segunda-feira, 26 de outubro de 2009

A MINHA ALMA É IRMÃ DE DEUS: o jazz da dor e a evocação do Recife


Será que ao terminar de escrever A minha alma é irmã de Deus (Record, 2009) Raimundo Carrero chorou? O livro conta a história de Camila, uma mulher marcada pelo sofrimento da solidão, mesmo quando está acompanhada de Leonardo, saxofonista e pastor de uma seita chamada Os soldados da pátria por Cristo, que a adotou em seus 12 anos. Ela morava com ele, menina que virou mulher e viveu uma vida de delírio e miséria até o fim.

Primeiro Camila se prostituiu. Mesmo ao ser abandonada por Leonardo, vendeu e doou seu corpo enquanto pôde. Mas quando envelheceu demais, teve de catar papelão, puxando uma carroça, para sobreviver.

Nesse momento de velhice, ela busca os fios da memória para reconstruir uma identidade de dor, de exclusão, de uma menina que foi abusada sexualmente pelo pai, pelo irmão, violentada, explorada, que mendigou, que transou de graça com vários homens querendo ser uma espécie de Madre Teresa de Calcutá do sexo, e que criou vários personagens para aguentar a barra de ser mulher, miserável e sozinha no mundo.

A minha alma é irmã de Deus é mais um romance de Carrero que lança o leitor na tempestade de som e solidão, no improviso do jazz. “Cada emoção tem um pulso”. É a palavra de ordem desse livro, e é também o lema da literatura do escritor pernambucano, nascido em Salgueiro e morador do Recife, cidade que ele canta em todos os livros, e que, em A minha alma, faz desfilar ruas e lugares.

Para retratar a desgraça, o Recife Velho em meio à cidade moderna, uma roçando a outra. Praça da Independência, praça Chora Menino, avenida Rosa e Silva, avenida Conde da Boa Vista, rua Primeiro de Março, a calçada que margeia o Rio Capibaribe e a avenida Manuel Borba, “com todas aquelas árvores imensas, grandes árvores, e barulho de carros, ônibus, motos.”

Para desfilar a miséria, a ponte Maurício de Nassau e as ruas do bairro de São José (bairro em ruínas), o Marco Zero da cidade, a avenida Alfredo Lisboa, a Torre Malakoff e a rua Bom Jesus, “com inúmeros bares, cadeiras nas calçadas junto a muitas mesas.”

O Recife de Carrero, em A minha alma é irmã de Deus, é a “cidade de pessoas que se atropelam, não falam, bate-que-bate uma nas outras.” É a cidade com seus bares, lanchonetes, bancas de revistas e barracas de coco. É o desenho da pobreza desfilando pelos bairros do Jiriquiti e Progresso, pela avenida Martins e Barros, a rua Siqueira Campos, em frente à Secretaria de Educação, nos fundos do Banco Central, a rua do Sol e a praça da Independência, “onde prostitutas marcavam ponto.”

O leitor lê e se emociona. Será que Carrero chorou? Ruas Visconde de Goiana, José de Alencar, Barão de São Borja, Pátio de Santa Cruz. O Recife Velho, com “ruas quietas, abandonadas e solitárias, ainda com pedras no calçamento, estreitas, as ruas eram estreitas, e tão esquecidas que os cachorros do domingo nem se lembravam de passar por lá.”

A voz soa o som do ser, escondido na máscara da existência. Camila quis ser outras, foi muitas como uma multidão, mas no fim da vida diminuiu, antes de morrer. Primeiro diminuiu, tornou-se uma, apenas mais uma na multidão. Mas havia, para Camila, e ainda há para as outras mil e uma Camilas que ainda existem, a manhã do Recife, “esta manhã cheirosa, os cheiros das frutas e o cheiro das comidas nas casas.”

Quando terminou seu livro, Carrero chorou?

2 comentários:

whisner disse...

Gosto dos livros do Raimundo Carrero. Ainda não li este, mas vou atrás.

Gilberto G. Pereira disse...

Pois é, Whisner. Ele também não faz concessão ao leitor. É o que vocês dois têm em comum, né.
Um abraço!