Poesia é um troço mágico, que te pega pelo ritmo e te arrasta até o groove do significado. Um poeta é menos construção como poeta do que dom de manejar a palavra fora da fileira gramatical, num campo específico do poético. Talvez por isso, seja mais fácil testemunharmos uma precocidade na poesia do que na prosa. Por isso, é comum vermos poetas nascerem cedo, e não romancistas.
Indo à Biblioteca Pública da Praça Cívica, decidi ler um livro de Gabriel Nascente chamado Os gatos, que ele lançou aos 16 anos, em 1966, na famosa livraria Bazar Oió. A livraria, que foi um aglutinador de intelectuais nos anos 1950 e 1960 em Goiânia, não existe mais. Mas o livro de Nascente ainda está vivo por aí, como portador de sete vidas (e a magia da poesia cede mais vidas do que isso).
Nascente não rejeitou seu livro de estreia. Em 2011, ele publicou a segunda edição de Os gatos, fazendo apenas o alerta de que eram seus primeiros versos, um tanto românticos, um tanto ingênuos.
Não dá para buscar excelência no primeiro livro de Nascente, mas pode-se constatar nele a verve criativa do poeta, o modo como ele expressa sua visão de mundo, tentando compreender a si mesmo no estado de coisas.
As principais figuras que surgem no corpo poético de Os gatos são a figura do eu, da natureza e da mulher, metaforizada nos gatos ou não. Neste sentido, a aparição de Nascente em 1966 tem o mesmo valor da aparição de outro poeta goiano, Pio Vargas, em 1983.
A diferença das estreias é que Pio Vargas, mais tarde, meio que rejeitaria – pelo menos recomendou que não lessem – seu primeiro livro publicado, Janelas do espontâneo, escrito entre seus 13 e 17 anos.
Pio Vargas morreu em decorrência de uma overdose de cocaína, aos 26 anos, em 1991. Como recompensa e homenagem à sua curta vida, em que se tornou um poeta notável, tido por alguns críticos como o maior de seu tempo em Goiás, deu-se seu nome à Biblioteca Pública da Praça Cívica.
Confesso que não conheço a poesia goiana tão bem a ponto de discordar, mas, parece-me que Vargas seria um grande poeta se não tivesse morrido. Só isso. Dizer que era o maior é querer ser grande com o ego dos outros, e que seria o maior é um desmedido exercício de futurologia do pretérito, uma espécie de grande necromancia crítica.
O que Pio Vargas fez em Janelas do espontâneo, Gabriel Nascente havia feito, com poucas modificações de olhar em Os gatos. Em seus respectivos começos, ambos têm uma precocidade verificável e verossímil, mas que não é rara nos poetas.
É que temos o hábito de lembrar apenas dos poetas que se destacam nacional ou internacionalmente, como Paulo Leminski, que aos 16 anos era paparicado pelos irmãos Haroldo e Augusto de Campos e chamado de novo Rimbaud, este que aos 16 anos despontou na cena poética de Paris, e aos 19, já havia se aposentado.
Paralelos
Alguns fazem um paralelo entre a figura de Vargas e a de Rimbaud para depois dizer que Vargas não pode ser considerado o Rimbaud do Cerrado porque, assim, sua poesia (a de Vargas) seria reduzida à de um epíteto. Outros, mais pé no chão, acham apenas que Pio Vargas estava acima de Leminski.
Nem Leminski era um Rimbaud, não passando de um bom poeta (genial, no sentido de ser criativo à beça, mas longe de ser um gênio), nem Pio Vargas é um Leminski (poderia ter sido, talvez, se a vida tivesse lhe dado chance, para que eu mesmo não fique imune à necromancia crítica).
Li Anatomia do gesto, o livro mais maduro de Vargas, e gostei. Confesso que não li com tanto cuidado a ponto de fazer uma crítica, logo, isto aqui é só uma observação de leitor. Trata-se de um imenso avanço técnico e profundo cuidado imagético em relação ao livro de estreia.
A organicidade dos poemas, o ritmo e as galerias metafóricas entre o corpo, a alma e a vida são impressionantes. Vargas já tentava fazer isso em Janelas do espontâneo, com menos sucesso, obviamente, pela falta de experiência de vida.
O que vi no livro que reúne todos os seus livros, organizado por Carlos Willian Leite (editor da Bula, o bem-sucedido portal de literatura de Goiânia), me fez sentir vontade de ler Pio Vargas.
Comparações
Por enquanto, permaneço na lembrança de ter encontrado Os gatos, de Gabriel Nascente, na Biblioteca Pio Vargas, e acabei tendo a curiosidade de comparar o primeiro livro de Nascente com o primeiro de Vargas.
Em Os gatos, o sujeito poético de Nascente diz coisas como:
“A densa tarde de brumas inacabadas
que hoje passa pelo farol noturno
das ruas é a surpresa da noite.”
E Pio Vargas, em Janelas do espontâneo, diz:
“brilha o gigante girassol
no horizonte
vomitando luzes frouxas
à terra.
descansa o jardim
e minha tarde começa a acontecer.”
Diz Nascente em seu livro de estreia:
“Cai chuva
porque
enquanto a terra molhas
eu choro meus versos
em silêncio.”
Diz Pio Vargas em seu livro de estreia:
“Há uma espera
entre a chuva e o vento:
o vento empurra cruciante
nuvens que querem chover!
a enorme folha cinzenta
desliza lentamente
no tempo,
enquanto o vento bravio
varre, preparando, a terra.
a terra sorri...
mais um pouco,
e o vento libera o espaço:
gotas de amor
no seio da semente...”
Para mim, o arroubo poético - a vontade de dizer alguma coisa que irrompe na alma - é a mesma, nas respectivas fases juvenis, que se deram em épocas diferentes. Nascente vindo primeiro, obviamente.
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