segunda-feira, 14 de junho de 2010

“Não sou guerrilheira”

Nesta segunda-feira, uma matéria do jornal Folha de S. Paulo mostrou a continuidade de uma luta travada já há alguns anos pela tradutora e blogueira Denise Bottmann, que denuncia casos de plágio de tradução em algumas editoras brasileiras.

Pessoalmente não tenho nada a ver com o trabalho dela, sequer li alguma vez sua tradução, algo que talvez até denuncie minha pouca leitura nesta vida. O que leio de vez em quando são as dicas e comentários de traduções em seu blog Não gosto de plágio. Acho bacana esse combate via blog.

A matéria em questão cobre o fato de a editora Landmark ter sido acusado de plágio por Denise. A editora, por sua vez, a processou. E o quiproquó se fez. Mas o que me chama a atenção e que me faz postar este pequeno comentário é que em entrevista à Folha o editor Luiz Fernando Emediato, que também está envolvido nas acusações de Denise (não em relação à Geração Editorial, que é dele, mas sobre a editora Jardim dos Livros, da qual é sócio) faz uma observação de má fé, a meu ver.

Na matéria da Folha, Emediato afirma que Denise “não é boa tradutora, mas uma ativista”, e diz: “acho que ela faz a coisa certa, mas de maneira errada. Jamais trabalhará para nós.” Este “jamais trabalhará para nós” parece ser desnecessário e um tipo de intimidação também, embora não seja ilegal. Mas a matéria não diz que Denise já pediu emprego para ele.

E é isso que me deixou indignado, mesmo sem ter nada a ver com o peixe. É assim que figurões vivem, pensam e agem? Parece ser um recado: “Olha, para as editoras sobre as quais eu tiver influência, de amizade ou de participação de comando, você jamais trabalhará.”

Segue abaixo, copiado e colado, uma sequência de declarações de Denise, em matéria assinada por Fábio Victor. Não dá para ser apenas um trecho:


"MINHA HISTÓRIA DENISE BOTTMANN, 55
São Paulo, segunda-feira, 14 de junho de 2010

guerrilheira antiplágio

(...)Não existe uma tradução igual a outra. E é por isso que um tradutor é considerado um autor
(...)Compro um exemplar, comparo e vejo que são iguais, que é plágio. Publico no blog
(...)Não tomaram providência, entro no Ministério Público


FABIO VICTOR
ENVIADO ESPECIAL A REGISTRO (SP)


Uma vez, no Orkut, o tradutor Saulo von Randow Júnior comentou que tinha pegado um volume do "Ivanhoé", do Walter Scott, publicado pela Nova Cultural em nome de um fulano de tal qualquer e descobriu que a tradução era idêntica à do Brenno Silveira.

Depois descobri que desde 2001, 2002 Alfredo Monte e o poeta e crítico Ivo Barroso já denunciavam a prática de plágio. Logo a seguir [em 2007], a Folha publicou uma matéria grande sobre a Martin Claret e os plágios [de tradução] de "Os Irmãos Karamázov" [de Dostoiévski] e "A República", de Platão.

Comparei outros volumes da Nova Cultura com a Abril Cultural, tinham nomes diferentes de tradutores e o texto igual. Ôpa, peraí. Dois livros numa coleção só: vamos ver se tem mais. Assim comecei.

Num egroup de tradutores, o pessoal ficou revoltado com essa história toda, e surgiu um blog, "assinado-tradutores". Por divergências internas, saí. Em novembro de 2008, criei o naogostodeplagio.blogspot.com.

TRADUTOR É AUTOR

Não existe uma tradução igual a outra. E é por isso que um tradutor é considerado um autor, é por isso que a legislação, do Brasil e do mundo inteiro, desde 1880, diz que tradutor é autor.

Tendo esse pressuposto, vem a pesquisa sistemática. Você pega "A Divina Comédia": quantas traduções existem? Eu tenho "A Divina Comédia" pela Abril Cultural, com tradução de Hernâni Donato. Como será essa tradução da Nova Cultural em nome de Fábio M. Alberti?

Compro um exemplar, comparo e vejo que são iguais, que é plágio. Copio trechos e publico no blog.

Só passo de uma editora à outra depois de ter esgotado aquele catálogo. Leva umas quatro horas por dia, e uns 15 dias pra eu detectar -até ir atrás, pesquisar as várias traduções existentes, encomendar, receber, comparar e chegar a uma conclusão. Antes de publicar, entro em contato com as editoras. Aí entro no site das livrarias para ver se tiraram de circulação.

Não tomaram providência, entro com pedido de representação no Ministério Público. Tenho 15 pedidos.

Já denunciei 110, 120 casos de plágio, documentados no meu blog. De 16 editoras.
No caso da Landmark, fui avisada [de suposto plágio da tradução] da "Persuasão", de Jane Austen, e do "Morro dos Ventos Uivantes", de Emily Brontë.

Entrei com representação contra a Landmark em maio [de 2009], e em setembro eles entraram com ação contra mim, contra a [blogueira] Raquel Sallaberry, porque deu o link para o meu post, e os provedores dos blogs. Recebi [a notificação] em fevereiro.

MANIFESTO

E aí foi muito bonito, porque alguns colegas -Jório Dauster, Ivo Barroso, Ivone Benedetti e Heloísa Jahn- escreveram um manifesto em minha defesa, que teve quase 3.000 assinaturas.

A Landmark pediu a remoção imediata do blog, aí a coisa se abriu mais, porque pegou a liberdade de expressão na blogosfera -e quem disse isso foi o juiz que indeferiu o pedido de liminar.

Seria uma intimidação a mais -já sofri tanta. Foram duas da Martin Claret, uma notificação extrajudicial, pela editora, e uma ação do sr. Martin Claret -esta o juiz julgou improcedente, eles recorreram e perderam. Agora só cabe recurso no Supremo.

Tive uma intimidação do sr. Luiz Fernando Emediato [denúncia de três livros plagiados pela Jardim dos Livros, da qual ele é sócio].

A AMARRAÇÃO

Era difícil no começo entender a amarração da coisa. Hoje entendo que é uma consequência razoavelmente direta da lei do direito autoral de 1998, a lei 9.610.

Porque [as obras plagiadas] são basicamente obras cujo original está em domínio público e cujas traduções no Brasil estão esgotadas -de editoras que fecharam ou que foram compradas.

Mas são traduções que estão protegidas pela lei, que determina que as obras só podem entrar em domínio público decorridos 70 anos após a morte do autor.

SEM XEROX, COM PLÁGIO

Essas obras são o quê? Platão, Aristóteles, Max Weber, Kant, Hobbes, Locke... São para o público universitário. São obras que até existem nas bibliotecas das universidades, são bibliografia em ciências humanas. Só que são esgotadas, e a lei de 1998 proibiu o xerox.

Das 16 editoras [que pesquisei], apenas duas praticavam plágio antes de 98. Tenho a maior clareza que foi a proibição do xerox que criou um mercado líquido e certo.

Vêm os espertos, pegam essas traduções que ninguém mais lembra, porque são dos anos 30, 40, 50, crau, mudam o nome, publicam e vende que nem pãozinho quente. Cinco, dez, 20 edições, reedições. Os tradutores estão mortos, as editoras estão fechadas, as que não estão fechadas poucos se interessam, os herdeiros dos tradutores não estão nem aí.

Não faço isso por interesse profissional ou por categoria. É que eu tenho 55 anos, sou pré-internet. E junta minha formação de historiadora e a ideia de que a cultura não se constrói num estalar de dedos. O português é uma língua secundária, o Brasil é um país que depende essencialmente de tradução, quer dizer, a tradução não é só uma tradução. Basta pegar quem são nossos tradutores: Machado, Bandeira, Drummond, Cecília Meirelles.

QUEBRA-CABEÇAS
Uma coisa que gosto muito é o desafio mental, intelectual, algo meio competitivo de você consigo mesmo. É quase um jogo, uma espécie de quebra-cabeças.

Tenho uns 80 livros traduzidos, de inglês, francês e italiano, sempre em humanidades, história da arte -não faço tradução literária nem técnica. Trabalho para três editoras: Companhia das Letras, Cosac Naify e L&PM.

Não, guerrilheira não. Uma vez eu me referi ao nao gostodeplagio como um blog de combate.
Entro com representação nos casos de quem não dá satisfação. A Nova Cultural relançou uma edição especial da "Divina Comédia", ressarciu tradutores. Tenho a satisfação de dizer que de seis a oito editoras retiraram [as edições plagiadas]. Eu escrevo, telefono, falo. Você tem resultados concretos. É isso que me permite continuar."

terça-feira, 8 de junho de 2010

Só a arte salva




A drinking song

Wine comes in at the mouth
And love comes in at the eye;
That’s all we shall know for truth
Before we grow old and die
I lift the glass to my mouth,
I look at you, and I die.


W. B. Yets


Só a arte é capaz de salvar, e talvez por isso, sendo espelho da arte, a Psicanálise tenha ajudado tanto o Ocidente a se redimir de suas culpas, construídas, na maioria das vezes, pelos princípios cristãos, dentro dos quais eu mesmo – ainda que ateu, agnóstico, cético, desembestado, cristão revoltado, ou qualquer coisa – estou inserido até a medula.

Eu mesmo tenho as minhas culpas. Eu mesmo tenho as dores do mundo em minha alma. Sinto o peso do universo inteiro sobre meus ombros, porque acho, em quase certeza, de que o universo conspira contra, porque no cavalgar de minha vida quixotesca sempre vi donzelas em perigo e tratores imensos de descaso passando por cima dos meus.

A arte salva, não porque seja o Novo Cristo, mas porque carrega consigo um interminável gama de recursos de linguagem e de compreensão, que ultrapassa a lógica formal, e que por isso é tida como veículo da emoção, mais até, representante de um tipo de conhecimento sem núcleo, ou seja, sem a coerência repressora. “Não me exijam coerência, sou um artista”, teria dito Glauber Rocha.

Mas a arte, o arco e a lira, a arte, o ar e o fogo, a arte queima e purifica, forja nos moldes da água. A arte salva em seu discurso, vão, louco, logos descabido e só aos loucos destinado.

Desatinados. É como tratam os que levam a arte a sério, a arte como um campo do saber tão importante quanto a filosofia, a arte que ensina a pensar. Por isso mesmo chamaram Heidegger de imbecil, porque colocou poetas e filósofos lado a lado, como se um não voasse sem o outro, e não voa.

Heidegger, raio rápido que racha a árvore ao meio, a árvore do saber, dentro da qual está a casa do ser, dentro da qual mora o homem, inquilino do ser, não qualquer um, mas filósofos e poetas.

Vinicius lia Nietzsche como o mais inspirado dos poetas em Assim falou Zaratustra. E era. Nietzsche queria ser músico. Se fosse um deus, seria Dioniso, aquele que dança. O mais louco dos deuses, gênio do entusiasmo, da transformação, das máscaras, do êxtase, do fora de si, antiapolíneo, antirracional, antissol, noturno, visceral, morador por anos a fio das cavernas mais profundas, para depois submergir em dias claros, para dominar Apolo e pular de alegria no espaço luminoso do carnaval.

