quarta-feira, 25 de março de 2009

A CERIMÔNIA DO ADEUS: um livro que ainda vale a pena ler

“A separação de Sartre era sempre um choro para mim.”
Simone de Beauvoir


Simone de Beauvoir e Sartre foram sem dúvida o casal mais bem-sucedido do universo intelectual do século XX. Colocando o Prêmio Nobel como parâmetro de sucesso e badalação, se fôssemos comparar algo parecido seria o que aconteceu no mundo das ciências com os Curie.

Os Curie foram o único casal que ganhou separadamente o Prêmio Nobel. Na verdade, Marie Curie e Pierre Curie ganharam juntos o Nobel de Física, em 1903. Depois Marie Curie foi laureada com o de Química, em 1911.

Sartre também ganhou o Nobel, o de Literatura, em 1964, mas não Beauvoir, embora o merecesse tanto quanto ele. Os dois se conheceram ainda jovens, e a afinidade intelectual, aliada ao apelo sexual, companheirismo, cumplicidade, o fizeram parceiros da vida toda.

Sartre morreu em 1980, aos 75 anos de idade. Talvez por saudade, por uma incompatibilidade de existência sem seu companheiro, Beauvoir, a quem Sartre chamava carinhosamente de Castor, faleceria seis anos depois, aos 78 anos.

Ela escreveu A cerimônia do adeus para homenagear Sartre. O livro tem duas partes. Na primeira, Beauvoir comenta os últimos dez anos de convívio com ele, de 1970 a 1980. Na segunda, publica de forma contínua uma série de entrevistas que fez com o autor de O ser e o nada, entre o verão e o outono de 1974.

Sartre conviveu com o que houve de mais ilustre no mundo das artes, da filosofia e da política em Paris, sendo ele mesmo um dos pensadores mais influentes de seu tempo. A dedicatória do livro de Beauvoir é para aqueles “que amaram Sartre, que o amam, que o amarão.”

O livro foi publicado em 1981, um ano após a morte do filósofo. Talvez hoje poucos o amem. Mas, o eterno retorno do mundo não nos garante nada. No mínimo, sua obra literária ainda vale uma leitura. E quem estuda filosofia, certamente não tem como pular o capítulo do existencialismo sartriano, por mais que o considerem datado.

De prêmios e livros

O que interessa em A cerimônia do adeus são as belas passagens da entrevista de Sartre, em que ele fala de Deus, de genialidade, de suas mil e uma amantes, seus amigos e inimigos, e, claro, da liberdade, de livros, viagens, cidades, política.

A entrevista com o filósofo e literato é uma conversa interessante até hoje, instigada pela inteligência e a profunda entrega de Beauvoir, que faz Sartre desenhar seu mundo e a maneira como ele o via, com toda sua carga de leitura e de vivência da ‘alta cultura’.

Coerente com suas ideias, recusou o Nobel que ganhou. É bom lembrar que valia cerca de 1 milhão de dólares. Segundo ele, o Prêmio consiste em classificar os escritores, hierarquizando a literatura.

Consiste em conferir um prêmio a cada ano. A que corresponde esse prêmio? Que significa um escritor que recebeu o prêmio em 1974, o que quer dizer isso em relação aos homens que o receberam antes ou em relação àqueles que não o receberam, mas que escrevem como ele, e que talvez sejam melhores?

A quem diga que Sartre falava isso tendo em mente a imagem de Albert Camus, seu amigo que depois tornaria inimigo, ganhador do Nobel de Literatura em 1957 (leia mais aqui).

Sobre livros, ele diz:

Desde minha juventude, e durante muito tempo, até 1950, considerei um livro como algo que proporciona uma verdade: o estilo, a maneira de escrever, as palavras, tudo isso era uma verdade, trazia-me algo. Não sabia o quê e não dizia a mim mesmo, mas pensava que isso me trazia algo. Os livros não eram apenas objetos, não só uma relação com o mundo, mas uma relação com a verdade, e uma relação dificilmente dizível mas que eu sentia. Então, quanto aos livros literários, era isso que esperava deles, essa relação com a verdade.

Sartre enclausurado

A cerimônia do adeus também vale pelo testemunho de uma mulher apaixonada, que via o amor como uma coisa burguesa e, por isso, teve de denominar e direcionar seus sentimentos de outro jeito. Mas era amor o que ela sentia. A recíproca talvez fosse verdadeira. Eles seguiam a máxima do existencialismo “se você me ama, não me ame”, com a pretensão de sempre deixar um ao outro livre.

