano em que Giordano Bruno também sentiu os ardores da subversão.

Um blog para Menocchio

Se Menocchio tivesse vivido em nossos tempos, além de não ter sofrido a mão pesada da Inquisição, teria se deliciado com a internet. Ele poderia muito bem publicar um blog cheio de idéias interessantes acerca do universo, da Igreja e de Deus propriamente.

Em seus posts leríamos declarações como esta: “Deus não é nada além de um pequeno sopro e tudo mais que o homem imagina.” Ou ainda: “O céu, a terra, o mar, o ar, o abismo e o inferno, tudo é Deus. O que é que vocês pensam, que Jesus Cristo nasceu da Virgem Maria? Não é possível que ela tenha dado à luz e tenha continuado virgem. Pode muito bem ser que ele tenha sido um homem qualquer de bem, ou filho de algum homem de bem.”

Provavelmente, montaria sua própria seita. Talvez ninguém desse bola para o que escreveria. O máximo que a Igreja Católica – ou Edir Macedo – faria era dar um jeito de tirar do ar a página do blogueiro. Página que ele refaria em outro endereço, ad eternum, feito mosca na sopa.

Todo blog de certa forma é uma espécie de consciência individual tentando se mostrar em sua essência, sem revelar a identidade de fato. O que importa mesmo é o alívio dessa necessidade de falar. Pelo menos até a onda dos blogs comerciais, configurados por blogueiros profissionais.

Considerando a concepção original, há blogs de toda natureza: mulheres relatando suas formas de trair o marido; outras mostrando vulvas e peitinhos; homens enumerando com quantas transou e exibindo os troféus em fotos que tirou com câmeras escondidas no quarto de motel; meninas e meninos compartilhando suas fantasias; adolescentes confessando seus gostos, preferências, rebeldias; pessoas várias publicando tudo quanto é sorte de idéias e formas, se revelando, fingindo que se revelam, se escondendo e se descobrindo no labirinto de texto e imagem que é a web.

Menocchio deitaria, rolaria, riria, com um eterno prazer de ter a palavra, blasfemando sempre. Para ele, “blasfemar não é pecado, porque faz mal só a si próprio e não ao próximo.” O que não é verdade. A blasfêmia pode ferir profundamente o coração do crente cuja crença é atingida.

Blog do Menocchio

“Os padres nos querem debaixo de seus pés e fazem de tudo para nos manter quietos, mas eles ficam sempre bem.”

“Na minha opinião, falar latim é uma traição aos pobres. Nas discussões os homens pobres não sabem o que estão dizendo e são enganados. Se quiserem dizer quatro palavras, têm que ter um advogado.”

“E vocês, padres e frades, querem saber mais do que Deus; são como o demônio, querem passar por deuses na terra, saber tanto quanto Deus da mesma maneira que o demônio. Quem pensa que sabe muito é quem nada sabe.”

“Ir se confessar com padres ou frades é a mesma coisa que falar com uma árvore.”

“Acho que amar o próximo é um preceito mais importante do que amar a Deus.”

“Quando o homem morre é como um animal, como uma mosca.”

“Vocês pensam que Cristo Nosso Senhor era filho da Virgem Maria, mas como, se essa Virgem Maria era uma puta? Como é que vocês querem que Cristo tenha sido concebido pelo Espírito Santo se ele nasceu de uma puta?”
“O diabo às vezes nos tenta para dizer alguma palavra.”

sexta-feira, 18 de julho de 2008

A SOLIDÃO DOS OUTROS V: as leituras das leitoras de Paul Auster

O primeiro post sobre a solidão, publicado em 1º de junho de 2008, rendeu dois comentários interessantes.