Dioniso é a parte da arte mais verdadeira. Embora precise do mar, da praia e do sol. Embora todos os deuses ligados à desconstrução do ser racional, para a criação de outro eu, mais equilibrado entre a noite e o dia, sejam fulminados, como foi Dioniso.

O que será então do novo deus Lacan, que retirou do túmulo anunciado a teoria de Freud e jogou nela Heidegger, e inoculou Nietzsche, o arco recurvo de Heráclito em rios soturnos?

Só a arte é capaz de salvar. Mas salvar do quê?

terça-feira, 1 de junho de 2010

Morre Wilson Bueno

Wilson Bueno (1949 - 2010)

Aos 61 anos de idade, o escritor paranaense Wilson Bueno foi encontrado morto em sua casa, em Curitiba, na noite de segunda-feira, 31. Passei um tempo querendo entrevistá-lo, e sempre adiava. Agora, o adiamento se estende à eternidade.

Um de seus livros mais expressivos, do ponto de vista literário, é o romance Meu tio Roseno, a cavalo, de 2000. Ali, Bueno cria uma espécie de geografia poética do interior do Paraná, à medida que o cavalo avança. O narrador, sobrinho de Roseno, conforme diz o título, descreve num plano a aventura do herói na volta para casa a fim de ver sua filha nascer, e em outro plano, narra as atrocidades de uma guerra fictícia, a Guerra do Paranavaí, que pode ser a sangrenta Revolta do Contestado, embora as datas não coincidam.

Roseno tinha de chegar a Ribeirão do Pinhal a tempo de assistir ao nascimento da filha, Andradazil. Ele então viaja 50 léguas e meia em sete dias.

Em homenagem a Bueno, eis aqui uma pequena mostra de sua lavra:

Com o entardecer que faz sobre a cabeça, mais um motivo para compreender tudo, e o que este céu tem para dizer, agora que imensas as nuvens se estiram, dourado-velhas, chumaços coral e âmbar, aqui ali desmaiando num quase lilás ou ascendendo às tintas de roxo supremo, transgressor.

E foi como que sob o segundo entrecéu desta história trotada no vento, cavalo e cavaleiro, a lagoa e o grasnar de seus batráquios, e todo o universo ainda antes de Andradazil, florestas e árvores, capim e água, cruzes e ossos a Xuguari e o Gruxal, como que ao segundo entrecéu desta lenda molhada de rios, tocado pelo movimento das nuvens e da lua, oblíquo e suspenso debaixo do firmamento, o mundo inteiro andasse.

No valoroso romance Chá das cinco com o vampiro, de Miguel Sanches Neto, em que o autor cria personagens com características de escritores paranaenses, Bueno aparece como Uílcon Branco, um escritor de comportamento pouco elogiável e dono de uma literatura ausente de verdade. Sanches Neto, que é do interior do Paraná, assim como Bueno, embora de cidades diferentes, não quis ou não soube reconhecer o valor literário de seu conterrâneo.

Entre seus livros também estão A copista de Kafka, Amar-te a ti nem sei se com carícias, Cachorros do céu, e um livrinho de tankas (gênero de poesia japonesa) chamado Pincéis de Kyoto, que eu ainda estou sorvendo como quem bebe um cálice do mais precioso vinho.

segunda-feira, 31 de maio de 2010

O deus brincalhão

“Caminhou contra as línguas de fogo. Estas não morderam sua carne, estas o acariciaram e o inundaram sem calor e sem combustão. Com alívio, com humilhação, com terror, compreendeu que ele também era uma aparência, que outro o estava sonhando.” Jorge Luis Borges (As ruínas circulares)


“No princípio era o verbo, e o verbo estava com Deus, e o verbo era Deus. (...) E o verbo se fez carne e habitou entre nós.” Embora haja semelhanças, Este que aparece no Evangelho de João não é o deus crivado nas palavras da mais recente publicação do mineiro Whisner Fraga, O livro da carne (7 Letras, 2010, 80 páginas). Aqui, quem reina é um deus brincalhão, embora também saiba dar sua cota de tragédia e drama. É um deus cheio de poesia mundana, atada por tiras de fibra sagrada.

Mas também a Bíblia é um longo poema da criação, alguém pode argumentar com autoridade. E por isso mesmo, ao largo dos versos de Fraga, o sujeito poético, neste caso, o próprio deus, está imbuído de propriedades divinas do Velho Jeová e até de Cristo. No entanto, o espaço lúdico construído na geografia poética de O Livro da Carne oferece uma multiplicidade de sonhos e desejos, um turbilhão de rebeldia e senso de desconstrução, que vão além desses deuses ultrapassados.

Não é raro, neste livro insólito, o leitor se deparar com versos que renegam a velha tradição, ou que retiram dela o substrato de sua verdade, para recriar a vida, para partir praticamente do zero e criar de novo os ossos, os nervos, a carne, e talvez a inteligência. Mas aí já é exigir demais de um deus.

Os poemas são uma espécie de receita, ou ordem, conselho, todos nascem do imperativo, todos giram em torno de verbos no infinito, que é a potência determinante da linguagem verbal. “Empalhar deuses”, diz um verso. “Tolerar as feridas chamuscadas de lodo/ De deuses sem fé/ E sem divindade”, dizem outros versos. “Dois deuses cochilam no assoalho do criado”, observa o sujeito poético em outro poema.

Em “Roteiro para empreender a fuga”, vemos um exemplo de como a ideia de evangelho, ainda esconsa no testamento anterior, está inserida, como quem faz o mesmo caminho messiânico já conhecido, só que em outra dimensão. “Reter o vão/ Chacoalhar guizos de canduras/ Afivelar saudades/ Olhar derradeiro as disposições dos trigos/ recolher as tranças das rosas/ Beirar a ânsia de conter o então/ E depois.”

O desfecho do poema, que pode sugerir Moisés e seu séquito, é cheio de graça mundana, cheio de riso, quase uma pilhéria, mas, ao mesmo tempo, carregado de perplexidade e uma vontadezinha de ficar, de não ir embora: “Levar também a chave/ Para um possível retorno.”

Os títulos de cada poema são índices voltaicos que ajudam o leitor a penetrar o universo da criação desse deus que muitas vezes é puramente infantil, um deus menino. “Receita para dividir o vento”, “Roteiro para edificar o nada”, “Para ninar espíritos”, “Para prolongar infâncias”. É assim que vemos um desfile de propostas nascentes.

O arco e a lira

Uma dessas propostas explora com vigor poético a imagem de um personagem caro ao Deus hebreu e cristão, mas que também não tira o pé do terreno infantil, do imaginário de uma infância altiva e que já sabe planejar. É um poema que vale ser posto em sua totalidade aqui para a devida apreciação:

“Para escolher forquilhas”

Optar pelo galho mais alegre
De goiabeira de fim de cinza
De noite arredia
E sacis xeretas
Enfim se decidir pelo corte:
Improvável cumprir completo a vida
Esticar braços condoídos
Para teste da melhor goma
E divertir dos amigos
A penúltima manhã amarela
Não alvejar canários ou azulões
Nem estrelas
Acolher o travesseiro o estilingue
Ao presságio de outras guerras.


Quem traça esse plano não é um garoto, mas é. É e não é. É um deus menino que parece dar à luz a infância de um guerreiro, cuja primeira arma é o estilingue. Uma funda. Estamos diante de um vir-a-ser de Davi. É a recriação de um guerreiro caro a Jeová, por que ele soube conduzir o povo de Israel, embora tenha sido controverso e tenha decepcionado seu Senhor.

Este Davi, tal como aparece aqui, não está na Bíblia, claro, é fruto do novo deus. Mas seu futuro é vencer outro Golias. Sua tarefa é dormir e sonhar com a batalha e a vitória que virão. O que deve ser enxergado nesse poema, como construção poética, é essa imagem buscada, ou rebuscada, entre os objetos de infância do poeta, mas não só isso, entre elementos da cultura brasileira, do imaginário da cultura popular tupiniquim.

É bom lembrar que a literatura de Fraga faz dos mitos uma ferramenta afiada para esculpir os signos atuais. Nestes poemas de O livro da carne, o que vemos é uma extensão temática de sua prosa. Muitos versos remetem a personagens e situações já trabalhadas em livros anteriores, como Helena, que está em Abismo poente.

Sua marca segue a tradição poética. Não se alcança o significado polissêmico proposto sem a perseguição do ritmo e a disposição das palavras, suas formas dançantes e troca de sílabas ressoantes entre uma palavra e outra. Esta poesia, cheia de brincadeiras, esta experimentação poética, como um deus que brinca de criar, tem muito daquilo que se chama de sentido logopeico, em que se fincam significados substanciais.

Abismo

A denominação conceitual trabalhada por Ezra Pound nos ajuda, e muito, a fixar significados aqui. Em O livro da carne, além dos recursos vocabulares, há também a riqueza da melopeia (musicalidade) e, principalmente, a exploração fosfórica da fanopeia (condensação poética que forja o significado por meio da sugestão de imagens), porque é por ela que encontramos as figuras mais fulminantes deste livro.

Como em “Receita para tolerar a miséria do voo”:

Contra o viço e o alvoroço resedá
A transição do peito engatilhado
Atenuar a voracidade do húmus
O hostil e inquieto rumor de precariedades
O disparo vermelho
O tambor com seus desgostos giratórios
E o projétil da vez
O pulso mortificado pelo curso vacilante
Que já nem denuncia uma pista da vida
Como urubus camicases.


Depois de várias receitas sobre como criar um novo mundo de gente mais humana, resgatando um projeto divino que falhou, que malogrou entre todos os deuses do passado, o sujeito poético aparece com uma receita de acabamento final, uma sugestão de suicídio. “Receita para tolerar a miséria do voo” é, por isso mesmo, um dos poemas mais interessantes do livro, porque chega como uma espécie de abertura para o abismo da existência, porque emerge como chave para fechar o que havia sido aberto como possibilidade.

Em todo O livro da carne, as temáticas rondam os poemas como uma engrenagem de moinho. No entanto, o mais interessante é que muitas vezes as palavras dançam no interior do poema, como acontece em “Receita para tolerar a miséria do voo”. O desenho do suicídio vai surgindo justamente nessa dança fúnebre dos vocábulos.

Além do metralhar onomatopaico de ‘contra, alvoroço, transição’, e inversões silábicas entre ‘atenuar’ e ‘voracidade’, o leitor segue o drama macabro com os termos “peito engatilhado”, “rumor de precariedades” (que é a própria vida), “disparo vermelho”, “tambor” (do revólver), “projétil” e a execução final, em que o pulso fenece e já não há mais vida.

Os últimos versos desenham bem a beleza mortífera do poema: depois do tiro, o pulso, aquele que poderia conferir a vida, está como urubus camicases. O termo “urubus camicases” faz o leitor levantar os olhos e reparar o título. Ele vê ali “miséria do voo”, e se baixar vertiginosamente as vistas completará “miséria do voo da vida” e sentirá o baque da queda.

