quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Teias invisíveis

Foto - Blog Festival de Besteiras na Imprensa
A subjetividade entre a massa: o homem periférico também tem seus tormentos

Gostei tanto do livro A psicanálise nas tramas da cidade (Casa do Psicólogo, 2009, 447 páginas) que vou falar dele mais uma vez, e depois publicar pequenos trechos, no limite da tolerância dos direitos autorais.

Primeiramente queria lembrar uma coisa. Entre os temas da cidade, um dos mais lembrados, junto com o trânsito, é a questão do invisível, tanto que há dois artigos intitulados O invisível nas cidades, de Carlos Alberto Cerqueira Lemos, e As tramas do invisível, de Plínio Montagna.

No primeiro caso, o autor fala das especulações do mercado imobiliário, conluio entre advogados e incorporadores que pressionam para modificar leis e retraçam o perfil da cidade em ações invisíveis. Mas há também o problema da rede subterrânea de esgotos, invisível à superfície, e o mau cheiro de rios poluídos e esgotos a céu aberto, cujas fontes podem até ser vistas, mas seu odor não tem imagem, e é o que mais afeta, em certos lugares.

A manifestação dos outros sentidos também é muito importante e também constituem a parte invisível das grandes cidades, como o paladar, que atrai multidões a bairros gastronômicos, como Santa Felicidade, em Curitiba, e o Bexiga, em São Paulo, ambos tradicionais redutos da culinária italiana. O sabor é invisível, aglutinando pessoas, que são corpos visíveis, mas que se tornam silhuetas à noite, à meia luz nas janelas de casa e apartamentos etc. etc.

No segundo caso, as diversas conspirações, a pulsação da vida privada, o sujeito que, ao agir, interfere na vida do outro, que interfere na vida do outro, que, na soma de mais um, dois, três, vira uma multidão invisível, formando subjetividades que influem na vida da cidade inteira. O invisível aí é sempre o impulso para a ação do sujeito, a mente trabalhando, os sentimentos atuando e sofrendo, a vida latejando a alma e se concretizando no dia a dia.

Invisível inculto

Apesar de tudo, senti falta de uma abordagem mais precisa sobre a periferia. No texto de Manoel da Costa Pinto, A estética do resto, ele lembra um fator importantíssimo: “Não se pode pensar a psicanálise sem a sociedade burguesa.” A psicanálise só sabe pensar o mundo dentro de seu círculo, carregado de saber acadêmico.

Não há um texto psicanalítico que não faça uma citação. Este é o sintoma da burguesia letrada. Não que seja ruim. É o fio da memória, a rede de informações fazendo circular e articular o conhecimento. Mas no caso de A psicanálise nas tramas da cidade, o círculo não se abre muito. Tanto é que o único texto voltado para o assunto da periferia é o do psiquiatra Roberto Tykanori Kinoshita, que não é psicanalista, mas fala de sua experiência com a “terapia comunitária”.

Em Memória e reconhecimento: entre os aglomerados e a pólis, o psicanalista Luís Carlos Menezes também procura situar um pouco a periferia nesse contexto, mas só um pouco, dizendo que o lugar da pólis, da cidade, portanto, é o da memória e do reconhecimento. Os espaços urbanos, no entanto, com migrações constantes, diz ele, “criam evidentemente amplas áreas desvitalizadas culturalmente. São áreas que favorecem o anonimato das pessoas, a destruição das memórias, das referências e, portanto, das possibilidades de reconhecimento.”

Apesar desta constatação, segundo a qual, a periferia (embora o autor não fale nesses termos) é um lugar destituído de cultura, uma área “desvitalizada culturalmente”, Menezes não fecha a porta e reconhece: “Mesmo nestas [áreas], por adversas que sejam as condições, não podemos negligenciar a força das capacidades criadoras de memórias e de sonhos, por caminhos os mais inesperados.” Ou seja, excluiu e depois inclui parte, deixando aberta uma via de discussão, já na conclusão do texto, como uma espécie de terceira via da psicanálise.

O problema da invisibilidade, portanto, passa pelo ciclo de palestras sobre a cidade. E nem mesmo os jornalistas, os críticos de arte e de literatura tocaram no assunto da periferia, invisível nas tramas da cidade. Não há um olhar atento, exato, sobre como a psicanálise pode agir sobre o emaranhado de almas dessa esfera de vida.

É como se a massa nos ônibus coletivos, nos trens e nos metrôs das grandes cidades, moradores de lugares distantes, não se tornassem indivíduos em tempo algum, não fossem sujeitos, não tivessem subjetividade digna de um olhar psicanalítico. Imagina uma mulher num trem lotado, sendo esfregada por tarados, sem poder se defender, e depois chega ao trabalho e o chefe confere-lhe uma cantada, um assédio moral.

É preciso lembrar: o homem periférico também tem seus tormentos. O homem comum ao extremo, que pega ônibus todo dia e vive boa parte de suas vidas dentro desses meios de transporte também sente a tensão das grandes cidades, e como sente. Mas a psicanálise, burguesa em sua origem, típica da arrogância (bem visível e passível de análise) da classe média, não foi capaz ainda, de, num esquema de conferências, falar dessa classe social.

O máximo a que chegou foi dizer que os lugares abarrotados de gente não têm cultura. E a psicanálise só age sobre a realidade cultural, ou melhor, sobre o processo de subjetivação da realidade e da cultura. É ato falho, esse esquecimento? Talvez.

Mas, ainda assim, o livro mantém-se valoroso.

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