No dia 27 de Junho, minha amiga Flávia, que ao visitar este blog sempre deixa comentários deliciosos, disse sobre Paul Auster:

“Paul Auster deve mesmo ter uma relação muito íntima, mas também muito obsessiva com a solidão. Na Trilogia de Nova York (em que há o ótimo City of glass), este bonde chamado solidão conduz o leitor a um desprendimento da convivência social para acompanhar um detetive em seu isolamento voluntário em busca de uma verdade. Eis a solidão da personagem, do leitor e do autor, não formando um triângulo, nem amoroso nem odioso, mas um círculo igualmente solitário que se vicia no jogo observo, me isolo para observar/ atuo, me isolo para atuar/escrevo, me isolo para escrever. Paradoxal, pois o círculo se fecha unindo todos os pontos que, julgavam-se, a sós.

Desconsidere. Estou surtada. Flávia.”

Em resposta ao comentário da Flávia, no dia 11 de julho, Mariana Maffei disse:

“Fantástico comentário. Ah se todos os surtos fossem assim...

Atualmente estudo com uma Cia de dança que já fez um espetáculo baseado neste livro: KeyZetta.

... Estou aqui de passagem.”

Acho que desta vez a solidão perdeu. Dois a zero.

quinta-feira, 17 de julho de 2008

O ZOHAR – O LIVRO DO ESPLENDOR: uma apreciação


Queria que meus dias de cão subissem e se tornassem constelação. Digo isso a propósito do surgimento no Brasil de um livro do mais alto grau da sabedoria judaica: O Zohar – o Livro do Esplendor, publicado pela editora Polar, em 2006, com tradução de Rosie Mehoudar.

Antes de tudo, o que me encanta neste livro é seu viés poético. Assim como a Bíblia e o Corão, o Zohar também é fonte de beleza. Em uma das passagens, o mestre Shimon ben Yochai, a quem é atribuído o Zohar, diz a seus discípulos, sobre a forma do homem:

“Os dias que hão de constituir a vida do homem estão todos unidos no momento de seu nascimento. Então eles descem à terra, um depois do outro, e cada um exorta o homem a não pecar em seu dia. Quando um dia vê que o homem não o escutará, mas está determinado a pecar, ele se enche de vergonha. Então retorna para as regiões superiores e dá o testemunho dos atos do homem. Mas é apartado do resto de seus dias para sempre. Entretanto, se o homem se arrepende, então o dia, que foi banido do céu devido aos pecados do homem, tem permissão para voltar.”

É uma bela passagem, sobretudo quando entendemos o pecado não apenas como ofensa aos princípios de uma moral dada por Deus. O pecado pode ser também uma violência, física ou psicológica, executada por um ateu – que tenha pelo menos consciência do que faz – contra qualquer um.

Pode ser uma palavra, monossilábica, onomatopaica, um gesto, um grito, uma expressão de alguém a outrem, religioso ou não, que fere o acordo da convivência em sociedade. Mesmo que se dê a isso outro nome.

O pecado pode ser um pensamento maldoso. E neste caso, todo mundo peca, ou já pecou um dia, porque talvez não exista na face da terra alguém que já não tenha sentido passar pela cabeça, ainda que seja de raspão, uma vontadezinha de matar o pai, ou a mãe, o irmão, o tio, o cunhado, a sogra, quem sabe até o próprio cônjuge (dormindo com o inimigo).

Nem por isso existe o inferno, mas, ainda assim, e por muito menos, o diabo aparece e faz a captura. É bom ficar atento. Um dia inglório pode atormentar demais, daí o alto grau de sabedoria na suspensão dos dias em que se peca.

Com a leitura do Zohar, não serei Shimon ben Yochai, nem seus discípulos, mas espero que meu coração, um dia, seja iluminado pela luz esplêndida da sabedoria divina, essa luz trazida pelas fontes do saber, mergulhada no rio do entendimento, quem sabe, ao menos, na hora da morte, amém.

A origem do Zohar

O Zohar é considerado a espinha dorsal da Cabala, que é a parte mais secreta e mística da Torá Oral. Por meio da Cabala aprendemos as leis que regem o espírito, segundo as quais, tudo que acontece tem alguma causa. Aprendendo isso, aprendemos a viver melhor, porque procuramos fazer o melhor para nós e para os outros.

