quinta-feira, 24 de outubro de 2019

Não houve tempo para ler tudo - a morte de Harold Bloom

                                                                                 Foto: Getty Images
Harold Bloom (1930-2019): “Se você não lê profundamente, e não lê de fato o que há de melhor na
literatura, então você jamais aprenderá a pensar, e se você não sabe pensar, você obtém Donald Trump”

Harold Bloom morreu aos 89 anos no dia 14 de outubro de 2019, num hospital de New Haven, Connecticut, EUA. Aquele cérebro de sinapses velozes – capaz de ler 500 páginas por hora, e que dizia que líamos para encontrar cérebros mais inteligentes do que o nosso – não existe mais.

Leitor poderoso, criador de sulcos insuperáveis na consciência crítica, Bloom deixou um legado enriquecedor. Cada livro seu é um curso completo de algum tema literário. Depois de Shakespeare: a invenção do humano, por exemplo, o leitor nunca mais lerá o bardo inglês do mesmo jeito.

A luz que se apaga com a morte de Bloom escurece uma significativa extensão do território da crítica literária. Sua morte tira-nos um pouco o chão. Ainda bem que seus livros nos servirão de lastro. Ainda bem que suas palavras iluminarão as leituras que continuaremos a fazer dos grandes gênios da narrativa. 

O que Bloom fez, no fim das contas, foi defender o humano, tão escanteado a favor das máquinas e da inteligência artificial nos dias de hoje. Por sua capacidade de ler e trabalhar tantos dados ao mesmo tempo, constantemente, vinha-nos a pergunta: “como é que ele faz? Como consegue?”

Era um tipo raro de gênio, que, se não criava personagens, se não criava tramas (chegou a escrever um romance, em 1979, The Flight to Lucifer [O voo de Lúcifer], debalde), sabia analisar como ninguém os espaços inventados pelos outros gênios da linguagem. Como ninguém, era detentor de uma energia psíquica arrebatadora. 

Seu imenso talento permitia-o manipular a massa textual de toda a literatura ocidental como quem bate massa para um bolo. E ficava gostoso, além de substancial. Seu repertório crítico foi sem dúvida o mais largo e profundo entre os críticos que li.

Digo isso na comparação com nomes como Terry Eagleton, Northrop Frye, Antonio Candido, Otto Maria Carpeaux, James Wood. Em matéria de domínio de massa textual, só Martin Seymour-Smith, dos que li, o alcança (e talvez o ultrapassasse). 

Diálogo

Seus livros me fizeram enxergar com outros olhos muita coisa dentro do campo literário, como a questão da crítica e da lança ideológica que persegue o texto, mas que não o alcança de todo. 

Foi por ele que fiquei sabendo de Zora Neale Hurston, autora de Seus olhos viam Deus, romance que Bloom colocou ao lado de Homem invisível, de Ralph Ellison. 

Também foi ele quem me disse que James Baldwin não é tão grande assim (“é apenas um documento de época”), fazendo-me perceber que não é preciso concordar com tudo que um grande espírito diz para considerá-lo, ainda assim, genialmente imenso.

Bloom não gostava de literatura engajada. Para ele, Baldwin era um escritor a serviço de uma causa política (uma causa justa, digna, necessária, mas, ainda assim, uma causa). Mas, para quem ama literatura e tem consciência negra, dá para, a um só tempo, apreciar a estética e a luta na obra de Baldwin, absorver a estética formal pura e entender Bloom. E amá-lo também, em sua larga perícia de leitura, de diluição e análise.

Origem, memória e crítica

Filho de um alfaiate e uma dona de casa (imigrantes judeus da Rússia), Bloom nasceu em 1930, no distrito do Bronx, em Nova York, em um bairro ocupado na ocasião basicamente por judeus pobres. Sua vizinhança toda só falava íidiche e hebraico.

Aos quatro anos, ele começou a frequentar a biblioteca local e a ler em inglês. Foi aprendendo a língua de Shakespeare intuitivamente, adivinhando a pronúncia e correlacionando as conexões sintáticas e semânticas. 

Numa grande reportagem produzida pelo jornalista Arthur Nestrovski, no Caderno Mais!, da Folha de S. Paulo, em 1995, cujo texto de abertura se intitula Crítico reage contra a balcanização da cultura, há um trecho da fala de Bloom em que ele comenta: “Quem lê tem de escolher, pois não há, literalmente, tempo suficiente para ler tudo, mesmo que não se faça mais nada além disso.”

