Recortei o trecho abaixo – do livro Formas Simples – pela concisão com que explica um quadro da história inglesa. Se não era fácil viver entre esses lobos, imagine ser plebeu. Que suplícios e sangue não houve nesses tempos ferozes!
“Henrique Tudor esposa Elizabeth de York, casamento que reconcilia as ambições das casas de Lancaster e de York, divididas há muitos anos por assassinatos, sedições e traições, na chamada ‘Guerra das Rosas’. Após a ascensão ao trono da Inglaterra, teve ele duas filhas, Margaret e Mary, e um filho, Henrique, que lhe sucede.
“Esse sucessor, Henrique VIII, casou seis vezes. Dois dos casamentos são anulados, duas das esposas são executadas por sua ordem, uma outra morre ao dar à luz o único filho varão que ele terá, a última esposa sobrevive-lhe. Esse filho, Eduardo VI, tem dez anos à data da morte do pai.
“A regência é sucessivamente assegurada por dois duques, dos quais o segundo casa seu próprio filho com uma neta do segundo filho de Henrique VII. Com o desaparecimento de Eduardo, morto aos dezesseis anos, ele tenta colocar esse casal no trono.
“Mas a tentativa fracassa e os conjurados são mortos. Sobe então ao trono uma filha do primeiro casamento de Henrique VIII, Mary, a cruel. Esta morre sem deixar herdeiros e sucede-lhe Elisabeth, irmã detestada de um segundo leito. Um dos episódios mais conhecidos da vida de Elisabeth é o conflito que a opõe a Mary Stuart, neta de Margaret e tia de Elisabeth.
“Mary Stuart é rainha da Escócia pelo casamento e casou três vezes: com um rei de França, com um primo e com o assassino de seu segundo marido. Elisabeth manda executar Mary Stuart, morre sem filhos e seu sucessor é o filho de Mary Stuart.” (Formas Simples, de Andre Jolles)
Não há espaço para ódio neste blog. Eventualmente uma ranzinzice crítica. Mas o amor às narrativas é o grande juiz aqui, a peneira vigente desta plataforma. Este é o lugar da paixão movedora de interesses afetivos.
quarta-feira, 15 de dezembro de 2010
Tempos ferozes
quarta-feira, 8 de dezembro de 2010
A descoberta do outro
Em que momento nas relações sociais, no exercício da socialização, o eu descobre o outro? É uma pergunta difícil de se responder porque, muitas vezes, o outro jamais é percebido de fato como sujeito. Se no plano social já é complexo, o que dizer quando a questão envolve a relação entre duas culturas?
Segundo Tzvetan Todorov, o acontecimento na história da humanidade que fundou o problema moderno da alteridade foi a chegada dos espanhóis ao continente americano. Em A Conquista da América: a questão do outro (Martins Fontes, 2010, 4ª ed., 388 páginas, tradução de Beatriz Perrone-Moisés), Todorov dá uma aula magnífica sobre a percepção entre duas culturas e suas respectivas subjetividades (ou a falta delas).
“Quero falar da descoberta que o eu faz do outro”, diz o autor na primeira frase de seu texto. O livro foi publicado originalmente em 1982, e no ano seguinte já estava traduzido no Brasil. Esta proposição central ainda se mantém atual, quase 30 anos depois, e se manterá por muito tempo, enquanto a humanidade se relacionar socialmente, principalmente num convívio cada vez mais global.
No cerne da discussão de Todorov está esta percepção do eu, no esforço da interpretação pela tela das representações ideológicas e da barreira linguística. E sua proposta é atual não por acaso. “O presente me importa mais do que o passado”, diz o filósofo, linguista e historiador búlgaro, que há quase 50 anos mora em Paris. “Não tenho outro meio de responder à pergunta de como comportar em relação a outrem a não ser contando uma história exemplar.”
De acordo com o autor, “é a conquista da América que anuncia e funda nossa identidade presente.” Ou seja, uma identidade forjada na cultura híbrida. “Apesar de nem sempre sermos bilíngues, somos inevitavelmente bi ou triculturais”, diz Todorov, uma carapuça que se encaixa perfeitamente na face de qualquer sociedade moderna e até nas tradicionais.
No primeiro caso, somos todos nós. No segundo, olhemos para a sociedade japonesa. Basta lembrar seu sistema de escrita e o budismo, ambos emprestados da China. Ou mesmo a Europa inteira, receita de povos em que há os godos, os gregos, os latinos, os mediterrâneos, os árabes, os nórdicos, os bretões, e tantos outros, que se abraçam cada vez mais, embora atualmente nova onda de xenofobia e racismo paire sobre as consciências europeias.
Genocídio
Segundo Todorov, “a descoberta da América, ou melhor, a dos americanos, é sem dúvida o encontro mais surpreendente de nossa história. Na ‘descoberta’ dos outros continentes e dos outros homens não existe, realmente, este sentimento radical de estranheza.” Esse estranhamento gerou um conflito ímpar, e um sistema de dominação radical que deu ao século XVI o ranking nefasto do maior genocídio da história da humanidade.
“Em 1500”, comenta o autor, “a população do globo deve ser da ordem de 400 milhões, dos quais 80 [milhões] habitam as Américas. Em meados do século XVI, desses 80 milhões, restam 10 [milhões]. Ou seja, se nos restringirmos ao México: às vésperas da conquista, sua população é de aproximadamente 25 milhões; em 1600, é de 1 milhão.”
Essa violência desmedida é um marco pela dimensão que ela tomou, mas Todorov lembra que não se trata de uma particularidade dos espanhóis (ou dos povos ibéricos, já que os portugueses também entraram com sua pulsão de morte no processo histórico de conquista da América). “São traços imutáveis da ‘natureza humana’”, diz.
“É possível também afirmar que cada povo, desde as suas origens até os tempos atuais, possui suas vítimas e conhece a loucura assassina”, lembra o autor. Os astecas, povo dominado por Fernão Cortez, por exemplo, cultivavam sua cota de crueldade, e não era pequena, sobre as sociedades dominadas por eles.
Todorov reconstrói a história da conquista para, no escopo das considerações históricas, poder analisar “a percepção que os espanhóis têm dos índios” e responder as questões propostas, que não são poucas. Seu livro é profundo e complexo. “A relação com o outro não se dá numa única dimensão”, avalia.
“A descoberta do outro”, conclui o grande pensador da modernidade, “tem vários graus, desde o outro como objeto, confundido com o mundo que o cerca, até o outro como sujeito, igual ao eu, mas diferente dele, com infinitas nuanças intermediárias.”
O autor se concentra nos primeiros cem anos da conquista, e escaneia cada milímetro de significado desse período, nesse local de dominação. Diante dos olhos do leitor desfila uma série de comportamentos e ações, como a percepção que Cristóvão Colombo tinha dos indígenas, a interpretação do navegador sobre as novas sociedades, a relação de Cortez com a cultura asteca e a sistemática exterminação dos povos do novo mundo.
Mundos
Para dar conta de configurar sua proposta, Todorov abre quatro capítulos intitulados “Descobrir”, “Conquistar”, “Amar” e “Conhecer”. O primeiro é dedicado à chegada de Colombo e seu comportamento diante da população local. Colombo não se comunica com os índios, sequer está interessado nisso.
Por isso mesmo, Colombo só descobre as terras, não descobre o homem. Trata o outro como animal e objeto, jamais como sujeito. “Fala dos homens que vê unicamente porque estes, afinal, também fazem parte da paisagem.” Na análise de Todorov, com esse comportamento, o navegador “recusa a existência de uma substância humana realmente outra, que possa não ser meramente um estado imperfeito de si mesmo.”
A observação de Todorov vale para os dias de hoje. Vale para nós mesmos, brasileiros que rejeitamos as sociedades indígenas brasileiras, os excluímos pelo capricho de exigir desses povos valores semelhantes aos nossos. No caso de Colombo, em relação aos povos encontrados no novo continente, sua experiência da alteridade se baseia na “identificação de seus próprios valores com os valores em geral, de seu eu com o universo; na convicção de que o mundo é um.”
E o mundo não é um. Vários pensadores já discorreram sobre a pluralidade dos mundos, das tangências possíveis de subjetividades. Esta premissa joga na cara de nossa sociedade o fingimento moral de pretender ser aberta, mas ignorar ou rejeitar, a base de sopapos e socos, o diferente.
A visão preconceituosa e cega da sociedade contemporânea ainda tem muito de Colombo, com a capacidade de “ver as coisas como lhe convém.” Essa conduta de ir apenas atrás do ouro, de não se importar com nada mais faz que o navegador descubra a “América, mas não os americanos.”
Cortez é analisado no capítulo seguinte, “Conquistar”. É ele quem adentra mais o continente e conquista os astecas. É ele quem aparece no novo mundo com uma visão de dominação ampla e avassaladora. Primeiro, procura conhecer a língua dos astecas, para depois, com um acervo de conhecimento sobre o outro, aniquilá-los.
Nada muito diferente dos impérios modernos. Por isso mesmo, é o marco da modernidade no contato com outro. Segundo Todorov, em termos de número, os solados de Cortez se encontravam em grande desvantagem. Ainda assim, venceram as batalhas cruciais. Por que, em função do quê?
Pela eficiência na comunicação, pelo domínio dos signos produzidos pela palavra escrita. A cultura escrita do Ocidente preparou o espírito para uma comunicação entre indivíduos, uma comunicação com o homem. A sociedade asteca, que na época de Cortez estava sob o comando de Montezuma, mantinha uma comunicação com o mundo.
Era uma sociedade que priorizava a coletividade, sem dar voz à individualidade. Sua comunicação era com os deuses, por meio dos quais se tinha o conhecimento que ordenava a vida coletiva.
Alteridade
“Seria forçar o sentido da palavra ‘comunicação’ dizer, a partir disso, que há duas formas de comunicação, uma entre os homens, e outra entre o homem e o mundo, e contatar que os índios cultivam principalmente esta última, ao passo que os espanhóis cultivam principalmente a primeira?”, pergunta Todorov, retoricamente.
“A comunicação, entre os astecas, é, antes de mais nada, uma comunicação com o mundo, e as representações religiosas têm papel essencial”, afirma o autor. Enquanto os astecas tentavam entender os espanhóis por meio de desígnios divinos, estes entenderam rápido como funcionava a sociedade daqueles.
Entenderam o funcionamento da sociedade, da regra do jogo social e político, mas não o outro, não a subjetividade do outro. Era, no entanto, o suficiente para dominação. Segundo Todorov, uma das razões da conquista é que muitas tribos dominadas por Montezuma, como os tlaxcaltecas, se alinharam aos espanhóis na luta contra os soldados do rei asteca.
Além disso, na análise do confronto com o outro, a dizimação da sociedade asteca também se deu pelo fato de não haver nenhum laço de contiguidade (vizinhança) entre esses dois mundos. O descompromisso com a vida do outro totalmente desconhecido de certa forma contribuiu.
Não foi o caso dos confrontos entre os povos da Europa com os da Ásia e da África, que já se conheciam, ainda que à distância, argumenta Todorov. A conquista da América é, portanto, “a conquista eficaz da comunicação”, diz o autor. A leitura que Todorov faz dessa história é semiótica.
Segundo ele, “qualquer pesquisa sobre a alteridade é necessariamente semiótica; e reciprocamente: a semiótica não pode ser pensada fora da relação com o outro”, assinala. A Conquista da América é um livro exemplar. É uma contribuição valorosa para quem se interessa pelo outro.
A história dessa conquista nos permite a auto-reflexão, como bem conclui o autor. Afinal, “o conhecimento de si passa pelo conhecimento do outro.”
Serviço
Título: A Conquista da América – a questão do outro
Autor: Tzvetan Todorov
Editora: Martins Fontes, 2010, 380 páginas
Gênero: História
Preço: R$ 59,90
(Gilberto G. Pereira, publicado originalmente na Tribuna do Planalto, em 5/10/2010)
terça-feira, 30 de novembro de 2010
A polícia se comporta mal
Estava demorando aparecer as pataquadas de alguns policiais que integram as Forças de Segurança no Rio de Janeiro. Agora os casos de abuso começam a aparecer. Leia um trecho da reportagem da Folha de S. Paulo de hoje, assinada pelos repórteres Rogério Pagnan e Fabia Prates:
"No final de 2009, numa festa da empresa, Márcio ganhou num sorteio uma TV de LCD de 32 polegadas. Para receber o bem mais valioso da casa, sua mulher mandou pintar as paredes e comprou um móvel novo.
