O Simbolismo parte da premissa de que “cada poeta tem uma personalidade única.” Segundo Edmund Wilson, em O castelo de Axel, “é tarefa do poeta descobrir, inventar, a linguagem especial que seja a única capaz de exprimir-lhe a personalidade e as percepções (...), lançando mão de símbolos”, defendendo a idéia de que aquilo que é tão especial só pode ser expresso “através de uma sucessão de palavras, de imagens, que servirão para sugeri-lo ao leitor.”
Neste sentido, o Simbolismo foi uma descoberta valiosa para o poeta catarinense Cruz e Sousa (1861-1898). Sugestão e evocação são duas palavras caras à sua criação poética.
Outras características do movimento é aproximação da indefinição musical, em que os versos não se guiam pela lógica formal, mas sim por um mundo oculto, por um senso de mistério (ver Estética Simbolista, 1984).
Desse modo, as palavras não significam nada, apenas sugerem, estabelecem uma correspondência entre o real das coisas e o mundo espiritual do poeta. É por isso que procedimentos como metáfora, descrição e narração são secundários no Simbolismo.
Em seu famoso texto ‘Teoria das correspondências’, Baudelaire cita Swedenborg (intelectual sueco do século XVIII) como o homem que havia ensinado aos simbolistas que tudo, “forma, movimento, número, cor, perfume, no plano espiritual como no plano natural, é significativo, recíproco, conversível, correspondente.” E sob esse mesmo prisma, Jean Moréas diz: “A poesia simbolista procura revestir a idéia de uma forma sensível” (In: Estética Simbolista).
O crivo do símbolo
Com base nesse acervo demonstrativo, podemos olhar para os poemas de Cruz e Sousa e confirmar os procedimentos da poesia simbolista, ou seja, a sugestão de imagens, a evocação, o efeito sonoro e a policromia, em meio ao mistério que costura um texto poético às raias da incompreensão.
No soneto ‘Cárcere das almas’, por exemplo, tateamos uma dor na escuridão da existência, de alguém que pretende se libertar, que quer alcançar a luz, mas, o que encontra são apenas trevas e silêncio.
É claro que esta prisão, este cárcere como símbolo, estabelece uma correspondência entre o plano espiritual e o plano material, e até podemos ouvir o arrastar das correntes na seqüência das inúmeras palavras com sílabas tremeluzentes:
Presa, trevas, grades, mares, estrelas, natureza, grandeza, grilhões, rasga, etéreo, Pureza, prisões, atroz, funéreo, solitários, graves, chaveiro, abrir-vos, portas, mistérios.
Uma seqüência que angustia e traduz o efeito da dor ampliada para o universo. Aqui não há um grito, mas um gemido. O poeta deus, que grita e se revolta, também tem seu momento de excessivo peso sobre os ombros.
De cordas e lágrimas
Finalmente chegamos a ‘Violões que choram’, poema composto de 36 estrofes de quatro versos decassílabos. Nele, há uma profusão de imagens, sons e odores que constroem um corpo poético e realizam uma perfeita sincronia entre todos os sentidos humanos. O poema foi publicado postumamente no livro Faróis, que o poeta havia revisado antes de morrer.
Trata-se de uma composição que faz jus à definição de poesia simbolista dada por E. Reynaud: “O poema simbólico é aquele, que, evocando através do verso formas estéticas, logicamente ligadas entre si na unidade de um núcleo de composição, tem por objeto a realização do belo” (In: Estética Simbolista).
Em ‘Violões que choram’, Cruz e Sousa não só realizou o belo como também criou uma das imagens mais pungentes da dor do negro em decorrência do racismo, da opressão e da exclusão. Foi um grito de dor e de orgulho ao mesmo tempo.
De acordo com Davi Arrigucci Jr., em Faróis encontra-se o melhor da poesia de Cruz e Sousa, “muito mais madura que a dos Broquéis (...) e liberta da sina parnasiana do soneto” (A noite de Cruz e Sousa. In: Outros achados e perdidos). A julgar por este poema, longo e dinâmico, Arrigucci Jr. tem toda razão.
