segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Sob o céu de agosto - romance de Gustavo Machado



“Um cinza azulado com umas manchas brancas que fatiavam em camadas espessas os muitos blocos de nuvens que se acavalavam como um caleidoscópio.” A esta cor o pintor Otto deu o nome de Céu de Agosto, e a perseguiu, tentou pintá-la de várias formas, em várias técnicas, mas fracassava sempre.

É com esta cor na alma que Otto repassa uma experiência terrível, de violência e assassinato, ao delegado Sampaio, depois de ser apanhado no cenário de um duplo assassinato. Enquanto responde o interrogatório, vai construindo a trama do romance.

O romance é o primeiro do escritor e jornalista gaúcho Gustavo Machado, intitulado Sob o céu de agosto (Dublinense, 2010, 168 páginas). Otto é um artista fracassado de 35 anos, órfão de pai e mãe, sem familiares e tem apenas um amigo, Téo, que lhe arranja emprego na prefeitura.

Ele mora sozinho num apartamento no centro de Porto Alegre, mas tem a companhia de uma garota de 15 anos chamada Albertina (Berta), que mora apenas com a mãe no apartamento de cima. Segundo ele, esta menina atiradinha o assedia o tempo inteiro, e ele foge da tentação.

No outro vértice do triângulo está Sophia, uma moça de 24 anos, casada com um barão da construção civil, de 61. Otto a conheceu nas aulas de pintura que ele ministrava na secretaria municipal de cultura.

Depois desse encontro é que a vida do pintor começa a se complicar em deliciosas e doloridas aventuras amorosas até culminar no acontecimento do crime que o leva à delegacia.

Arte e vida

Tendo como ponto de fundo a linguagem do romance policial, Sob o céu de agosto discute a relação entre arte e política e a dificuldade da arte autêntica sobreviver nos dias de hoje, vivendo sob o jugo do poder, da política, quase sem respirar de fato, sendo sufocada pela necessidade da sobrevivência diária.

Já falei em outra ocasião (na Tribuna do Planalto) sobre o que interessa neste romance. É o personagem de Otto. Bem construído, traz uma ambiguidade sutil em meio à verbosidade politicamente incorreta e à carga de humor chauvinista e de extrema ironia.

Otto se diz um sujeito ignorante, que só leu dois ou três livros na vida. Segundo ele, tudo que sabe sobre música, cinema e literatura aprendeu com Berta, a garota prodígio. Neste sentido, o romance também discute o fascínio dos quarentões (idade da qual Otto está próximo) pelas raparigas em flor.

Sob o céu de agosto é um romance que deve ser lido por quem gosta de acompanhar a literatura da nova geração, tanto pelo prazer de ler quanto pela curiosidade de se saber o que se está abordando, de que ponto de vista, que linguagem está sendo explorada. O cinema noir, por exemplo, está presente nessa narrativa. A música é muito forte também, como o jazz.

Círculo

No âmbito da discussão política, o autor explora os rumos do poder, para o bem e para o mal, como a ascensão de uma nova elite política, seu discurso, suas práticas, cujo jogo de interesses cria situações reais absurdas e uma sensação kafkiana do absurdo também.

O personagem tem um palíndromo no nome, o que o ajuda a enxergar sua circularidade, seu gosto pela repetição, e ajuda também a confundir o leitor, porque, sendo esférico, as duas pontas – a do sujeito que sabe o que está dizendo e a do que não sabe – estão ligadas.

Neste sentido, a própria fala do Otto pode servir de escudo para o autor, que utiliza seu personagem para pedir desculpas ao leitor pelas eventuais falhas de sua caracterização. Por exemplo, Otto, o tempo todo, se refere a certas cenas que ele mesmo descreve como chavões, clichês, mas não as evita, porque não pode.

“Muito clichê, já que não há romance sem clichê”, diz Otto, ironicamente, ao se lembrar de um momento entre ele e Berta. Irônico, mas também revelador de sua pedofilia (ou talvez seria melhor dizer hebofilia?).

“Levei nós dós para dentro, fechei a porta com um chute. Tudo muito cinematográfico”, recorda com ironia (mas também se desculpando), dessa vez de uma cena com Sophia.

Trechos

Além de frases isoladas, como “Chovia muito. O vento vindo do rio rugia como um animal machucado procurando a toca”, ou “um sorriso canastrão me deformou o rosto”, seguem dois trechos cujo conteúdo revela o caráter kafkiano e chauvinista, que deve ser atribuído à narrativa, à escolha estética, à maneira de ver o mundo do próprio narrador, não do autor. A este, deve-se apenas a técnica, imagino.

Estão dizendo, não interessa quem, estão dizendo que você confessou sob tortura. Acusam minha delegacia de abuso, maus-tratos, tentativa de extorsão, coisas assim. O próprio inquérito não chega a existir, foi desconsiderado pelas autoridades superiores. Este país está se perdendo por causa da sua gente. Até chegarem ao poder, eram fanáticos. Agora, pioraram muito. Seu caso, na verdade, é pura ficção. Coisa estranha, não acha?

“Era estranho mesmo. Tudo estava bem esquisito, mas não quis comentar. Uma pequena barata passou correndo, contornou o pé direito do delegado numa manobra apressada e se esgueirou pela rachadura horizontal que separava chão e parede.”

(...)

“Sophia guiou meu corpo meu rosto num passeio, despejou um pouco de vinho sobre o próprio colo, começou a percorrer todo meu corpo não muito musculoso com uma língua surpreendentemente ágil. Jogou-me de lado como se tivesse enjoado do brinquedo e, então, deitou-se no tapete, afastou as coxas com as mãos, acariciando-se bem de leve. Borboleta tatuada na virilha e pouquíssimo pelo escuro cobrindo uma boceta fantástica, de lábios rosados e delicados.

E daí?

Daí me desculpe, delegado, mas não é da sua conta.

Já conheço até a boceta da moça, mas o resto não é da minha conta. Muito pudico. Aconteceu alguma coisa estranha naquela noite?

Sim. Uma coisa que nenhuma mulher tinha feito comigo.

Sophia enfiou o dedo no seu rabo.


Serviço

Título: Sob o Céu de agosto
Autor: Gustavo Machado
Editora: Dublinense, 2010, 168 páginas
Gênero: Romance
Preço: R$ 35,00

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