Ontem, ao voltar para o imóvel no Complexo do Alemão, o casal chorou ao encontrar o prêmio com a tela furada, bem no meio.
Segundo Flávia, a mulher, que pediu para não ter seu sobrenome divulgado, o buraco na tela foi feito pelo fuzil de um dos policiais, conforme relatos de vizinhos.
'Eu deixei as chaves da casa com minha vizinha. Disse que era para entregar aos policiais se eles quisessem revistá-la. Coloquei até a nota fiscal na gaveta para mostrar que era tudo certinho', diz.
As polícias Militar e Civil informaram não ter recebido nenhuma reclamação formal. Ao todo, cinco famílias ouvidas pela Folha reclamaram de portas arrombadas por policiais que reviraram tudo e destruíram as TVs."
Quem, em sã consciência, procuraria a polícia para denunciar a polícia, num momento de conturbada crise no Rio de Janeiro? Para apanhar mais? para se humilhar mais? Para quê? Durante muito tempo a polícia carioca não teve competência para extirpar os bandidos dos morros do Rio de Janeiro. Precisou de ajuda do governo federal.
Não vai ser a agora que a polícia carioca vai ter competência ou força de vontade para investigar casos de abuso. Só mesmo se alguma animalidade dessas for filmada, e secretamente, para que os bandidos de farda, que cometem esse tipo de atrocidade contra cidadãos indefesos, não venham a cometer represálias mais violentas ainda, em nome da operação de paz.
A carapuça não serve para todos. A polícia competente e honesta é quem está fazendo o trabalho de limpeza, mas há sempre aqueles, que, muitas vezes estavam na folha de pagamento do tráfico, que se sentem no direito, se sentem até mesmo com o poder e a liberdade de meter os pés e as mãos fendidos de cavalos que são na vida dos outros. Por que não entraram na casa dos bandidões antes e não fizeram isso com as TVs de plasma dos chefões, antes? São uns covrades.
segunda-feira, 29 de novembro de 2010
Línguas e dialetos românicos e germânicos
O escritor goiano Adovaldo Fernandes Sampaio relançou em sétima edição seu livro Línguas e Dialetos Românicos e Germânicos (Kelps, 2010, 350 páginas, acrescido de um opúsculo de 96 páginas que conta as línguas germânicas). É uma pena esse livro não ter a distribuição que merece. Na Livraria Cultura, por exemplo, não pode ser encontrado. Ou seja, só o leitor vindo a Goiânia mesmo para adquiri-lo.
O autor achou uma maneira original de abordar o quadro completo das línguas de origem latina e as de origem germânicas. Enviou centenas de cartas a pessoas que falam os mais diversos idiomas dessas duas árvores e pediu a elas que escrevessem o Pai-Nosso e a Ave-Maria.
O resultado foi que, além de recontar essas línguas todas, que somam juntas mais de 170 (só as românicas são 120), foi possível traçar um perfil de cada uma delas por meio de seus registros escritos e de um histórico, como nasceu, quando, porque sobrevive e quais são as ameaças que sofrem.
Papo
“Papeando em papiamento” é o subtítulo de uma passagem do livro, uma brincadeira ilustrativa de como é a língua papiamento, falada em Aruba e nas Antilhas Holandesas. Segundo Sampaio, o papiamento é “um dialeto luso-espanhol crioulizado, formado de palavras tiradas do espanhol, português, inglês, holandês, além de dialetos indígenas e africanos.”
Por ser um coquetel linguístico, diz o autor, “é muito difícil classificar o papiamento em qualquer grupo.” Mas mesmo correndo riscos, ele classifica a exótica língua no time das românicas, talvez pelos 80% de espanhol em seu léxico.
Amostra
Como vai? – con ta bai?
Por favor – Please
Adeus – Ayo
Traga a minha conta – Mi por a hana mi quenta
Bumbum – Chang Chang (ou sanka)
Caro – Caro / Barato – Barato
Muito obrigado – Masha danki
Vamos dançar? – Ban balia?
Eu te amo – Mi ta stima bo
Quanto? – Cuanto?
Que horas são? – Cuant’or tin?
Boa noite – Bon nochi
Boa tarde – Bon tardi
Bom dia – Bon dia
O autor achou uma maneira original de abordar o quadro completo das línguas de origem latina e as de origem germânicas. Enviou centenas de cartas a pessoas que falam os mais diversos idiomas dessas duas árvores e pediu a elas que escrevessem o Pai-Nosso e a Ave-Maria.
O resultado foi que, além de recontar essas línguas todas, que somam juntas mais de 170 (só as românicas são 120), foi possível traçar um perfil de cada uma delas por meio de seus registros escritos e de um histórico, como nasceu, quando, porque sobrevive e quais são as ameaças que sofrem.
Papo
“Papeando em papiamento” é o subtítulo de uma passagem do livro, uma brincadeira ilustrativa de como é a língua papiamento, falada em Aruba e nas Antilhas Holandesas. Segundo Sampaio, o papiamento é “um dialeto luso-espanhol crioulizado, formado de palavras tiradas do espanhol, português, inglês, holandês, além de dialetos indígenas e africanos.”
Por ser um coquetel linguístico, diz o autor, “é muito difícil classificar o papiamento em qualquer grupo.” Mas mesmo correndo riscos, ele classifica a exótica língua no time das românicas, talvez pelos 80% de espanhol em seu léxico.
Amostra
Como vai? – con ta bai?
Por favor – Please
Adeus – Ayo
Traga a minha conta – Mi por a hana mi quenta
Bumbum – Chang Chang (ou sanka)
Caro – Caro / Barato – Barato
Muito obrigado – Masha danki
Vamos dançar? – Ban balia?
Eu te amo – Mi ta stima bo
Quanto? – Cuanto?
Que horas são? – Cuant’or tin?
Boa noite – Bon nochi
Boa tarde – Bon tardi
Bom dia – Bon dia
terça-feira, 23 de novembro de 2010
Moacir C. Lopes
Moacir C. Lopes (1927 - 2010)
Ainda não tive a oportunidade de ler a obra de Moacir C. Lopes, falecido no domingo passado, 21, aos 83 anos, autor de mais de 20 livros. Mas vi o filme de Walter Lima Jr., A ostra e o vento, baseado no romance homônimo de Lopes, com a bela e grande atriz Leandra Lea e o ótimo Lima Duarte. O filme é tecnicamente cinematográfico, mas ainda assim é possível vislumbrar imagens que também podem ser literárias. Fica o registro da morte do escritor cearence, de Quixadá, que morava no Rio de Janeiro.
sábado, 20 de novembro de 2010
O poder da arte
Há livros que a gente só namora de longe sem poder ter acesso, porque é caro, quando não raro. Este O poder da arte (Companhia das Letras, 2010, 504 páginas), de Simon Schama, é um tipo que eu gostaria de ter em minha biblioteca mínima.
Mas como não posso, eis a dica e o serviço. Quem sabe, um restinho de grana, neste fim de ano, depois do leite da criança. Quem sabe.
Serviço
Título: O poder da arte
Autor: Simon Schama
Editora: Companhia das Letras, 2010, 504 páginas
Gênero: Teoria e história da arte
Preço: R$ 89,00
terça-feira, 9 de novembro de 2010
O elogio da escrita
A história nasceu com a escrita. A história da escrita, portanto, é ao mesmo tempo relato e explicação de si mesma, ou seja, metalinguagem. Esse desdobramento da memória foi objeto de pesquisa do escritor goiano Adovaldo Fernandes Sampaio. Seu livro Letras e memória: uma breve história da escrita (Ateliê Editorial, 2009, 304 páginas) é uma rajada de luz sobre 50 séculos de códigos pictográficos, ideográficos, silábicos e fonéticos. É uma viagem histórica e etnolinguística indispensável a quem quer olhar de perto as ferramentas que propiciaram a evolução do pensamento e das civilizações.
O livro conta e encanta. O que há em sua proposta final é a paixão pelas aventuras das letras, que transparece pela escritura do autor. Às vezes a pena corre como quem faz versos livres. Às vezes quer refletir sobre o tempo da palavra escrita, como bem diz o subtítulo. Outras vezes o que surge é uma paisagem de campo aberto, sobre a qual o leitor corre os olhos e se delicia com essa espécie de arqueologia da representação.
O rico acervo de ilustrações ajuda o leitor a mergulhar nesse universo fascinante em que há todos os sistemas de escrita, desde as pictográficas, como os hieróglifos, até os alfabetos mais conhecidos e usados hoje, como o latino e o árabe, além de desenhos e fotografias. Ao longo do percurso, encontramos línguas e escritas exóticas e esquecidas, que ressoam apenas na cabeça dos estudiosos do assunto ou de parcos falantes, restritos ao seu local de origem.
É assim que podemos ler sobre a escrita vatteluttu, que dá suporte ao tâmil, “a mais antiga das línguas dravídicas”, falada em lugares como o Sri Lanka e Ilhas Fiji. Já o sistema mkhedruli, segundo Sampaio, é um alfabeto composto de 28 consoantes e cinco vogais, usado pelo Azerbaijão e pela República da Geórgia desde o século X.
Essas informações teriam baixo grau de interesse do leitor não fosse a malha de letras e textos que vem junto para ilustrar. É aí que está o encanto do livro. Tudo foi feito dentro da declarada intenção do autor de criar um longo poema visual, além da informação e da análise, que também fazem parte de sua proposta.
Na abertura do livro, Sampaio faz um aquecimento, um tipo de ginástica da erudição, citando frases da literatura brasileira e provérbios de várias culturas, para designar vocábulos diretamente ligados ao ato da escrita, como a frase de Aldo Moreni: “Escrevi seu nome na areia das praias de muitos mares. Um dia vou esquecê-lo, mas restarão as árvores, com suas cicatrizes, para mo lembrar.”
Ou a de Carlos Drummond de Andrade: “Escrever é triste. Impede a conjugação de tantos outros verbos.” Também aproveitou a lateral de uma página para, sob figuras representativas, escrever um provérbio latino, “verba volant, scripta manent”, e na folha seguinte registrar a tradução sem que o leitor menos atento desse conta: “As palavras voam, os escritos ficam.”
O verbo do princípio
Esse exercício de conhecimento livresco e, sobretudo, de consciência da escrita, apoiado por um valoroso trabalho de pesquisa, culmina com a citação de livros raros, traçados em línguas cujas palavras voaram das bocas humanas faz muito tempo.
Um desses é o Popol Vuh, O livro dos mortos, escrito pelos maias em hieróglifos, na língua chol, livro “que traz a origem do fogo, a explicação das características físicas de certos animais, a origem do sacrifício humano por extração do coração, o castigo pela soberba, o nascimento milagroso dos heróis culturais” etc.
Os hieróglifos criados pelos maias registraram também dados sobre astronomia e matemática, em livros ou textos que foram quase totalmente queimados pelos espanhóis, que, numa visível intenção de dizimar qualquer vestígio da cultura maia, os consideravam carregados de “falsidades do demônio”.
O que Sampaio traz de mais curioso da civilização maia, no entanto, em termos de registro gráfico, é o sistema numérico. Trata-se de uma sequência de sinais binários, um ponto e um travessão (chamado de barra, por Sampaio), em que o primeiro vale 1 e o segundo, 5. Para grafar 9, por exemplo, usam-se quatro pontos sobre um travessão. Para registrar 10, basta riscar dois travessões sobrepostos, e assim sucessivamente.
O pensamento organizado em torno da escrita inventada e praticada pelos maias, visto em conjunto com aquilo que outras sociedades ao longo da história também desenvolveram, mostra uma grande sincronia evolutiva das línguas. No começo do capítulo que trata das diferentes formas de escrita e de línguas, Sampaio diz o que muitos etnólogos também afirmam:
“O ser humano, em qualquer tempo e em qualquer lugar, é sempre o mesmo. Falando diferentes línguas e valendo-se de diferentes tipos de escritas, pensa e diz as mesmas coisas, ainda que as expresse de maneiras diferentes, numa unidade na diversidade, ou numa diversidade na unidade, que faz a diferença e o encanto de sua trajetória, de seu inter-relacionamento.”