Esta publicação não abrange todos os ensinamentos do Zohar. O livro é a tradução de um texto publicado em espanhol, em 1933, que, por sua vez, trata apenas de trechos traduzidos do original em aramaico pelo rabino Ariel Bension, que traz também o prólogo do consagrado escritor Miguel de Unamuno, uma das principais influências da obra de Jorge Luis Borges.

De acordo com a tradição judaica, os ensinamentos da Torá Oral teriam sido transmitidos diretamente por Deus a Adão e, posteriormente, aos patriarcas e a Moisés. Teria ficado na oralidade não fosse o receio de que todo esse saber se perdesse por causa das perseguições aos judeus, com a proibição do estudo da Torá.

Em decorrência disso, os sábios do judaísmo resolveram compilar partes desse ensinamento e escreveram o Talmud (interpretação de nível literal e alegórico dos textos bíblicos) e os Midrashim (conjunto de textos que compõem a interpretação de passagens do Tanak, a bíblia judaica).

De acordo com uma das versões do surgimento do Zohar, sua compilação, já no século III d.C., coube ao rabino Shimon ben Yochai, considerado um dos “maiores homens santos da tradição judaica.” Mas esses manuscritos teriam ficado escondidos por mil anos, até o rabino Moisés de Leon começar a editá-los, em 1290.

Há, no entanto, outra versão, segundo a qual, o Zohar não faz parte dos ensinamentos tradicionais da Torá, tendo sido criado (em aramaico, volto a frisar) apenas no século XIII, pelo próprio Moisés de Leon, que, para dar mais crédito ao feito, atribuiu os manuscritos, que nunca foram encontrados, por sinal, ao rabino Shimon ben Yochai, que aparece como o mestre que revela os segredos do Zohar aos seus doze discípulos.

A estrutura do Zohar

Pouco importa. A grandeza do Zohar – mesmo se tratando apenas de uma pequena parte dele aqui – está em sua capacidade de abrir caminhos de entendimento, baseado numa complexa estrutura simbólica.

O livro em questão se divide em três partes principais: Revelações feitas à Grande Assembléia; revelações feitas à Pequena Assembléia; e Trechos do Zohar sobre Shimon ben Yochai e sobre seus discípulos.

O cerne da simbologia presente no Zohar está nas categorias chamadas sefirot, plural de sefirá. Cada sefirá simboliza uma qualidade divina.

Segundo o Zohar, Deus está acima de qualquer atributo, ou imagem ou corpo. Por esta razão, é impossível para o homem alcançar o significado da totalidade divina. Mas há uma maneira de compreendermos parcialmente a imagem de Deus. É que Ele se assemelha às águas, sem forma e sem limites.

“Entretanto, quando as águas estão espalhadas na terra, somos capazes de concebê-las e falar delas sob variadas formas: primeiro, há a fonte; daí o rio que brota dela e espalha suas águas sobre a terra. Depois, a bacia, dentro da qual fluem as águas, e que formam o mar. Então, o mar, de onde as águas correm em sete canais, fazendo dez formas no total.”

E assim, temos o quadro dentro do qual são formadas as dez sefirot. A primeira é a fonte, que é a Coroa (Kéter), “de onde brilha uma luz sem fim, e que chamamos o Infinito ou Ein Sof, já que não temos meios à nossa disposição para compreendê-lo.” Depois vem o rio (Sabedoria – Chochmá), depois a bacia (Inteligência – Biná), “um vaso tão imenso quanto o mar.” Estas três categorias formam o mundo da emanação.

Em seguida, vêm os sete mares, cada um representando um atributo:

Misericórdia (Chéssed), Justiça, ou Rigor (Guevurá), Beleza (Tiféret) – formando o mundo da criação –, Triunfo, ou Vitória (Nêtsach), Glória (Hod), Fundação, ou Fundamento (Iessód) – constituindo o mundo da formação – e, finalmente, Realeza, ou Reino (Malchut) – o mundo da ação.

