quarta-feira, 2 de maio de 2018

O mundo exorbitante de Clarice Lispector em A paixão segundo G. H.

Clarice Lispector (1920-1977): seu mundo exorbitante fascina porque podemos ficar nesse
jogo de palavras para sempre sem jamais penetrar o mistério da existência percebido por G. H.

Clarice Lispector é uma figura pública das mais notáveis no mundo literário. Sua morte há 40 anos foi só um detalhe existencial que não arranhou seu espectro artístico, calcado na linguagem pura, do tipo que só a poesia é capaz de consolidar. Mas ela resolveu esse problema por meio da prosa. 

Desde que surgiu com Perto do coração selvagem, em 1943, Clarice sempre esteve presente no radar dos leitores, que a amam, sem cobrar nada em troca, nem mesmo uma clareza textual. Sua literatura é um corpo vibrante que não precisa se tatuar, nem se despir para ser admirado. É admirado por si mesmo. 

Um exemplo desse vigor, e desse abismo, é A paixão segundo G. H., de 1964. Geralmente, a filosofia tenta trazer a metafísica para o plano do real, com metáforas e figuras reluzentes, como o mito da caverna, de Platão, o caniço pensante, de Pascal, a linguagem como casa do ser, de Heidegger. Já o romance de Clarice parece fazer o contrário, tenta enfiar o cotidiano no plano da metafísica. 

Clarice ontologiza o real mais comezinho. Ela faz isso nos contos, nas crônicas e nos romances. A paixão segundo G. H. narra o drama de G. H., uma artista plástica que se vê às voltas de um surto existencial em seu apartamento, numa certa manhã, quando a empregada vai embora e ela precisa fazer o serviço doméstico.

Algo misterioso havia acontecido com ela no dia anterior, e tudo se acumula na volta do sol. Tudo se estranha quando, ao decidir lavar o quarto da empregada, se depara com uma barata. Você começa a ler e se perguntar “mas, o que diabo é isso? É Kafka?”, e mais adiante, você já está chorando, com uma tremenda simpatia por G. H..

Você cria uma empatia pela mulher sem saber por quê, às vezes sem saber que vai se inflando com as perguntas feitas por G.H., que ela não sabe responder, e nem você, perguntas que ela faz depois de afirmar coisas que brotam de dentro dela, coisas que a forjam como ser vivo, que nos forjam a todos como seres vivos, coisas impalpáveis, neutrinos existenciais que atravessam nossa essência e nos incomodam na construção de nossa subjetividade, mas que não sabemos como, nem por quê, nem ela, nem você, nem ninguém. São coisas que existem, como existe o amor. 

Todos os mistérios

É neste momento que você precisa dizer “eu estendo a mão. Eu entro contigo”. O mais surreal de tudo isso, o mais evocador de todos os mistérios, é que 13 anos após esta publicação, Clarice morreria no leito de um hospital, com duas amigas ao seu lado, cada uma segurando uma de suas mãos. Em Clarice tudo é codificado em senhas espantosas.

Como se estivesse escrutinando o DNA, com seu histórico desde a gênese da vida, G. H. se pergunta, diante do espanto, “o que é que me havia chamado: a loucura ou a realidade?” O que é que nos invoca em Clarice? Por que a acompanhamos nessa angústia?

A paixão segundo G. H. é um espanto diante da vida, um espanto e um êxtase que brotam da descoberta de que a vida é mais que a fina camada de humano que trazemos. A vida é um enfileiramento de camadas de mil coisas e bichos esquecidos dentro de nós, que foram lembrados por G. H..

A vida são mil coisas e bichos esquecidos dentro dela, dentro de nós, que vieram atravessando a carne e as sensações mais íntimas desde a primeira célula que a compõe, que nos compõe, desde os genes, ou o esperma, anunciado por um gozo, prenúncio de um grito e de uma dor, arauto da luz grandiosa e triste – abridora do mundo – que nos ofuscará.