Da mesma forma como não se pode dizer que o barco bêbado de Rimbaud é metáfora do homem, mas apenas um procedimento que evoca as qualidades humanas numa embarcação à deriva que vai experimentando toda sorte de aventuras, os violões de Cruz e Sousa, não sendo metáfora do negro, sugerem o corpo e a alma do negro, e aí tudo faz sentido.
soluções ao luar, choros ao vento ...
Tristes perfis, os mais vagos contornos,
A estética da exclusão
No final do século XIX, época da composição deste poema, o violão ainda era um instrumento marginalizado. Em 1915, Lima Barreto, outro negro talentoso que viveu à margem da sociedade e retratou bem a exclusão do negro em suas obras, registrou a situação do violão em seu Triste fim de Policarpo Quaresma, cuja história foi ambientada no governo do Marechal Floriano Peixoto, que durou de 1891 a 1894.
No começo do romance, um diálogo entre Policarpo e sua irmã registra a marginalização do violão e de quem o tocava, quando o protagonista anuncia que um certo Ricardo jantaria com eles.
“Um homem de idade, com posição, respeitável, como você é, andar metido com esse seresteiro (...), não é bonito!”, diz a irmã. “Mas você está muito enganada, mana. É preconceito supor-se que todo homem que toca violão é um desclassificado”, retruca o Major Quaresma.
São justamente os desclassificados que aparecem como os diletantes do violão no poema de Cruz e Sousa: “Ébrios antigos, vagabundos velhos,/ torvos despojos da miséria humana,/ (...) malditos, réus e suicidas”.
Mas é um corpo só, a perfazer o caminho chorando, soluçando, em meio à beleza, oscilando na tristeza de se saber belo, porém nulo, ignorado, desprezado.
Eis aqui um grito nivelado pelo humano, um hino à dor marcado pelos traços do homem segregado, como “ilhas de degredo atroz”.
A exemplo de ‘Violões que choram’, a maioria dos poemas de Faróis reflete o espaço noturno, como se os versos servissem para jogar luz no caminho do leitor. E ‘Violões’ esbanja luz.
O poema todo é um campo luminoso, que traz consigo a “lua cheia”, as “estrelas mágicas” e um rastro de cores e sons que preenchem toda a noite. É um poema sinestésico, em que o poeta grita com o corpo todo, como um violão que chora, que grita luz.
O poema
Violões que choram
“Ah! Plangentes violões dormentes, mornos,
soluções ao luar, choros ao vento ...
Tristes perfis, os mais vagos contornos,
bocas murmurejantes de lamento.
Noites de além, remotas, que eu recordo,
noites da solidão, noites remotas
que nos azuis da Fantasia bordo,
vou constelando de visões ignotas.
Sutis palpitações à luz da lua,
anseio dos momentos mais saudosos,
quando lá choram na deserta rua
as cordas vivas dos violões chorosos.
Quando os sons dos violões vão soluçando,
quando os sons dos violões nas cordas gemem,
e vão dilacerando e deliciando,
rasgando as almas que nas sombras tremem.
Harmonias que pungem, que laceram,
dedos nervosos e ágeis que percorrem
cordas e um mundo de dolências geram,
gemidos, prantos, que no espaço morrem ...
E sons soturnos, suspiradas mágoas,
mágoas amargas e melancolias,
no sussurro monótono das águas,
noturnamente, entre ramagens frias.
Vozes veladas, veludosas vozes
volúpias dos violões, vozes veladas,
vagam nos velhos vórtices velozes
dos ventos, vivas, vãs, vulcanizadas.
Tudo nas cordas dos violões ecoa
e vibra e se contorce no ar, convulso ...
Tudo na noite, tudo clama e voa
sob a febril agitação de um pulso.
Que esses violões nevoentos e tristonhos
são ilhas de degredo atroz, funéreo,
para onde vão, fatigadas do sonho,
almas que se abismaram no mistério.
Sons perdidos, nostálgicos, secretos,
finas, diluídas, vaporosas brumas,
longo desolamento dos inquietos
navios a vagar à flor de espumas.
Oh! Languidez, languidez infinita,
nebulosas de sons e de queixumes,
vibrado coração de ânsia esquisita
e de gritos felinos de ciúmes!
Que encantos acres nos vadios rotos
quando em toscos violões, por lentas horas,
vibram, com a graça virgem dos garotos,
um concerto de lágrimas sonoras!