Embora essas categorias representem a Imagem de Deus, elas refletem também o divino que há no homem, uma vez que a Imagem de Deus “encerra todas as imagens de cada coisa de que estamos conscientes com todos os nossos sentidos e em todas as formas.” É nesse sentido que o homem se aproxima de Deus, por trazer “a maior semelhança com o original.”

É interessante imaginar que há em nós uma fonte infinita de saberes, um rio de sabedoria, sete mares de atributos divinos. Poderia dizer, por exemplo, que há em mim um mar de glória, muito embora meu espírito não esteja ao alcance da totalidade dessa imensidão. O gênio é constituído dessas categorias, segundo a Cabala.

Abro aqui um parêntese para lembrar que foi com base nessas categorias que o crítico Harold Bloom elaborou uma lista de cem gênios da linguagem, colocando William Shakespeare na ponta da Coroa (Kéter), que inclui mais nove nomes, entre eles Miguel de Cervantes e Michel de Montaigne. Na categoria Fundamento, o mundo da formação, está Machado de Assis, junto com Jorge Luis Borges, Eça de Queiroz e mais sete.

Voltando ao Zohar, na introdução do livro em português, a tradutora ressalta a importância do acesso a esse saber em nossa língua e conclui dizendo esperar que o contato inicial com o Zohar “abra a porta para que seu trabalho mais complexo e amplo possa ser vertido em breve em nosso país.”

Da mesma forma que não precisamos ser crédulos para ver o lastro de valores imanentes na Bíblia, que ajudaram a fundar a cultura ocidental, não é necessário acreditar em Deus para perceber o valor do Zohar, cujas palavras, além do significado religioso e do senso moral, denotam traços de rara beleza poética e saber filosófico.

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Trechos:

“Por todo o país, em volta do Mar da Galiléia, o mestre, Shimon ben Yochai, passeava com seus alunos. Algumas vezes eram doze, outras talvez dez, esses fiéis discípulos a quem o mestre ensinava a Torá e explicava a Palavra de Deus como a haviam revelado os profetas e os mestres de Israel: a Lei Escrita conservada para toda a posteridade no livro imperecível, a Bíblia.

Ele disse a seus discípulos: ‘Infeliz é o homem que vê na interpretação da Lei a recitação de uma simples narrativa, contada em palavras de uso comum. Se fosse só isso, não teríamos dificuldade alguma em compor hoje uma Torá melhor e mais atraente. Mas as palavras que lemos são apenas a túnica exterior. Cada uma delas contém um significado mais alto do que o que nos é aparente. Cada uma contém um mistério sublime que devemos tentar penetrar com persistência. Os que tomam o traje exterior pela coisa que ele cobre, não encontrarão muita felicidade nele – exatamente como os que julgam o homem apenas por sua vestimenta exterior estão fadados à desilusão, pois são o corpo e o espírito que fazem o homem. Sob a vestimenta da Torá, que são as palavras, e sob o corpo da Torá, que são os Mandamentos, encontra-se a alma, que é o mistério oculto.’”

...

“O arco celeste acima deles parecia ter absorvido em si mesmo o azul profundo das águas, enquanto o mar estendia-se calmo e pacífico qual lago de prata salpicado de estrelas cintilantes.”

domingo, 13 de julho de 2008

A SOLIDÃO DOS OUTROS IV: Os caminhos da solidão

Na Zona da Mata pernambucana, mais precisamente às margens do rio Una, quase na divisa com Alagoas, foi ambientado um romance já meio esquecido pelos leitores de hoje. Sua trama narra a saga de uma família em meio aos conflitos de terra e à chegada do progresso. O livro se chama Os caminhos da solidão. Seu autor, Hermilo Borba Filho (1917-1976).