Uma coisa é a vida, outra é a “vida humana”. Aliás, a vida é a coisa, sem nomeação, a existência explosiva do ser. Só quando ela se nomeia é que é possível a identidade e a “vida própria” da consciência humana. 

Viver a “própria vida” é aceitável, mas sair dela para viver a vida, ou senti-la, é pecado, porque ela é divina, é de Deus, porque é inominável, e por isso também pode ser o inferno. 

A vida em si é inumana, independe do humano. A vida, jorro de camadas ancestrais de coisas e bichos sem nome, é ampla demais, é um abismo. É pecado entrar nela, ou contactá-la porque a pessoa, “ao perder sua vida individual, desorganiza o mundo humano.” Só os loucos e os artistas são capazes dessa façanha. 

G. H. não diz isso com todas as letras, mas afirma que “ficar dentro da coisa”, ou seja, da vida (fora da “própria vida”, que é humana), “é a loucura”. Para sair da “própria vida” e entrar na vida, é preciso ser eterno, ou seja, é preciso ser Deus ou louco. 

Isso faz lembrar uma frase lapidar de uma louca incrivelmente fascinante chamada Maura Lopes Cançado. “O que me assombra na loucura é a distância – os loucos parecem eternos”, diz Maura em Hospício é Deus, livro que ela escreveu enquanto vivia como interna em um sanatório no Rio de Janeiro na década de 1950.

Paixão

Para deixar a “própria vida” e mergulhar na vida em si, é preciso ser eterno, ou seja, é preciso ser Deus ou louco, ou artista, já num nível de acesso ruidoso, sem a pureza da loucura ou da divindade, do entusiasmo. Não é por acaso que G. H. é uma artista, mais do que isso, artista plástica, moldadora de mundos, de formas, forjadora de modelos da própria vida. 

Mas o que passa a interessá-la, desde que descobriu este segredo, é a vida, inominável e profunda, infinita, inumana, larga, oceano intransponível de todas as coisas. A barata só é barata na arbitrária classificação humana. A barata não deu para si uma identidade de barata, logo, é em si mesma tanto um bicho como uma coisa sem nome, um ser livre, sem identidade, lançado na vida para simplesmente ser, sem vida própria como a camada humana, fina e frágil, tal como descobre G. H.. 

“A barata é a barata de todas as baratas”. G. H. descobriu o segredo da vida, que é além de todos os nomes, e titubeou em vivê-la, porque isso significaria viver fora do humano, significaria viver como um deus ou como um louco. Mas decidiu encarar o desafio de se deixar lançar ao mundo aberto da vida. 

Para assimilar esse mundo sem nome seria preciso passar (paixão, expiação) por um ritual semelhante ao que se faz quando se finge comer o corpo de Cristo para manter-se conectado com o outro mundo. É como absorver o reino de Deus, quando se come a hóstia sagrada. Mas o reino do inumano era desse mundo, e sua hóstia era a barata. E por isso, ela a devorou.

“Minha vida não tem sentido apenas humano”, diz G. H.. “É muito maior - é tão maior que, em relação ao humano, não tem sentido.” Ao sair do humano, perdem-se as paredes do real, a linguagem, despe-se da roupagem artificial da humanidade, e tudo vira silêncio. É a vida em si. Nada é mais ou menos. Tudo é a vida, e não há mais linguagem. 

“O mundo independia de mim, e não estou entendendo o que estou dizendo, nunca! nunca mais compreenderei o que eu disser. Pois como poderia eu dizer sem que a palavra mentisse por mim? como poderei dizer senão timidamente assim: a vida se me é. A vida se me é, e eu não entendo o que digo. E então adoro.”

Esse mundo exorbitante de Clarice, criado por ela, é fascinante. É fascinante porque podemos ficar nesse jogo de palavras para sempre sem jamais penetrar o mistério da existência percebido por G. H., ou por Clarice Lispector. O leitor não tem outra coisa a fazer senão sentir, se puder, esse jorro de espanto.


(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente em 29/04/2018, no Jornal Opção, de Goiânia)
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