O poder escrito
No rastro da escrita, a produção e a conservação do pensamento trazem consigo outro fenômeno importante ao longo da história da humanidade: o poder. O autor sabe e diz que o sistema de escrita gera dentro de si uma força capaz de obliterar uma cultura inteira, trazendo à tona outra sociedade, que por sua vez será ultrapassada, ou dizimada a partir da maneira de se organizar o pensamento por meio do registro da língua.
Não foi por outra razão que os espanhóis queimaram os textos maias no século XVI. Nem foi diferente o objetivo do imperador Huang Ti, ao mandar queimar todos os livros do grande império chinês, só deixando incólume o I-Ching, pela verdade espiritual que o livro trazia.
Argumento semelhante foi usado pelos árabes muçulmanos quando começavam a criar seu império e dominaram a cidade de Alexandria, em 642. A primeira ordem foi a de queimar totalmente a biblioteca, que já havia sido incendiada pelos romanos (Júlio César) em 47 a.C. e pelos cristãos (Teodósio I), em 391.
Na ocasião da primeira grande queima dos livros da Biblioteca de Alexandria ordenada pelo califa Omar ibn al-Khatab, em 642, sua justificativa foi simples e direta: “Se são de acordo com o Alcorão, são inúteis; se são contrários ao Alcorão, são perniciosos.” Segundo Sampaio, a biblioteca fora fundada em 304 a.C. pelos egípcios, no reinado de Ptolomeu I Sóter, e chegou a ter entre 550 mil a 700 mil rolos de papiro, dando um total de 30 mil livros completos.
Há quem diga, no entanto, que esse negócio de dizer que os muçulmanos foram os responsáveis pela perda do patrimônio cultural da humanidade, contido na Biblioteca de Alexandria, é uma acusação infundada. Isto é, quando a biblioteca foi atacada pelo império islâmico em formação, que dominaria o Egito até os dias de hoje (o Egito contemporâneo é um país árabe, na língua, e islâmico na religião), já não tinha muita coisa.
Segundo Wilson Martins, em seu A palavra escrita: história do livro, da imprensa e da biblioteca, citando o historiador Albert Cim, “parece tratar, no caso, de uma amabilidade inventada por cristãos contra os muçulmanos, para lhes atribuir a responsabilidade de um crime por eles mesmos cometidos.” É claro que Sampaio não entra na questão histórica da política (conquista, manutenção e expansão do poder).
O autor de Letras e memória se concentra mais no seu objeto de estudo, que é a história da escrita ao longo dos séculos. O fato é que imaginar a perda de conhecimento valoroso em matemática e filosofia, e o que isso teria representado para a evolução do pensamento, é um exercício complicado até hoje.
Mesmo com essa perda incomensurável, o Egito antigo deixou uma contribuição valiosíssima à cultura ocidental. Uma sabedoria que chegou até nós de várias maneiras, tanto pelo trabalho de historiadores modernos quanto pela influência do pensamento egípcio na filosofia grega. Para se ter uma ideia do valor dessa contribuição, o primeiro livro a ser escrito na história da humanidade, segundo Sampaio, foi A saída para a Luz dos Dias, também conhecido como O Livro dos Mortos do Antigo Egito.
Uma cópia desse livro, “um papiro de uns vinte metros, coberto de hieróglifos dispostos verticalmente”, foi encontrado pelo francês Jean-François Champollion, o mesmo que havia decifrado a pedra da rosetta, em 1822, que trazia uma inscrição em duas línguas (grego e egípcio) e em três escritas (alfabeto grego, hieróglifo egípcio e demótico).
Os franceses têm tradição nos estudos da história da escrita e da leitura. Mas no Brasil, um livro como o de Sampaio é uma obra rara, que merece ser adquirida pelas bibliotecas públicas e consultada sempre, não só por interessados em história das civilizações ou estudantes de literatura. O livro serve até mesmo a tatuadores que apreciam os tribais ou algo parecido, pela carga simbólica e a beleza de formas que as escritas trazem.
Sampaio nasceu em Pires do Rio, interior de Goiás. Já publicou livros de crônicas, Seu nome agora é saudade, e de contos, O sol na rede, além de ter organizado uma coletânea de contos tchecos, intitulada Tchecoslováquia blues e publicado os ensaios Voces femininas de la poesía brasileña e Línguas e dialetos românicos.
Com Letras e memória, o autor também nos leva à reflexão sobre a bifurcação da língua escrita, que agora, como ele bem observa, se fixa no papel e se multiplica continuamente nas telas do computador. “O manuscrito, o texto real, cede lugar ao texto virtual, que pode ser alterado ad nauseam, ad infinitum”, finaliza.
O livro conta e encanta. O que há em sua proposta final é a paixão pelas aventuras das letras, que transparece pela escritura do autor. Às vezes a pena corre como quem faz versos livres. Às vezes quer refletir sobre o tempo da palavra escrita, como bem diz o subtítulo. Outras vezes o que surge é uma paisagem de campo aberto, sobre a qual o leitor corre os olhos e se delicia com essa espécie de arqueologia da representação.
O rico acervo de ilustrações ajuda o leitor a mergulhar nesse universo fascinante em que há todos os sistemas de escrita, desde as pictográficas, como os hieróglifos, até os alfabetos mais conhecidos e usados hoje, como o latino e o árabe, além de desenhos e fotografias. Ao longo do percurso, encontramos línguas e escritas exóticas e esquecidas, que ressoam apenas na cabeça dos estudiosos do assunto ou de parcos falantes, restritos ao seu local de origem.
É assim que podemos ler sobre a escrita vatteluttu, que dá suporte ao tâmil, “a mais antiga das línguas dravídicas”, falada em lugares como o Sri Lanka e Ilhas Fiji. Já o sistema mkhedruli, segundo Sampaio, é um alfabeto composto de 28 consoantes e cinco vogais, usado pelo Azerbaijão e pela República da Geórgia desde o século X.
Essas informações teriam baixo grau de interesse do leitor não fosse a malha de letras e textos que vem junto para ilustrar. É aí que está o encanto do livro. Tudo foi feito dentro da declarada intenção do autor de criar um longo poema visual, além da informação e da análise, que também fazem parte de sua proposta.
Na abertura do livro, Sampaio faz um aquecimento, um tipo de ginástica da erudição, citando frases da literatura brasileira e provérbios de várias culturas, para designar vocábulos diretamente ligados ao ato da escrita, como a frase de Aldo Moreni: “Escrevi seu nome na areia das praias de muitos mares. Um dia vou esquecê-lo, mas restarão as árvores, com suas cicatrizes, para mo lembrar.”
Ou a de Carlos Drummond de Andrade: “Escrever é triste. Impede a conjugação de tantos outros verbos.” Também aproveitou a lateral de uma página para, sob figuras representativas, escrever um provérbio latino, “verba volant, scripta manent”, e na folha seguinte registrar a tradução sem que o leitor menos atento desse conta: “As palavras voam, os escritos ficam.”
O verbo do princípio
Esse exercício de conhecimento livresco e, sobretudo, de consciência da escrita, apoiado por um valoroso trabalho de pesquisa, culmina com a citação de livros raros, traçados em línguas cujas palavras voaram das bocas humanas faz muito tempo.
Um desses é o Popol Vuh, O livro dos mortos, escrito pelos maias em hieróglifos, na língua chol, livro “que traz a origem do fogo, a explicação das características físicas de certos animais, a origem do sacrifício humano por extração do coração, o castigo pela soberba, o nascimento milagroso dos heróis culturais” etc.
Os hieróglifos criados pelos maias registraram também dados sobre astronomia e matemática, em livros ou textos que foram quase totalmente queimados pelos espanhóis, que, numa visível intenção de dizimar qualquer vestígio da cultura maia, os consideravam carregados de “falsidades do demônio”.
O que Sampaio traz de mais curioso da civilização maia, no entanto, em termos de registro gráfico, é o sistema numérico. Trata-se de uma sequência de sinais binários, um ponto e um travessão (chamado de barra, por Sampaio), em que o primeiro vale 1 e o segundo, 5. Para grafar 9, por exemplo, usam-se quatro pontos sobre um travessão. Para registrar 10, basta riscar dois travessões sobrepostos, e assim sucessivamente.
O pensamento organizado em torno da escrita inventada e praticada pelos maias, visto em conjunto com aquilo que outras sociedades ao longo da história também desenvolveram, mostra uma grande sincronia evolutiva das línguas. No começo do capítulo que trata das diferentes formas de escrita e de línguas, Sampaio diz o que muitos etnólogos também afirmam:
“O ser humano, em qualquer tempo e em qualquer lugar, é sempre o mesmo. Falando diferentes línguas e valendo-se de diferentes tipos de escritas, pensa e diz as mesmas coisas, ainda que as expresse de maneiras diferentes, numa unidade na diversidade, ou numa diversidade na unidade, que faz a diferença e o encanto de sua trajetória, de seu inter-relacionamento.”
O poder escrito
No rastro da escrita, a produção e a conservação do pensamento trazem consigo outro fenômeno importante ao longo da história da humanidade: o poder. O autor sabe e diz que o sistema de escrita gera dentro de si uma força capaz de obliterar uma cultura inteira, trazendo à tona outra sociedade, que por sua vez será ultrapassada, ou dizimada a partir da maneira de se organizar o pensamento por meio do registro da língua.
Não foi por outra razão que os espanhóis queimaram os textos maias no século XVI. Nem foi diferente o objetivo do imperador Huang Ti, ao mandar queimar todos os livros do grande império chinês, só deixando incólume o I-Ching, pela verdade espiritual que o livro trazia.
Argumento semelhante foi usado pelos árabes muçulmanos quando começavam a criar seu império e dominaram a cidade de Alexandria, em 642. A primeira ordem foi a de queimar totalmente a biblioteca, que já havia sido incendiada pelos romanos (Júlio César) em 47 a.C. e pelos cristãos (Teodósio I), em 391.
Na ocasião da primeira grande queima dos livros da Biblioteca de Alexandria ordenada pelo califa Omar ibn al-Khatab, em 642, sua justificativa foi simples e direta: “Se são de acordo com o Alcorão, são inúteis; se são contrários ao Alcorão, são perniciosos.” Segundo Sampaio, a biblioteca fora fundada em 304 a.C. pelos egípcios, no reinado de Ptolomeu I Sóter, e chegou a ter entre 550 mil a 700 mil rolos de papiro, dando um total de 30 mil livros completos.
Há quem diga, no entanto, que esse negócio de dizer que os muçulmanos foram os responsáveis pela perda do patrimônio cultural da humanidade, contido na Biblioteca de Alexandria, é uma acusação infundada. Isto é, quando a biblioteca foi atacada pelo império islâmico em formação, que dominaria o Egito até os dias de hoje (o Egito contemporâneo é um país árabe, na língua, e islâmico na religião), já não tinha muita coisa.
Segundo Wilson Martins, em seu A palavra escrita: história do livro, da imprensa e da biblioteca, citando o historiador Albert Cim, “parece tratar, no caso, de uma amabilidade inventada por cristãos contra os muçulmanos, para lhes atribuir a responsabilidade de um crime por eles mesmos cometidos.” É claro que Sampaio não entra na questão histórica da política (conquista, manutenção e expansão do poder).
O autor de Letras e memória se concentra mais no seu objeto de estudo, que é a história da escrita ao longo dos séculos. O fato é que imaginar a perda de conhecimento valoroso em matemática e filosofia, e o que isso teria representado para a evolução do pensamento, é um exercício complicado até hoje.
Mesmo com essa perda incomensurável, o Egito antigo deixou uma contribuição valiosíssima à cultura ocidental. Uma sabedoria que chegou até nós de várias maneiras, tanto pelo trabalho de historiadores modernos quanto pela influência do pensamento egípcio na filosofia grega. Para se ter uma ideia do valor dessa contribuição, o primeiro livro a ser escrito na história da humanidade, segundo Sampaio, foi A saída para a Luz dos Dias, também conhecido como O Livro dos Mortos do Antigo Egito.
Uma cópia desse livro, “um papiro de uns vinte metros, coberto de hieróglifos dispostos verticalmente”, foi encontrado pelo francês Jean-François Champollion, o mesmo que havia decifrado a pedra da rosetta, em 1822, que trazia uma inscrição em duas línguas (grego e egípcio) e em três escritas (alfabeto grego, hieróglifo egípcio e demótico).
