Muita gente já ouviu a seguinte charada: “Qual o ser que anda de manhã com quatro patas, ao meio-dia com duas e, à tarde, com três e que, contrariamente à lei geral, é mais fraco quando tem o maior número de membros?” A resposta também é sabida de todos: o homem.
O que poucos sabem é que esta espécie de ‘o que é o que é?’ vem de uma das mais famosas histórias da Grécia Antiga, o mito de Édipo. O enigma fora proposto pela Esfinge, monstro dotado de asas, com rosto e seios de mulher, patas e caldas de leão, que havia se plantado próximo à cidade de Tebas, matando aqueles que não conseguiam decifrar sua intrigante questão.
O único a responder corretamente a pergunta é Édipo, natural da cidade, mas que havia sido levado de lá ainda bebê. Na viagem de regresso à terra natal, Édipo encontra-se com Laio, o rei de Tebas, se desentende com ele e o mata, sem saber que este era seu pai.
Em seguida, decifra o enigma, sagra-se herói tebano e se casa com a própria mãe, a rainha Jocasta, num enredo que inspirou Sigmund Freud a criar o principal símbolo da psicanálise, o complexo de Édipo.
Esses dois exemplos mostram como a mitologia grega continua incrustada no imaginário humano, atravessando séculos até chegar à sociedade ocidental contemporânea, pelo viés popular e pela veia erudita. Longe de se comparar à Esfinge, a pergunta que se faz agora é: qual é a importância da mitologia grega, no princípio do século XXI?
De acordo com o professor de filosofia da Universidade Federal Fluminense, Marcus Reis, a importância dos mitos gregos na contemporaneidade se dá pela capacidade que eles têm de oferecer elementos simbólicos. “É uma diversidade riquíssima em histórias que ilustram o comportamento humano, social e individualmente, e sua relação com a natureza”, diz.
Um exemplo alegórico é o mito de Prometeu, imortal que gostava de viver na terra e que roubou a centelha do fogo celeste para reanimar os mortais, dando-lhes a inteligência divina. Os humanos gostaram, mas Zeus, o deus dos deuses, não achou graça na atitude de seu primo e voltou-se contra ele e a humanidade.
A primeira atitude foi acorrentar Prometeu a uma rocha, aonde todas as tardes uma águia vinha comer-lhe o fígado. Segundo a medicina, este é o único órgão humano que se regenera. Os gregos já sabiam disso. Todas as manhãs, o fígado de Prometeu estava regenerado, e a águia voltava à tarde para devorá-lo novamente.
Depois de devolver a humanidade à ignorância eterna, Zeus foi pedir a Hefesto, o deus do fogo e das forjas, o gênio do Olimpo, para criar uma bela mulher e enviá-la à Terra. Hefesto forjou Pandora, uma linda figura feminina, de corpo escultural, e mandou para os mortais junto com uma caixa misteriosa que não podia ser aberta.
Mas Epimeteu, o irmão de Prometeu, se apaixonou por Pandora e pediu a ela que abrisse a caixa, de onde todos os males foram libertos, doenças, desgraças, pragas e dores. Zeus, no entanto, mandou fechá-la a tempo de deixar dentro a esperança, o último refúgio dos homens.
A lição deste mito vai além da mera especulação moral sobre a desobediência e alcança o valor do senso de observação. Segundo a etimologia, Prometeu significa ‘aquele que pensa antes’, daí vêm palavras como ‘prudente’ e ‘previdente’. Já Epimeteu significa ‘aquele que pensa depois’. Ou seja, antes de agir, é preciso ter em mente a noção exata do que será feito para não chorar as mágoas tardiamente, como o fez Epimeteu junto com toda a humanidade.
A função do mito
Nos últimos dois séculos, as mentes mais brilhantes da história do pensamento ocidental, de uma forma ou de outra, se ocuparam da mitologia grega para pensar a sociedade e a cultura. Além de Freud, estudiosos como Friedrich Nietzsche, Roland Barthes, Joseph Campbell, Carl Gustav Jung, entre outros, usaram os mitos como ferramenta.
No universo das artes, as narrativas gregas também aparecem com grande destaque, tanto no teatro como no cinema, na literatura, na pintura e até na música. Duas canções de Chico Buarque são exemplos dessa fonte de saber, Mulheres de Atenas e A gota d’água. Esta última fez parte da trilha sonora de uma versão de Medeia, mito que deu origem à peça homônima de Eurípedes.