Mas isso não impediu Beauvoir de abrir o prefácio do livro com as seguintes palavras:

Eis aqui meu primeiro livro – o único certamente – que você não leu antes que o imprimissem. Embora todo dedicado a você, ele já não lhe concerne.

Quando éramos jovens e, ao final de uma discussão apaixonada um de nós triunfava ostensivamente, dizia ao outro: ‘Você está enclausurado!’ Você está enclausurado; não sairá daí e eu não me juntarei a você: mesmo que me enterrem ao seu lado, de suas cinzas para meus restos não haverá nenhuma passagem.

Esse você que emprego é um engodo, um artifício retórico. Ninguém me ouve; não falo com ninguém.

Linguagem existencialista, é verdade, mas não deixa de ser uma declaração de amor.

Trechos:

De Deus

Meu ateísmo passou de idealista a um ateísmo materialista. O ateísmo idealista é difícil de explicar. Mas quando dizia: Deus não existe – era como se me tivesse desfeito de uma ideia que estava no mundo, e tivesse colocado em seu lugar um nada espiritual, uma determinada ideia frustrada, no marco de todas as minhas ideias.

O ateísmo idealista é ausência de uma ideia, uma ideia de Deus. O ateísmo materialista é o universo visto sem Deus, e isso, evidentemente, é de fôlego muito longo, o passar desta ausência de uma ideia a esta nova concepção do ser; do ser que é deixado nas coisas e que não é eliminado das coisas numa consciência divina que as contemplaria e as faria existir.

Penso que houve um tempo em que era normal crer em Deus, no século XVII, por exemplo. Atualmente, considerando a maneira pela qual vivemos, o modo pelo qual tomamos consciência de nossa consciência e pelo qual percebemos que Deus nos escapa, não há intuição do divino. Penso que neste momento a noção de Deus é uma noção anacrônica já, e sempre senti algo de caduco, de ultrapassado nas pessoas que me falaram de Deus acreditando nisso.

Não tenho necessidade de Deus para amar meu próximo.

Do reconhecimento de sua obra

Jean-Paul Sartre: Considero que a maioria das pessoas que nos cercam ainda são muito sensíveis a uma Legião de Honra, a um Prêmio Nobel, a coisas que tais, quando, em realidade, tudo isso não corresponde a nada. Isso só corresponde a uma distinção dada na hierarquia a um ser que somos, mas que corresponde sem compreender bem por quê.

Simone de Beauvoir: Há, no entanto, reconhecimentos que você aceita. Você não aceita o reconhecimento por certos homens, do valor, digamos de sua obra filosófica, de maneira que lhe deem um Prêmio Nobel, mas aceita o reconhecimento, e até o deseja, da parte dos leitores, da parte do público.

J-PS: Sim, é minha função. Escrevo, portanto desejo que o público para quem escrevo considere boas as coisas que escrevo. Não que pense que sejam sempre boas, longe disso, mas quando por acaso elas podem ser boas, desejo que sejam imediatamente estimadas como tais por meu leitor.

6 comentários:

Leila Silva disse...

Que maravilha de post. Acabei hoje de manhã, a leitura do primeiro volume de Os Mandarins, Beauvoir. Antes eu estava relendo algumas partes do Cerimônia do adeus.
Abraço

Gilberto G. Pereira disse...

Obrigado, Leila!
Beauvoir é uma grande escritora, né. Paulo Francis, em seu Waaal: o dicionário da corte, destilou um veneninho, que deveria ser corrente na época de ouro do existencialismo, segundo o qual, Beauvoir era quem escrevia os romances de Sartre, heheh.
Não acredito nisso, mas é divertido imaginar Sartre com seus óculos grossos levando os papeis de A idade da razão para Beauvoir dar uma estilizada.
Um abraço!

Siri disse...

Gostei muito de sua apresentação
pois meu deu uma síntese do qual precisava a respeito desta obra literáriade de Beauvoir: cerimônia do adeus. mas, permita-me sugerir uma interessante leitura de um autor alemão: Erich fromm (A arte de amar).Um abraço ...

Gilberto G. Pereira disse...

Obrigado, Siri! Eu já li esse livro do Fromm, que realmente é muito bom, né. Abç!

Ronaldo Castro disse...

Muito bom!!!

Embora não fosse considerada pela crítica, Beauvoir era existencialista de primeira linha, como Sartre. Maravilhosos!

Ronaldo Castro disse...

Muito bom!!!

Embora não fosse considerada pela crítica, Beauvoir era existencialista de primeira linha, como Sartre. Maravilhosos!