Os franceses têm tradição nos estudos da história da escrita e da leitura. Mas no Brasil, um livro como o de Sampaio é uma obra rara, que merece ser adquirida pelas bibliotecas públicas e consultada sempre, não só por interessados em história das civilizações ou estudantes de literatura. O livro serve até mesmo a tatuadores que apreciam os tribais ou algo parecido, pela carga simbólica e a beleza de formas que as escritas trazem.
Sampaio nasceu em Pires do Rio, interior de Goiás. Já publicou livros de crônicas, Seu nome agora é saudade, e de contos, O sol na rede, além de ter organizado uma coletânea de contos tchecos, intitulada Tchecoslováquia blues e publicado os ensaios Voces femininas de la poesía brasileña e Línguas e dialetos românicos.
Com Letras e memória, o autor também nos leva à reflexão sobre a bifurcação da língua escrita, que agora, como ele bem observa, se fixa no papel e se multiplica continuamente nas telas do computador. “O manuscrito, o texto real, cede lugar ao texto virtual, que pode ser alterado ad nauseam, ad infinitum”, finaliza.
(De Gilberto G. Pereira, publicado originalmente no jornal Tribuna do Planalto)
Título: Letras e memória - uma breve história da escrita
Autor: Adovaldo Fernandes Sampaio
Editora: Ateliê Editorial, 2009, 304 páginas
Gênero: Linguística
Preço: R$ 65,00
quinta-feira, 4 de novembro de 2010
Os livros mais vendidos do mundo
No dia em que um livro ultrapassar a casa dos 5 bilhões de exemplares vendidos, ele conquistará o direito de se incluir em segundo lugar na lista dos best-sellers, junto com a Bíblia, o mais dos mais, com a incomparável marca de 6 bilhões de exemplares vendidos em todos os tempos. Quem terá comprado o primeiro exemplar?
O Portal UOL publicou uma lista com os 21 livros mais vendidos. Não entendi a razão do seleto número. Talvez por serem os únicos que chegaram e ultrapassaram a casa dos 50 milhões de exemplares. Mas a Bíblia está inclusa nessa lista, o que não é justo para ninguém, uma vez que o segundo lugar só vendeu 900 milhões, logo ele, O Livro Vermelho, do velho Mao Tse-Tung. Também, com tanto chinês querendo revolucionar, não daria outra.
O mais impressionante mesmo é olhar para o hall de interesse literário do mundo como coletividade. Na verdade não chega a ser interesse literário, é apenas interesse de leitura.
Acrescentei ao título de cada best-seller o link para compra na Livraria Cultura. Já imaginou se outros tantos comprarem por esses links. Ficarei milionário. É só no que penso. Vois la.
1. A Bíblia - 6 bilhões
2. O Livro Vermelho, de Mao Zedong - 900 milhões
3. O Alcorão - 800 milhões
4. Xinhua Zidian (dicionário chinês) - 400 milhões
5. O Livro de Mórmon (The book of Mormon), de Joseph Smith Jr. - 120 milhões
6. Harry Potter e a Pedra Filosofal, de J. K. Rowling - 107 milhões
7. E Não Sobrou Nenhum, de Agatha Christie - 100 milhões
8. O Senhor dos Anéis, de J.R.R. Tolkien - 100 milhões
9. Harry Potter e o Enigma do Príncipe, de J. K. Rowling - 65 milhões
10. O Código Da Vinci, de Dan Brown - 65 milhões
11. Harry Potter e a Câmara Secreta, de J. K. Rowling - 60 milhões
12. O Apanhador no Campo de Centeio, de J. D. Salinger - 60 milhões
13. Harry Potter e o Cálice de Fogo, de J. K. Rowling - 55 milhões
14. Harry Potter e a Ordem da Fênix, de J. K. Rowling - 55 milhões
15. Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban, de J. K. Rowling - 55 milhões
16. Ben Hur: Uma Narrativa de Cristo, de Lew Wallace - 50 milhões
17. Heidi's Years of Wandering and Learning, de Johanna Spyri - 50 milhões
18. O Alquimista, de Paulo Coelho - 50 milhões
19. Meu filho, meu tesouro, de Dr. Benjamin Spock - 50 milhões
20. O Pequeno Príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry - 50 milhões
21. A Marca do Zorro, de Johnston McCulley - 50 milhões
terça-feira, 26 de outubro de 2010
A questão humana
A editora Estação Liberdade lançou um livrinho interessante do escritor belga François Emmanuel, A questão humana (2010, 84 páginas). Neste livro, Simon narra a experiência de ter se metido em intriga psicológica envolvendo dois diretores de uma empresa alemã, na filial francesa, onde ele fora contratado para fazer a seleção de pessoal e planejamento de seminários.
Como psicólogo, Simon tinha a missão de “despertar nos participantes a agressividade natural”. Mas certo dia, é solicitado por um dos diretores, Karl Rose, para uma missão diferente e paralela, a de investigar o estado de saúde mental de Mathias Jüst, outro executivo, sob a alegação de que o homem poderia estar doente e, neste caso, comprometeria o andamento da empresa.
Para manter o suspense do real motivo daquela missão, o autor se utiliza de uma série de técnicas tradicionais da literatura, misturando elementos narrativos como cartas, telefonemas, recados e visitas pessoais que sugerem novas pistas que vão revelando, aos poucos, uma rememoração do passado, da Segunda Guerra Mundial, dos absurdos nazistas, de sua burocracia precisa e macabra.
Serviço
Título: A questão humana
Autor: François Emmanuel
Editora: Estação Liberdade, 2010, 84 páginas
Gênero: Romance
Preço: R$ 29,80
segunda-feira, 18 de outubro de 2010
Sob o céu de agosto - romance de Gustavo Machado
“Um cinza azulado com umas manchas brancas que fatiavam em camadas espessas os muitos blocos de nuvens que se acavalavam como um caleidoscópio.” A esta cor o pintor Otto deu o nome de Céu de Agosto, e a perseguiu, tentou pintá-la de várias formas, em várias técnicas, mas fracassava sempre.
É com esta cor na alma que Otto repassa uma experiência terrível, de violência e assassinato, ao delegado Sampaio, depois de ser apanhado no cenário de um duplo assassinato. Enquanto responde o interrogatório, vai construindo a trama do romance.
O romance é o primeiro do escritor e jornalista gaúcho Gustavo Machado, intitulado Sob o céu de agosto (Dublinense, 2010, 168 páginas). Otto é um artista fracassado de 35 anos, órfão de pai e mãe, sem familiares e tem apenas um amigo, Téo, que lhe arranja emprego na prefeitura.
Ele mora sozinho num apartamento no centro de Porto Alegre, mas tem a companhia de uma garota de 15 anos chamada Albertina (Berta), que mora apenas com a mãe no apartamento de cima. Segundo ele, esta menina atiradinha o assedia o tempo inteiro, e ele foge da tentação.
No outro vértice do triângulo está Sophia, uma moça de 24 anos, casada com um barão da construção civil, de 61. Otto a conheceu nas aulas de pintura que ele ministrava na secretaria municipal de cultura.
Depois desse encontro é que a vida do pintor começa a se complicar em deliciosas e doloridas aventuras amorosas até culminar no acontecimento do crime que o leva à delegacia.
Arte e vida
Tendo como ponto de fundo a linguagem do romance policial, Sob o céu de agosto discute a relação entre arte e política e a dificuldade da arte autêntica sobreviver nos dias de hoje, vivendo sob o jugo do poder, da política, quase sem respirar de fato, sendo sufocada pela necessidade da sobrevivência diária.
Já falei em outra ocasião (na Tribuna do Planalto) sobre o que interessa neste romance. É o personagem de Otto. Bem construído, traz uma ambiguidade sutil em meio à verbosidade politicamente incorreta e à carga de humor chauvinista e de extrema ironia.
Otto se diz um sujeito ignorante, que só leu dois ou três livros na vida. Segundo ele, tudo que sabe sobre música, cinema e literatura aprendeu com Berta, a garota prodígio. Neste sentido, o romance também discute o fascínio dos quarentões (idade da qual Otto está próximo) pelas raparigas em flor.
Sob o céu de agosto é um romance que deve ser lido por quem gosta de acompanhar a literatura da nova geração, tanto pelo prazer de ler quanto pela curiosidade de se saber o que se está abordando, de que ponto de vista, que linguagem está sendo explorada. O cinema noir, por exemplo, está presente nessa narrativa. A música é muito forte também, como o jazz.
Círculo
No âmbito da discussão política, o autor explora os rumos do poder, para o bem e para o mal, como a ascensão de uma nova elite política, seu discurso, suas práticas, cujo jogo de interesses cria situações reais absurdas e uma sensação kafkiana do absurdo também.
O personagem tem um palíndromo no nome, o que o ajuda a enxergar sua circularidade, seu gosto pela repetição, e ajuda também a confundir o leitor, porque, sendo esférico, as duas pontas – a do sujeito que sabe o que está dizendo e a do que não sabe – estão ligadas.
Neste sentido, a própria fala do Otto pode servir de escudo para o autor, que utiliza seu personagem para pedir desculpas ao leitor pelas eventuais falhas de sua caracterização. Por exemplo, Otto, o tempo todo, se refere a certas cenas que ele mesmo descreve como chavões, clichês, mas não as evita, porque não pode.
“Muito clichê, já que não há romance sem clichê”, diz Otto, ironicamente, ao se lembrar de um momento entre ele e Berta. Irônico, mas também revelador de sua pedofilia (ou talvez seria melhor dizer hebofilia?).
“Levei nós dós para dentro, fechei a porta com um chute. Tudo muito cinematográfico”, recorda com ironia (mas também se desculpando), dessa vez de uma cena com Sophia.
Trechos
Além de frases isoladas, como “Chovia muito. O vento vindo do rio rugia como um animal machucado procurando a toca”, ou “um sorriso canastrão me deformou o rosto”, seguem dois trechos cujo conteúdo revela o caráter kafkiano e chauvinista, que deve ser atribuído à narrativa, à escolha estética, à maneira de ver o mundo do próprio narrador, não do autor. A este, deve-se apenas a técnica, imagino.
“Estão dizendo, não interessa quem, estão dizendo que você confessou sob tortura. Acusam minha delegacia de abuso, maus-tratos, tentativa de extorsão, coisas assim. O próprio inquérito não chega a existir, foi desconsiderado pelas autoridades superiores. Este país está se perdendo por causa da sua gente. Até chegarem ao poder, eram fanáticos. Agora, pioraram muito. Seu caso, na verdade, é pura ficção. Coisa estranha, não acha?
“Era estranho mesmo. Tudo estava bem esquisito, mas não quis comentar. Uma pequena barata passou correndo, contornou o pé direito do delegado numa manobra apressada e se esgueirou pela rachadura horizontal que separava chão e parede.”
(...)
“Sophia guiou meu corpo meu rosto num passeio, despejou um pouco de vinho sobre o próprio colo, começou a percorrer todo meu corpo não muito musculoso com uma língua surpreendentemente ágil. Jogou-me de lado como se tivesse enjoado do brinquedo e, então, deitou-se no tapete, afastou as coxas com as mãos, acariciando-se bem de leve. Borboleta tatuada na virilha e pouquíssimo pelo escuro cobrindo uma boceta fantástica, de lábios rosados e delicados.
E daí?
Daí me desculpe, delegado, mas não é da sua conta.
Já conheço até a boceta da moça, mas o resto não é da minha conta. Muito pudico. Aconteceu alguma coisa estranha naquela noite?
Sim. Uma coisa que nenhuma mulher tinha feito comigo.
Sophia enfiou o dedo no seu rabo.”
Serviço
Título: Sob o Céu de agosto
Autor: Gustavo Machado
Editora: Dublinense, 2010, 168 páginas
Gênero: Romance
Preço: R$ 35,00
quinta-feira, 7 de outubro de 2010
Vem aí novo livro de Gabriel García Márquez
O jornal Folha de S. Paulo desta quinta-feira anuncia:
“García Márquez lança livro no fim do mês
“O colombiano publica em 29 de outubro na América Latina e na Espanha seu novo livro, "Yo No Vengo a Decir un Discurso", seu mais recente título desde "Memórias de Minhas Putas Tristes" (2004). Trata-se de uma compilação de 22 discursos escritos por ele, para serem lidos em público.”