Quando uma voz, em trêmulos, incerta,
palpitando no espaço, ondula, ondeia,
e o canto sobe para a flor deserta
soturna e singular da lua cheia.
Quando as estrelas mágicas florescem,
e no silêncio astral da Imensidade
por lagos encantados adormecem
as pálidas ninféias da Saudade!
Como me embala toda essa pungência,
essas lacerações como me embalam,
como abrem asas brancas de clemência
as harmonias dos violões que falam!
Que graça ideal, amargamente triste,
nos lânguidos bordões plangendo passa ...
Quanta melancolia de anjo existe
nas visões melodiosas dessa graça.
Que céu, que inferno, que profundo inferno,
que outros, que azuis, que lágrimas, que risos,
quanto magoado sentimento eterno
nesses ritmos trêmulos e indecisos ...
Que anelos sexuais de monjas belas
nas ciliciadas carnes tentadoras,
vagando no recôndito das celas,
por entre as ânsias dilaceradoras ...
Quanta plebéia castidade obscura
vegetando e morrendo sobre a lama,
proliferando sobre a lama impura,
como em perpétuos turbilhões de chama.
Que procissão sinistra de caveiras,
de espectros, pelas sombras mortas, mudas ...
Que montanhas de dor, que cordilheiras
de agonias aspérrimas e agudas.
Véus neblinosos, longos véus de viúvas
enclausuradas nos ferais desterros,
errando aos sóis, aos vendavais e às chuvas,
sob abóbadas lúgubres de enterros;
velhinhas quedas e velhinhos quedos,
cegas, cegos, velhinhas e velhinhos,
sepulcros vivos de senis segredos,
eternamente a caminhar sozinhos;
e na expressão de quem se vai sorrindo,
com as mãos bem juntas e com os pés bem juntos
e um lenço preto o queixo comprimindo,
passam todos os lívidos defuntos ...
E como que há histéricos espasmos
na mão que esses violões agita, largos ...
E o som sombrio é feito de sarcasmos
e de sonambulismos e letargos.
Fantasmas de galés de anos profundos
na prisão celular atormentados,
sentindo nos violões os velhos mundos
da lembrança fiel de áureos passados;
meigos perfis de tísicos dolentes
que eu vi dentre os violões errar gemendo,
prostituídos de outrora, nas serpentes
dos vícios infernais desfalecendo;
tipos intonsos, esgrouviados, tortos,
das luas tardas sob o beijo níveo,
para os enterros dos seus sonhos mortos
nas queixas dos violões buscando alívio;
corpos frágeis, quebrados, doloridos,
frouxos, dormentes, adormidos, langues
na degenerecênscia dos vencidos
de toda a geração, todos os sangues;
marinheiros que o mar tornou mais fortes,
como que feitos de um poder extremo
para vencer a convulsão das mortes,
dos tempos o temporal supremo;
veteranos de todas as campanhas,
enrugados por fundas cicatrizes,
procuram nos violões horas estranhas,
vagos aromas, cândidos, felizes.
Ébrios antigos, vagabundos velhos,
torvos despojos da miséria humana,
têm nos violões secretos Evangelhos,
toda a Bíblia fatal da dor insana.
Enxovalhados, tábidos palhaços
de carapuças, máscaras e gestos
lentos e lassos, lúbricos, devassos,
lembrando a florescência dos incestos;
todas as ironias suspirantes
que ondulam no ridículo das vidas,
caricaturas tétricas e errantes
dos malditos,dos réus, dos suicidas;
toda essa labiríntica nevrose
das virgens nos românticos enleios;
os ocasos do Amor, toda a clorose
que ocultamente lhes lacera os seios;
toda a mórbida música plebéia
de requebros de faunos e ondas lascivas;
a langue, mole e morna melopéia
das valsas alanceadas, convulsivas;
tudo isso, num grotesco desconforme,
em ais de dor, em contorsões de açoites,
revive nos violões, acorda e dorme
através do luar das meias noites!”
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2 comentários:
giba, beber mais e ler menos.
o caminho é esse, sem enigmas
A verdade me seria um fardo muito pesado. Porque, é como dizem, in vino veritas.
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