Os urubus voam alto, e só descem para saborear a morte dos outros, para comer carcaças, carniças, mas ainda assim, dão pista de vida, pelo menos a deles próprios, ou, em última hipótese, indicam que houve ali uma vida. Mas urubus camicases são urubus suicidas, eles descem do céu, em voos fulminantes, para, hipoteticamente, se racharem no chão. Não há mais nada.

Sopro de verbo

Em O livro da carne, possibilidades são o que não faltam aos poemas, que, junto ao lirismo, oferecem versos de violência e ternura, como quem quer abarcar a vida toda. Tudo é uma tentativa. A começar pela proposta de fazer versos com verbos no infinitivo para quase todas as peças. Entre uma página e outra, há ideias micros e projetos macros. Neste sentido, é um livro repleno de mundos e sonhos, em que a natureza humana se aproxima de novo da Natureza. E a magia, a artimanha, está presente em cada sopro de verbo.

Como autor, Fraga carrega uma luz literária peculiar. Escreve com absoluta consciência. E isso é bom. Para quem gosta de referências, há aqui algo que lembra Manoel de Barros. Mas parece que suas fontes estão num passado mais longínquo, como a Bíblia, a mitologia, as verdades religiosas, desbancadas em cada uma das receitas poéticas.

Estas receitas riem da febre de livros de autoajuda que inundaram o mercado editorial nos últimos anos. Mas também, se seguirmos o ritmo dos versos, sentiremos uma sensação de que estamos orando, fazendo uma prece. São preces poéticas, que acabam contrariando o sentido da vida na religião. É um novo religare. Coisa que se faz muito na literatura. Aliás, no fim das contas, a literatura é isso, uma espécie de religião ao contrário, cujos deuses são humanos demais, próximos demais de cada leitor.

Acompanhando os versos, o leitor pode chegar a uma conclusão. Talvez essas regras, essas recomendações, ou ordens presentes em O livro da carne, sejam para ele mesmo, para o próprio deus propositor da nova existência. Talvez essa escritura seja como bilhetes na porta da geladeira que as pessoas solteiras e que moram sozinhas deixam, na desculpa de ter pouca memória, mas que, no fundo, é para travar um diálogo consigo mesmas, diálogos para espantar a solidão. Todos os deuses estão sós.

(Publicado originalmente no jornal Tribuna do Planalto, 30/05/2010)

Serviço

Título: O livro da carne
Autora: Whisner Fraga
Editora: 7 Letras, 2010, 80 páginas
Gênero: Poesia
Preço: R$ 28,00

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Medo Líquido – a fluidez do terrível


Na Idade Média, o grande medo nascia da escuridão da noite, num tempo ainda longe da eletricidade e dos feixes de clarão das lâmpadas, quando era impossível se enxergar um palmo à frente do nariz. Nos dias de hoje, o medo está no clarão que ofusca os olhos, que também não permite que se veja nada, só se deixa imaginar excessivamente a ameaça da morte, a ameaça da dor e de tudo, tudo mesmo, porque “tudo que dói é possível”, como disse Paulo Henriques Britto, num belo poema sobre a solidão.

Mas aqui o que interessa é lembrar este Medo líquido (Jorge Zahar, 2005, 240 páginas), livro de Zygmunt Bauman, sociólogo polonês que criou o conceito de liquidez sobre a produção humana, vida e coisas, na contemporaneidade. No fim das contas, o medo líquido, o amor líquido, a modernidade líquida, a vida líquida, enfim, que são títulos do mesmo autor, traduzem a ideia de pós-modernidade, em outras palavras. São releituras do pensamento marxista, desde Tudo que é sólido desmanchar no ar, de Marshal Berman.

O bom da leitura das ideias de Bauman, conhecido no Brasil principalmente por O mal-estar da pós-modernidade, é sua capacidade de transitar entre o frívolo e o denso. Ele valoriza os reality shows como manifestação genuína do comportamento humano, algo do qual não se pode fugir. Ele cita Big Brother e similares como indicadores certeiros de nosso mal-estar, de nossa liquidez e de como valorizamos a cultura da eliminação, da exclusão, da extorsão, a punição como norma e a recompensa como exceção.

O mundo líquido mostrado por Bauman é uma espécie de irrealidade dentro da qual estamos mergulhados, porque é um mundo de aparência absoluta, de ameaças que quase nunca se configuram como reais, mas que são alardeadas o tempo todo pelos meios de comunicação, pelos institutos de pesquisa, pelos arqueólogos do patógeno, por todos os ditadores de realidade. E aí temos de aderir ao movimento do inexistente para podermos existir.

“Há muito mais infortúnios sendo proclamados iminentes do que aqueles que acabam realmente ocorrendo”, diz Bauman. No mundo líquido moderno, diz o sociólogo, o discurso é de que “amanhã não pode ser, não deve ser, não será como hoje.” Tudo muda, tudo ameaça mudar, há “um ensaio diário de desaparecimento, sumiço, extinção e morte”. O mundo de hoje chama a atenção a cada instante para nossa fragilidade.

O mundo de hoje, diz o mestre da contemporaneidade, era para ser diferente do da Idade Média, isento de medo, desde o Iluminismo, desde a tomada do poder da ciência frente ao senso comum, ao discurso religioso (arrisco a dizer). Esta era a ideia. Mas vivemos num “imenso cemitério de esperanças frustradas”. Esta é nossa herança. “Vivemos de novo numa era de temores”, diz Bauman.

Além do medo instintivo da morte, da necessidade de sobrevivência, os humanos sofrem outro tipo de medo, o medo de “segundo grau”, o “medo derivado”, argumenta Bauman. Segundo ele, é um “sentimento de ser suscetível ao perigo”.

Os perigos de que se tem medo são de três tipos, segundo o sociólogo: os que ameaçam o corpo e as propriedades; os que rondam a durabilidade da ordem social, “e a confiabilidade nela, da qual depende a segurança do sustento (renda, emprego); e os que ameaçam “o lugar da pessoa no mundo – a posição na hierarquia social, a identidade (de classe, de gênero, étnica, religiosa).”

Como combater esse medo? Como buscar uma nova diretriz de vida em sociedade? O livro de Bauman é belo de se ler, mas sua função é mostrar a face do terrível, não de apontar soluções. Sua sociologia é a da leitura do real, de um tipo de realidade que esvai como a água, que escorre por entre os dedos. O livro de Bauman não mostra o material com o qual se pode fazer o dique.

“Os perigos que tememos transcendem nossa capacidade de agir; até agora não chegamos sequer ao ponto de podermos conceber claramente como seriam as ferramentas e habilidade adequadas a essa tarefa, que dirá conseguir começar a planejá-las e criá-las.” Ou seja, estamos ferrados.

Serviço

Título: Medo Líquido
Autor: Zygmunt Bauman
Editora: Jorge Zahar, 2008, 240 páginas
Gênero: Sociologia
Preço: R$ 32,00

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Einstein no sonho de Helen Dukas e outras histórias

Einstein: Conversava com todos na mesma tonalidade e atenção, de doutor a operário

O físico alemão Albert Einstein tinha uma secretária chamada Helen Dukas, que conhecia bem a vida simples do patrão. Um sonho que ela teve com Einstein traduz bem a vida dele.

O sonho

“Einstein estava comendo num restaurante, quando um homem entrou e mandou todo mundo encostar na parede, ele inclusive. Então começou, pelo primeiro da fila, a tirar dinheiro, relógios e outros bens de todas as pessoas. Quando chegou em Einstein, o ladrão parou: ‘Eu não vou tirar nada do senhor, professor Einstein!’ Ao que Einstein protestou: ‘Que horror! Quero ser tratado como todo mundo!’ No sonho, Einstein esvaziou o bolso e só caiu uma moeda.”

Essa história é contada no livro Einstein - a ciência da vida (Ática, 1999), de Denis Brian, tradução de Vera Caputo. Além do desfecho, outra coisa engraçada é perceber como Einstein era famoso, que até os ladrões mais pé-de-chinelo (ladrões de relógio e carteira) conheciam o físico, e mais, era tão famoso e querido que até esse tipo de criminoso (unha de fome e necessitado) o respeitava. Mais ainda, tão universalmente conhecido que até em sonhos de terceiros era reconhecido por ladrões dessa categoria.

Racismo

“Uma bonita jovem americana, que defendendo a discriminação, perguntou a Einstein: ‘O que o senhor faria se seu filho se casasse com uma negra?’ Ele respondeu: ‘Provavelmente eu pediria para conhecer a noiva. Mas se ele me dissesse que ia se casar com você, eu perderia o sono e o apetite’.” In: Einstein - a ciência da vida (Ática, 1999).


Simplicidade

“No outono [de 1948], o assistente de pesquisa de Einstein, Ernst Strauus, deixou-o para assumir um cargo acadêmico. John Kemeny estava entre os possíveis substitutos. Refugiado húngaro de 22 anos de idade, Kemeny estava a meio caminho de sua tese de doutorado quando chegou ao escritório de Einstein. A tese de Kemeny sobre lógica matemática não tinha nenhum interesse concebível para ele [Einstein], que não conhecia absolutamente nada daquilo. ‘Então’, disse Kemeny, ‘tive de explicar a teoria, o que ela queria provar [...] Devo ter levado meia hora [...] e tive medo de estar tomando seu tempo. Mas ele fez questão [...] Interrompia-me com perguntas quando não entendia [...] E então disse minha frase preferida, da qual jamais me esquecerei: ‘Muito interessante. Agora vou lhe contar no que estou trabalhando’, exatamente no mesmo tom de voz, como se nós dois tivéssemos a mesma importância.” In: Einstein - a ciência da vida (Ática, 1999).

quarta-feira, 28 de abril de 2010

UOL em page views

O UOL divulgou seus números de acesso. Em 2009, foram 1,75 bilhão de páginas vistas (page views), mais de 140 milhões por mês, mais de 4,5 milhões por dia. Por enquanto o Leituras do Giba não pode concorrer com o Portal, mas está na cola, chegando a uma média de cem acessos únicos diários.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Susana Vieira se acha inteligente

Em Caruaru, Pernambuco, a atriz da Rede Globo Suzana Vieira falou o que ela sempre fala em suas entrevistas: bobagens, incomensuráveis idiotices entrecortadas de arrogância e egoísmo. Mas a mídia (algo abstrato) parece gostar muito dela, e leva a sério o que a senhora de seu próprio destino (não) tem a dizer.

Na entrevista divulgada no Portal UOL, a atriz diz que, em decorrência da encenação do espetáculo A paixão de Cristo, machucou o olho, está com uma lesão, enxergando pouco, mas com a inteligência perfeita. Inteligência ela deve ter (como todo ser racional em gozo de suas faculdades mentais), mas não no nível que imagina possuir, até porque seu talento dramático é mais dionisíaco (seria ofensa a Dioniso?) do que apolíneo. É mais visceral, digamos.