Duas notinhas interessantes. A notícia chega justamente no dia em que seu desafeto, ex-amigo do peito, Llosa, ganha o Nobel. Outra coisa. Quem escreveu a nota e quem a revisou, inclusive o editor do caderno, enfim, não leram o livro de Márquez, ou leram mal, tão mal que nem mesmo o título se prendeu às cabeças interessantíssimas dos jornalistas da Folha.
É Memória de minhas putas tristes, o título, o que sugere outra ideia do que se passa no processo de reminiscências do narrador. É uma só lembrança entrecortada, um só feixe de luz, uma só memória, lançada sobre todas as putas tristes, todas elas seriam uma só? Acho que sim.
É claro que tudo isso é bronha literária, é bate-papo de botequim, mas o leitor pode, como sugestão, ler Viver para contar, autobiografia do velho Gabo, parte 1 (oxalá venha a dois). É uma grande aula e uma dica de como puxar o fio dessa memória.
O leitor verá que a mesma puta triste do último livro de Márquez, até agora, é também aquela presente em Cem anos de solidão, em Cândida Erendira (a própria), em Dozes contos peregrinos (o conto Maria dos Prazeres) e em O amor nos tempos do cólera, uma menina de seus 14 anos. Não as outras, que certamente também são tristes, pássaras da noite.
Finalmente, o sol: Vargas Llosa ganha o Nobel de Literatura
Ele até pode desdenhar a importância do Prêmio Nobel de Literatura, principalmente nos dias de hoje, em que a acusação de ser político demais, ofuscando o lugar da arte, tem sido a tônica dominante, mas Mario Vargas Llosa no fundo da alma deve estar feliz. Ele acaba de ser laureado. O que dirá no discurso?
Eu, de minha parte, como leitor, estou feliz à beça, mesmo desconfiando dele como pessoa, imaginando que talvez ele, como pessoa, seja arrogante ao transbordamento. Mas, como não vou conhecê-lo, a não ser por meio da literatura, assim como perdoo Borges pelo racismo, fico feliz.
Parabéns Llosa! É um baita prêmio. Não me venha fazer como Sartre. Você não é Sartre e sempre chorou as pitangas por Márquez ter chegado na sua frente. Vá lá, receber a grana e fazer um discurso à altura de suas letras.
quinta-feira, 30 de setembro de 2010
Entre o passado e o futuro: experiência e memória, vida e morte
Elie Wiesel nasceu na Romênia em 1928. Por ser judeu, foi levado com a família para o campo de concentração de Buchenwald, na Segunda Guerra Mundial. Sobreviveu, junto com duas irmãs. Mas os pais e a irmã mais nova morreram.
Ao ser libertado pelas tropas aliadas, em 1945, foi morar em Paris onde estudou na Sorbonne e trabalhou como jornalista. Hoje é cidadão norte-americano e vive em Nova York.
Aos 30 anos, publicou seu primeiro livro, A Noite, que se tornou um clássico da temática do Holocausto, contando as experiências vividas no campo de concentração. Depois disso, escreveu mais de 30 livros, muitos dos quais retratando essa época.
Memória a duas vozes (com François Miterrand), Holocausto: canto de uma geração perdida, Testamento de um poeta Judeu assassinado, Almas em fogo: perfis e lendas dos mestres hassídicos, O tempo dos desenraizados e Sinais do êxodo, são alguns de seus títulos. Recentemente saiu no Brasil O caso Sonderberg, que de certa forma também trata do período cáustico do Nazismo.
Apesar de ser um escritor de talento, Wiesel não ganhou o Prêmio Nobel de Literatura, ganhou o da Paz, em 1996. Isso porque foi reconhecido por sua luta contra o racismo de toda natureza, contra as perseguições e mortes por causa de religião ou origem étnica, no mundo inteiro.
Em seu discurso Esperança, Desespero e Memória, proferido por ocasião da entrega do Prêmio Nobel, Wiesel enfatiza o poder da memória como norte da humanidade, que, estando entre o passado e o futuro, tem de assumir ambos para construir um significado na vida.
Reconciliação
Quando se fala assim, sem um exemplo, tudo parece muito abstrato. Mas basta recorrermos à história dos campos de concentração, do horror que muitas pessoas viveram lá, para se entender o que Wiesel quer dizer. Como ele, muitos outros autores tiveram de encarar o passado para continuar vivendo. Tiveram de fazer de suas experiências literatura, como Primo Levi, Jean Améry, Tadeusz Borowski, entre tantos outros.
Borowski, na verdade, tentou. Escreveu um livro com o título irônico demais, corrosivo demais, tal como estava sua alma. This way for the gas, ladies and gentlemen (Senhoras e senhores, o gás é por aqui, em tradução livre). Mas não aguentou a barra de viver com as lembranças do passado, não conseguiu reconciliar passado e futuro, e morreu ainda jovem, se matando aos 29 anos.
Não é que tenhamos de remoer o passado, simplesmente. É preciso rememorá-lo para, a partir dessas experiências, apontar o norte do futuro. Nós, os negros, por exemplo, não estávamos inseridos num contexto técnico e de linguagem da civilização ocidental quando fomos arrancados da África para sermos escravos no novo continente.
Se nossos antepassados, que sofreram a escravidão aqui, tivessem tido a oportunidade de expressar a experiência que viveram, nossa realidade seria outra, hoje. Nossa consciência seria outra.
Voltando a Wiesel, em seu discurso, ele diz:
“Um homem não consegue viver sem sonhos, nem sem esperança. Se os sonhos refletem o passado, a esperança busca o futuro. Isso significa que nosso futuro pode ser construído em cima de uma rejeição do passado? Essa escolha não é necessária. Os dois elementos não são incompatíveis. O oposto do passado não é o futuro, mas a ausência de futuro. O oposto do futuro não é o passado, mas a ausência de passado. A perda de um equivale ao sacrifício do outro.”
Nosso passado se perdeu, e muito. A maioria dos registros sobre a violência que sofremos no passado (que perpetua ainda hoje por meio do cinismo da elite intelectual e dos argumentos erísticos de gente como Demétrio Magnoli) foi feita por autores que não sofreram na pele, nem trouxeram na memória, a dor daqueles tempos. Nesse sentido, nossa perda equivale à morte, até mesmo ao um suicídio.
Ao ser libertado pelas tropas aliadas, em 1945, foi morar em Paris onde estudou na Sorbonne e trabalhou como jornalista. Hoje é cidadão norte-americano e vive em Nova York.
Aos 30 anos, publicou seu primeiro livro, A Noite, que se tornou um clássico da temática do Holocausto, contando as experiências vividas no campo de concentração. Depois disso, escreveu mais de 30 livros, muitos dos quais retratando essa época.
Memória a duas vozes (com François Miterrand), Holocausto: canto de uma geração perdida, Testamento de um poeta Judeu assassinado, Almas em fogo: perfis e lendas dos mestres hassídicos, O tempo dos desenraizados e Sinais do êxodo, são alguns de seus títulos. Recentemente saiu no Brasil O caso Sonderberg, que de certa forma também trata do período cáustico do Nazismo.
Apesar de ser um escritor de talento, Wiesel não ganhou o Prêmio Nobel de Literatura, ganhou o da Paz, em 1996. Isso porque foi reconhecido por sua luta contra o racismo de toda natureza, contra as perseguições e mortes por causa de religião ou origem étnica, no mundo inteiro.
Em seu discurso Esperança, Desespero e Memória, proferido por ocasião da entrega do Prêmio Nobel, Wiesel enfatiza o poder da memória como norte da humanidade, que, estando entre o passado e o futuro, tem de assumir ambos para construir um significado na vida.
Reconciliação
Quando se fala assim, sem um exemplo, tudo parece muito abstrato. Mas basta recorrermos à história dos campos de concentração, do horror que muitas pessoas viveram lá, para se entender o que Wiesel quer dizer. Como ele, muitos outros autores tiveram de encarar o passado para continuar vivendo. Tiveram de fazer de suas experiências literatura, como Primo Levi, Jean Améry, Tadeusz Borowski, entre tantos outros.
Borowski, na verdade, tentou. Escreveu um livro com o título irônico demais, corrosivo demais, tal como estava sua alma. This way for the gas, ladies and gentlemen (Senhoras e senhores, o gás é por aqui, em tradução livre). Mas não aguentou a barra de viver com as lembranças do passado, não conseguiu reconciliar passado e futuro, e morreu ainda jovem, se matando aos 29 anos.
Não é que tenhamos de remoer o passado, simplesmente. É preciso rememorá-lo para, a partir dessas experiências, apontar o norte do futuro. Nós, os negros, por exemplo, não estávamos inseridos num contexto técnico e de linguagem da civilização ocidental quando fomos arrancados da África para sermos escravos no novo continente.
Se nossos antepassados, que sofreram a escravidão aqui, tivessem tido a oportunidade de expressar a experiência que viveram, nossa realidade seria outra, hoje. Nossa consciência seria outra.
Voltando a Wiesel, em seu discurso, ele diz:
“Um homem não consegue viver sem sonhos, nem sem esperança. Se os sonhos refletem o passado, a esperança busca o futuro. Isso significa que nosso futuro pode ser construído em cima de uma rejeição do passado? Essa escolha não é necessária. Os dois elementos não são incompatíveis. O oposto do passado não é o futuro, mas a ausência de futuro. O oposto do futuro não é o passado, mas a ausência de passado. A perda de um equivale ao sacrifício do outro.”
Nosso passado se perdeu, e muito. A maioria dos registros sobre a violência que sofremos no passado (que perpetua ainda hoje por meio do cinismo da elite intelectual e dos argumentos erísticos de gente como Demétrio Magnoli) foi feita por autores que não sofreram na pele, nem trouxeram na memória, a dor daqueles tempos. Nesse sentido, nossa perda equivale à morte, até mesmo ao um suicídio.
segunda-feira, 27 de setembro de 2010
Um urubu pousou na sorte de Nuno Ramos
Artista plástico bem conceituado (nos dois sentidos), Nuno Ramos acaba de criar uma polêmica, que aparentemente é algo que ele não queria, mas no fundo, essa era sua intenção. Partindo do princípio de que a arte tem de incomodar, transgredir, Ramos põe urubus em poleiro e, com a suposta brilhante ideia, faz uma instalação (Bandeira Branca) na Bienal de São Paulo 2010.
É claro que há outros adornos nesse trabalho de arte contemporânea, mas não o suficiente para abafar o caso do uso de animais vivos (logo aqueles para os quais morte é vida!). Junto com urubus, a merda.
O resultado foi uma pichação pedindo a libertação do urubu e um fechamento forçado das portas da Bienal, para em seguida ser reaberta, limpa de protesto. Em entrevista à imprensa Ramos alega que respeita a arte dos outros, porque não os outros respeitarem a sua?
O problema é que há um urubu na jogada, que não tem nada a ver com a arte de ninguém. Mas o Ibama autorizou, alegou, alegam. O Ibama precisa rever seus conceitos de preservação, de respeito ao meio ambiente, à sustentabilidade.
Por que não desenhar um urubu? Por que não uma carniça na entrada da Bienal, esperando que tais urubus viessem pousar no hall do maior evento da arte do país?
Prefiro SkyLab e sua arte de matar passarinhos, porque é teórica e não plástica. Em uma de suas canções, ele diz: “Urubu, meu companheiro,/ Te achei numa charneca/ Com as asas machucadas, te levei pra minha casa./ Te guardei numa gaiola/ Para enfeitar a sala,/ Sobre ti a noite negra, urubu, canta pra gente.”
Não consta que ele tenha matado ou capturado um urubu para esta criação. Será? No caso Ramos, parece que a ave é da espécie urubus-de-cabeça-amarela, que está na lista de animais ameaçados de extinção em São Paulo.
Ramos queria mesmo criar uma obra rara à custa da rara vida dos urubus. Não só por isso a arte contemporânea está num atoleiro só, cuja primeira reação é a da indignação. Quer pela incógnita, quer pelo mal uso da matéria prima e dos conceitos.
sexta-feira, 24 de setembro de 2010
Benjamin, Proust e os séculos
“Nem sempre proclamamos em voz alta o que temos de mais importante a dizer. E, mesmo em voz baixa, não o confiamos sempre à pessoa mais familiar, mais próxima e mais disposta a ouvir a confidência.