Em 1995, ele foi entrevistado por Eleanor Wachtel, do programa Writers & Company, da rádio canadense CBC (disponível no YouTube). Nesta entrevista, após Bloom dizer que tinha uma memória espantosa para leituras desde seus quatro anos e que conseguia ler numa velocidade ímpar, Eleanor comenta “li em algum lugar que você consegue ler 500 páginas por hora”, e ele diz “ainda consigo fazer isso, mas não gosto de fazê-lo” (minuto 5:55).

Para se ter ideia dessa façanha, e a título de comparação, Umberto Eco disse uma vez que lia 90 páginas por hora. Embora o feito de Bloom seja algo inacreditável, eu, pessoalmente, não tenho nenhuma razão de achar que ele estivesse mentindo.

Se você consultar o Google, vai ver uma série de textos conferindo a Bloom um poder ainda maior, dizendo, por exemplo, que ele era capaz de ler mil páginas por hora. Mas, cá para nós, 500 páginas por hora já são o cúmulo da energia psíquica. Uma massa encefálica capaz de tamanha proeza já basta.

Ou seja, Bloom era uma espécie de “monstro” da palavra, ávido devorador de mundos simbólicos. Era chamado pela imprensa americana de King Kong da crítica. Nesta mesma entrevista, a respeito de seu livro O cânone ocidental, Eleanor pergunta o que é o cânone, e Bloom diz que não há nenhum mistério nisso, é só uma lista de autores que devemos ler. E dispara:

“Devemos ler Shakespeare e estudá-lo, devemos estudar Dante, ler Chaucer, Cervantes, a Bíblia, pelo menos a Bíblia do Rei James, devemos ler Proust, Tolstói, Dickens, George Eliot ou Jane Austen, James Joyce, Samuel Beckett, porque são absolutamente cruciais.

Eles fornecem uma ideia intelectual, um valor espiritual, que não tem nada a ver com a religião organizada ou a fé institucional. Devemos lê-los porque eles nos ajudam a lembrar do que somos, nos dizem coisas que já esquecemos ou coisas que jamais poderíamos saber sem lê-los, porque fazem nossa mente mais forte, porque nos fazem sentir vivos.”

Na entrevista a Nestrovski, ele havia sido mais enfático. O cânone, dissera Bloom, é uma lista de autores que “não morrem nunca”, que se renovam a cada leitura. Ou seja, conferindo o mesmo sentido de clássico de Italo Calvino, segundo o qual, clássico é um livro que você pode ler várias vezes, mas que em cada vez que o ler, aprenderá alguma coisa.

Profissionais do ressentimento e a morte do autor

Publicado originalmente em 1995, O cânone ocidental, elege 26 autores como representantes do caldeirão forjador da cultura literária do Ocidente. Os críticos à sua lista, e ao próprio Bloom, desceram a lenha, e Bloom os chamou de profissionais do ressentimento. 

Escola do ressentimento, diz Bloom, é toda a crítica acadêmica que em vez de se ater à compreensão da forma e do conteúdo do texto, mete-se a fazer sociologia e a banhar de posicionamento ideológico, sexológico e raciológico toda a literatura. 

“O que ocorreu - e parece agora impossível de ser revertido - foi uma coalizão de, entre aspas, ‘feministas’, ‘marxistas’, ‘neo-historicistas’, ‘materialistas culturais’ e teóricos de inclinação francesa - Lacan, pseudo-Lacan, pseudo-Derrida, pseudo-Foucault.

Esta coalizão representa hoje cerca de 70% dos professores em meio de carreira, e mais da metade deles são cultuadores fanáticos da Escola do Ressentimento”, diz Bloom a Nestrovski, na entrevista à Folha de S. Paulo, de 1995.

Naquele ano, Bloom escrevia mensalmente para o Mais! Em um dos textos, intitulado A inevitável presença do autor, ele continua a bater em seus algozes, com uma verve violenta e arguta. Acusa a crítica francesa de transformar todo discurso sério em um blábláblá garboso e com sotaque. 

Diz que a morte do autor é só mais uma figura de linguagem. Atribui à Nietzsche – que proclamou a morte de Deus (na verdade, Schopenhauer, muito antes, já havia dado o primeiro chute) – a influência nefasta na crítica a ponto de ela começar a negar a importância da autoria, nas pessoas dos franceses, sobretudo Michel Foucault. 

“Seus discípulos franceses (de Nietzsche), Foucault acima de todos, desenvolveram esta proclamação nietzschiana até chegar ao dogma de que todos os autores (incluindo Deus) estão mortos”, diz o crítico. 