Aquilo que a atriz faz diante das câmeras, principalmente, exige menos de seu intelecto do que de sua habilidade corporal, facial, enfim. Na entrevista, Suzana (Suzana) chamou Caruaru de selva ("Como é que chama isso aqui?"), lugar em que há árvores secas "há cinco mil anos" e que para se comunicar com alguém em outra cidade "só com fumaça de índio e com tambor". Não acho que ela tenha querido ofender (mas ofendeu). Ela não seria capaz de fazer tamanha distinção. Ela não sabe de tanta coisa. Falta-lhe inteligência e sobra-lhe arrogância. É isso.

terça-feira, 6 de abril de 2010

Tommaso Debenedetti: mentiroso ou inventor?

O jornalista italiano Tommaso Debenedetti bateu o recorde de mentiras jornalísticas. Há um bom tempo ele vem inventando entrevistas com escritores famosos (e alguns políticos da América Latina), e só agora, o lombo da farsa começou a aparecer, com a revista The New Yorker checando um por um os nomes envolvidos (leia mais).

Como leitor, acho isso muito engraçado. E como jornalista, só me vem à mente a certeza de que o que me resta de ética e o que me falta de imaginação não me permitiriam cometer tais peripécias.

Até Paulo Coelho entrou na lista. “Ma, come!” Alguns diriam. “Agora, ele caiu no meu conceito.” Mas nas contas do laborioso, do inventivo jornalista também estão Philip Roth, Günter Grass e uma fileira imensa de Prêmios Nobel de Literatura. O interessante é que o sobrenome dele sugere os melhores presságios possíveis. Confira o catálogo (só dos escritores):

A. B. Yehoshua

Amos Oz

E. L. Doctorow

Elie Wiesel (Prêmio Nobel da Paz de 1996)

Gabriel García Márquez (Nobel de Literatura de 1982)

Gore Vidal

Günter Grass (Nobel de Literatura de 1999)

Herta Müller (Nobel de Literatura de 2009)

Jean-Marie Gustave Le Clézio (Nobel de Literatura de 2008)

J. M. Coetzee (Nobel de Literatura de 2003)

John Grisham

José Saramago (Nobel de Literatura de 1998)

Ken Follett

Meir Shalev

Nadine Gordimer (Nobel de Literatura de 1991)

Scott Turow

Paulo CoelhoNegrito

Philip Roth (eterno candidato ao Nobel de Literatura)

Toni Morrison (Nobel de Literatura de 1993)

V. S. Naipaul (Nobel de Literatura de 2001)

Wilbur Smith

sexta-feira, 26 de março de 2010

Rimbaud - a vida dupla de um rebelde


O livro de Edmund White sobre Rimbaud, comentado neste blog em 2008 (leia), finalmente é traduzido para o português pela Companhia das Letras. Rimbaud - a vida dupla de um rebelde mostra o lado selvagem, grosseirão do poeta, tentando se equilibrar com sua genialidade criativa. A tradução é de Marcos Bagno.

quarta-feira, 24 de março de 2010

Perelman, o louco genial

Foto: Tom Mrowka
Perelman em aula-conferência, no MIT, EStados Unidos, em 2003

Gosto de ler sobre gênios, da matemática, da física, da literatura, qualquer gênio, talvez como compensação. O mais excêntrico desses que li foi sobre Georg Cantor, matemático que tentou descobrir a equação do Alef, o suposto número do infinito. Essa históra está em Mistério de Alef: a matemática, a cabala e a procura pelo infinito (Globo, 2003, 218 páginas), de Amir D. Aczel, o mesmo que escreveu um biografia ímpar de Descartes. O Alef também foi tema de um famoso conto de Borges.

Mas meu interesse agora, o que eu queria ler era a biografia de Grigori Perelman, um matemático russo, na linha dos grandes gênios, que anda recusando dinheiro de todos os cantos, por ter desvendado um enigma chave da história da matemática moderna. O texto de Elio Gaspari, publicado hoje na Folha de S. Paulo, diz melhor.



Perelman é doido, ou entendeu tudo?

Por ELIO GASPARI
--------------------------------------------------------------------------------
O russo esquisito que resolveu um dos sete mistérios da matemática tem muito a ensinar
--------------------------------------------------------------------------------

"EM 2008, quando Lady Gaga gravou seu primeiro álbum, já se tinham passados seis anos do dia em que Grigori Perelman resolvera a Conjectura de Poincaré, um dos maiores mistérios da matemática. Num mundo que consome celebridades, a história de Perelman merece cinco minutos de atenção.

Ele é um matemático russo, de 43 anos, já passou meses sem trocar de roupa, raramente corta as unhas, a barba ou o cabelo. Vive com a mãe em São Petersburgo, tem horror a jornalistas e viveu sete anos praticamente recluso. Nem e-mails respondia. Quando esteve nos Estados Unidos, a base de sua alimentação era pão preto e iogurte. Recusou cátedras nas universidades de Princeton, Berkeley, Stanford e no MIT. É um excêntrico, mas é um excêntrico que tem bastante a ensinar. Até que ponto vive-se melhor parecendo maluco do que deixando-se bafejar pela celebridade?

Superando ciúmes, intrigas e rivalidades, Perelman acaba de conquistar o prêmio dos "Problemas do Milênio", com direito a um cheque de US$ 1 milhão, concedido por uma fundação americana, por ter decifrado um dos sete grandes mistérios da matemática. Em 2006, ofereceram-lhe um honraria considerada equivalente a um Nobel de matemática. Recusou-a.

Para os leigos (como o signatário), a Conjectura de Poincaré é algo incompreensível. Ainda assim, pode-se perceber que Poincaré, um matemático francês que morreu em 1912, deixou para o mundo uma conjectura. Mais difícil será entender o que significa o segundo mistério: "A existência de Yang-Mills e a falha na massa".

Perelman resolveu a conjectura em 2002. Em vez de mandar seu trabalho para uma revista científica, onde um painel de estudiosos estudaria a consistência dos argumentos, simplesmente jogou os textos na internet, num arquivo público de trabalhos acadêmicos. O trabalho não dizia que a conjectura havia sido resolvida, essa tarefa cabia a quem o lesse. (Um matemático gastou três meses para entendê-lo.) A comunidade dos sábios consumiu dois anos estudando, invejando e, em alguns casos, buscando uma falha na explicação. Perda de tempo.

Quando Perelman foi convidado por Princeton, pediram-lhe um currículo. Respondeu que, se não sabiam quem ele era, não deveriam convidá-lo. Como o MIT chamou-o depois que resolveu a Conjectura de Poincaré, recusou porque deveriam tê-lo chamado antes. Num último convite podia ganhar quanto quisesse e fazer o que quisesse durante o tempo que bem entendesse. Respondeu que estava comprometido com seus alunos do ensino médio de São Petersburgo, o que nem era verdade.

Perelman ofendeu-se quando o "New York Times" disse que ele sustentava que resolvera a conjectura para ganhar US$ 1 milhão. Afinal, estudava o problema muito antes de o prêmio surgir e não sustentava coisa alguma. Decifrara a Conjectura de Poincaré, ponto.

Perelman é um matemático excêntrico e, pensando-se bem, Lady Gaga é uma roqueira quase convencional. Assim as coisas ficam fáceis e pode-se ir em paz ao próximo show. Contudo o mundo fica mais interessante quando se sabe que o negócio de Perelman é outro. Os matemáticos podem viver num mundo de liberdade e rigor absolutos. Ele escolheu uma vida de total integridade, sem concessões a coisa alguma. Ninguém manda nele, só a matemática, num diálogo que dispensa outras vozes."

terça-feira, 9 de março de 2010

Se eu fechar os olhos agora


Há 30 anos, Edney Silvestre pensava em escrever um romance de investigação, sobre um crime mal resolvido pela polícia que duas crianças decidem elucidar. Há seis, o autor, excelente jornalista, entrevistador do Programa Espaço Aberto, da Globo News, começou a empreitada e no ano passado entregou o livro à editora Record.

Silvestre passou um tempo com dificuldade para encontrar a abertura exata de sua história. Em entrevista ao Jô Soares, em 2009, o jornalista comenta: “Eu não sou maluco, Jô, mas, juro por Deus, ouvi a voz do narrador me dizer: ‘Se eu fechar os olhos agora, posso sentir o sangue dela grudado nos meus dedos.’ E foi assim que abri o romance.”

Admiro muito Edney Silvestre, um profissional de rara comparação. Provavelmente não lerei o livro dele, Se eu fechar os olhos agora (Record, 2009, 304 páginas), mas fica aqui a reverência e o registro.

segunda-feira, 8 de março de 2010

A dimensão da angústia



De família judia, Chaya Pinkhasovna Lispector, que depois se tornaria Clarice, nasceu num vilarejo chamado Tchetchelnik, na Ucrânia, em 10 de dezembro de 1920. Mas veio muito jovem para o Brasil, com pouco mais de um ano de idade, em 1922, junto com o pai, Pinkhas, que se tornaria Pedro, a mãe Mania, depois, Marieta, e as duas irmãs mais velhas Leah, que veio a se chamar Elisa e Tânia, que não precisou mudar de nome, porque era comum aqui.

Eles vieram fugindo de perseguições raciais e da guerra civil. Mesmo sendo ucraniana, Clarice ficava demasiado aborrecida se alguém tentasse lembrá-la de que não era brasileira. Inclusive negava a idade, dizendo ter nascido em 1922, e a ficha técnica da mais recente editora de seus livros, Rocco, registra 1925 como data de nascimento da escritora.

Só se naturalizou aos 23 anos, para se casar com o diplomata Maury Gurgel Valente (pois o Itamarati não permitia que seus membros se casassem com estrangeiros), pai de seus dois filhos. E, embora tenha escrito toda sua obra em português, o que produziu não se assemelha ao conjunto da literatura tupiniquim.

Só o último livro, A hora da estrela, merece a observação segundo a qual, o romance é “explicitamente judaico e explicitamente brasileiro, ligando o Nordeste da infância ao Rio de Janeiro da vida adulta, ‘social’ e abstrato, trágico e cômico, unindo suas questões religiosas e de linguagem com a força narrativa de seus melhores contos.”

A observação é de Benjamim Moser, autor de Clarice – uma biografia (Cosac Naify, 2009, 648 páginas), grandioso tratado biográfico sobre a escritora que fez de tudo para esquecer o passado tenebroso de sua família e a própria origem, mas que, no legado literário que deixou, colocou nos pormenores toda a angústia que sentia por ser o que era: um gênio e uma mulher carregada de tristeza, solidão e culpa (pelo filho esquizofrênico de quem ela ‘não soube cuidar’ e pela mãe doente que ela ‘não pôde salvar’).