“Não somente as pessoas, mas também as épocas, têm essa maneira inocente, ou antes, astuciosa e frívola, de comunicar seu segredo íntimo ao primeiro desconhecido.
“No que diz respeito ao século XIX, não foram nem Zola nem Anatole France, mas o jovem Proust, o esnobe sem importância, o trêfego frequentador de salões, quem ouviu, de passagem, do século envelhecido, como de um outro Swann, quase agonizante, as mais extraordinárias confidências. Somente Proust fez do século XIX um século para memorialistas.
“O que era antes dele uma simples época, desprovida de tensões, converteu-se num campo de forças, no qual surgiram as mais variadas correntes, representadas por autores subseqüentes.” Walter Benjamin, A imagem de Proust, In: Obras Escolhidas – Magia e Técnica, Arte e Política (Editora Brasiliense, tradução de Sergio Paulo Rouanet).
De Benjamin, inócuo falar aqui. Gênio da observação. Esta passagem é bela pela serena construção do argumento. O leitor se depara com uma limpidez incrível de raciocínio. A partir dela, eu fico me perguntando, quem de fato ouviu as confidências do século XX, na literatura, com todo o rol de talento que tivemos e ainda temos?
É claro que o espaço é amplo, a geografia literária aumentou bastante, as ideias parecem pulular, embora muita coisa que se vende, a que se tem acesso pareça estar entre as mesmas capas. Além disso, os procedimentos literários parecem estar sob uma ditadura estética, muito dela, inclusive, fixada pelo próprio autor de Os prazeres e os dias.
Proust nasceu em 1871 e escreveu Em busca do tempo perdido, ou pelo menos o finalizou, nos últimos 20 anos de sua vida. Ou seja, entre 1900 e 1922. Neste caso, guardando todas as proporções, talvez o grande ledor do século XX, o confidente do breve século, ainda esteja entre nós, com a pena em punho, a traçar o texto de sua vida e de todos nós, que nascemos lá atrás, quando a internet ainda era um sonho de maluco.
Um novo século nasce agora, ao redor de nossos olhos atônitos. E ainda nem sabemos de fato (ou direito) o que foi tudo aquilo que jorrou da fonte do século passado.
quarta-feira, 22 de setembro de 2010
Alma ausente, de Federico García Lorca
Alma ausente
Não te conhece o touro nem a figueira,
nem cavalos nem formigas de tua casa.
Não te conhece a criança nem a tarde
porque morreste para sempre.
Não te conhece o dorso desta pedra,
nem o negro cetim onde te afliges.
Não te conhece a tua lembrança muda
porque morreste para sempre.
O outono virá com os seus búzios
uva de névoa e montes agrupados.
Mas ninguém desejará olhar teus olhos
porque morreste para sempre,
Porque morreste para sempre,
como todos os mortos da Terra,
como todos os mortos esquecidos
num montão de cães exterminados.
Ninguém mais te conhece. Mas eu te canto.
Eu canto para breve teu perfil, tua graça.
A madurez insigne do teu pensamento.
Tua apetência de morte e o gosto de sua boca.
A tristeza que sentiu tua intrépida alegria.
Tardará muito a nascer, se é que nasce,
um andaluz tão claro, tão rico de aventura.
Eu canto sua elegância com palavras que lamentam
e recordo uma brisa triste entre oliveiras.
Alma ausente
No te conoce el toro ni la higuera,
ni caballos ni hormigas de tu casa.
No te conoce el niño ni la tarde
porque te has muerto para siempre.
No te conoce el lomo de la piedra,
ni el raso negro donde te destrozas.
No te conoce tu recuerdo mudo
porque has muerto para siempre.
El otoño vendrá con caracolas
uva de niebla y montes agrupados.
Pero nadie querrá mirar tus ojos
porque te has muerto para siempre,
Porque te has muerto para siempre,
como todos los muertos de la Tierra,
como todos los muertos que se olvidan
en un montón de perros apagados.
No te conoce nadie. No. Pero yo te canto.
Yo canto para luego tu perfil y tu gracia.
La madurez insigne de tu conocimiento.
Tu apetencia de muerte y el gusto de su boca.
La tristeza que tuvo tu valiente alegria.
Tardará mucho tiempo en nacer, si es que nace,
un andaluz tan claro, tan rico de aventura.
Yo canto su elegancia con palabras que gimen
y recuerdo una brisa triste por los olivos.
Poema de Federico García Lorca (1935), tradução de Dora Ferreira da Silva.
O poeta escreveu uma série de poemas sobre Sanches Mejías, um dos mais admirados toureiros espanhóis, morto em 1934 pela estocada de um touro enfurecido e completamente alheio à valentia de seu oponente. O belo poema Alma ausente é o último desta série.
Agora que você já tem uma pista, leia o poema de novo e sinta a mesma coisa que sentiu o sujeito poético, ou seja, a brisa, a única coisa palpável na ausência imensa do herói morto (vide Hugo Friedrich, in: A estrutura da lírica moderna).
segunda-feira, 20 de setembro de 2010
Enterrando Maria dos Prazeres
“— Posso fazer uma pergunta indiscreta? – perguntou.
Ela levou-o até a porta.
— Claro — disse —, desde que não seja a minha idade.
— Tenho a mania de adivinhar o ofício das pessoas pelas coisas que estão em suas casas, e aqui, para ser franco, não consigo — disse ele. — O que a senhora faz?
Maria dos Prazeres respondeu morrendo de rir:
— Sou puta, filho. Ou já não dá mais para notar?
O vendedor ficou vermelho.
— Sinto muito.
— Eu é que devia sentir — disse ela, tomando-o pelo braço para impedir que se esborrachasse contra a porta. — E toma cuidado! Não vá se arrebentar antes de me enterrar direitinho.”
Maria dos Prazeres, In: Doze Contos Peregrinos, de Gabriel García Márquez.
O rapaz vai à casa de Maria dos Prazeres para vender um jazigo a ela, e saiu com essa. Uma cena pra lá de hilária, com um final de duplo sentido.
Ela levou-o até a porta.
— Claro — disse —, desde que não seja a minha idade.
— Tenho a mania de adivinhar o ofício das pessoas pelas coisas que estão em suas casas, e aqui, para ser franco, não consigo — disse ele. — O que a senhora faz?
Maria dos Prazeres respondeu morrendo de rir:
— Sou puta, filho. Ou já não dá mais para notar?
O vendedor ficou vermelho.
— Sinto muito.
— Eu é que devia sentir — disse ela, tomando-o pelo braço para impedir que se esborrachasse contra a porta. — E toma cuidado! Não vá se arrebentar antes de me enterrar direitinho.”
Maria dos Prazeres, In: Doze Contos Peregrinos, de Gabriel García Márquez.
O rapaz vai à casa de Maria dos Prazeres para vender um jazigo a ela, e saiu com essa. Uma cena pra lá de hilária, com um final de duplo sentido.
quinta-feira, 16 de setembro de 2010
O germe da modernidade
A título de introdução, se fôssemos simplificar a história da literatura, aliás, se fôssemos mais direto ao ponto, diríamos que só existe clássico e moderno. No caso da poesia, para ser mais preciso na questão, a modernidade começa com os românticos, que prepararam o terreno para gente como Baudelaire. Este foi o combustível de Rimbaud e Mallarmé, os mestres da poesia moderna, segundo muitos teóricos.
É claro que para trás e para frente, há nomes importantes que servem ou de lastro ou de faísca instigante dessa engrenagem toda. No caso do lastro, bem antes de Edgar Allan Poe, figura essencial para Baudelaire, existiu Jean Jacques Rousseau (1712 - 1778), que – junto com Denis Diderot e seu livro O sobrinho de Rameau – foi seminal para a poesia romântica.
Nos dois últimos anos de sua vida, Rousseau se debruçou num livrinho chamado Os devaneios do caminhante solitário (L&PM Pocket, 2008, 140 páginas, tradução de Julia da Rosa Simões), onde se encontra a primeira grande valorização do tempo subjetivo, em que o narrador mistura magistralmente realidade e fantasia.
O livro é dividido em dez capítulos que o autor chama de caminhadas. Cada uma delas segue ruas parisienses, por onde o velho Rousseau mergulha na observação de plantas e topografias enquanto faz suas reflexões, exilado da sociedade. É algo semelhante ao que ele fez em Confissões, mas com a diferença de não ser criterioso o bastante para não divagar.
Entre os vários exemplos de costura de realidade com fantasia está a história de seu atropelamento por um cachorro. É um caso divertido e surreal, que brota dentre uma reflexão e outra de sua vida social e a anátema eterna do filósofo suíço contra a ‘súcia intelectual’ de sua época.
“Às seis horas, estava descendo de Ménilmontant, quase em frente ao Galant Jardinier, quando, de repente, as pessoas que caminhavam à minha frente se afastaram e vi se lançar sobre mim um grande cão dinamarquês que, avançando veloz na frente de uma carruagem, não teve tempo de parar sua corrida ou desviar ao me ver. Calculei que a única maneira de evitar ser atirado ao chão era dar um grande salto, tão preciso que o cão passasse por baixo de mim enquanto estivesse no ar. Essa ideia, mais breve que o relâmpago, que não tive tempo nem de considerar nem de executar, foi a última antes do acidente. Não senti nem o golpe nem a queda, nem nada do que se seguiu até o momento em que voltei a mim.”
Intensidade lírica
Esse exemplo per se não configura a influência que lhe é atribuída, é verdade. O tempo interior reforça o lirismo, e é este fator, que fomenta o culto ao sujeito, que penetra fundo a alma do romântico. Enquanto caminha em seu devaneio, enquanto imagina as caminhadas, Rousseau imagina também uma sucessão de acontecimentos e de elementos que preenchem a realidade no seio da fantasia.
Enquanto se exilava da sociedade, fugindo das pessoas, mas também da realidade vivida, Rousseau sugeria novas possibilidades de fuga do real. Esta é uma de suas principais contribuições à lírica moderna.
“Via a mim mesmo no declínio de uma vida inocente e desafortunada, a alma ainda repleta de sentimentos vivazes e o espírito ainda ornado de algumas flores, murchas pela tristeza e ressequidas pelos desgostos. Sozinho e abandonado, sentia chegar o frio das primeiras geadas, e minha imaginação esgotada não mais povoava minha solidão com seres criados por meu coração. Dizia a mim mesmo, suspirando: o que fiz neste mundo?”
Segundo Hugo Friedrich, em A estrutura da lírica moderna, “a intensidade lírica com a qual Rousseau se abandona ao tempo interior, em particular a sua disposição para uma alma adversa ao mundo circunstante, teve uma força que preparou o caminho à poesia futura, que não podia advir das anteriores análises filosóficas sobre o tempo.”
Romantismo desromantizado
É claro que isso trata de uma corrente teórica. Michael Hamburger, em seu A verdade da poesia, cria um contraponto interessante e convincente ao que diz Friedrich e sua visão exclusivamente simbolista. Em todo caso, Rousseau ajudou a reforçar novas categorias estéticas. Quem ler Sylvie, de Nerval, vai notar que seria impossível aquele romance romântico sem Rousseau.
O tempo interior puxou novas categorias de beleza, que antes estavam à margem, mas que com a distorção do real se tornaram essenciais. Com Victor Hugo, por exemplo, foi exaltado o grotesco, ao lado do sublime. Depois veio Baudelaire, sob influência de Edgar Allan Poe e deixa de sublimar a realidade, passando a distorcê-la, fragmentá-la ainda mais, com procedimentos em que os autores dão mais ênfase na linguagem do que no conteúdo.
Com essas novas ferramentas, técnicas inovadoras da arte de forjar a palavra, tendo como reguladores a fantasia e o devaneio racionalizado, Rimbaud e Mallarmé abriram o caminho para um tipo novo de poesia. As características operativas são as mesmas do romantismo, mas sem a valorização do eu, sem o engrandecimento do sujeito dentro da lírica. Por isso mesmo, Friedrich chama a lírica moderna de romantismo desromantizado.
A poesia do século XX foi feita quase toda seguindo esses procedimentos. Sonho e fantasia, o fragmento do real, o grotesco, procedimentos que nivelam o belo e o feio, o incompleto, o desarmônico, todos fazem parte da lírica moderna, cuja semente Rousseau ajudou a plantar.
