segunda-feira, 8 de março de 2010

A dimensão da angústia



De família judia, Chaya Pinkhasovna Lispector, que depois se tornaria Clarice, nasceu num vilarejo chamado Tchetchelnik, na Ucrânia, em 10 de dezembro de 1920. Mas veio muito jovem para o Brasil, com pouco mais de um ano de idade, em 1922, junto com o pai, Pinkhas, que se tornaria Pedro, a mãe Mania, depois, Marieta, e as duas irmãs mais velhas Leah, que veio a se chamar Elisa e Tânia, que não precisou mudar de nome, porque era comum aqui.

Eles vieram fugindo de perseguições raciais e da guerra civil. Mesmo sendo ucraniana, Clarice ficava demasiado aborrecida se alguém tentasse lembrá-la de que não era brasileira. Inclusive negava a idade, dizendo ter nascido em 1922, e a ficha técnica da mais recente editora de seus livros, Rocco, registra 1925 como data de nascimento da escritora.

Só se naturalizou aos 23 anos, para se casar com o diplomata Maury Gurgel Valente (pois o Itamarati não permitia que seus membros se casassem com estrangeiros), pai de seus dois filhos. E, embora tenha escrito toda sua obra em português, o que produziu não se assemelha ao conjunto da literatura tupiniquim.

Só o último livro, A hora da estrela, merece a observação segundo a qual, o romance é “explicitamente judaico e explicitamente brasileiro, ligando o Nordeste da infância ao Rio de Janeiro da vida adulta, ‘social’ e abstrato, trágico e cômico, unindo suas questões religiosas e de linguagem com a força narrativa de seus melhores contos.”

A observação é de Benjamim Moser, autor de Clarice – uma biografia (Cosac Naify, 2009, 648 páginas), grandioso tratado biográfico sobre a escritora que fez de tudo para esquecer o passado tenebroso de sua família e a própria origem, mas que, no legado literário que deixou, colocou nos pormenores toda a angústia que sentia por ser o que era: um gênio e uma mulher carregada de tristeza, solidão e culpa (pelo filho esquizofrênico de quem ela ‘não soube cuidar’ e pela mãe doente que ela ‘não pôde salvar’).

Neste livro, traduzido por José Geraldo Couto, há uma infinidade de comparações da obra de Clarice, inserindo-a no contexto do mais alto patamar da literatura universal. “Ela era como Kafka, cuja literatura é muito judaica embora ele nunca lide com o judaísmo enquanto tal”, diz Alberto Dines, em texto citado por Moser. Também está ali o depoimento de Gregório Rabassa, especialista em literatura latino-americana, tradutor de Gabriel García Márquez, Machado de Assis e da própria Clarice nos Estados Unidos. Para Rabassa, a escritora era “parecida com Marlene Dietrich e escrevia como Virginia Woolf.”

Ou seja, as comparações levam-na para o cerne da angústia e do gênio criativo. Há mais. “A escritora francesa Hélène Cixous declarou que Clarice Lispector era o que Kafka teria sido se fosse mulher, ou ‘se Rilke fosse uma judia brasileira nascida na Ucrânia. Se Rimbaud fosse mãe, se tivesse chegado aos 50. Se Heidegger deixasse de ser alemão’”, cita o biógrafo. Para a crítica internacional, esta biografia pode ser o que faltava para autora ser descoberta de vez e entrar no cânone ocidental.

Ao descobrir a obra de Clarice no curso de graduação, no final da década de 1990, Moser ficou impressionado não só com a qualidade literária da escritora, mas também pelo denso teor filosófico, pontuado de desespero, rebeldia, ateísmo e uma beleza estranha, um estranhamento possível apenas pelo pleno domínio da linguagem que a autora possuía.

Por que esta angústia? Que mistério envolve a escrita de Clarice que tanto fascina? Qual é a raiz dessa angústia, qual é contexto em sua inteireza da origem de Clarice e de sua família e o perfil histórico que a fez se instalar no Brasil? São as perguntas iniciais do biógrafo que, por isso mesmo, escolheu uma frase da autora para dar título ao livro em inglês: Why this world (Por que este mundo?).

A frase foi retirada de um depoimento de Clarice, no qual ela diz: “É que fui uma adolescente confusa e perplexa que tinha uma pergunta muda e intensa: ‘como é o mundo? E por que este mundo?’. Fui depois aprendendo muita coisa. Mas a pergunta da adolescente continuou muda e insistente.”

A vida não é humana

A excelência do livro de Moser – na tentativa de contar e elucidar aspectos da vida e da obra de Clarice Lispector – está justamente na sua capacidade de jogar entre o levantamento factual, traços históricos, e a análise literária de cada um dos livros dela. Do primeiro, Perto do coração Selvagem (1943), ao último, A hora da estrela (1977), Moser vai lançando luz sobre a escrita e mostrando como isso está ligado à própria existência da autora.

