Walter Galvani
O jornalista e escritor gaúcho Walter Galvani é um mestre da palavra. Grande conhecedor dos caminhos do bom texto, tem vários livros publicados, entre romances, história, comunicação e crítica literária. No ano passado, lançou O prazer de ler jornal: da Acta Diurna ao blog (Unisinos, 2008), um perfil histórico e editorial do jornalismo impresso e sua vertente online.
Tenho a sensação de que Galvani é pouco conhecido fora do meio acadêmico e jornalístico. Mesmo aí, haverá uns desavisados que ainda não ouviram sequer falar deste senhor de 75 anos, nascido em Canoas, autor de Anacoluto do princípio ao fim e Crônica: o voo da palavra, para ficar na esfera de alcance nacional, que é o livro.
Para quem quiser conhecê-lo, eis aqui uma boa dica. O prazer de ler jornal é uma crônica do jornalismo atual. Galvani manipula os fios históricos para mostrar que, embora tenha se multifacetado, o jornalismo ainda mantém, no jornal impresso, o prazer da leitura.
A fonte
De acordo com Galvani, nos dias de hoje, as notícias negativas crescem como erva daninha e matam pela raiz a possibilidade do texto agradável. Ainda assim, diz ele, o jornalismo diário impresso, acompanhado de sua versão online, oferece um pequeno espaço para quem busca o prazer de ler.
“Ler ou não ler, demorar-se na visitação, ir além do primeiro clique, ou buscar as edições em papel, tudo depende de uma decisão que passa pelo sentimento do prazer”, comenta o autor.
O jornal já foi um meio privilegiado de reportar a notícia. Hoje, ele compete com os blogs, os celulares, os twitters (meio que não foi citado pelo autor por ser recente demais), o youtube, a TV, o sistema wiki, como a Wikipédia, e outros.
Apesar de todos esses concorrentes, o jornal continua “lutando pela sua permanência” como “o grande difusor de notícias.” É aí que entra a tese de Galvani: como fazer com que o jornal continue com o status de veículo importante?
Um passo atrás, dois à frente
Não dá para competir com os novos meios usando as mesmas armas, ou seja, dando espaço cada vez mais aos fatos menores e sensacionalistas, “a notícia pueril do acidente na esquina ou o que seria hoje o corriqueiro crime no tiroteio entre bandidos ou nas balas perdidas que punem a violência e a falta de civilização”, diz o autor.
Há as exceções, e Galvani cita várias delas que dão ao leitor a oportunidade de descobrir esse prazer que deveria estar no centro do jornalismo. Ele argumenta que o jornal tem de prender o leitor pela leitura edificante, que oferece um prazer duradouro, voltando-se aos moldes dos grandes jornais do século XIX, fazendo “chegar ao leitor a opinião crítica, política, filosófica, ideológica.”
Para tanto, seria necessária uma nova leva de jornalistas gabaritados, com sólida formação cultural, capaz de ler melhor os fatos, ler a alma da nação e as condutas de cada setor da sociedade, para que, aí, sim, fosse capaz de oferecer ao leitor algo prazeroso de ler.
Jornalistas bem formados são capazes de desenvolver pautas geradoras de textos que penetram mais o coração do leitor. Neste caso, os concorrentes, principalmente os blogs, passariam a ser aliados, como inesgotáveis fontes de boas pautas.
Segundo ele, outra linha muito própria dessa fonte do prazer da leitura é a crônica, esportiva ou não. “A crônica é um espaço privilegiado. É talvez o local onde mais acentuadamente se produz o ‘prazer de ler jornal’”, diz.
E assim Galvani vai tecendo seus argumentos, que beiram sempre a utopia, é verdade, mas com clareza de ideias. Ao longo de suas pinceladas argumentativas, o autor vai, paralelamente, relembrando a história do jornal e seus principais desafios.
Ele lembra, por exemplo, que a primeira manifestação do que se pode chamar de jornal é a Acta Diurna, criada no ano 131 a.C. pelos romanos, oficializada por Júlio César, em 59 d.C.