Segundo o professor de Língua e Literatura Grega na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Trajano Vieira, a mitologia grega é uma espécie de lençol freático do saber, que continua a irrigar os pensamentos mais férteis da civilização ocidental. “Há uma tensão na estrutura do panteão olímpico que se assemelha de algum modo a experiências políticas e afetivas pelas quais passamos ao longo da vida”, diz.
Neste sentido, os mitos servem para traduzir os traumas da existência. É um saber rico em modelos de representação, de fenômenos psicológicos que podem acontecer em indivíduos ou no próprio corpo social, com a vantagem de não ser institucionalizado como verdade religiosa.
De acordo com Junito de Souza Brandão (1926 – 1995), na obra mais elementar sobre o assunto em língua portuguesa, Mitologia Grega, reeditada pela Editora Vozes em 2009, o mito é a narrativa de uma criação, e sua função é expressar o mundo e a realidade humana. “Isso se faz por meio de uma representação coletiva, que chegou até nós através de várias gerações.”
O psiquiatra e analista junguiano Carlos Byington, que prefacia o primeiro volume de Mitologia Grega, diz que os símbolos presentes em qualquer cultura são uma espécie de pegadas impressas ao longo de todo o caminho da humanidade. “Estes símbolos são as crenças, costumes, as leis, as obras de arte, o conhecimento científico, os esportes, as festas, tudo que forma a identidade cultural”, diz ele.
Mas esse rio de imagens míticas, de histórias registradas por poetas e dramaturgos e discutidas por filósofos e psicólogos, deságua num oceano de respostas que não cabem numa vida. Segundo Joseph Campbell em seu livro O herói de mil faces, não há um sistema definitivo de interpretação dos mitos.
Campbell compara a mitologia ao deus Proteu, que “jamais revela, mesmo ao mais habilidoso formulador de perguntas, todo o conteúdo de sua sabedoria.” Certamente esta é uma das características que deixam claro por que até hoje a Grécia que vem à cabeça da maioria é aquela de 40 séculos atrás, quando os mitos corriam pelo imaginário de seus nativos como verdade absoluta.
Hoje, não importa se esses personagens existiram ou não. A força de sua verdade está no significado simbólico, na atribuição que se dá a cada elemento narrado e na relação que se faz com a conduta humana encontrada ali.
(Gilberto G. Pereira. Texto publicado originalmente no jornal Tribuna do Planalto, em 2009)
De acordo com Junito de Souza Brandão (1926 – 1995), na obra mais elementar sobre o assunto em língua portuguesa, Mitologia Grega, reeditada pela Editora Vozes em 2009, o mito é a narrativa de uma criação, e sua função é expressar o mundo e a realidade humana. “Isso se faz por meio de uma representação coletiva, que chegou até nós através de várias gerações.”
O psiquiatra e analista junguiano Carlos Byington, que prefacia o primeiro volume de Mitologia Grega, diz que os símbolos presentes em qualquer cultura são uma espécie de pegadas impressas ao longo de todo o caminho da humanidade. “Estes símbolos são as crenças, costumes, as leis, as obras de arte, o conhecimento científico, os esportes, as festas, tudo que forma a identidade cultural”, diz ele.
Mas esse rio de imagens míticas, de histórias registradas por poetas e dramaturgos e discutidas por filósofos e psicólogos, deságua num oceano de respostas que não cabem numa vida. Segundo Joseph Campbell em seu livro O herói de mil faces, não há um sistema definitivo de interpretação dos mitos.
Campbell compara a mitologia ao deus Proteu, que “jamais revela, mesmo ao mais habilidoso formulador de perguntas, todo o conteúdo de sua sabedoria.” Certamente esta é uma das características que deixam claro por que até hoje a Grécia que vem à cabeça da maioria é aquela de 40 séculos atrás, quando os mitos corriam pelo imaginário de seus nativos como verdade absoluta.
Hoje, não importa se esses personagens existiram ou não. A força de sua verdade está no significado simbólico, na atribuição que se dá a cada elemento narrado e na relação que se faz com a conduta humana encontrada ali.
(Gilberto G. Pereira. Texto publicado originalmente no jornal Tribuna do Planalto, em 2009)
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