Nas primeiras páginas, o biógrafo cita o trecho de um depoimento de Clarice: “‘Tem uma coisa que eu queria contar, mas não posso. Vai ser muito difícil alguém escrever minha biografia, se escreverem’.” Em seguida, Moser comenta: “Seria essa ‘uma coisa’ uma referência à violência sofrida por sua mãe, um dos fatos centrais da sua vida?”

A violência sofrida pela mãe de Clarice se deu num dos períodos mais negros da história da Ucrânia, quando os judeus eram perseguidos pelos militantes dos pogroms, uma série de movimentos de agressões e assassinatos orquestrados e executados, com apoio do governo czarista russo, contra minorias étnicas. Embora tenha origem na Rússia czarista, os pogroms continuaram após a Revolução de 1917, fato fartamente registrado. Em 1919, a violência ainda era rio sem dique nos países que comporiam a União Soviética.

Moser comenta: “Todos os relatos dos pogroms registram a presença generalizada do estupro. Assim como o saque das propriedades dos judeus, tratava-se de uma das características indispensáveis dos pogroms. Isso não é incomum; o estupro é um elemento essencial de limpeza étnica, destinado tanto a humilhar um povo quanto a matá-lo e expulsá-lo. Na Ucrânia da época da guerra civil não foi diferente.”

“Milhares de garotas foram estupradas por bandos”, comenta. “Depois de um pogrom, ‘muitas das vítimas foram mais tarde encontradas com ferimentos de faca e sabre na pequena vagina’”, diz Moser, citando um registro histórico.

Outro relato da época descreve o que acontece num pogrom básico. “O bando invade a cidade, espalha-se pelas ruas, grupos separados invadem as casas de judeus, matando sem distinção de idade e sexo todo mundo que encontram pela frente, com a diferença de que as mulheres são bestialmente estupradas antes de ser assassinadas, e os homens são obrigados a ceder tudo o que está na casa antes de serem mortos. Tudo o que pode ser transportado é levado embora, o resto é destruído.”

É nesse cenário que se encontra a família de Clarice, na cidade ucraniana de Haysyn, quando Mania Lispector, em 1919, sofreu a violência comentada por Moser. Na ocasião, foi atacada, estuprada e, em consequência, contraiu sífilis. Ao contrário do que aconteceu com milhares de outras vítimas, Mania sobreviveu ao estupro, e, em função de uma crença popular, imaginava que se engravidasse ficaria curada da doença. A ingenuidade e o desespero levaram Pinkhas e Mania a conceber Clarice.

Quando a família fugiu de Haysyn, Clarice ainda estava na barriga da mãe, e nasceu no caminho, em Tchetchelnik. Mas Mania não se curou da sífilis. Já no Brasil, ficou paralítica em função da doença, morrendo aos poucos, sob o testemunho da filha, que a essa altura já sabia da missão, sabia que fora concebida para curar a mãe, que faleceu em 1930, aos 42 anos.

“Dadas as circunstâncias brutais da primeira infância”, diz Moser, “ela dificilmente poderia chegar a uma conclusão diferente da que a vida não é humana e não tem ‘valor humano’ algum.” Em A paixão segundo G. H., de 1964, a protagonista toma uma estranha consciência de que se assemelha a uma barata. É o livro mais emblemático de Clarice, porque, segundo Moser, nele, a autora rebate a “tentativa de reduzir a vida às dimensões humanas.”

Ou seja, para Clarice, a vida seria um fluxo vital sem distinção entre animais e plantas. Por isso mesmo, sua literatura é altamente voltaica, no sentido de querer condensar a vida em si, não o que há de humano, mas toda a vida, toda a pulsação da existência em algumas palavras. “Uma pessoa com a história de Clarice nunca poderia se satisfazer com a frágil ficção de um universo sujeito ao controle humano”, avalia Moser.

A eternidade num chiclete

Se levarmos em conta que literatura é transgressão, logo perceberemos que a literatura de Clarice vai ao extremo dessa transgressão. Mas não é só isso. O acompanhamento da mãe moribunda, o sentimento de culpa, os pedidos de intervenção divina durante a infância inteira, que nunca eram atendidos, as peças inventadas por Clarice, nessa ocasião, para entreter a mãe, tudo isso, aliado a uma sensibilidade criadora e rebelde, fez nascer a grande autora.

A história da revolta do povo judeu, a história da família e as perseguições que continuaram sistematicamente até o fim da Segunda Guerra Mundial também rondavam sua consciência. Tanto é que, numa entrevista ao jornalista Edilberto Coutinho, em 1976, disse: “Não acredito nesta besteira de judeu ser o povo eleito de Deus. Não é coisa nenhuma. Os alemães é que devem ser, porque fizeram o que fizeram. Que grande eleição foi essa para os judeus?”.