Os cidadãos romanos (os que sabiam ler, diga-se de passagem) se aglomeravam diante do Senado para saber das últimas boas novas, resumidas numa grande pedra, “desde uma vitória esportiva a uma conquista guerreira ou ao falecimento de alguém importante.”
Jornalismo X literatura
Um dos desafios do jornalismo, hoje, se encontra no campo da cultura: sua conturbada relação com a literatura. O namoro existe há séculos. Muitos dos romances de escritores do nível de Dostoievski, Balzac e Machado de Assis, por exemplo, nasceram dessa relação. Mas, atualmente, a literatura anda em baixa nos jornais. Galvani se ressente.
Para nos atermos a um fato próximo aos nossos dias, que nem foi possível ser comentado no livro de Galvani, temos o exemplo do Washington Post, tradicional jornal norte-americano, que cortou a circulação de seu caderno literário.
Desde 15 de fevereiro, o Book World não existe mais, segundo informação da Folha de S. Paulo, de 1º de março, no Caderno Mais! A alegação é a crise. Talvez mais a crise do modelo de civilização do que a econômica, que assola os Estados Unidos atualmente.
Galvani revive um argumento que já rola há um bom tempo na boca dos mais experientes, como um misto de saudosismo e utopia, o que não é demérito. A utopia nem sempre é demérito. Ele cita o livro da jornalista Cláudia Nina, Literatura nos jornais, para dizer que estes estão substituindo as resenhas de análise da literatura por “releases promocionais.”
O prazer e o número
No contexto do prazer de ler jornal, podemos incluir o prazer de ler um livro, que, aliás, segundo Galvani, é muito semelhante ao primeiro. Ambos têm de ‘pegar o leitor pelo pescoço e não soltá-lo até o final’, para lembrar aqui uma frase da escritora chilena Isabel Allende, citada no livro de Galvani.
Embora as argumentações de Galvani sejam pertinentes, receio que a tradição oral da sociedade brasileira tenha mais peso na falta do prazer de ler jornal do que a carência de bons textos. Se houvesse leitor, imagino, haveria a preocupação para este fim.
Abro aqui um parêntese para dizer que o número de leitores no Brasil sempre foi muito reduzido. Quando se trata de jornal, as estatísticas apontam uma leve inclinação para cima, mas nada que faça vencer um concurso de devoradores de notícias.
É verdade que essa constatação pode ser um quiproquó, na linha da questão “quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha?”. Será que se houvesse mais textos nos moldes dos reivindicados por Galvani, haveria mais leitores?
Para se ter uma ideia, o jornal mais lido do país, a Folha de S. Paulo, tem uma tiragem em torno de 400 mil exemplares no final de semana. Trinta vezes menor do que a tiragem do jornal japonês Yomiuri, que é de 14 milhões de exemplares diários.
Parece mentira, mas é esse o dado da Associação Mundial de Jornais (WAN), de 2003. E ainda temos de considerar que o Japão tem uma população menor do que a brasileira, com 127 milhões de habitantes, segundo dados de 2001, publicados no Portal Japão.
Há mais. Os outros quatro principais jornais do país do Sol Nascente também têm tiragens diárias altas. O do Asahi Shimbun é de 12,3 milhões, o Mainichi Shimbun imprime 5,6 milhões exemplares todos os dias (para fazer aqui um trocadilho invisível), além de 4,7 milhões do Nihon Keizai Shimbun e 4,5 milhões do Chunichi Shimbun.
Os maiores jornais do Ocidente ficam a léguas de distância desses números. Ainda segundo a WAN, o USA Today tem uma tiragem de 2,6 milhões de exemplares por dia, o Wall Street Journal, 1,8 milhão e o New York Times, 1,6 milhão.
Ou seja, o índice de analfabetismo, portanto, cairia por terra como argumento. A razão talvez esteja mesmo na questão da tradição de leitura e na importância dada a isso.
Só vale o prazer
Números a parte, para fechar, O prazer de ler jornal vale pela leitura fluente, pela aula de história do jornalismo, pela posição clara do autor, vale pela formação e informação, principalmente para a enxurrada de alunos de comunicação que todo ano se gradua no Brasil.