Neste livro, traduzido por José Geraldo Couto, há uma infinidade de comparações da obra de Clarice, inserindo-a no contexto do mais alto patamar da literatura universal. “Ela era como Kafka, cuja literatura é muito judaica embora ele nunca lide com o judaísmo enquanto tal”, diz Alberto Dines, em texto citado por Moser. Também está ali o depoimento de Gregório Rabassa, especialista em literatura latino-americana, tradutor de Gabriel García Márquez, Machado de Assis e da própria Clarice nos Estados Unidos. Para Rabassa, a escritora era “parecida com Marlene Dietrich e escrevia como Virginia Woolf.”

Ou seja, as comparações levam-na para o cerne da angústia e do gênio criativo. Há mais. “A escritora francesa Hélène Cixous declarou que Clarice Lispector era o que Kafka teria sido se fosse mulher, ou ‘se Rilke fosse uma judia brasileira nascida na Ucrânia. Se Rimbaud fosse mãe, se tivesse chegado aos 50. Se Heidegger deixasse de ser alemão’”, cita o biógrafo. Para a crítica internacional, esta biografia pode ser o que faltava para autora ser descoberta de vez e entrar no cânone ocidental.

Ao descobrir a obra de Clarice no curso de graduação, no final da década de 1990, Moser ficou impressionado não só com a qualidade literária da escritora, mas também pelo denso teor filosófico, pontuado de desespero, rebeldia, ateísmo e uma beleza estranha, um estranhamento possível apenas pelo pleno domínio da linguagem que a autora possuía.

Por que esta angústia? Que mistério envolve a escrita de Clarice que tanto fascina? Qual é a raiz dessa angústia, qual é contexto em sua inteireza da origem de Clarice e de sua família e o perfil histórico que a fez se instalar no Brasil? São as perguntas iniciais do biógrafo que, por isso mesmo, escolheu uma frase da autora para dar título ao livro em inglês: Why this world (Por que este mundo?).

A frase foi retirada de um depoimento de Clarice, no qual ela diz: “É que fui uma adolescente confusa e perplexa que tinha uma pergunta muda e intensa: ‘como é o mundo? E por que este mundo?’. Fui depois aprendendo muita coisa. Mas a pergunta da adolescente continuou muda e insistente.”

A vida não é humana

A excelência do livro de Moser – na tentativa de contar e elucidar aspectos da vida e da obra de Clarice Lispector – está justamente na sua capacidade de jogar entre o levantamento factual, traços históricos, e a análise literária de cada um dos livros dela. Do primeiro, Perto do coração Selvagem (1943), ao último, A hora da estrela (1977), Moser vai lançando luz sobre a escrita e mostrando como isso está ligado à própria existência da autora.

Nas primeiras páginas, o biógrafo cita o trecho de um depoimento de Clarice: “‘Tem uma coisa que eu queria contar, mas não posso. Vai ser muito difícil alguém escrever minha biografia, se escreverem’.” Em seguida, Moser comenta: “Seria essa ‘uma coisa’ uma referência à violência sofrida por sua mãe, um dos fatos centrais da sua vida?”

A violência sofrida pela mãe de Clarice se deu num dos períodos mais negros da história da Ucrânia, quando os judeus eram perseguidos pelos militantes dos pogroms, uma série de movimentos de agressões e assassinatos orquestrados e executados, com apoio do governo czarista russo, contra minorias étnicas. Embora tenha origem na Rússia czarista, os pogroms continuaram após a Revolução de 1917, fato fartamente registrado. Em 1919, a violência ainda era rio sem dique nos países que comporiam a União Soviética.

Moser comenta: “Todos os relatos dos pogroms registram a presença generalizada do estupro. Assim como o saque das propriedades dos judeus, tratava-se de uma das características indispensáveis dos pogroms. Isso não é incomum; o estupro é um elemento essencial de limpeza étnica, destinado tanto a humilhar um povo quanto a matá-lo e expulsá-lo. Na Ucrânia da época da guerra civil não foi diferente.”

“Milhares de garotas foram estupradas por bandos”, comenta. “Depois de um pogrom, ‘muitas das vítimas foram mais tarde encontradas com ferimentos de faca e sabre na pequena vagina’”, diz Moser, citando um registro histórico.

Outro relato da época descreve o que acontece num pogrom básico. “O bando invade a cidade, espalha-se pelas ruas, grupos separados invadem as casas de judeus, matando sem distinção de idade e sexo todo mundo que encontram pela frente, com a diferença de que as mulheres são bestialmente estupradas antes de ser assassinadas, e os homens são obrigados a ceder tudo o que está na casa antes de serem mortos. Tudo o que pode ser transportado é levado embora, o resto é destruído.”

É nesse cenário que se encontra a família de Clarice, na cidade ucraniana de Haysyn, quando Mania Lispector, em 1919, sofreu a violência comentada por Moser. Na ocasião, foi atacada, estuprada e, em consequência, contraiu sífilis. Ao contrário do que aconteceu com milhares de outras vítimas, Mania sobreviveu ao estupro, e, em função de uma crença popular, imaginava que se engravidasse ficaria curada da doença. A ingenuidade e o desespero levaram Pinkhas e Mania a conceber Clarice.

Quando a família fugiu de Haysyn, Clarice ainda estava na barriga da mãe, e nasceu no caminho, em Tchetchelnik. Mas Mania não se curou da sífilis. Já no Brasil, ficou paralítica em função da doença, morrendo aos poucos, sob o testemunho da filha, que a essa altura já sabia da missão, sabia que fora concebida para curar a mãe, que faleceu em 1930, aos 42 anos.

“Dadas as circunstâncias brutais da primeira infância”, diz Moser, “ela dificilmente poderia chegar a uma conclusão diferente da que a vida não é humana e não tem ‘valor humano’ algum.” Em A paixão segundo G. H., de 1964, a protagonista toma uma estranha consciência de que se assemelha a uma barata. É o livro mais emblemático de Clarice, porque, segundo Moser, nele, a autora rebate a “tentativa de reduzir a vida às dimensões humanas.”

Ou seja, para Clarice, a vida seria um fluxo vital sem distinção entre animais e plantas. Por isso mesmo, sua literatura é altamente voltaica, no sentido de querer condensar a vida em si, não o que há de humano, mas toda a vida, toda a pulsação da existência em algumas palavras. “Uma pessoa com a história de Clarice nunca poderia se satisfazer com a frágil ficção de um universo sujeito ao controle humano”, avalia Moser.

A eternidade num chiclete

Se levarmos em conta que literatura é transgressão, logo perceberemos que a literatura de Clarice vai ao extremo dessa transgressão. Mas não é só isso. O acompanhamento da mãe moribunda, o sentimento de culpa, os pedidos de intervenção divina durante a infância inteira, que nunca eram atendidos, as peças inventadas por Clarice, nessa ocasião, para entreter a mãe, tudo isso, aliado a uma sensibilidade criadora e rebelde, fez nascer a grande autora.

A história da revolta do povo judeu, a história da família e as perseguições que continuaram sistematicamente até o fim da Segunda Guerra Mundial também rondavam sua consciência. Tanto é que, numa entrevista ao jornalista Edilberto Coutinho, em 1976, disse: “Não acredito nesta besteira de judeu ser o povo eleito de Deus. Não é coisa nenhuma. Os alemães é que devem ser, porque fizeram o que fizeram. Que grande eleição foi essa para os judeus?”.

Para se ter ideia desse sentimento de fracasso, da plena consciência de sua dor, Clarice deixou escrito: “Fui preparada para ser dada à luz de um modo tão bonito. Minha mãe já estava doente, e, por uma superstição bastante espalhada, acreditava-se que ter um filho curava uma mulher de uma doença. Então fui deliberadamente criada: com amor e esperança. Só que não curei minha mãe. E sinto até hoje essa carga de culpa: fizeram-me para uma missão determinada e eu falhei. Como se contassem comigo nas trincheiras de uma guerra e eu tivesse desertado. Sei que meus pais me perdoaram eu ter nascido em vão e tê-los traído na grande esperança. Mas eu, eu não me perdoo. Queria que simplesmente se tivesse feito um milagre: eu nascer e curar minha mãe.”

Esta é a dimensão da angústia de Clarice, presente em todos os seus livros, de uma forma ou de outra, e que foi captada em minúcias por Benjamim Moser. Era um sentimento cultivado desde a infância, captado pela sensibilidade de seu gênio, como na história-anedota do chiclete recontada pelo biógrafo.

“Mediante o improvável auxílio de um pedaço de chiclete, Tânia introduziu sua irmã caçula no ‘penoso e dramático’ conceito de eternidade. Tânia comprou para ela uma novidade no Recife – chiclete – e disse: ‘Tome cuidado para não perder, porque esta bala nunca se acaba. Dura a vida inteira.’ Uma perplexa Clarice o apanhou, ‘quase não podia acreditar no milagre’, e Tânia mandou-a ‘mascar para sempre’.”

Clarice teria ficado aterrorizada, “sem querer confessar que não estava à altura da eternidade, que a ideia a atormentava, mas ela não ousava. Finalmente, quando elas estavam indo para a escola, conseguiu deixar o chiclete cair na areia, simulando decepção e constrangimento por estar mentindo à irmã. ‘mas aliviada. Sem o peso da eternidade sobre mim’”, conforme revelaria mais tarde numa crônica presente em A descoberta do mundo, coletânea das colunas de jornais publicada postumamente.

Ultrapassando Kafka

Com fina inteligência de análise, Moser de fato revela o gênio da escritora. Muitos depoimentos também apontam essa riqueza existencial, como sua amiga até o fim da vida e editora, Olga Borelli, que disse: “Clarice tinha uma genialidade insuportável, para si mesma e para os outros.” Segundo Moser, “A hora da estrela é um monumento digno da ‘genialidade insuportável’ de sua autora.”

O depoimento de seu analista por seis anos, Jacob David Azulay, também oferece o perfil de um gênio impossível. “Ela era uma figura fantástica, uma mulher generosíssima, mas mesmo assim não era fácil conviver com ela. Era uma pessoa com uma carga de ansiedade que poucas vezes vi na vida. É muito difícil conviver com alguém assim. ‘Full time’ autocentrada, não porque ela quisesse, por vaidade, era dificuldade mesmo, de se conectar. Ela não se desligava e, quando sua ansiedade se acendia, a coisa atingia níveis avassaladores, e ela não tinha paz, não se aquietava. Viver era para ela, nessa medida, um tormento. Ela não se aguentava. E as pessoas também não aguentavam. Eu mesmo, como analista, não aguentei.”

Sobre a obra, para cada romance da escritora, há sempre um arremate que sustenta a superioridade de sua literatura. Moser diz que A paixão segundo G. H. é “um dos maiores romances do século.” Além disso, avalia A maçã no escuro como um romance que ultrapassa Kafka. A maçã no escuro é a “história da criação de um homem” que passa pelos estágios anteriores ao homem, sendo antes cavalo, bem antes, vaca, rato, planta, evoluída de uma simples pedra.

O eco dos gênios místicos

De pedra a homem é o máximo da evolução, segundo Clarice, durante quase toda a sua obra, porque além do homem não havia mais nada. Ou seja, uma negação total de Deus, depois de, na infância, não ter obtido respostas a seus pedidos de salvação. A visão do divino na obra de Clarice e na análise de Moser é puramente judaica.