Serviço
Título: Os devaneios do Caminhante Solitário
Autor: Jean-Jacques Rousseau
Editora: L&PM Pocket, 2008, 140 páginas
Preço: R$ 10,00
quarta-feira, 25 de agosto de 2010
A epopeia dos desgraçados: leitura mínima de A minha alma é irmã de Deus
Certa vez perguntaram a Raimundo Carrero por que seus personagens eram tão sombrios. “Porque minha alma é sombria”, foi a resposta. E é verdade. O escritor pernambucano tem veia autoral peculiar, com a qual constrói uma beleza diferente na literatura brasileira.
Sua prosa, de caráter melancólico (mas não monótono), é música de solidão e tristeza, que procura arrastar para o espaço da página a decadência humana, o universo da loucura e dos vícios. A marca de abandono existe até mesmo quando há multidão. Ainda que os personagens sejam plurais e compartilhem o mesmo palco, o que se destaca é a dança, é o som, o eco da solidão irrevogável.
E não é exagero. Para conferir, o leitor pode começar pelo romance A minha alma é irmã de Deus (Record, 2009), que fecha a tetralogia Quarteto Áspero, junto com Maçã agreste, Somos pedras que se consomem e O amor não tem bons sentimentos.
Em A minha alma, desfila o mundo de infortúnios, da infância à velhice, de uma mulher chamada Camila. Ela é a figura central do elenco de pobres coitados que ocupam as ruas do Recife. Camila saiu de casa aos 12 anos após ser abusada sexualmente pelo pai e pelo irmão e ser seduzida por um explorador de almas e de corpos, Leonardo.
Em sua trajetória de menina solta, criança inserida no universo adulto e alienada de seus direitos, Camila cria subterfúgios para sobreviver. Inventa personagens, faz-se passar por Raquel, Mariana, Ísis, Paloma. Ora é a religiosa que espera estar ao lado de Deus, ora é a fotógrafa ninfomaníaca ou a prostituta mais filantrópica do mundo, que oferece seu corpo a mendigos e falidos de toda ordem, considerando a si mesma apenas um corpo social.
Essa multidão em uma só pessoa é a metáfora arrasadora que Carrero criou para desenhar a situação de um número bem grande de párias que existem (principalmente de mulheres esquecidas), não só no Recife, mas em todas as metrópoles.
Camila é um monte de mulheres, mas não é ninguém. Isso equivale a dizer que muitas mulheres são como Camila, sofrem abusos e vivem como fantasmas. Ao mesmo tempo, Camila é um disparate, um delírio só, delirante, lírica, sonhadora. Inventa que foi sequestrada e que a família vai resgatá-la, faz de conta que é nobre, que é santa, intocável, enquanto segue pelas ruas da capital pernambucana oferecendo seu corpo social.
Ela vive assim, à margem, até morrer. Ela é a nota mais tocante na criação jazzística que é a escrita de Carrero nesse livro. Nesse sentido, a violência, o amor, o sexo, a loucura, a morte, todos os elementos de composição do romance são orquestrados com notas verbais, arquitetados com engenhosidade.
Na toada do jazz
O romance trata da marginalidade e da vida que pulsa nesse universo. Mas não o faz de forma leviana, nem linear. A construção do texto tem uma melodia impressa, resultado de um trabalho intenso de tensão e ritmo. Carrero é amante da música. Sua prosa valoriza sempre a entonação melódica. Seus personagens são desenhados pelo ritmo. Cada personagem tem o seu. “Cada emoção tem um pulso”. O de Camila é o jazz, a improvisação.
É ela quem narra sua história. Ou melhor, é ela quem monta suas lembranças de modo a se tornar um corpo vivo de histórias e situações, criando a atmosfera da realidade que viveu. Mas cada cena, cada capítulo tem um ponto de vista que pode ser de Camila ou de um terceiro, ou até mesmo dela se fazendo passar por outro que fala dela, como num concerto em que um instrumento repete a frase musical que o outro deu. Jam Session.
“O problema é que só vai se lembrando da história à maneira que conta. Ela não sabe a próxima palavra, a próxima frase, não sabe a segunda oração, não sabe o terceiro parágrafo”, diz em certo trecho. Eis o jazz, o improviso da cena, a vida tal como acontece com os miseráveis.
Tudo é improviso, na tentativa de sobreviver ao caos e à violência, como quando, logo em seguida, é relatada a coação que Camila sofreu por um de seus parceiros, Miguel.
“Nada sabe. Nem mesmo se lembra do dia em que teve de desfilar com uma vela acesa na sala escura, só para agradar o amado. Não foi na mão, foi, Camila? Não foi com a mão que você carregou a vela? Não, não foi, ela responde, mas por isso mesmo não quero me lembrar de Miguel. Foi na parte dolorosa do corpo. Não digo, não digo. Feito um animal. Quadrúpede. Assim? Assim. Você carregou a vela assim? E doendo, doendo muito.”
Com Deus no título, o autor já demonstra a intenção de criar uma atmosfera sagrada, mas só para fazer sobressair o profano. Leonardo, o pastor, é um saxofonista, que comanda a seita Os soldados da pátria por Cristo. Há aqui uma fina sugestão de que o mundo foi criado por Deus num improviso sem igual.
Carrero tem uma orquestra na alma. Seu romance, escrito caprichosamente para simular essa improvisação, é cenário realista que cria um ambiente de delírio e de sonho. Em outros livros, ele também imprime certas tonalidades, como a sinfonia de Somos pedras que se consomem e mais uma vez o jazz de Ao redor do escorpião ... uma tarântula? – orquestração para dançar e ouvir.
Bela e estranha
Em A minha alma é irmã de Deus, o autor que nasceu em Salgueiro, sertão pernambucano, faz uma evocação ao Recife, onde mora. É que no fim da vida, Camila percorre a cidade puxando uma carrocinha, repuxando a memória para não se esquecer de si mesma, já que é esquecida por todos, pois não é mais o corpo social, não é mais plural.
Em sua agonia e delírio, está sozinha, nas ruas do Recife, em lugares como a avenida Guararapes, com “grandes e imponentes pilares dos prédios (...), sujos de cartazes e grafites, (...) tão cheia de bancas de revistas, sebos nas calçadas e mendigos loucos.” Mais adiante, um espanto, talvez da própria Camila, talvez do próprio Carrero: “Bela, estranha e espantosa cidade do Recife – habitada por banqueiros e pedintes, bêbados e loucos, homens de pastas nas mãos, meninos e meninas prostituídas.”
A literatura de Carrero não é de significado fácil. Mas é muito mais difícil entender como um escritor premiado como ele, publicado por uma das maiores editoras do país, pode ser tão desconhecido, enquanto autores notoriamente menores aparecem mais.
A pergunta é de retórica. Afinal, isso não importa nem para ele mesmo, que certa vez disse: “o importante na minha carreira é construir uma obra.” Sua produção recria uma espécie de epopeia dos desgraçados. Sua literatura é o reflexo de uma alma criativa e sombria, transtornada de beleza e espanto.
(Texto publicado originalmente na Tribuna do Planalto, em 31 de outubro de 2009)
OBS: A minha alma é irmã de Deus foi adaptada para o cinema, num curta-metragem homônimo, dirigido por Luci Alcântara, que pode ser visto no site do próprio Raimundo Carrero.
Leia também neste blog:
Raimundo Carrero vence Prêmio São Paulo de Literatura
A MINHA ALMA É IRMÃ DE DEUS: o jazz da dor e a evocação do Recife
Serviço:
Título: A minha alma é irmã de Deus
Autor: Raimundo Carrero
Editora: Record, 2009, 176 páginas
Gênero: Romance
Preço: R$ 34,90
quarta-feira, 18 de agosto de 2010
A contribuição valiosa de Brandão
Ainda hoje as pessoas se interessam pelas histórias da mitologia grega, mesmo numa época em que as máquinas de alta tecnologia estão no centro da dinâmica social e da comunicação. A prova disso é o relançamento de uma das melhores obras em língua portuguesa sobre o assunto, Mitologia Grega, volumes 1, 2 e 3 (Editora Vozes, 2009), de Junito de Souza Brandão (1926 - 1995), cujo primeiro volume chega à sua 21ª edição.
Aliada à análise com base na teoria junguiana, segundo a qual os mitos são arquétipos que formam e realimentam os símbolos que estruturam a Consciência, a obra de Brandão é uma grande contribuição aos estudos de psicologia, filosofia, história e artes em geral.
Sua leitura é uma viagem fantástica ao rico imaginário grego, que fez da cultura helênica um dos pilares centrais da civilização ocidental. As aventuras dos deuses e suas lutas pelo poder, os encantos das ninfas, como Eco que se apaixona por Narciso, e de heróis como Herácles (Hércules) e os 12 trabalhos, são aliados a diversos outros mitos e mitemas, todos analisados e comentados pelo autor, numa impressionante e gratificante erudição.
(Texto publicado originalmente no jornal Tribuna do Planalto, in: Gregas raízes: a mitologia na contemporaneidade)
Os propagadores dos mitos
Na Grécia antiga, antes do registro escrito, o dinamismo das narrativas permitia a recriação constante de cada mito. Mais tarde, por meio da escrita, poetas e dramaturgos ajudaram os mitos a se perpetuarem até os dias de hoje, fixando algumas versões.
Entre as principais obras antigas que trabalharam em cima da mitologia grega estão Ilíada e Odisseia (Homero), Os trabalhos e os dias e Teogonia (Hesíodo), Édipo-Rei, Antígona e Édipo em Colono (Sófocles), Medeia, As bacantes e As troianas (Eurípedes), Oréstia, Prometeu acorrentado e Os sete contra Tebas (Ésquilo), Metamorfoses (Ovídio, poeta latino) e O asno de ouro, do argelino Lúcio de Apuleio, que conta uma das mais completas versões do mito de Eros e Psiqué.
Píndaro é um dos poetas gregos mais citados nos livros de Junito de Souza Brandão (Mitologia Grega, volumes I, II e III), mas sua obra, com destaque para Píticas e Olímpicas, não se encontra traduzida para o português.
(Gilberto G. Pereira. Texto publicado originalmente no jornal Tribuna do Planalto, in: Gregas raízes: a mitologia na contemporaneidade)
Nomes de deuses gregos e a equivalência em latim
Quando a Grécia foi dominada pelo Império Romano, no ano de 272 a.C., muitos elementos de sua cultura foram apropriados pelos latinos, entre os quais os nomes dos deuses. Segue abaixo a lista dos principais deuses em grego e o equivalente em latim.
Afrodite – deusa do amor e da beleza – Vênus
Apolo (Hélio) – deus-Sol – Apolo
Ares – deus da guerra – Marte
Ártemis – deusa da caça, protetora da natureza – Diana
Atená (Palas) – deusa da justiça e da sabedoria – Minerva (Palas)
Crono – deus do tempo – Saturno
Deméter – deusa da agricultura – Ceres
Eros – deus do amor – Cupido
Geia – Terra
Hades – deus da riqueza, deus dos mortos – Plutão
Hebe – deusa da juventude – Juventas (Hebe)
Hefesto – deus do fogo – Vulcano
Hera – deusa protetora das esposas, mulher de Zeus – Juno
Hermes – deus do vento, da comunicação – Mercúrio
Perséfone (Core) – mulher de Hades, a deusa da juventude eterna – Prosérpina (Perséfone)
Posídon – deus dos mares – Netuno
Reia – mulher de Crono – Cibele (Reia)
Tânatos – Morte
Urano – Céu
Zeus – deus dos deuses – Júpiter
(Gilberto G. Pereira. Texto publicado originalmente no jornal Tribuna do Planalto, in: Gregas raízes: a mitologia na contemporaneidade)
Dioniso e a consciência negra
Pintura de Exekias, numa taça grega (circa 540 a.C.)
O sol da Grécia antiga ainda ilumina nossas cabeças? A pergunta em tom de retórica serve para exemplificar a influência dos mitos nas artes até hoje. Segundo Junito de Souza Brandão, a mitologia não versa pela lógica, mas pelo saber intuitivo, aquele mais ligado à linguagem artística.
É neste sentido que o mito de Dioniso, o deus do vinho e do êxtase, influenciou o poeta e crítico literário, membro da Academia Brasileira de Letras, Domício Proença Filho, ao escrever Dionísio Esfacelado, que conta a saga do negro vindo da África para ser escravo no Brasil.