Mas também vale por uma questão fundamental. O ótimo texto de Galvani nos premia com frases muito boas. Essa particularidade pode ser vista ao longo do livro, como a que diz: “A vida está difícil, comprimida entre o ódio e o rochedo, entre a impotência e a aparente onipotência do mal”, se referindo à insistente cobertura que a mídia faz da violência de toda sorte.
Ele também diz: “Onde há eletricidade, há globalização”, sobre o fato de não mais haver isolamento, em tese, uma vez que é possível assistir a TV ou falar ao telefone em quase todo o país, informando-se sobre tudo que acontece em quase todo o mundo.
O livro de Galvani não tem a pretensão de grande manual e, por isso mesmo, consegue alcançar o objetivo de ajudar o leitor a encontrar o caminho do prazer de ler jornal. Como ele mesmo diz: “Só vale o prazer, mesmo que, por vezes, dolorido.”
Serviço:
O livro de Galvani pode ser comprado na Livraria Cultura, clique no título.
Título: O prazer de ler jornal: da Acta Diurna ao blog
Autor: Walter Galvani
Editora: Unisinos, 2008, 140 páginas
Gênero: Comunicação/Jornalismo
Preço: R$ 20,00
4 comentários:
É Gil, mas como mudar este cenário nacional? Será isso próprio da cultura brasileira? esse dom quase nato que está em toda parte de "subdesenvolimento", esta coisa estragada... será uma caverna?
Grande abrço,
Diego Rezende
Grande Diego. Obrigado pelo comentário!
Eu diria que há sempre uma esperança, jogando do lado de Galvani. Afinal de contas, os alemães, os franceses, os europeus, um dia, foram bárbaros, e se tornaram o centro da civlização ocidental, não só lendo jornal, claro, mas, sobretudo, cultivando a memória e o registro do conhecimento e da técnica por meio da escrita, da leitura. O problema é que, me parece, os paradigmas da civilização estão mudando, e, neste caso, o Brasil também pode mudar, só não se sabe se para melhor ou pior.
Ler é colher e escolher. Que os frutos sejam cultivados fora da caverna para receber a luz do sol, né, meu caro!
Grande abraço, Diego!
Olás.
Já dizia Kandinski que, quanto maior a cultura e o desenvolvimento intelectual individual, mais tal indivíduo acaba por ser afastado do grupo. Mas, paradoxalmente, alienando-se, afasta-se de seu caminho à luz.
Luz ou trevas? ser ou ler? só ou mal acompanhado? guerra ou paz? parvo ou Platão??? That's the question...
Dual Ética Flávia. (i'm come back, ai!)
Cara Flávia Pundinski, obrigado pelo comentário e pela visita depois de tanto tempo, né. Mas tenho de discordar. No caso de ler jornal, a leitura se faz pelo prazer, segundo Galvani, mas também pela necessidade de informação. Jornalismo é comunicação social, portanto, um instrumento de debate pelo qual a coletividade se conhece e se estranha.
Há várias outras leituras além da leitura de fruição, mas todas elas, individuais quase sempre, nos dias hoje (lembrando que a leitura já foi exclusivamente coletiva, ou pelo menos em voz alta), com exceção de palestras, que em inglês se diz lecture, todas elas primam pela capacidade de abrir ou expandir a consciência individual e, consequentemente, social. A mim não me parece que os grandes leitores sejam alienados, pelo contrário.
Quanto ao afastamento, a leitura individual, silenciosa, é solitária, sem dúvida, mas ela retorna ao espaço coletivo, se o sujeito for socialmente participativo. Não é a leitura que faz o sujeito se afastar, é a maneira como esse sujeito se organiza psicologica e socialmente. Desse modo, pode se tratar tanto de uma pessoa anônima quanto de um célebre pensador ou um escritor. No segundo caso, cito Michel Foucault, e até mesmo Juan Carlos Onetti. No primeiro, não posso citar, já que é um anônimo e para citar Camus citando Chamfort (cultivando a cultura das citações) "não se pode notar a ausência de um desconhecido."
Um abraço!
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