Para se ter ideia desse sentimento de fracasso, da plena consciência de sua dor, Clarice deixou escrito: “Fui preparada para ser dada à luz de um modo tão bonito. Minha mãe já estava doente, e, por uma superstição bastante espalhada, acreditava-se que ter um filho curava uma mulher de uma doença. Então fui deliberadamente criada: com amor e esperança. Só que não curei minha mãe. E sinto até hoje essa carga de culpa: fizeram-me para uma missão determinada e eu falhei. Como se contassem comigo nas trincheiras de uma guerra e eu tivesse desertado. Sei que meus pais me perdoaram eu ter nascido em vão e tê-los traído na grande esperança. Mas eu, eu não me perdoo. Queria que simplesmente se tivesse feito um milagre: eu nascer e curar minha mãe.”

Esta é a dimensão da angústia de Clarice, presente em todos os seus livros, de uma forma ou de outra, e que foi captada em minúcias por Benjamim Moser. Era um sentimento cultivado desde a infância, captado pela sensibilidade de seu gênio, como na história-anedota do chiclete recontada pelo biógrafo.

“Mediante o improvável auxílio de um pedaço de chiclete, Tânia introduziu sua irmã caçula no ‘penoso e dramático’ conceito de eternidade. Tânia comprou para ela uma novidade no Recife – chiclete – e disse: ‘Tome cuidado para não perder, porque esta bala nunca se acaba. Dura a vida inteira.’ Uma perplexa Clarice o apanhou, ‘quase não podia acreditar no milagre’, e Tânia mandou-a ‘mascar para sempre’.”

Clarice teria ficado aterrorizada, “sem querer confessar que não estava à altura da eternidade, que a ideia a atormentava, mas ela não ousava. Finalmente, quando elas estavam indo para a escola, conseguiu deixar o chiclete cair na areia, simulando decepção e constrangimento por estar mentindo à irmã. ‘mas aliviada. Sem o peso da eternidade sobre mim’”, conforme revelaria mais tarde numa crônica presente em A descoberta do mundo, coletânea das colunas de jornais publicada postumamente.

Ultrapassando Kafka

Com fina inteligência de análise, Moser de fato revela o gênio da escritora. Muitos depoimentos também apontam essa riqueza existencial, como sua amiga até o fim da vida e editora, Olga Borelli, que disse: “Clarice tinha uma genialidade insuportável, para si mesma e para os outros.” Segundo Moser, “A hora da estrela é um monumento digno da ‘genialidade insuportável’ de sua autora.”

O depoimento de seu analista por seis anos, Jacob David Azulay, também oferece o perfil de um gênio impossível. “Ela era uma figura fantástica, uma mulher generosíssima, mas mesmo assim não era fácil conviver com ela. Era uma pessoa com uma carga de ansiedade que poucas vezes vi na vida. É muito difícil conviver com alguém assim. ‘Full time’ autocentrada, não porque ela quisesse, por vaidade, era dificuldade mesmo, de se conectar. Ela não se desligava e, quando sua ansiedade se acendia, a coisa atingia níveis avassaladores, e ela não tinha paz, não se aquietava. Viver era para ela, nessa medida, um tormento. Ela não se aguentava. E as pessoas também não aguentavam. Eu mesmo, como analista, não aguentei.”

Sobre a obra, para cada romance da escritora, há sempre um arremate que sustenta a superioridade de sua literatura. Moser diz que A paixão segundo G. H. é “um dos maiores romances do século.” Além disso, avalia A maçã no escuro como um romance que ultrapassa Kafka. A maçã no escuro é a “história da criação de um homem” que passa pelos estágios anteriores ao homem, sendo antes cavalo, bem antes, vaca, rato, planta, evoluída de uma simples pedra.

O eco dos gênios místicos

De pedra a homem é o máximo da evolução, segundo Clarice, durante quase toda a sua obra, porque além do homem não havia mais nada. Ou seja, uma negação total de Deus, depois de, na infância, não ter obtido respostas a seus pedidos de salvação. A visão do divino na obra de Clarice e na análise de Moser é puramente judaica.

Nessa perspectiva, não se pode negar que Clarice – uma biografia é o livro de um judeu do começo ao fim, procurando cavar a razão do sentimento literário de uma escritora essencialmente judia, sem nenhum traço pejorativo nessa observação. Mesmo porque é esta a razão pela qual Moser se interessou pela biografada, porque ela era judia.

