quinta-feira, 16 de setembro de 2010

O germe da modernidade


A título de introdução, se fôssemos simplificar a história da literatura, aliás, se fôssemos mais direto ao ponto, diríamos que só existe clássico e moderno. No caso da poesia, para ser mais preciso na questão, a modernidade começa com os românticos, que prepararam o terreno para gente como Baudelaire. Este foi o combustível de Rimbaud e Mallarmé, os mestres da poesia moderna, segundo muitos teóricos.

É claro que para trás e para frente, há nomes importantes que servem ou de lastro ou de faísca instigante dessa engrenagem toda. No caso do lastro, bem antes de Edgar Allan Poe, figura essencial para Baudelaire, existiu Jean Jacques Rousseau (1712 - 1778), que – junto com Denis Diderot e seu livro O sobrinho de Rameau – foi seminal para a poesia romântica.

Nos dois últimos anos de sua vida, Rousseau se debruçou num livrinho chamado Os devaneios do caminhante solitário (L&PM Pocket, 2008, 140 páginas, tradução de Julia da Rosa Simões), onde se encontra a primeira grande valorização do tempo subjetivo, em que o narrador mistura magistralmente realidade e fantasia.

O livro é dividido em dez capítulos que o autor chama de caminhadas. Cada uma delas segue ruas parisienses, por onde o velho Rousseau mergulha na observação de plantas e topografias enquanto faz suas reflexões, exilado da sociedade. É algo semelhante ao que ele fez em Confissões, mas com a diferença de não ser criterioso o bastante para não divagar.

Entre os vários exemplos de costura de realidade com fantasia está a história de seu atropelamento por um cachorro. É um caso divertido e surreal, que brota dentre uma reflexão e outra de sua vida social e a anátema eterna do filósofo suíço contra a ‘súcia intelectual’ de sua época.

Às seis horas, estava descendo de Ménilmontant, quase em frente ao Galant Jardinier, quando, de repente, as pessoas que caminhavam à minha frente se afastaram e vi se lançar sobre mim um grande cão dinamarquês que, avançando veloz na frente de uma carruagem, não teve tempo de parar sua corrida ou desviar ao me ver. Calculei que a única maneira de evitar ser atirado ao chão era dar um grande salto, tão preciso que o cão passasse por baixo de mim enquanto estivesse no ar. Essa ideia, mais breve que o relâmpago, que não tive tempo nem de considerar nem de executar, foi a última antes do acidente. Não senti nem o golpe nem a queda, nem nada do que se seguiu até o momento em que voltei a mim.

Intensidade lírica

Esse exemplo per se não configura a influência que lhe é atribuída, é verdade. O tempo interior reforça o lirismo, e é este fator, que fomenta o culto ao sujeito, que penetra fundo a alma do romântico. Enquanto caminha em seu devaneio, enquanto imagina as caminhadas, Rousseau imagina também uma sucessão de acontecimentos e de elementos que preenchem a realidade no seio da fantasia.

Enquanto se exilava da sociedade, fugindo das pessoas, mas também da realidade vivida, Rousseau sugeria novas possibilidades de fuga do real. Esta é uma de suas principais contribuições à lírica moderna.

Via a mim mesmo no declínio de uma vida inocente e desafortunada, a alma ainda repleta de sentimentos vivazes e o espírito ainda ornado de algumas flores, murchas pela tristeza e ressequidas pelos desgostos. Sozinho e abandonado, sentia chegar o frio das primeiras geadas, e minha imaginação esgotada não mais povoava minha solidão com seres criados por meu coração. Dizia a mim mesmo, suspirando: o que fiz neste mundo?

Segundo Hugo Friedrich, em A estrutura da lírica moderna, “a intensidade lírica com a qual Rousseau se abandona ao tempo interior, em particular a sua disposição para uma alma adversa ao mundo circunstante, teve uma força que preparou o caminho à poesia futura, que não podia advir das anteriores análises filosóficas sobre o tempo.”

Romantismo desromantizado

É claro que isso trata de uma corrente teórica. Michael Hamburger, em seu A verdade da poesia, cria um contraponto interessante e convincente ao que diz Friedrich e sua visão exclusivamente simbolista. Em todo caso, Rousseau ajudou a reforçar novas categorias estéticas. Quem ler Sylvie, de Nerval, vai notar que seria impossível aquele romance romântico sem Rousseau.

O tempo interior puxou novas categorias de beleza, que antes estavam à margem, mas que com a distorção do real se tornaram essenciais. Com Victor Hugo, por exemplo, foi exaltado o grotesco, ao lado do sublime. Depois veio Baudelaire, sob influência de Edgar Allan Poe e deixa de sublimar a realidade, passando a distorcê-la, fragmentá-la ainda mais, com procedimentos em que os autores dão mais ênfase na linguagem do que no conteúdo.

Com essas novas ferramentas, técnicas inovadoras da arte de forjar a palavra, tendo como reguladores a fantasia e o devaneio racionalizado, Rimbaud e Mallarmé abriram o caminho para um tipo novo de poesia. As características operativas são as mesmas do romantismo, mas sem a valorização do eu, sem o engrandecimento do sujeito dentro da lírica. Por isso mesmo, Friedrich chama a lírica moderna de romantismo desromantizado.

A poesia do século XX foi feita quase toda seguindo esses procedimentos. Sonho e fantasia, o fragmento do real, o grotesco, procedimentos que nivelam o belo e o feio, o incompleto, o desarmônico, todos fazem parte da lírica moderna, cuja semente Rousseau ajudou a plantar.


Serviço

Título: Os devaneios do Caminhante Solitário
Autor: Jean-Jacques Rousseau
Editora: L&PM Pocket, 2008, 140 páginas
Preço: R$ 10,00

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