Nessa perspectiva, não se pode negar que Clarice – uma biografia é o livro de um judeu do começo ao fim, procurando cavar a razão do sentimento literário de uma escritora essencialmente judia, sem nenhum traço pejorativo nessa observação. Mesmo porque é esta a razão pela qual Moser se interessou pela biografada, porque ela era judia.

É também esta a linha de análise que fez Moser incluir Clarice nos mistérios gnósticos da tradição judaica. “Ela emergiu do mundo dos judeus da Europa Oriental, um mundo de homens santos e milagres que já havia experimentado seus primeiros anúncios de danação. Trouxe a ardente vocação religiosa daquela sociedade agonizante para um novo mundo, um mundo em que Deus estava morto.”

“Como Kafka, ela se desesperou; mas, à diferença de Kafka, acabou, de modo atormentado, bracejando em busca do Deus que a abandonara. Narrou sua busca em termos que, como os de Kafka, apontavam necessariamente para o mundo que ela deixara para trás, descrevendo a alma de uma mística judaica que sabe que Deus está morto, mas que, no tipo de paradoxo que perpassa toda a sua obra, está determinada a encontrá-Lo mesmo assim.”

Mais adiante, Moser retoma: “É talvez em Kafka que se sente com maior intensidade o desespero judeu diante da perda de Deus. A renúncia a Deus para Clarice Lispector, nesse contexto, não era mais do que um reflexo de uma perda que o mundo judeu como um todo tinha experimentado.” A contestação da existência de Deus por pensadores judeus, tal como fez Clarice na entrevista a Edilberto Coutinho, não é algo intelectualmente espantoso.

Basta lembrar a perseguição nazista para se entender a razão. “Não acredito nesta besteira de judeu ser o povo eleito de Deus. Os alemães é que devem ser, porque fizeram o que fizeram.” Mas antes dos nazistas, já havia a perseguição antissemita e o horror dos pogroms, atmosfera sintomática que Kafka soube captar, e por isso é o grande mago da literatura universal. Ao ser comparada com o escritor tcheco, e Moser faz isso várias vezes, além de citar outros que também fazem a mesma comparação, Clarice é colocada no mesmo grau de excelência.

“Em 1941, aquele Deus estava morto”, diz Moser, se referindo ao início do desespero diante do Holocausto. “A Tora e o Talmud já não eram consoladoras árvores da vida, e o imenso edifício da cabala, as complexidades de sua metafísica, refinada e elaborada por séculos de gênios místicos, estavam em ruínas. Só os fatos do exílio e da perseguição, e a sede de redenção que eles engendravam, seguiam inalterados.”

Foram esses fatos e a maneira como Clarice os absorveu, completando-os com sua própria situação e de sua família, que deram a ela a dimensão de sua literatura, porque seguia as pegadas de gênios anteriores, mesmo que não os tivesse lido sistematicamente. “Quando Clarice Lispector começou a renunciar suas próprias especulações sobre o divino, ela estava ecoando os escritos de gerações anteriores que buscavam o eterno em meio à crise e ao exílio”, enfatiza o biógrafo.

Mesmo com toda essa luta de buscas e de negação, Clarice Lispector manteve-se enigmática até o fim. Já no final da vida, enviou um exemplar de A hora da estrela para Tristão de Athayde [Alceu Amoroso Lima], intelectual católico, com a inscrição “Eu sei que Deus existe”, como se quisesse lançar os dados de seu último paradoxo.

O universo de Clarice

Clarice – uma biografia tem um alcance histórico e sociológico, em torno da biografada, que não existe nas outras biografias, nem mesmo naquela escrita por Nádia Battella Gotlib, Clarice – uma vida que se conta (Ática, 1995), que também é ótima. Aliás, Moser aproveitou muito material de pesquisa levantado por Nádia. Clarice Lispector morreu de câncer em 1977, já consagrada como escritora, como escritora brasileira, diga-se de passagem, independente das análises, mesmo certeiras, da crítica.

Ler esta biografia é como se o leitor se apossasse da vida inteira de uma mulher enigmática e fascinante, como criadora e como personagem de si mesma que foi. Este é o valor maior do livro de Moser, além de ser bem escrito e dar várias chaves de interpretação da obra lispectoriana.

A partir do centro do universo de Clarice, setas apontam para várias direções: Ucrânia; Maceió (Alagoas), primeira cidade dos Lispector; Recife (Pernambuco), onde Clarice viveu até os 15 anos; Rio de Janeiro, terceira cidade da escritora; o mundo do Itamaraty e os lugares onde Clarice morou com o marido diplomata, como Belém, Nápoles, Roma, Berna, Washington; o jornalismo brasileiro; a família; os amigos; o palco literário e a obra da autora.

Segundo Moser, Clarice uma vez disse: “Escrevo sem esperanças de que alguma coisa que eu escreva possa mudar o que quer que seja. Não muda nada.” Mas ela sabia que muda. Alguma coisa muda quando se consegue dimensionar o estético, fazendo da arte uma espécie de educação sentimental. E essa mudança, mesmo mínima, pode ser como a alavanca de Arquimedes.

Publicado originalmente no jornal Tribuna do Planalto (07/03/2010).

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Teoria da orelha

“O que não existe penetra até mesmo no que não tem frestas.”
Lao-Tzu



Se um dia você for à China e alguém lá, em chinês, te chamar de orelhudo, não se ofenda. A pessoa está fazendo um elogio incomensurável, um elogio do tamanho da orelha que você tem. Para se ter uma ideia do valor desse afago, o grande sábio Lao-Tzu, autor do Tao-te king, era chamado na juventude de Orelha.

Quando envelheceu ficou conhecido como Lao Dan, ou “velha orelha comprida”, que em outras palavras significa “orelhudo de idade avançada”, ou, simplesmente, “velho professor.”

Lao-Tzu era tão orelhudo que nada de sua vida real conseguiu suportar o mito criado em torno de seu elevado espírito. Reza a lenda que ao deixar a corte imperial, onde trabalhava como arquivista, viajou para as montanhas cavalgando um búfalo (“a suavidade conduzindo a força”).

Ao passar a fronteira da cidade, o guarda pediu-lhe que deixasse alguma coisinha escrita, algo que o entretivesse naqueles dias difíceis de crise no reino, de pressão política e estresse emocional, em função da deprimente situação da corte. Lao-Tzu consentiu, e ali mesmo escreveu o Tao-te king, com mais de cinco mil caracteres.

Na minha adolescência comecei a ler trechos do Tao-te king. Logo descobri certas conexões que me levaram a desconfiar da verdade do universo. Imediatamente recuei. Não por sabedoria ou por modéstia. Talvez por medo de me tornar um grande sábio. E eu não estava preparado para tanto. Algo em mim, no fundo (ou no raso) de minha alma dizia que aquele caminho era sem volta. Era alguma coisa semelhante a um barato, como uma maconha bem fumada, ou sei lá, cujo efeito seria para sempre.

Naquele momento, preferi minha ignorância, da qual nunca mais tive a oportunidade de me livrar. Ao começar a ler o Tao-te king e em seguida rejeitá-lo, criei um vazio estarrecedor em mim. Tornei-me um orelhudo de marca maior, mas não do tipo do sábio chinês, mas do tipo brasileiro mesmo. Estou no tao do não-saber, no caminho ig que não leva ao ígneo, mas à ignorância viva. “Jamais me revelarei”.

O não saber de Lao-Tzu o leva ao suportável vazio de tudo poder conter. Seu epíteto de orelhudo é porque sabia ouvir, e por isso era sábio. Minha orelha, pelo lado de cá, é tão (não tao) grande que veda a passagem do som e não me permite ouvir. Tenho duas orelhas e uma boca, mas nem por isso consigo ouvir mais e falar menos. Tagarelo mais que a Anamara do BBB.

Aquele negócio de Lao-Tzu sofrer uma crise existencial de não saber se é uma borboleta ou um homem é suspeito. Tudo é suspeito. A vida é suspeita de não ser vida. Estamos todos mortos na perspectiva infinita do tempo. ‘Viver é um troço muito perigoso’. ‘É muito esculacho nessa vida’.

Uma orelha só não faz o surdo. Um olho só não faz o cego. Uma boca só faz o maior dos estragos. Um cérebro à deriva é um búfalo no arrozal. E esse negócio de orelha faz a gente delirar mais do que o personagem de A lua vem da Ásia, o mais louco, o mais lírico, o mais escondido dos textos geniais de nossa literatura.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

O outro labirinto

Finos traços de uma vida – plena – registrados num livro, dois, três. Duzentos mil estudos não podem captar a alma de um homem, em sua inteireza. Mas uma palavra basta para a gente sondar o mistério do outro. Não quer dizer que vá encontrar a resposta, porque mistérios não têm respostas, apenas sugestões e setas que apontam para outro labirinto.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Teias invisíveis

Foto - Blog Festival de Besteiras na Imprensa
A subjetividade entre a massa: o homem periférico também tem seus tormentos

Gostei tanto do livro A psicanálise nas tramas da cidade (Casa do Psicólogo, 2009, 447 páginas) que vou falar dele mais uma vez, e depois publicar pequenos trechos, no limite da tolerância dos direitos autorais.

Primeiramente queria lembrar uma coisa. Entre os temas da cidade, um dos mais lembrados, junto com o trânsito, é a questão do invisível, tanto que há dois artigos intitulados O invisível nas cidades, de Carlos Alberto Cerqueira Lemos, e As tramas do invisível, de Plínio Montagna.

No primeiro caso, o autor fala das especulações do mercado imobiliário, conluio entre advogados e incorporadores que pressionam para modificar leis e retraçam o perfil da cidade em ações invisíveis. Mas há também o problema da rede subterrânea de esgotos, invisível à superfície, e o mau cheiro de rios poluídos e esgotos a céu aberto, cujas fontes podem até ser vistas, mas seu odor não tem imagem, e é o que mais afeta, em certos lugares.

A manifestação dos outros sentidos também é muito importante e também constituem a parte invisível das grandes cidades, como o paladar, que atrai multidões a bairros gastronômicos, como Santa Felicidade, em Curitiba, e o Bexiga, em São Paulo, ambos tradicionais redutos da culinária italiana. O sabor é invisível, aglutinando pessoas, que são corpos visíveis, mas que se tornam silhuetas à noite, à meia luz nas janelas de casa e apartamentos etc. etc.

No segundo caso, as diversas conspirações, a pulsação da vida privada, o sujeito que, ao agir, interfere na vida do outro, que interfere na vida do outro, que, na soma de mais um, dois, três, vira uma multidão invisível, formando subjetividades que influem na vida da cidade inteira. O invisível aí é sempre o impulso para a ação do sujeito, a mente trabalhando, os sentimentos atuando e sofrendo, a vida latejando a alma e se concretizando no dia a dia.

