segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

A cidade no divã


O homem da cidade é ele próprio uma cidade inteira. Ou melhor, várias. Todas elas convivendo dentro dele, em sua memória e em sua consciência, devido aos livros que leu, às viagens que fez, às conversas que teve, tudo sendo processado e transformado pela imaginação e pela necessidade de se reinventar, que é inerente a todo ser humano.

Esse conhecimento não é novidade. Escritores e poetas notáveis já cantaram essa pedra. Pensadores da modernidade e críticos também. Basta citar Ítalo Calvino, Carlos Drummond de Andrade, Marshal Berman, Giulio Carlo Argan e Henri Lefevre.

Quando se trata de cidades grandes, esta subjetividade múltipla interessa, e muito, à psicanálise, porque se podem ver ali todos os fenômenos psíquicos originados do confronto entre sujeito e sociedade, indivíduo e coletividade, vida interior e o produto das ações humanas e dos fenômenos naturais.

Não foi por outra razão que a Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), em parceria com a Federação Latino-Americana de Psicanálise (FEPAL), realizou uma série de eventos sobre a relação do homem com o espaço urbano das grandes metrópoles, que acabaram resultando num livro fascinante chamado A psicanálise nas tramas da cidade (Casa do Psicólogo, 2009, 447 páginas).

São 32 textos que procuram abranger o máximo de assuntos possível, atuais e urgentes, do ponto de vista da convivência e dos trâmites sociais inseridos no tempo e no espaço. “Cada cidade que habitamos e que nos habita é construída, assim, a partir da trama de pessoas, situações, relações, lembranças e vivências anteriores e atuais”, diz, em um dos textos, o psicanalista e médico psiquiatra gaúcho Claudio Laks Eizirik.

A alma da cidade é, portanto, a alma de todos, costurada em fios como aglomeração urbana, redes sociais, o conflito das novas gerações, a virtualidade e o sujeito, a questão da arte, o papel da memória, o exercício do medo, da sensualidade e do erotismo. Tudo isso configurado no cotidiano, em meio aos mil e um símbolos que constroem a subjetividade, que fazem do sujeito moderno um tipo célere e lotado de mundos.

É a cidade sendo analisada como organismo vivo que ela é, a cidade como portadora de vários conflitos, quase todos gerados na modernidade, potencializados na contemporaneidade, abraçados por fenômenos como violência, velocidade, consumismo, crise de identidade e outros sintomas, para utilizar aqui um jargão psicanalítico.

No artigo “Arte, psicanálise e cidade”, o psicanalista João Augusto Frayze-Pereira chama a atenção para um fator interessante em relação à velocidade nos tempos modernos, que mudou a relação do artista com a cidade, antes obra coletiva, e hoje um conjunto de individualidades jogadas no meio do tráfego caótico. A psicanálise nasceu dentro dessa nova perspectiva. A arte moderna também, como a poesia de Baudelaire, poeta francês que já se sentia perplexo diante do caos, em pleno século XIX.

Desde e a perspectiva de Baudelaire, diz Frayze-Pereira, “o homem é arremessado de encontro ao tráfego, esforçando-se não apenas por sobreviver, mas por manter a própria dignidade em meio a esse espaço caótico.” Talvez o fluxo cada vez maior de carros nas grandes cidades seja o mais emblemático desta crise pós-moderna, porque simboliza um ambiente que necessita da velocidade, recria as concepções de espaço e tempo, da mesma maneira que faz surgir uma geografia do medo e de tensões altamente inflamáveis.

Para um pedestre atravessando a rua, há sempre uma ameaça à sua integridade física. Para um motorista parado no semáforo, saindo da garagem de casa, ou entrando nela, um motorista plantado no trânsito lento de um congestionamento, há de igual modo uma sensação de perigo rondando a alma.

Tudo isso afeta todo mundo de forma direta. E desde Baudelaire, que captara isso em Spleen de Paris e em Flores do Mal, a tensão como produto da vida moderna foi potencializada. Filmes como Traffic também demonstram a que ponto chegou a vida na cidade.

Subjetividade múltipla

Outra proposta interessante do livro é sua capacidade reflexiva. Os eventos giram em torno da psicanálise, procurando mostrar como esta vê a cidade, mas também, como numa sessão de análise, abre espaço para a cidade se mostrar, ouvindo profissionais de outros horizontes.

Estão presentes (com textos ótimos) o jornalista Roberto Pompeu de Toledo, falando sobre a relação de São Paulo com as águas (problema atual e antiquíssimo), o crítico literário Manoel da Costa Pinto, que aborda o que ele chama de estética do resto, o professor de literatura José Miguel Wisnik, com o artigo “Cidade, subjetividade, poesia”, o escritor Ignácio de Loyola Brandão, com uma palestra sobre o erotismo nas ruas noturnas de São Paulo, entre vários outros nomes.