Publicado em 1957, o romance traz uma narrativa recuada no tempo, cuja história se passa entre os últimos 20 anos do século XIX e os primeiros do XX. O cerne da trama é a conduta de André, sujeito muito estranho. Ele chega àquela região como fugitivo de um crime cometido alhures.

Às margens do Una, André é abordado por um dos jagunços do dono das terras (coronel Albuquerque) em que ele se encontra. André não vê outra alternativa senão matar o tal jagunço – cometendo assim outro crime – e enterrá-lo ali mesmo. Ali mesmo, sobre o túmulo da vítima, ele constrói uma cabana, onde passa a morar.

A partir daí, os caminhos da solidão são apresentados, à medida que também se apresentam os personagens. Cada um vive dentro de seu próprio calabouço, com seus fantasmas e agruras. Cada um com sua história de solidão paralelamente ao desfeche da trama.

De um lado do rio há o coronel Albuquerque, que lamenta não ter filho homem e amargar três filhas solteironas. De outro, há um padre querendo trazer o progresso para aquelas bandas, enquanto fala em nome dos índios, quase dizimados por completo, solitários e esquecidos, cujo único amparo era o do padre.

André se torna jagunço do coronel Albuquerque, depois genro, depois herdeiro de tudo, enquanto a solidão carcome sua alma, por tudo que vive, por tudo que sente, entre a mulher (Rosa) e a amante (Adélia), enterrado nos conflitos com tudo e com todos.

A obra inteira é perpassada por uma espécie de fluxo de consciência, intercalado pela narrativa, para enfatizar esse caráter de pessoas solitárias que – só – se sentem acompanhadas com sua própria subjetividade, suas próprias ruminações.

O estilo de narrar do Borba Filho é límpido e direto. É um belo romance, que lembra um pouco Cem Anos de Solidão, de García Márquez, sem o realismo fantástico, é claro, e sem as tergiversações, mas com todos os ingredientes apresentados na história da criação de Macondo.

Há um quê de tragédia na Macondo de Borba Filho, como há na de Márquez. A tese é de que todos os caminhos da solidão levam ao ocaso. Como se os rios fossem esses caminhos, e o mar a morte.

Trecho:

“Os dias passaram. Como nuvens no céu, como as águas da chuva. Morreu gente, nasceu gente e Adélia contou, devagar, todos aqueles dias, todas aquelas coisas acabando para ela, com exceção das visitas da filha que morava na cidade, do outro lado do rio.

Ficava sozinha no alpendre da casa e aprendeu a conhecer a campina defronte, com as campânulas abertas pela manhã, brilhando com o orvalho, e os sapos coaxando de noite, num ritmo sempre igual. Esperava a tarde para olhar a estrela grande na linha do horizonte. Tudo era igual. Uma visita de longe em longe de André, sem palavras. Tudo o mais acabou.

Tudo era passado e o presente se arrastava como uma lesma na parede lisa. Os dias se foram, se amontoaram, formaram uma semana, meses, um ano, dois, três, vários. Os dias se foram”.

sábado, 12 de julho de 2008

UM RIO QUE PASSOU EM MINHA VIDA: o eco no sertão

“Viver é negócio muito perigoso” (página 3).

É mesmo perigoso, meu caro. Eu me lembro muito bem do dia em que mergulhei no perigo da vida, e me desdobrei para sorver melhor a beleza que encontrei nessas palavras. Palavras que me lavaram a alma e me clarearam o mundo para um saber estético. Mesmo que eu ouça:

“Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa” (página 8).

E eu sei menos. Mas aprendi que aprender é tão essencial quanto ensinar, tanto quanto morrer vale o mesmo que viver.

“Viver é muito perigoso ...” (página 9).

Não desconcordo. Está nos olhos de velhinhos chorando na rua, nas filas de hospitais, nos corredores do INSS, no impacto de um tapa na cara, ao curvar na estrada da vida, no encontro consigo mesmo.