Sua capacidade analítica era refinada e inteligente: “A única morte do autor que difere da morte mesmo, e que tem importância, é o destino dos poetas fracos. O escritor forte que se integra ao cânone, não morre nunca, que é aliás o sentido real do cânone. Ser lido para sempre: é esta a vida do autor.”

No texto Os estratagemas dos ressentidos, publicado no Caderno Mais! (29/11/ 1998), Bloom cita uma epígrafe (“Eles têm grandes números. Nós temos as alturas”), e em seguida abre o texto assim: 

“Minha epígrafe vem de Tucídides: são palavras do comandante do exército espartano, na batalha das Termópilas. No que diz respeito à cultura, somos nós agora que estamos nas Termópilas: os multiculturalistas, as pseudofeministas, os milhões de modistas, afligidos por doenças francesas, os comissários de polícia, os fanáticos do politicamente correto, as hostes de novos historicistas e velhos materialistas - todos se postam lá embaixo. Na certa vão subir e talvez sejamos batidos; nossas universidades já não passam de uma encenação e nossos jornalistas são uma paródia dos professores de ‘estudos culturais’.”

Machado de Assis, o milagre

Obviamente, Bloom não se esgota tão fácil. Para falar à vera sobre sua essência de professor, crítico literário e autor de livros incríveis, um texto de blog não basta (aliás, o blog talvez seja o único lugar onde esse texto hipotético coubesse, fora do livro, mas seria igualmente do tamanho de um livro).

Aprofundar em qualquer direção seria empilhar átomos demais. Daí esta pincelada de superficialidades, só para registrar a significativa presença de Bloom na alma de um leitor.

A angústia da influência: uma teoria da poesia, de 1973, seu livro mais importante, em termos de novo direcionamento crítico para a época, merece ser estudado até hoje, porque mostra como não se consegue escapar das influências e como se luta para se fazer original nesse mundão véi de meus verbos. 

Citemos um autor que não entra no radar de Bloom, por exemplo, João Guimarães Rosa, e que sofreu a angústia da influência, embora não se trate de poesia. Em seu único romance, Grande sertão: veredas, há uma inevitável influência de Machado de Assis, intencionalmente “raspada”. E quando sabemos biograficamente que Rosa achava Machado um estúpido literário, é como dizer bingo!

Rosa não está no radar de Bloom por uma questão de inacessibilidade, segundo o próprio Bloom, que disse (ainda) a Nestrovski que não conseguia ler Rosa e acessar seu código literário porque lia mal português. 

Em português, Bloom só conseguia ler jornais, e lia Drummond com a ajuda de amigos. Disse ainda que a tradução de Rosa em inglês era uma bosta (disse isso com outras palavras, evidentemente).

Mas, Machado de Assis, não. Bloom conseguiu acessá-lo, não sem antes passar pelo mesmo problema da barreira das línguas. “O Brasil tem excelentes escritores. Machado de Assis não foi incluído em ‘O cânone ocidental’ em razão de uma tradução opaca que me caiu nas mãos”, diz o crítico americano, em uma entrevista concedida em 2003 a Sueli Cavendish, para a Folha de S. Paulo, intitulada Bloom o insaciável.

“Mas, quando li ‘Memórias Póstumas de Brás Cubas’ na tradução inspirada de Gregory Rabassa, percebi sua grandeza e o examino em ‘Gênio’”, continua Bloom. “Vejo nele uma ponta do ouvido trágico shakespeariano. ‘Dom Casmurro’, na igualmente inspirada tradução de John Gledson, revela a fina ironia desse autor.”

“Em ‘Brás Cubas’, vê-se que ele é possuído até as entranhas pelo Stern de ‘Tristram Shandy’, o que em nada diminui a sua originalidade, mas o liberta do jugo das pressões puramente nacionalistas”, observa Bloom, um tagarela contumaz (num bom sentido). 

Quem tem o desprendimento de ver suas entrevistas e palestras em vídeos disponíveis no YouTube sabe o quanto Bloom gosta de falar sobre literatura, e o quanto ele é envolvido por uma presença de espírito dotada de um tímido senso de humor e pela memória (era capaz de citar Paraíso Perdido inteiro, de cor, por exemplo).

“Fui definitivamente fisgado por Machado de Assis e leio cada uma das suas frases com júbilo. Considero-o um milagre, diante das circunstâncias em que viveu, neto de escravos num país em que a abolição só veio em 1888, uma prova da autodeterminação do gênio e da arte”, diz Bloom a Sueli Cavendish.