À medida que o leitor vai percorrendo os textos, na sequência ou aleatoriamente, vai se tornando o próprio objeto de análise, porque ele faz parte da cidade. É sua pele e sua alma. Ao adentrá-la nesses textos, torna-se também o analisado, dá um mergulho na subjetividade múltipla da cidade, e, desse modo, pode trazer na emersão de volta um resultado interessante de reflexão sobre si e sobre o outro.

Um exemplo desse exercício psicanalítico são os textos “Intervenções clínicas na comunidade: que psicanálise é essa?”, do psiquiatra Roberto Tykanori Kinoshita, e a entrevista com o cineasta Philippe Barcinski, “Linguagem onírica e linguagem cinematográfica”.

Kinoshita dá um testemunho objetivo, mas emocionante, de sua experiência com as comunidades periféricas. Segundo ele, a ideia de comunidade, numa primeira impressão, não existe. Não existe porque ninguém se identifica de imediato com ninguém. Nas concentrações das grandes cidades, cada um é cada um, para citar um ditado popular.

As pessoas podem até se conhecer, mas não compartilham os problemas, porque se sentem culpadas por serem pobres, sentem-se fracassadas por viverem num ambiente repleno de desgraça e acontecimentos fatídicos. Kinoshita conta que passou a aplicar um método chamado “terapia comunitária”, desenvolvido pelo psiquiatra antropólogo cearense Adalberto Barreto.

“Os psicólogos e psicanalistas arrepiam-se com essa terminologia. É estranho, à primeira vista”, diz Kinoshita, referindo-se ao fato de trabalhar o “complexo de culpa” dos moradores da periferia com a “terapia comunitária”, em que, no lugar de contar suas desgraças, compartilham as experiências de superação, gerando assim um tipo de convivência positiva que pode ser chamada de comunidade.

No artigo “Tempo e ritmo na cidade”, de Maria Helena Rego Junqueira, apenas por uma observação, o leitor consegue entender por que os psicanalistas estranham o método aplicado por Kinoshita, o único no livro a ressaltar diretamente o problema do sujeito da periferia como problema psicanalítico. É que habitualmente, diz a psicanalista, “o que ocorria, até poucos anos, era o entendimento da psicanálise como uma prática privada, exercida em consultórios particulares e destinada a pacientes com poder aquisitivo de médio a alto.”

Segundo Maria Helena, “o surgimento das clínicas sociais das instituições psicanalíticas transformou esse panorama, possibilitando que pessoas necessitadas de análise e que não tinham o poder aquisitivo suficiente pudessem encontrar uma oportunidade de atendimento.” Além disso, a psicanalista dá uma valiosa contribuição ao debate ao abordar a questão do ritmo nas grandes cidades, discussão que pode ser estendida a um centro de porte médio como Goiânia.

Segundo ela, o panorama das cidades contemporâneas, marcado por uma profunda transformação no ritmo de vida, passa pelo acumulo de tarefas, jornada de trabalho cada vez mais extensa, trânsito (sempre ele), congestionamentos, tempo perdido, consumo desenfreado e compulsivo. No pacote também surge o conflito entre a necessidade da satisfação social e, em função disso, a incapacidade de satisfação individual, porque são dois fluxos completamente diferentes.

Cinema, trânsito e psicanálise

O bate-papo com o jovem cineasta Philippe Barcinski, diretor de “Não por acaso”, mediado pelo médico psiquiatra Rogério Nogueira Coelho e Souza, é um dos pontos altos do livro. Barcinski não só dá uma aula de roteiro de cinema, analisando o funcionamento da linguagem cinematográfica, a partir de seu filme, como também analisa a estrutura mecânica de uma grande cidade como São Paulo. Mecanismos estes que interferem diretamente no comportamento do cidadão e, principalmente, do sujeito.

Para lembrar Maria Helena Rego Junqueira mais uma vez, é preciso escutar a cidade como quem escuta um rio em seu curso cotidiano. É desta escuta – de seus fluxos e entraves, expressões e dinamismo feitos de tudo quanto existe, ruídos, pessoas, carros – que nascem os sujeitos, a partir dos quais se cruzam as subjetividades.

Foi esse olhar que Barcinski lançou para compreender São Paulo e fazer “Não por acaso”, ambientado na capital paulista. Além do resultado do filme, ficou impresso na memória, e no livro, a compreensão também da cidade. Em um trecho de sua entrevista, o cineasta explica a diferença entre o trânsito do Rio de Janeiro e do da capital paulista. Os cariocas, diz Barcinski, são mais desordeiros. Bloqueiam cruzamento, param em fila dupla, estacionam o carro na calçada.

Já os paulistanos encaram o trânsito de forma mais ordeira. Veja só. Na visão de Barcinski, a tentativa de ser correto nas obrigações com o tráfego é que causa estresse nas ruas de São Paulo. Isso porque, na cidade onde se procuram cumprir as normas, quem não cumpre é duramente penalizado. No Rio, os motoristas se vingam cometendo o mesmo ato contraventor. Em São Paulo, quem comete uma irregularidade ouve buzinaço e xingamentos, quando não acontece violência maior.

Publicado originalmente no jornal Tribuna do Planalto.

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