Invisível inculto

Apesar de tudo, senti falta de uma abordagem mais precisa sobre a periferia. No texto de Manoel da Costa Pinto, A estética do resto, ele lembra um fator importantíssimo: “Não se pode pensar a psicanálise sem a sociedade burguesa.” A psicanálise só sabe pensar o mundo dentro de seu círculo, carregado de saber acadêmico.

Não há um texto psicanalítico que não faça uma citação. Este é o sintoma da burguesia letrada. Não que seja ruim. É o fio da memória, a rede de informações fazendo circular e articular o conhecimento. Mas no caso de A psicanálise nas tramas da cidade, o círculo não se abre muito. Tanto é que o único texto voltado para o assunto da periferia é o do psiquiatra Roberto Tykanori Kinoshita, que não é psicanalista, mas fala de sua experiência com a “terapia comunitária”.

Em Memória e reconhecimento: entre os aglomerados e a pólis, o psicanalista Luís Carlos Menezes também procura situar um pouco a periferia nesse contexto, mas só um pouco, dizendo que o lugar da pólis, da cidade, portanto, é o da memória e do reconhecimento. Os espaços urbanos, no entanto, com migrações constantes, diz ele, “criam evidentemente amplas áreas desvitalizadas culturalmente. São áreas que favorecem o anonimato das pessoas, a destruição das memórias, das referências e, portanto, das possibilidades de reconhecimento.”

Apesar desta constatação, segundo a qual, a periferia (embora o autor não fale nesses termos) é um lugar destituído de cultura, uma área “desvitalizada culturalmente”, Menezes não fecha a porta e reconhece: “Mesmo nestas [áreas], por adversas que sejam as condições, não podemos negligenciar a força das capacidades criadoras de memórias e de sonhos, por caminhos os mais inesperados.” Ou seja, excluiu e depois inclui parte, deixando aberta uma via de discussão, já na conclusão do texto, como uma espécie de terceira via da psicanálise.

O problema da invisibilidade, portanto, passa pelo ciclo de palestras sobre a cidade. E nem mesmo os jornalistas, os críticos de arte e de literatura tocaram no assunto da periferia, invisível nas tramas da cidade. Não há um olhar atento, exato, sobre como a psicanálise pode agir sobre o emaranhado de almas dessa esfera de vida.

É como se a massa nos ônibus coletivos, nos trens e nos metrôs das grandes cidades, moradores de lugares distantes, não se tornassem indivíduos em tempo algum, não fossem sujeitos, não tivessem subjetividade digna de um olhar psicanalítico. Imagina uma mulher num trem lotado, sendo esfregada por tarados, sem poder se defender, e depois chega ao trabalho e o chefe confere-lhe uma cantada, um assédio moral.

É preciso lembrar: o homem periférico também tem seus tormentos. O homem comum ao extremo, que pega ônibus todo dia e vive boa parte de suas vidas dentro desses meios de transporte também sente a tensão das grandes cidades, e como sente. Mas a psicanálise, burguesa em sua origem, típica da arrogância (bem visível e passível de análise) da classe média, não foi capaz ainda, de, num esquema de conferências, falar dessa classe social.

O máximo a que chegou foi dizer que os lugares abarrotados de gente não têm cultura. E a psicanálise só age sobre a realidade cultural, ou melhor, sobre o processo de subjetivação da realidade e da cultura. É ato falho, esse esquecimento? Talvez.

Mas, ainda assim, o livro mantém-se valoroso.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Prêmio São Paulo de Literatura abre inscrições

O maior prêmio de literatura no Brasil está com as inscrições abertas, de hoje até o dia 25 de março. O Prêmio São Paulo de Literatura, realizado pela Secretaria de Estado da Cultura, que entra em sua terceira edição, vai conceder R$ 400 mil, divididos em duas categorias: R$ 200 mil para o melhor romance e R$ 200 mil para o melhor romance de autor estreante. Ambos os livros devem ter sido publicados originalmente em 2009 e em língua portuguesa.

Na primeira edição, realizada em 2008, Cristóvão Tezza levou o prêmio com o romance O filho eterno, e Tatiana Salém Levy ganhou como melhor estreante, com A chave de casa. No ano passado, foi a vez de Ronaldo Correia de Brito, com Galileia, e o estreante Altair Martins, com A parede no escuro, ganharem R$ 200 mil cada um.

O regulamento está no site da Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

A cidade no divã


O homem da cidade é ele próprio uma cidade inteira. Ou melhor, várias. Todas elas convivendo dentro dele, em sua memória e em sua consciência, devido aos livros que leu, às viagens que fez, às conversas que teve, tudo sendo processado e transformado pela imaginação e pela necessidade de se reinventar, que é inerente a todo ser humano.

Esse conhecimento não é novidade. Escritores e poetas notáveis já cantaram essa pedra. Pensadores da modernidade e críticos também. Basta citar Ítalo Calvino, Carlos Drummond de Andrade, Marshal Berman, Giulio Carlo Argan e Henri Lefevre.

Quando se trata de cidades grandes, esta subjetividade múltipla interessa, e muito, à psicanálise, porque se podem ver ali todos os fenômenos psíquicos originados do confronto entre sujeito e sociedade, indivíduo e coletividade, vida interior e o produto das ações humanas e dos fenômenos naturais.

Não foi por outra razão que a Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), em parceria com a Federação Latino-Americana de Psicanálise (FEPAL), realizou uma série de eventos sobre a relação do homem com o espaço urbano das grandes metrópoles, que acabaram resultando num livro fascinante chamado A psicanálise nas tramas da cidade (Casa do Psicólogo, 2009, 447 páginas).

São 32 textos que procuram abranger o máximo de assuntos possível, atuais e urgentes, do ponto de vista da convivência e dos trâmites sociais inseridos no tempo e no espaço. “Cada cidade que habitamos e que nos habita é construída, assim, a partir da trama de pessoas, situações, relações, lembranças e vivências anteriores e atuais”, diz, em um dos textos, o psicanalista e médico psiquiatra gaúcho Claudio Laks Eizirik.

A alma da cidade é, portanto, a alma de todos, costurada em fios como aglomeração urbana, redes sociais, o conflito das novas gerações, a virtualidade e o sujeito, a questão da arte, o papel da memória, o exercício do medo, da sensualidade e do erotismo. Tudo isso configurado no cotidiano, em meio aos mil e um símbolos que constroem a subjetividade, que fazem do sujeito moderno um tipo célere e lotado de mundos.

É a cidade sendo analisada como organismo vivo que ela é, a cidade como portadora de vários conflitos, quase todos gerados na modernidade, potencializados na contemporaneidade, abraçados por fenômenos como violência, velocidade, consumismo, crise de identidade e outros sintomas, para utilizar aqui um jargão psicanalítico.

No artigo “Arte, psicanálise e cidade”, o psicanalista João Augusto Frayze-Pereira chama a atenção para um fator interessante em relação à velocidade nos tempos modernos, que mudou a relação do artista com a cidade, antes obra coletiva, e hoje um conjunto de individualidades jogadas no meio do tráfego caótico. A psicanálise nasceu dentro dessa nova perspectiva. A arte moderna também, como a poesia de Baudelaire, poeta francês que já se sentia perplexo diante do caos, em pleno século XIX.

Desde e a perspectiva de Baudelaire, diz Frayze-Pereira, “o homem é arremessado de encontro ao tráfego, esforçando-se não apenas por sobreviver, mas por manter a própria dignidade em meio a esse espaço caótico.” Talvez o fluxo cada vez maior de carros nas grandes cidades seja o mais emblemático desta crise pós-moderna, porque simboliza um ambiente que necessita da velocidade, recria as concepções de espaço e tempo, da mesma maneira que faz surgir uma geografia do medo e de tensões altamente inflamáveis.

Para um pedestre atravessando a rua, há sempre uma ameaça à sua integridade física. Para um motorista parado no semáforo, saindo da garagem de casa, ou entrando nela, um motorista plantado no trânsito lento de um congestionamento, há de igual modo uma sensação de perigo rondando a alma.

Tudo isso afeta todo mundo de forma direta. E desde Baudelaire, que captara isso em Spleen de Paris e em Flores do Mal, a tensão como produto da vida moderna foi potencializada. Filmes como Traffic também demonstram a que ponto chegou a vida na cidade.

Subjetividade múltipla

Outra proposta interessante do livro é sua capacidade reflexiva. Os eventos giram em torno da psicanálise, procurando mostrar como esta vê a cidade, mas também, como numa sessão de análise, abre espaço para a cidade se mostrar, ouvindo profissionais de outros horizontes.

Estão presentes (com textos ótimos) o jornalista Roberto Pompeu de Toledo, falando sobre a relação de São Paulo com as águas (problema atual e antiquíssimo), o crítico literário Manoel da Costa Pinto, que aborda o que ele chama de estética do resto, o professor de literatura José Miguel Wisnik, com o artigo “Cidade, subjetividade, poesia”, o escritor Ignácio de Loyola Brandão, com uma palestra sobre o erotismo nas ruas noturnas de São Paulo, entre vários outros nomes.

À medida que o leitor vai percorrendo os textos, na sequência ou aleatoriamente, vai se tornando o próprio objeto de análise, porque ele faz parte da cidade. É sua pele e sua alma. Ao adentrá-la nesses textos, torna-se também o analisado, dá um mergulho na subjetividade múltipla da cidade, e, desse modo, pode trazer na emersão de volta um resultado interessante de reflexão sobre si e sobre o outro.

Um exemplo desse exercício psicanalítico são os textos “Intervenções clínicas na comunidade: que psicanálise é essa?”, do psiquiatra Roberto Tykanori Kinoshita, e a entrevista com o cineasta Philippe Barcinski, “Linguagem onírica e linguagem cinematográfica”.

Kinoshita dá um testemunho objetivo, mas emocionante, de sua experiência com as comunidades periféricas. Segundo ele, a ideia de comunidade, numa primeira impressão, não existe. Não existe porque ninguém se identifica de imediato com ninguém. Nas concentrações das grandes cidades, cada um é cada um, para citar um ditado popular.

As pessoas podem até se conhecer, mas não compartilham os problemas, porque se sentem culpadas por serem pobres, sentem-se fracassadas por viverem num ambiente repleno de desgraça e acontecimentos fatídicos. Kinoshita conta que passou a aplicar um método chamado “terapia comunitária”, desenvolvido pelo psiquiatra antropólogo cearense Adalberto Barreto.

“Os psicólogos e psicanalistas arrepiam-se com essa terminologia. É estranho, à primeira vista”, diz Kinoshita, referindo-se ao fato de trabalhar o “complexo de culpa” dos moradores da periferia com a “terapia comunitária”, em que, no lugar de contar suas desgraças, compartilham as experiências de superação, gerando assim um tipo de convivência positiva que pode ser chamada de comunidade.

No artigo “Tempo e ritmo na cidade”, de Maria Helena Rego Junqueira, apenas por uma observação, o leitor consegue entender por que os psicanalistas estranham o método aplicado por Kinoshita, o único no livro a ressaltar diretamente o problema do sujeito da periferia como problema psicanalítico. É que habitualmente, diz a psicanalista, “o que ocorria, até poucos anos, era o entendimento da psicanálise como uma prática privada, exercida em consultórios particulares e destinada a pacientes com poder aquisitivo de médio a alto.”