Segundo Proença Filho, a leitura dos mitos gregos o ajudou a buscar a medida trágica dos poemas de seu livro, porque encontrou em Dioniso (grafia utilizada por Brandão) uma semelhança ímpar com a condição do negro expatriado.
“Dioniso nasceu duas vezes. Filho de Zeus com Sêmele, foi perseguido por Hera. Além de ser um deus sofrido, era estrangeiro na Hélade e só foi para o Olimpo muito mais tarde”, diz o poeta.
Segundo ele, a vinda dos africanos para o Brasil e sua readaptação aqui equivale a um segundo nascimento. “E a identificação com a trajetória trágica e de afirmação de Dioniso ajuda a refazer essa consciência negra”, pondera.
(Texto publicado no jornal Tribuna do Planalto, in: Gregas raízes: a mitologia na contemporaneidade)
É neste sentido que o mito de Dioniso, o deus do vinho e do êxtase, influenciou o poeta e crítico literário, membro da Academia Brasileira de Letras, Domício Proença Filho, ao escrever Dionísio Esfacelado, que conta a saga do negro vindo da África para ser escravo no Brasil.
Segundo Proença Filho, a leitura dos mitos gregos o ajudou a buscar a medida trágica dos poemas de seu livro, porque encontrou em Dioniso (grafia utilizada por Brandão) uma semelhança ímpar com a condição do negro expatriado.
“Dioniso nasceu duas vezes. Filho de Zeus com Sêmele, foi perseguido por Hera. Além de ser um deus sofrido, era estrangeiro na Hélade e só foi para o Olimpo muito mais tarde”, diz o poeta.
Segundo ele, a vinda dos africanos para o Brasil e sua readaptação aqui equivale a um segundo nascimento. “E a identificação com a trajetória trágica e de afirmação de Dioniso ajuda a refazer essa consciência negra”, pondera.
(Texto publicado no jornal Tribuna do Planalto, in: Gregas raízes: a mitologia na contemporaneidade)
terça-feira, 17 de agosto de 2010
O mito do amor
Das gerações gregas que acreditavam em seus mitos até as atuais, muito areia desceu na ampulheta da história. Mas o cerne da importância interpretativa da mitologia continua acendendo as mentes mais despertas. O mito de Eros e Psiqué, por exemplo, ainda hoje é uma grande aula sobre o relacionamento amoroso. O deus do amor se apaixona pela princesa Psiqué (alma, em grego) ao se ferir com a própria flecha que usava para deixar as pessoas enamoradas.
Mas a única forma de ele unir-se a ela, era escondendo sua identidade divina. Levou-a para um palácio e a cercou de todas as regalias, com uma multidão de vozes atendendo até mesmo os desejos não formulados da jovem princesa. Até que um dia, as irmãs de Psiqué, por inveja, a convenceram de que ele era um monstro e por isso não se mostrava. Ela, ingênua, caiu no golpe.
Convencida de que seu marido era uma serpente terrível, o esperou dormir para matá-lo. Mas seu plano deu errado. Ao iluminar o rosto de Eros, Psiqué deparou-se com a delicada e bela face de um deus. Era tarde. O castigo contra ela seria a ausência de seu amado, e começava então “o itinerário doloroso de Psiqué”, imposto por Afrodite, a deusa da beleza e do amor, mãe de Eros.
De acordo com o professor Marcus Reis, filósofo estudioso da cultura grega, este mito sugere que há algo de velado no amor que deve ser respeitado. “Quando Psiqué cede e procura ver o rosto de seu amor, ela o perde. Talvez o mito possa nos indicar algo da necessidade de saber não só preservar, mas de ter a consciência de que nunca poderemos saber tudo, nem da outra pessoa, nem de nós mesmos”, pondera Reis.
(Gilberto G. Pereira. Texto publicado originalmente no jornal Tribuna do Planalto, in: Gregas raízes - a mitologia na contemporaneidade)
Gregas raízes: a mitologia na contemporaneidade
Muita gente já ouviu a seguinte charada: “Qual o ser que anda de manhã com quatro patas, ao meio-dia com duas e, à tarde, com três e que, contrariamente à lei geral, é mais fraco quando tem o maior número de membros?” A resposta também é sabida de todos: o homem.
O que poucos sabem é que esta espécie de ‘o que é o que é?’ vem de uma das mais famosas histórias da Grécia Antiga, o mito de Édipo. O enigma fora proposto pela Esfinge, monstro dotado de asas, com rosto e seios de mulher, patas e caldas de leão, que havia se plantado próximo à cidade de Tebas, matando aqueles que não conseguiam decifrar sua intrigante questão.
O único a responder corretamente a pergunta é Édipo, natural da cidade, mas que havia sido levado de lá ainda bebê. Na viagem de regresso à terra natal, Édipo encontra-se com Laio, o rei de Tebas, se desentende com ele e o mata, sem saber que este era seu pai.
Em seguida, decifra o enigma, sagra-se herói tebano e se casa com a própria mãe, a rainha Jocasta, num enredo que inspirou Sigmund Freud a criar o principal símbolo da psicanálise, o complexo de Édipo.
Esses dois exemplos mostram como a mitologia grega continua incrustada no imaginário humano, atravessando séculos até chegar à sociedade ocidental contemporânea, pelo viés popular e pela veia erudita. Longe de se comparar à Esfinge, a pergunta que se faz agora é: qual é a importância da mitologia grega, no princípio do século XXI?
De acordo com o professor de filosofia da Universidade Federal Fluminense, Marcus Reis, a importância dos mitos gregos na contemporaneidade se dá pela capacidade que eles têm de oferecer elementos simbólicos. “É uma diversidade riquíssima em histórias que ilustram o comportamento humano, social e individualmente, e sua relação com a natureza”, diz.
Um exemplo alegórico é o mito de Prometeu, imortal que gostava de viver na terra e que roubou a centelha do fogo celeste para reanimar os mortais, dando-lhes a inteligência divina. Os humanos gostaram, mas Zeus, o deus dos deuses, não achou graça na atitude de seu primo e voltou-se contra ele e a humanidade.
A primeira atitude foi acorrentar Prometeu a uma rocha, aonde todas as tardes uma águia vinha comer-lhe o fígado. Segundo a medicina, este é o único órgão humano que se regenera. Os gregos já sabiam disso. Todas as manhãs, o fígado de Prometeu estava regenerado, e a águia voltava à tarde para devorá-lo novamente.
Depois de devolver a humanidade à ignorância eterna, Zeus foi pedir a Hefesto, o deus do fogo e das forjas, o gênio do Olimpo, para criar uma bela mulher e enviá-la à Terra. Hefesto forjou Pandora, uma linda figura feminina, de corpo escultural, e mandou para os mortais junto com uma caixa misteriosa que não podia ser aberta.
Mas Epimeteu, o irmão de Prometeu, se apaixonou por Pandora e pediu a ela que abrisse a caixa, de onde todos os males foram libertos, doenças, desgraças, pragas e dores. Zeus, no entanto, mandou fechá-la a tempo de deixar dentro a esperança, o último refúgio dos homens.
A lição deste mito vai além da mera especulação moral sobre a desobediência e alcança o valor do senso de observação. Segundo a etimologia, Prometeu significa ‘aquele que pensa antes’, daí vêm palavras como ‘prudente’ e ‘previdente’. Já Epimeteu significa ‘aquele que pensa depois’. Ou seja, antes de agir, é preciso ter em mente a noção exata do que será feito para não chorar as mágoas tardiamente, como o fez Epimeteu junto com toda a humanidade.
A função do mito
Nos últimos dois séculos, as mentes mais brilhantes da história do pensamento ocidental, de uma forma ou de outra, se ocuparam da mitologia grega para pensar a sociedade e a cultura. Além de Freud, estudiosos como Friedrich Nietzsche, Roland Barthes, Joseph Campbell, Carl Gustav Jung, entre outros, usaram os mitos como ferramenta.
No universo das artes, as narrativas gregas também aparecem com grande destaque, tanto no teatro como no cinema, na literatura, na pintura e até na música. Duas canções de Chico Buarque são exemplos dessa fonte de saber, Mulheres de Atenas e A gota d’água. Esta última fez parte da trilha sonora de uma versão de Medeia, mito que deu origem à peça homônima de Eurípedes.
Segundo o professor de Língua e Literatura Grega na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Trajano Vieira, a mitologia grega é uma espécie de lençol freático do saber, que continua a irrigar os pensamentos mais férteis da civilização ocidental. “Há uma tensão na estrutura do panteão olímpico que se assemelha de algum modo a experiências políticas e afetivas pelas quais passamos ao longo da vida”, diz.
Neste sentido, os mitos servem para traduzir os traumas da existência. É um saber rico em modelos de representação, de fenômenos psicológicos que podem acontecer em indivíduos ou no próprio corpo social, com a vantagem de não ser institucionalizado como verdade religiosa.
De acordo com Junito de Souza Brandão (1926 – 1995), na obra mais elementar sobre o assunto em língua portuguesa, Mitologia Grega, reeditada pela Editora Vozes em 2009, o mito é a narrativa de uma criação, e sua função é expressar o mundo e a realidade humana. “Isso se faz por meio de uma representação coletiva, que chegou até nós através de várias gerações.”
O psiquiatra e analista junguiano Carlos Byington, que prefacia o primeiro volume de Mitologia Grega, diz que os símbolos presentes em qualquer cultura são uma espécie de pegadas impressas ao longo de todo o caminho da humanidade. “Estes símbolos são as crenças, costumes, as leis, as obras de arte, o conhecimento científico, os esportes, as festas, tudo que forma a identidade cultural”, diz ele.
Mas esse rio de imagens míticas, de histórias registradas por poetas e dramaturgos e discutidas por filósofos e psicólogos, deságua num oceano de respostas que não cabem numa vida. Segundo Joseph Campbell em seu livro O herói de mil faces, não há um sistema definitivo de interpretação dos mitos.
Campbell compara a mitologia ao deus Proteu, que “jamais revela, mesmo ao mais habilidoso formulador de perguntas, todo o conteúdo de sua sabedoria.” Certamente esta é uma das características que deixam claro por que até hoje a Grécia que vem à cabeça da maioria é aquela de 40 séculos atrás, quando os mitos corriam pelo imaginário de seus nativos como verdade absoluta.
Hoje, não importa se esses personagens existiram ou não. A força de sua verdade está no significado simbólico, na atribuição que se dá a cada elemento narrado e na relação que se faz com a conduta humana encontrada ali.
(Gilberto G. Pereira. Texto publicado originalmente no jornal Tribuna do Planalto, em 2009)
De acordo com Junito de Souza Brandão (1926 – 1995), na obra mais elementar sobre o assunto em língua portuguesa, Mitologia Grega, reeditada pela Editora Vozes em 2009, o mito é a narrativa de uma criação, e sua função é expressar o mundo e a realidade humana. “Isso se faz por meio de uma representação coletiva, que chegou até nós através de várias gerações.”
O psiquiatra e analista junguiano Carlos Byington, que prefacia o primeiro volume de Mitologia Grega, diz que os símbolos presentes em qualquer cultura são uma espécie de pegadas impressas ao longo de todo o caminho da humanidade. “Estes símbolos são as crenças, costumes, as leis, as obras de arte, o conhecimento científico, os esportes, as festas, tudo que forma a identidade cultural”, diz ele.
Mas esse rio de imagens míticas, de histórias registradas por poetas e dramaturgos e discutidas por filósofos e psicólogos, deságua num oceano de respostas que não cabem numa vida. Segundo Joseph Campbell em seu livro O herói de mil faces, não há um sistema definitivo de interpretação dos mitos.
Campbell compara a mitologia ao deus Proteu, que “jamais revela, mesmo ao mais habilidoso formulador de perguntas, todo o conteúdo de sua sabedoria.” Certamente esta é uma das características que deixam claro por que até hoje a Grécia que vem à cabeça da maioria é aquela de 40 séculos atrás, quando os mitos corriam pelo imaginário de seus nativos como verdade absoluta.
Hoje, não importa se esses personagens existiram ou não. A força de sua verdade está no significado simbólico, na atribuição que se dá a cada elemento narrado e na relação que se faz com a conduta humana encontrada ali.
(Gilberto G. Pereira. Texto publicado originalmente no jornal Tribuna do Planalto, em 2009)
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