“Viver é muito perigoso ...” (página 17).

Como no primeiro beijo: perigo e prazer; vontade de correr e pular, de sorrir e chorar, de se encolher e dançar, de beijar mais e se perder no sertão que vira mar.

“Viver não é muito perigoso?” (página 26).

É, sim, meu caro. Como viver em São Paulo (sertão ao contrário), decifrando um enigma por dia, e ganhando apenas o direito de tomar um chope nos bares lotados da cidade. E quem não pode é porque já foi devorado e não se deu conta.

Viver é mesmo muito perigoso, mas vale o risco pelo sulco que se faz no coração de quem fica, como saudade, saideira, saídade. No entanto ...

“Toda saudade é uma espécie de velhice” (página 30).

E toda velhice é uma espécie de lágrima atrasada, respingando no sertão de cada um.

‘Viver é muito perigoso” (página 38).

É por isso que se vai cortar cana e adoçar os sonhos. Correr descalço nas ruas e pensar na São Silvestre, mergulhar na piscina de casa e cheirar cocaína na penumbra da sala quando a madrugada se cala e já não há mais galo nem canja nem quase vida.

“Viver é um descuido prosseguido” (página 57).

Como o quê? Com um lapso?

“Viver é muito perigoso ...” (página 70).

e

“Despedir dá febre” (página 52).
Grande Sertão: Veredas.

quinta-feira, 10 de julho de 2008

PÔXA, QUE BOSSA! 50 ANOS DEPOIS.

Fui ver a exposição que comemora os 50 anos da criação da bossa nova. Tudo muito bonito. As instalações abrangem os quatro pisos da Oca, prédio arredondado construído por Oscar Niemeyer também na década de 50, dentro do Parque Ibirapuera, em São Paulo.

As principais atrações, para mim, foram a sala do silêncio, dedicada ao minimalismo de João Gilberto, mostrando as técnicas de construção da música, o palco de show virtual, onde se vêem astros e estrelas, como Frank Sinatra e Tom Jobim, cantando Garota de Ipanema em várias versões, e, principalmente, o mar.

O mar, instalado na abóbada do último piso, transmite a sensação de se estar mesmo em outra época, outro lugar. Não estamos em São Paulo do século XXI, nem no Rio, nem no Brasil. Estamos no Rio de Janeiro da década de 50.

Sob o mar, ficamos nós, semi-deitados em poltronas confortáveis, com a cabeça recostada entre pequenas caixas de som, ouvindo bossa nova e sonhando. Tem gente que chega a roncar. Do meu lado, um rapaz dormia e ressonava alto. Cheguei a imaginar que era a ressaca das ondas, mas logo vi que era, no mínimo, uma ressaca mal curada do visitante.

No ambiente da Oca, respirando bossa nova, definitivamente não estamos no aqui e agora. Se fôssemos fazer um rápido paralelo entre 1958 e 2008, o que veríamos?

1958: o Brasil é campeão mundial de futebol pela primeira vez, revelando o maior jogador de todos os tempos, Pelé. É criada uma música que prima pela delicadeza dos movimentos, a graça dos versos, o mínimo que se revela o máximo, chamada de bossa nova. O Rio de Janeiro é lindo. O país passa por uma euforia juvenil, de esperança no futuro, de grandes conquistas e de ótimo desenvolvimento industrial.

2008: O Brasil é campeão em violência urbana. A seleção brasileira perde para a Venezuela, para o Paraguai, o país perde em quase tudo. A polícia mata à toa os cidadãos de bem, enquanto os bandidos também matam, também roubam, também mandam no país. O Rio de Janeiro continua lindo, mas sem a paz da bossa nova. O país não tem mais clima pra bossa. Se em 1958, poderíamos usar a expressão, ‘pôxa, que bossa!’. Hoje, não dá. No mínimo, no mínimo (veja bem), diríamos, e dizemos, com um olhar desolado para o futuro: ‘Pôxa, que bosta!’.