Segundo Maria Helena, “o surgimento das clínicas sociais das instituições psicanalíticas transformou esse panorama, possibilitando que pessoas necessitadas de análise e que não tinham o poder aquisitivo suficiente pudessem encontrar uma oportunidade de atendimento.” Além disso, a psicanalista dá uma valiosa contribuição ao debate ao abordar a questão do ritmo nas grandes cidades, discussão que pode ser estendida a um centro de porte médio como Goiânia.

Segundo ela, o panorama das cidades contemporâneas, marcado por uma profunda transformação no ritmo de vida, passa pelo acumulo de tarefas, jornada de trabalho cada vez mais extensa, trânsito (sempre ele), congestionamentos, tempo perdido, consumo desenfreado e compulsivo. No pacote também surge o conflito entre a necessidade da satisfação social e, em função disso, a incapacidade de satisfação individual, porque são dois fluxos completamente diferentes.

Cinema, trânsito e psicanálise

O bate-papo com o jovem cineasta Philippe Barcinski, diretor de “Não por acaso”, mediado pelo médico psiquiatra Rogério Nogueira Coelho e Souza, é um dos pontos altos do livro. Barcinski não só dá uma aula de roteiro de cinema, analisando o funcionamento da linguagem cinematográfica, a partir de seu filme, como também analisa a estrutura mecânica de uma grande cidade como São Paulo. Mecanismos estes que interferem diretamente no comportamento do cidadão e, principalmente, do sujeito.

Para lembrar Maria Helena Rego Junqueira mais uma vez, é preciso escutar a cidade como quem escuta um rio em seu curso cotidiano. É desta escuta – de seus fluxos e entraves, expressões e dinamismo feitos de tudo quanto existe, ruídos, pessoas, carros – que nascem os sujeitos, a partir dos quais se cruzam as subjetividades.

Foi esse olhar que Barcinski lançou para compreender São Paulo e fazer “Não por acaso”, ambientado na capital paulista. Além do resultado do filme, ficou impresso na memória, e no livro, a compreensão também da cidade. Em um trecho de sua entrevista, o cineasta explica a diferença entre o trânsito do Rio de Janeiro e do da capital paulista. Os cariocas, diz Barcinski, são mais desordeiros. Bloqueiam cruzamento, param em fila dupla, estacionam o carro na calçada.

Já os paulistanos encaram o trânsito de forma mais ordeira. Veja só. Na visão de Barcinski, a tentativa de ser correto nas obrigações com o tráfego é que causa estresse nas ruas de São Paulo. Isso porque, na cidade onde se procuram cumprir as normas, quem não cumpre é duramente penalizado. No Rio, os motoristas se vingam cometendo o mesmo ato contraventor. Em São Paulo, quem comete uma irregularidade ouve buzinaço e xingamentos, quando não acontece violência maior.

Publicado originalmente no jornal Tribuna do Planalto.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

O último crítico brasileiro

Wilson Martins (1921 - 2010): “Não escrevo sobre autores, escrevo sobre livros.”

“O Brasil é o único país do mundo que tem uma história da inteligência escrita por uma pessoa que não prima pela inteligência.” A frase é atribuída a Haroldo de Campos, crítico ferrenho de Wilson Martins, o suposto intelectual burro, autor do monumental História da inteligência brasileira (sete volumes) e de Pontos de vista, reunião de seus artigos para a imprensa brasileira ao longo de mais de 50 anos, em 14 volumes.

Campos, outro gigante que praticamente fundou as diretrizes de ensino de literatura na PUC de São Paulo, já morreu faz alguns anos, em 2003, e Martins acaba de morrer. Faleceu no sábado passado, 30 de janeiro, em Curitiba, cidade onde morava.

Acontece que Martins, ao contrário das invectivas de Campos, era um homem sábio, erudito e seguro do saber que detinha. Foi o primeiro estudioso brasileiro a se debruçar sobre a história da palavra escrita, traçando um perfil das cavernas das letras aos dias atuais.

Muito antes do francês Roger Chartier se tornar famoso pelos livros e palestras sobre o mesmo assunto, décadas antes do argentino Alberto Manguel conquistar o público brasileiro com o ótimo Uma história da leitura, Martins, em 1957, já havia publicado A palavra escrita: história do livro, da imprensa e da biblioteca, livro que merece o respeito e a atenção de quem se interessa por cultura humana.

Em 2005, numa entrevista a Norma Couri, Martins comenta o anátema de Campos. “Raciocinar por meio de insultos faz efeito, mas não significa nada.” Nessa mesma entrevista, ele ensina qual é o papel do crítico literário, numa frase também curta, também lapidar. “Não escrevo sobre autores, escrevo sobre livros.” Ou seja, um autor pode ser bom e querido de todos, mas seu próximo livro, ruim. E o fato de ser o autor quem seja não deve impedir o crítico de criticar o livro.

Em outro trecho, Martins continua a aula:

Não é um crítico que forma opinião. É um conjunto de pontos de vista. Um crítico é usado por certa camada da população que tem os mesmos gostos, identidade e ideologia. Os que pertencem a um campo diferente não se reconhecem nele. Pessoas que se dizem guiar pela crítica oral estão cometendo um erro de perspectiva: porque os amigos leram as críticas. A crítica oral é poderosa e o que se acaba formando é a média de opinião.

Wilson Martins nasceu em 1921, em São Paulo, mas foi morar em Curitiba muito jovem, onde começou a dar aulas, na Universidade Federal do Paraná. Depois foi para os Estados Unidos lecionar na Universidade de Nova York e ficou lá por mais de duas décadas. Aposentou-se e continuou atuando como crítico aqui no Brasil, escrevendo para O Globo, do Rio de Janeiro, e Gazeta do Povo, de Curitiba.

Um de seus alunos brasileiros lembra as aulas em Nova York, num texto comovente, agora após sua morte. Marcelo Tas escreveu em blog no dia 1º de fevereiro:

Em 1987, fui morar fora do Brasil, com uma bolsa da Fulbright, para estudar cinema na NYU- Universidade de Nova York. Alertado por um amigo- o designer Marcello Dantas- passei a frequentar uma concorrida aula de Literatura Brasileira, que acontecia toda semana num prediozinho antigo, de quatro andares numa travessa que levava à sempre agitada Washington Square.

Para minha surpresa, esses encontros em torno de Machado de Assis, Guimarães Rosa, Aluizio Azevedo em plena Manhattan me fizeram reaprender a olhar o nosso país. O curso era ministrado pelo mestre Wilson Martins, crítico literário, que cativava a todos com sua inteligência, sagacidade e humor.

Tinha muito gringo que aprendia português só para não perder a chance de saborear os trechos dos clássicos da nossa literatura que Martins fazia questão de ler na língua pátria.

Para fechar o adeus ao mestre, segue um pequeno trecho da entrevista concedida a Norma Couri por este que talvez seja o último dos grandes críticos brasileiros.

NC - O senhor vê a literatura do Paulo Coelho como amador.

WM - Paulo Coelho não é fenômeno literário. Do ponto de vista literário ele não é nada. Como fenômeno, ele é sociológico. Responde a um estado de espírito generalizado e faz sucesso no mundo inteiro. Pega parábolas bíblicas e reescreve seculares lendas árabes, cola aquilo tudo e faz o livro. Uma espécie de vidente. A injustiça é julgar isso como literatura.

NC - Mas o senhor também criticou o Nélson Rodrigues, que era popular.

WM - Popularíssimo, ficou mais ainda depois da biografia do Ruy Castro que, na verdade, reinventou o Nélson, conferiu a ele uma estatura que ele não tinha e que sua obra, marcada pela psicanálise amadora, não justifica. É preciso esclarecer um dos grandes mal-entendidos deste século. O sucesso de Vestido de Noiva deve-se à montagem do Ziembinski. As peças do Nélson são provocativas, famílias com 15 adultérios, um caso a estudar acrescido da reconstrução que o livro do Ruy Castro executou.


Leia a entrevista na íntegra no Jornal de Poesia.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Morre Salinger

O recluso Salinger, em 1963, aos 44 anos

“Só escrevo para mim mesmo e para o meu prazer.” Apesar dessa confissão egoísta, o escritor J. D. Salinger deu ao mundo pop um livro valioso, O apanhador no campo de centeio, em que imortalizou o enjoadinho, irascível e sensível personagem adolescente Holden Caufield. Muita gente sentiu prazer e estranhamento lendo esse romance que influenciou mais gerações do que deveria.

Salinger publicou O apanhador no campo de centeio ainda jovem, aos 32, em 1951. Li o livro na casa dos vinte anos, com uma carga de leitura que não me permitiu apreciá-lo tanto, reconhecendo, no entanto, a razão estética de ele existir. O título do livro em inglês é The catcher in the rye. Mais tarde, Charles Bukowski, em 1982, viria a publicar Misto-quente, que em português não revela nada de alusivo, mas em inglês, Ham on rye, sim. Sou mais Bukowski, que era mais John Fante.

Agora, aos 91 anos, o recluso Salinger vem a falecer. Parte para uma reclusão particular ao extremo, a morte. O apanhador no campo de centeio vai continuar conquistando muitos. Eu, do meu lado, continuo achando Olhai os lírios do campo, de Érico Veríssimo, mais interessante.

Leia a notícia no Portal UOL.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Teoria da cócega – ou coçando o cocuruto


Há uma teoria segundo a qual as músicas mais enjoativas, aquelas do tipo You’re beautiful, de James Blunt (às quais, diga-se de passagem, sou muito suscetível, tenho profunda compaixão pela cultura pop), são as que mais grudam no cérebro da gente. Permanecem como cócegas em áreas do cérebro muito sensíveis, que não me recordo agora quais sejam.

Acontece que essa teoria também serve para preocupações dentro do seleto grupo da crítica de arte dita séria e profunda. Agora mesmo, uma trupe de italianos (do Comitê Nacional para a Valorização dos Bens Históricos, Culturais e Ambientais da Itália) quer exumar o corpo (os restos, os finos ossos, sei lá) de Leonardo da Vinci, só para reconstruir a face do artista e tirar a prova dos nove se é ou não o traço de seu rosto estampado no quadro Monalisa (Leia).

Essa ideia fixa na identidade do modelo são ou não cócegas no cérebro? Que diferença poderia fazer? Se já se soubesse isso de antemão, o quadro teria deixado de ser enigmático? O sorriso de Monalisa teria mudado de ângulo? Teria deixado de ser oblíquo, enviesado? E se o rosto for uma abstração, uma figura retirada das profundezas da imaginação do gênio? Pura criação? Elevam Da Vinci ao mais alto grau da genialidade, mas não dão ao rapaz o direito de ser imaginativo a ponto de criar uma Monalisa sem cópia natural. Ainda bem que a essa altura, o pintor já não tem mais saco.