É também esta a linha de análise que fez Moser incluir Clarice nos mistérios gnósticos da tradição judaica. “Ela emergiu do mundo dos judeus da Europa Oriental, um mundo de homens santos e milagres que já havia experimentado seus primeiros anúncios de danação. Trouxe a ardente vocação religiosa daquela sociedade agonizante para um novo mundo, um mundo em que Deus estava morto.”

“Como Kafka, ela se desesperou; mas, à diferença de Kafka, acabou, de modo atormentado, bracejando em busca do Deus que a abandonara. Narrou sua busca em termos que, como os de Kafka, apontavam necessariamente para o mundo que ela deixara para trás, descrevendo a alma de uma mística judaica que sabe que Deus está morto, mas que, no tipo de paradoxo que perpassa toda a sua obra, está determinada a encontrá-Lo mesmo assim.”

Mais adiante, Moser retoma: “É talvez em Kafka que se sente com maior intensidade o desespero judeu diante da perda de Deus. A renúncia a Deus para Clarice Lispector, nesse contexto, não era mais do que um reflexo de uma perda que o mundo judeu como um todo tinha experimentado.” A contestação da existência de Deus por pensadores judeus, tal como fez Clarice na entrevista a Edilberto Coutinho, não é algo intelectualmente espantoso.

Basta lembrar a perseguição nazista para se entender a razão. “Não acredito nesta besteira de judeu ser o povo eleito de Deus. Os alemães é que devem ser, porque fizeram o que fizeram.” Mas antes dos nazistas, já havia a perseguição antissemita e o horror dos pogroms, atmosfera sintomática que Kafka soube captar, e por isso é o grande mago da literatura universal. Ao ser comparada com o escritor tcheco, e Moser faz isso várias vezes, além de citar outros que também fazem a mesma comparação, Clarice é colocada no mesmo grau de excelência.

“Em 1941, aquele Deus estava morto”, diz Moser, se referindo ao início do desespero diante do Holocausto. “A Tora e o Talmud já não eram consoladoras árvores da vida, e o imenso edifício da cabala, as complexidades de sua metafísica, refinada e elaborada por séculos de gênios místicos, estavam em ruínas. Só os fatos do exílio e da perseguição, e a sede de redenção que eles engendravam, seguiam inalterados.”

Foram esses fatos e a maneira como Clarice os absorveu, completando-os com sua própria situação e de sua família, que deram a ela a dimensão de sua literatura, porque seguia as pegadas de gênios anteriores, mesmo que não os tivesse lido sistematicamente. “Quando Clarice Lispector começou a renunciar suas próprias especulações sobre o divino, ela estava ecoando os escritos de gerações anteriores que buscavam o eterno em meio à crise e ao exílio”, enfatiza o biógrafo.

Mesmo com toda essa luta de buscas e de negação, Clarice Lispector manteve-se enigmática até o fim. Já no final da vida, enviou um exemplar de A hora da estrela para Tristão de Athayde [Alceu Amoroso Lima], intelectual católico, com a inscrição “Eu sei que Deus existe”, como se quisesse lançar os dados de seu último paradoxo.

O universo de Clarice

Clarice – uma biografia tem um alcance histórico e sociológico, em torno da biografada, que não existe nas outras biografias, nem mesmo naquela escrita por Nádia Battella Gotlib, Clarice – uma vida que se conta (Ática, 1995), que também é ótima. Aliás, Moser aproveitou muito material de pesquisa levantado por Nádia. Clarice Lispector morreu de câncer em 1977, já consagrada como escritora, como escritora brasileira, diga-se de passagem, independente das análises, mesmo certeiras, da crítica.

Ler esta biografia é como se o leitor se apossasse da vida inteira de uma mulher enigmática e fascinante, como criadora e como personagem de si mesma que foi. Este é o valor maior do livro de Moser, além de ser bem escrito e dar várias chaves de interpretação da obra lispectoriana.

A partir do centro do universo de Clarice, setas apontam para várias direções: Ucrânia; Maceió (Alagoas), primeira cidade dos Lispector; Recife (Pernambuco), onde Clarice viveu até os 15 anos; Rio de Janeiro, terceira cidade da escritora; o mundo do Itamaraty e os lugares onde Clarice morou com o marido diplomata, como Belém, Nápoles, Roma, Berna, Washington; o jornalismo brasileiro; a família; os amigos; o palco literário e a obra da autora.

Segundo Moser, Clarice uma vez disse: “Escrevo sem esperanças de que alguma coisa que eu escreva possa mudar o que quer que seja. Não muda nada.” Mas ela sabia que muda. Alguma coisa muda quando se consegue dimensionar o estético, fazendo da arte uma espécie de educação sentimental. E essa mudança, mesmo mínima, pode ser como a alavanca de Arquimedes.

Publicado originalmente no jornal Tribuna do Planalto (07/03/2010).

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