Em Gênio, de 2002, traduzido para o português justamente em 2003, Bloom analisa os cem maiores gênios da linguagem, e entre esses gênios, coloca quatro nomes de língua portuguesa, e entre esses quatro, além de Camões, Eça de Queirós e Fernando Pessoa, está Machado de Assis.

Neste livro, Bloom diz que o Bruxo do Cosme Velho “é o maior literato negro surgido até o presente”. E olha que ele também incluiu Ralph Ellison na seleta lista de gênios. E profere a frase repetida na entrevista a Sueli Cavendish: “Machado de Assis é uma espécie de milagre.”

O título da entrevista, Bloom o insaciável, é apropriado para definir um homem que parece que não houve no mundo um livro importante que não tenha lido. Do Brasil, diz ainda que há grandes poetas também, citando Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Mello Neto e Sebastião Uchoa Leite (opa! Como?). 

Combatente feroz 

Bloom publicou mais de 40 livros. Boa parte deles foram traduzidos no Brasil, como os já citados Shakespeare: a invenção do humanoO cânone ocidentalComo e por que lerGênioA angústia da influência, e seus similares, em que o autor elabora a ideia da influência (Um mapa da desleituraCabala e crítica e Poesia e repressão: o revisionismo de Blake a StevensA anatomia da influência), além de Abaixo as verdades sagradas.

Leitor exigente e apreciador de uma estética apurada, que não se encontra em qualquer texto, ele comprou uma briga (da qual não compartilho, porque não estou à altura) contra autores como a best-seller J. K. Rowling, autora da série Harry Potter.

Ele compara Rowling a Stephen King, e coloca os dois no abismo da desgraça estética: “J.K. Rowling e Stephen King são escritores igualmente ruins, titãs apropriados de nossa nova era das sombras dos teclados: computador, cinema, televisão”, diz ele num texto intitulado A criança no tempo, publicado no Caderno Mais!, da Folha de S. Paulo (03/04/2005).

Por isso mesmo, para combater esses inimigos do espírito, é que ele organizou a coletânea magistral Contos e poemas para crianças extremamente inteligentes de todas as idades, em quatro volumes, um para cada estação do ano. Nesta coletânea, há contos, novelas e poemas de autores como Lewis Carroll, Rudyard Kipling, Oscar Wilde, Esopo e os irmãos Grimm.

Para pensar, é preciso ler

No ano passado, prestes a fazer 88 anos, Bloom recebeu um professor de literatura chamado John Bredin em sua casa, em New Haven. Bredin o entrevistou por 20 minutos em um vídeo disponível no YouTube intitulado Saving Literature with Harold Bloom.

Bloom está visivelmente debilitado, sentado numa poltrona com o corpo levemente encurvado e a voz fraca. Suas mãos tremem um pouco, mas seu raciocínio é límpido, reto, de quem continuava dando aulas. 

Bredin pergunta para ele sobre a importância da literatura e por que os estudos de humanidades, em particular, a literatura, importam? A resposta de Bloom é afiada: “Se você não lê profundamente, e não lê de fato o que há de melhor na literatura, então você jamais aprenderá a pensar, e se você não sabe pensar, você obtém Donald Trump. E não é uma piada. Nada sobre ele é engraçado”, diz Bloom.

Depois, ele fala de poetas de sua predileção e até recita dois poemas de Wallace Stevens. No final da entrevista, Bloom diz que “a literatura não vale mais que a justiça elementar”, e diz que se você ler muito profundamente “não vai se tornar um monstro de iniquidade” e ela, a literatura, “não te faz necessariamente uma pessoa melhor, mas também não te faz pior. ”

“Espero dar aulas até que venham buscar meu cadáver”

Formado pela Universidade Cornell (Nova York), deu aula em várias instituições, inclusive em Harvard, mas sua consagração acadêmica está ligada à Universidade Yale (New Haven, Connecticut), onde era Sterling Professor, “comenda mais alta que se confere, na Universidade Yale, a docentes de vários campos, ostentada no passado por Erich Auerbach e Paul de Man” (Sueli Cavendish).

Na entrevista concedida a Arthur Nestrovski, em 1995, Bloom havia dito: “Espero dar aulas até que venham buscar meu cadáver.” Quando morreu, em 14 de outubro, sua esposa Jeanne Bloom disse que ele havia dado a última aula quatro dias antes, numa quinta-feira, dia 8 de outubro. Foi quase perfeito.

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